A DEGRADAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA ALEMANHA E NA UNIÃO EUROPEIA EM TEMPOS DE ANTITERRORISMO

Resumo

Com uma perspectiva que parte do Estado de Segurança Preventivo na Alemanha até atingir a respectiva arquitetura de segurança europeia e, até mesmo, mundial, permeada pela “Guerra Internacional contra o Terrorismo”, vemos confirmados os nossos piores temores.
Assim, a “Nova Monitoração do Mundo” ocorre, ostensivamente, não apenas na política externa – incidente, nos dias de hoje, antes de tudo, sobre o Oriente Próximo e Médio, a Ásia, mas também sobre a África –, mas ainda em meio à nossa sociedade, na qual, cada vez mais, desaparecem os direitos clássicos fundamentais e de liberdade. Ela se encaminha para uma arquitetura de segurança global de índole neoliberal que não se pode situar no interesse da democracia e se volta contra as associações de Direitos Humanos e de Cidadania, sindicatos e organizações sociais, movimentos antiguerra e de críticos da globalização, empenhados em conscientizar e resistir, profunda e diferenciadamente.

Artigo

A DEGRADAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA ALEMANHA E NA UNIÃO EUROPEIA EM TEMPOS DE ANTITERRORISMO

                                                                                                                        Hans-Eberhard Schultz¹

INTRODUÇÃO

Gostaria de começar tratando de três notas introdutórias: sobre as condições histórico-iniciais especiais, o conceito de “terrorismo” e a concepção crítica da aplicação dos Direitos Humanos existentes na Alemanha e na União Europeia. Importantes restrições dos Direitos Humanos estão sendo, cada vez mais frequentemente, justificadas com a alegação de que são indispensáveis na necessária luta a ser travada contra o terrorismo.

SOBRE O PERIÓDICO DESMANTELAMENTO DOS DIREITOS DEMOCRÁTICOS DA CONSTITUIÇÃO ALEMÃ DE 1949

A Constituição da República Federal Alemã (RFA: outrora apenas a parte ocidental, sem a Alemanha Oriental), promulgada em 1949, incorporou, como Direitos Fundamentais, os direitos individuais de liberdade contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas.  Com a sua promulgação, o Conselho Parlamentar pretendeu tirar as necessárias consequencias a partir do Reino do Terror dos Nazistas, vigente  sob o fascismo,  e também, por meio de outras prescrições, estabelecer a expressa proibição da difusão de uma guerra de agressão e a instituição de uma ordem fundamental democrática imutável.

Simultaneamente, foi criado o Tribunal Constitucional Federal, ao qual se concedeu, expressamente, o grau hierárquico de um órgão constitucional, podendo ser acionado por cidadãs e cidadãos contra decisões dos tribunais ordinários, em caso de violação dos direitos fundamentais.

A despeito das inúmeras importantes decisões favoráveis aos direitos fundamentais, prolatadas ao longo de décadas – posteriormente muito estimuladas pela ampla concepção dos Direitos Humanos, defendida pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), fulcrada na Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), também aplicável  na Alemanha, e após o esgota- mento das instâncias jurídicas nacionais, incluindo nisto  o ajuizamento de ação por descumprimento de preceito constitucional, passível de conduzir a um exame  por parte  do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos –, também este tribunal, cujos juízes, em primeira linha,  são designados pelos partidos representados no Parlamento, não apenas impediu que os direitos fundamentais se desenvolvessem em toda a sua plenitude para certas parcelas da população,  como  permitiu fossem  eles quase  sacrificados em face do casuísmo político.

Esse processo pode ser denominado de desmantelamento dos Direitos Democráticos, sendo que certamente não se desenrola, absolutamente, de modo linear e apenas em um único sentido, mas que depende das constelações de forças sociais respectivas, pois também as normas jurídicas e sua aplicação são produto de uma luta permanente dos partidos políticos e das forças sociais.

Assim, já durante a Guerra Fria, nos anos 1950, desenvolveu-se, no quadro da perseguição aos comunistas, uma série de restrições fundamentais de garantias do Estado de Direito para esses grupos, considerados “inimigos do Estado”, restrições essas que não poderei esmiuçar nesta sede – mas que ocorreram, talvez, de modo não tão extremo, ainda que particularmente efetivo, em virtude do papel ostensivo da Alemanha Federal enquanto “Estado de Frente Popular” na Alemanha dividida e sobre a base de uma  concepção de justiça histórica, extremamente vinculada a um Estado autoritário. Depois de serem, no curso do movimento estudantil de 1968, dilaceradas as estruturas autoritárias, criaram-se novas leis restritivas, no contexto da perseguição contra o “terrorismo” da “Fração do Exército Vermelho” (R.A.F. – agrupamento nascido do movimento estudantil que almejava lançar mão do conceito de “guerrilha urbana”, na Alemanha Federal), restringindo-se, então, importantes direitos até então considerados evidentes, por meio do §129, letra a, do Código Penal Alemão.

Para os suspeitos de “terrorismo”, o legislador alemão instituiu, por meio de um preceito especial adicional (§112, inciso 2, do Código de Processo Penal), a possibilidade de expedição de mandato de prisão  preventiva, com pressupostos simplificados, isto é, sem a verificação de uma das razões tradicionais da prisão (criando-se, assim, o motivo absoluto de prisão). Além disso, semelhantes suspeitos são submetidos, via de regra, a condições de prisões especiais, em isolamento, justificadas com o argumento de “periculosidade qualificada” dos cidadãos detidos. Um professor de Direito Penal – por mim consultado na qualidade de especialista em um procedimento de extradição, movido contra um “terrorista” curdo, diante de um tribunal londrino – expôs essa monstruosa amplificação, ao referir-se ao §129, letra a, do Código Penal Alemão, formulando exemplos:

Quão longe vai a acusação, demonstra-se na seguinte ponderação: mediante a cadeia de extradições, o Sindicato Alemão de Serviço Público, Transporte e Trânsito (ÖTV), poderia, no mais tardar depois de sua decisão de fazer uma greve no setor eletricitário, ser condenado como associação terrorista, punindo-se a sua diretoria, nos termos do §129, letra a, inciso 2, com penas de privação de liberdade de 3 a 15 anos. 2

Com esse parágrafo sobre o terrorismo, exagerou-se, por demais, a tutela jurídico-penal dos interesses de Direito, instituindo-se a possibilidade de organizações de militantes políticos serem criminalizadas, largamente monitoradas e controladas não apenas na antessala de suas atividades. Na prática, ela foi empregada, quase exclusivamente, contra agrupamentos da esquerda radical (apenas muito raramente contra grupos neonazistas), bem como contra os agrupamentos compostos por estrangeiros e refugiados, apoiadores dos movimentos de libertação nacional em seus países de origem  (assim, de início, contra os tamis do Sri Lanka e, posteriormente, contra os curdos da Turquia).

SOBRE O MITO DO “PERIGO TERRORISTA”

Os meus pontos de vista são os seguintes:

  1. 1. A maior ameaça à democracia na Alemanha e na União Europeia não parte dos assim chamados “inimigos da democracia” de fora ou de dentro ou dos neonazistas, mas sim da abarcadora edificação de um Estado de Segurança Autoritário que pretende dar a aparência de proteger a democracia contra os “terroristas”.

Continua a inexistir uma definição vinculante, genericamente reconhecida do conceito de “terrorismo”. Nesse ponto, fracassaram não só o Procurador Geral da União (o Supremo Procurador do Estado da Alemanha Federal), quando, no ano passado, francamente o admitiu, mas também, ainda nos dias de hoje, a Comissão das Nações  Unidas,  instituída para  tratar das questões de terrorismo. Isso não é nenhuma surpresa, pois, de um lado, se fala de “terrorista” e, de outro, se fala de “libertador” (tal qual Nelson Mandela, o titular do Prêmio Nobel da Paz, que, durante décadas, foi diabolizado como “terrorista” em todo o mundo ocidental). Ainda me reportarei às assim chamadas “listas de terroristas” e às construções auxiliares, geradas a partir dessa necessidade, por meio das quais haveria de se abarcar juridicamente o fenômeno do “terrorismo”.³

 Quão inteiramente exagerado é o perigo de um “terrorismo islâmico”, pôde-se constatar, há alguns anos, na renomada revista norte-americana “Foreign Affairs (Negócios Estrangeiros)”. Naquele sítio, John Müller compara as vítimas de todos os atentados, desde 11 de setembro de 2001, com outras cifras, escrevendo, entre outras coisas, que:

Desde 2001, Al Qaeda e semelhantes grupos não assassinaram mais seres humanos do que os que anualmente morrem nas banheiras norte- americanas. A probabilidade de um norte-americano tornar-se uma vítima do terrorismo é de um em 80.000. Igual probabilidade existiria, por exemplo, no caso de morte devida ao impacto de um cometa ou de um meteorito.

O número de vítimas  de atentados de organizações “terroristas” não estatais encontra-se em retrocesso, em escala  internacional, desde  os anos

1970 até os dias de hoje. Quase todos os observadores independentes estão, entrementes, de acordo em afirmar que, por meio da medida de antiterrorismo, a segurança nos EUA e na Europa não é maior, desde 2001, senão que se tornou menor – isso sem contar os países que foram atacados e ocupados, no quadro da “Guerra contra o Terrorismo Internacional”

SOBRE A INTERVENÇÃO IMPERIALISTA EM DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS

A intervenção em prol dos Direitos Humanos é, para os advogados, algo evidente, uma vez que esses direitos valem de maneira universal. Essa concepção começa a desenvolver-se, cada vez mais, na Alemanha no tocante a Direitos Humanos Individuais, embora não constituam absolutamente uma disciplina universitária para os estudantes de Direito. Muito funesta, porém, é a situação dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais: segundo a doutrina dominante na Alemanha, nada mais são senão normas políticas programáticas que não embasam nenhum tipo de direito individual legalmente exequível, ainda que, entrementes, o Instituto Alemão de Direitos Humanos, financiado com verbas governamentais, empenhe-se intensamente para que o sejam.

Igualmente problemáticas são, por outro lado, as amplas campanhas, presentes por todos os lados na mídia, impulsionadas por proeminentes organizações de Direitos Humanos “contra a impunidade”, sobretudo pela “Human Right Watch”, contra a tortura etc. É que ambas são instrumentalizadas, no quadro da “Guerra Internacional contra o Terror”, para legitimação a posteriori da intervenção e ocupação militares, tal como demonstrou, meticulosamente, Michael Mandel, professor de Direito Internacional do Canadá.

Em sua investigação científica, intitulada “Pax Pentagon – Como os EUA vendem ao mundo a guerra como se fosse a paz” (editado em 2005, surgido desde 2001, 425 p.), o professor Michael Mandel recorda, valendo-se de citações originais, o que significa se uma nação desencadeia uma guerra de agressão:

Segundo os padrões fixados pelo Tribunal Militar Internacional depois da Segunda Guerra Mundial, no âmbito dos Processos de Nuremberg contra o Nazismo, trata-se da guerra do maior delito internacional. O primeiro ponto de acusação contra os nazistas, segundo o Estatuto do Tribunal Militar, versava sobre “os crimes contra a paz: isto é, a preparação do planejamento, a introdução ou a direção de uma guerra de agressão ou de uma guerra com violação dos tratados internacionais […]”

Em uma das passagens da sentença, inúmeras vezes referidas, os juízes de Nuremberg declararam: “a guerra é, em sua essência, um mal. Seus efeitos não se limitam apenas aos Estados belicosos, mas ainda atingem o mundo inteiro. O desencadeamento de uma guerra de agressão é, portanto, não só um crime internacional, mas também o maior crime internacional, diferenciando-se de outros crimes internacionais tão somente pelo fato de unificar e acumular em si mesmo todos os horrores.” (p. 27)

A intervenção em prol dos Direitos Humanos Individuais e Econômicos, Sociais e Culturais confronta-se, assim, com o perigo de sua instrumentalização, caso não se delimite, clara e concomitantemente, toda e qualquer ingerência imperialista, combatendo-a expressamente. Quão complicado é realizar isso na prática, demonstram-no as tentativas, até o momento baldadas, de denunciar e seriamente processar os indiscutíveis delitos de guerra, cometidos pela direção dos EUA, nos termos do Código Penal Público  (Internacional), válido entre nós, desde alguns anos: o Procurador Geral do Estado já rechaçou, nesse sentido, a postulação de procedimentos de apuração, a despeito da existência  de provas  cabais,  argumentando que poderia ficar em aberto se, por exemplo, Donald  Rumsfeld e outros  tiverem cometido, de fato,  crimes  de guerra. De todo modo,  alega que existiria  nos EUA uma Justiça  Penal efetiva para a persecução de delitos do gênero, razão pela qual a Justiça da Alemanha não seria competente para  tanto. E essa argumentação foi sufragada, igual- mente, pelos tribunais do país.

QUADRO SINÓPTICO. UM “SISTEMÁTICO PROCESSO DE DECOMPOSIÇÃO”

Inicialmente, permito-me apresentar-lhes uma citação, inserida em renomada revista técnico-jurídica do ano de 2003:

Desde quase 25 anos, tem lugar, na Alemanha, um sistemático processo de decomposição de direitos de liberdade, jurídico-constitucionalmente garantidos […] Processos penais acelerados, para não dizer processos

sumários, desenrolados sobre a linha de produção, com poucos pressupostos rigorosos para a expedição de mandado de prisão, prisão preventiva, regulamentos sobre testemunhas-chave, leis de confinamento, permissão de emprego de investigadores disfarçados e de sua utilização em processos penais, desprovidos de declarações de testemunhas, investigações de observação, controle de dados de pessoas, buscas veladas, obrigação dos bancos de declararem movimentos de contas, grampos pequenos ou grandes, monitoramentos telefônicos, escutas de conversações com o estrangeiro e vigilância de dados de pessoas que, em virtude de sua “personalidade”, possam cometer atos criminosos no futuro, extra- dições de estrangeiros suspeitos, prisões solitárias. Trata-se aqui apenas de instrumentos excepcionais que já existiam antes de 11 de Setembro de 2001. Diante do pano de fundo de sua alegada efetividade, nenhum tipo de controle exitoso existe sobre essas medidas. É sabido, porém, que a Alemanha, com 1 milhão e 400 mil escutas de conversações tele- fônicas por ano (isto é, em 2001), situa-se bem à frente de todos os assim chamados “Estados Democráticos”.

Os projetos de lei, negociados pelo Governo Social-Democrata-Verde, com base no “Pacote  Antiterror” (aprovado em fins de 2001,  entrando em vigor em 1° de janeiro de 2002), outrora exigido pelo Ministro do Interior da República Federal da Alemanha, foram rechaçados pelas organizações defensoras  de Direitos  Civis e de Proteção dos Dados da Pessoa  Humana, que os consideraram uma  verdadeira “catástrofe”. Dezessete das mais importantes organizações de Direitos Civis referiram-se a um processo de “desagregação do Estado de Direito”. Apesar disso, até mesmo  o Agente da Polícia Criminal da Federação da Alemanha declarou: “Com as medidas previstas por  Otto Schily, os atentados de 11 de setembro jamais teriam sido impedidos.”

Da maneira mais rígida possível e temporalmente ilimitada, surge a Lei Antiterrorismo, no campo dos direitos dos estrangeiros. No fundo, os direitos dos estrangeiros tendem, doravante – segundo Heinz Düx, citados em seu artigo já referido –, a aproximar-se, na Alemanha, perigosamente do nível zero. A lei dos estrangeiros em sua totalidade bem como os ordenamentos de execução foi agravada, limitando as possibilidades de fundação de associações de estrangeiros, expandindo o direito de extradição, aguçando, suplementarmente, a Lei de Registro Central e o Ordenamento dos Dados dos Estrangeiros (esses dados podem  ser repassados a órgãos  situados no exterior, facultando aos órgãos de segurança o acesso ao conjunto do acervo de dados sobre os estrangeiros, a qualquer momento e sem qualquer fundamento, no bojo de um procedimento automatizado). Segundo o professor Düx, formam-se, assim, duas classes de seres humanos.

Menos conhecida, porém, pode-se revelar a controversa doutrina do assim denominado “Direito Penal do Inimigo”,  de autoria do professor de Direito Penal de Bonn Günther Jakobs. Jakobs tentou, já em fins do século XX, fazer de uma necessidade uma virtude, transformando o correto conhecimento do sistema jurídico especial não abertamente declarado sobre supostos terro- ristas em uma nova concepção dos Direitos Fundamentais e de Liberdade no Direito Penal: paralelamente ao Direito Penal e Penal Processual de validade geral, em cujo seio devem permanecer contidos os Direitos Fundamentais e as garantias processual-penais – tais quais a presunção de inocência, a proibição de tortura etc. –, haveria de existir,  para  os inimigos  do Estado,  um Direito Especial Penal,  despido desses  Direitos  Fundamentais, isto é, o assim denominado “Direito Penal do Inimigo”.

Essa nova doutrina parece que se está impondo, cada vez mais, em amplos domínios, não apenas nos EUA e no Reino Unido da Grã-Bretanha. Também na “velha Europa” e na Alemanha foram postos em prática, desde muito tempo, os novos sinais do tempo, tal como no uso de “conhecimentos”, obtidos  por meio de tortura em outros  Estados, seja em procedimentos penais, seja em procedimentos de direitos dos estrangeiros etc.

A NOVA QUALIDADE DA DECLARAÇÃO DE INIMIGO GLOBAL

No tocante à sua orientação preventiva, o novo antiterrorismo dá continuidade ao seu precursor. O que há de novo no antiterrorismo global da “Era 11 de Setembro” é, pelo contrário, uma série de características que, à maneira de tese, pode ser sintetizada em quatro pontos.

  1. a) Pessoas e grupos individuais são alijados da ordem jurídica. Amputam- se não apenas os Direitos Individuais, sobretudo dos supostos “terroristas” e dos “nocivos muçulmanos”, como também toda pessoa humana deve ser banida do sistema jurídico: Guantánamo, Abu Ghraib e outros locais sinalizaram o retorno do Estado Medieval dos Sem-Teto e Sem-Lei.
  2. b) Essa falta de Direito significa, na “Época do Antiterrorismo”, depor- tação, tortura e encarceramento e, nos piores casos, assassinatos direcionados, em correspondentes níveis de suspeita. 7 Os pretensos terroristas devem, além disso, não apenas serem neutralizados, mas também forçados a dar declarações sobre outros supostos terroristas, estruturas Visando impedir um exame judiciário, são deslocados para Estados Torturadores (Síria, Egito, Marrocos) (através da “rendition” – a já célebre transferência de suspeitos, incompatível com os preceitos de Direito Público Internacional, efetuada mediante aviões mantidos em segredo a serviço  da CIA) ou para  prisões  secretas, nos mais variados países.
  3. c) Militares, serviços secretos, órgãos de segurança nacional, forças especializadas de polícia, estreitam laços, em nova  escala,  e isso em âmbito Depois do 11 de Setembro de 2001 surgiu,  sob a direção dos EUA, um arquipélago antiterrorista que se apoia em uma rede de cooperação transnacional, firmada entre Serviço Secreto, Polícia e Forças Armadas.
  4. d) Com as assim denominadas “listas de terroristas” dos EUA, União Europeia e das Nações Unidas, os Estados hegemônicos criaram um sistema de sanção para além do Estado de Direito: quem é incluído  na lista deve não apenas temer  pela sua liberdade e incolumidade física, senão  ainda por sua existência social e material. São publicamente estigmatizados como terroristas (ou como seus cúmplices); sua liberdade de movimento é restringida; dado o caso, lhes é negado o direito de asilo ou de retorno aos seus países, podendo ser, repetidamente, extraditados. Seus bens são bloqueados.

NOVAS MEDIDAS DE SEGURANÇA NA ALEMANHA

Existe toda uma lista tenebrosa de novas medidas, no quadro do com- bate ao terror, que não poderei expor aqui completamente. Seus efeitos podem ser resumidos da seguinte forma: a exclusão e a ampla falta de Direito atingem de início,  entre  nós,  na nova  era,  os pretensos “terroristas islâmicos”,  que quase sempre se encontram ameaçados em decorrência de informações secretas, não verificáveis, produzidas em procedimentos de apuração jurídico-penal, segundo os parágrafos referentes ao terrorismo, tais quais  a extradição e a deportação. Em um segundo passo, os “nocivos muçulmanos”, também alcunhados de “muslins”, e, ainda mais, o movimento de protesto militante e social-radical, que, desconsiderando os “efeitos colaterais”, podem  ser monitorados e, assim, criminalizados. Essa imagem do inimigo e o “perigo do terror islâmico”, conjurado indiscriminadamente, podem, assim, tornar-se funda- mento de um Estado de Monitoração onipresente.

Segundo o §129, letra b, do Código Penal Alemão, recentemente criado, podem, entrementes, ser punidos também os membros e apoiadores das “organizações terroristas” internacionais apenas atuantes no exterior, se, para tanto, existir uma autorização especial do Ministério Federal  da Justiça. Um desses primeiros procedimentos investigatórios dirige-se contra o Hamas islâmico,  que,  nas  eleições  parlamentares da Palestina, recebeu a maioria dos votos. Sem embargo, o Hamas é considerado terrorista por Israel, pelos EUA e pela União Europeia. Treze procedimentos de apuração foram instaurados contra o Partido de Libertação Revolucionário Turco-Marxista (DHKPC), que, por desejo  do Governo  Turco,  foi incluído  na lista  de terroristas da União Europeia.

Contra a Al-Qaeda foram instaurados, tão somente, cinco procedimentos investigatórios, nos termos do §129, letra b; dois outros dirigem-se contra os demais agrupamentos islâmicos. Também esses novos procedimentos de “terrorismo” situam-se na tradição de uma Justiça Política do Estado Autoritário Reacionário contra os pretensos “inimigos de Estado”, servindo, em primeira linha,  à intimidação das pessoas  suspeitas e de seu meio social, bem como à abrangente investigação e infiltração em um determinado cenário militante.

Para isso, foram e são ainda introduzidas novas medidas e leis de regulação, monitoração e controle em todos os domínios sociais, partindo de uma ampla vigilância audiovisual das ruas e locais públicos, passando pela ampla supressão do tradicional sigilo bancário até atingir a esfera privada e a telecomunicação, mantida entre cidadãs e cidadãos, em cujo quadro se prevê, até mesmo, que dados possam ser tomados de um computador pessoal, pouco imunes a monitorações, ou expostos aos assim chamados programas policiais “troianos”, envolvendo dados que não se encontravam no computador particular, sem se poder constatá-los: eis aí um perigo inteiramente novo, momentos de suspeição tal como no caso dos assim denominados “inimigos do Estado”, com auxílio do serviço secreto ou outros agentes a serem criados de modo onipresente. Semelhantemente à prática da tortura, a criação de prisões secretas e de transferências a Estados torturadores: “renditions” aplicam-se, aqui, na guerra internacional, meios de luta contra o terrorismo que nada mais possuem de comum com uma sociedade civil na qual os Direitos Humanos devem valer para todos.

DIGRESSÃO ATUAL: O “ISLAMISMO COMO PRINCIPAL INIMIGO DA SEGURANÇA INTERNA” DA ALEMANHA

Hoje, em maio de 2013, um ano e meio depois da apresentação original de meus argumentos retro apresentados, gostaria de acrescentar, nesta  sede, um centro  de gravidade de expressiva atualidade: o racismo  antimuçulmano tornou-se uma importante alavanca para a degradação da Democracia e dos Direitos Humanos. Em suma: a luta contra todas as formas de racismo é mais atual do que nunca:

— em 17 de abril de 2013, começou o julgamento da “Clandestinidade Nazista” (NSU: Nationalsozialistischer Untergrund) perante o Superior Tribu- nal Regional de Munique, no qual  deve  ser apurado, entre  outras coisas,  o assassinato de 10 pessoas com um histórico de migração – nove delas de origem turca ou grega; — mesmo antes da descoberta da “Clandestinidade Nazista”,  peritos independentes haviam registrado mais de 150 vítimas da violência de extrema- direita nas últimas duas  décadas. O seu contexto político foi rigorosamente acobertado nas estatísticas oficiais; — ainda assim, ocorrem, todos os dias, entre dois e três atos de violência na Alemanha. Apenas no mês de dezembro de 2012, o Governo Federal divulgou, a pedido, o número “provisório” de 755 crimes politicamente motivados pelas forças de extrema-direita, “incluindo 43 crimes violentos e 516 delitos de propaganda”;

— de 2001 a 2011, foram elencados ao menos 219 atos criminosos politicamente motivados cometidos contra mesquitas. Apenas em 2011,  1.239 crimes antissemitas foram registrados; — em Berlim, nos últimos  dois anos, foi documentada pela Reach Out, um centro de aconselhamento de Berlim para vítimas da violência de extrema- direita, racista e antissemita, uma média  de 150 ataques racistas. Nesses ataques, 234 pessoas foram “feridas, perseguidas e massivamente ameaçadas”. O número estimado de casos não relatados tende a ser muito maior. “A maioria dos ataques ocorreu em público”, segundo a Reach Out. Sessenta e nove crimes violentos foram cometidos em ruas, praças e em pontos de ônibus, bem como

34 em transportes públicos e estações ferroviárias;— a violência racial e o terror de extrema-direita, orquestrados por neo- nazistas, incorporaram-se ao dia a dia da Alemanha, em escala federal, e ali permanecem, ainda hoje, as vítimas da violência  de extrema-direita e racista expostas à mistura fatal de ignorância, incompetência, banalização e acobertamento existente entre promotores e no Poder Judiciário, que possibilitaram o fracasso do Estado, no complexo caso da “Clandestinidade Nazista” (NSU), em conexão  com o racismo  institucionalizado;— para  o Ministro  Federal do Interior, Sr. Friedrich, como para  vários Departamentos de Proteção Constitucional, “o islamismo na forma do salafismo” ainda representa, hoje, a “principal ameaça à segurança interna” – o qual, entretanto, não é acusado, nem de longe, de crimes semelhantemente graves praticados na Alemanha –, tal como foi declarado, recentemente, na Retrospectiva  do Ano (com  explícita  referência ao “frustrado ataque à bomba  na Estação Ferroviária de Bonn”).

Isso demonstra que: para corroborar a alegada “ameaça terrorista”, os “islamitas” são responsabilizados pelas autoridades de segurança, em ataques reais ou presumidos, de modo instintivo, mesmo sem base em fatos confiáveis. Os supostos autores tiveram de ser soltos,  logo após  ter sido realizada uma prisão complexamente encenada. A polícia declarou, um pouco mais tarde, que ocorreriam investigações “em todas as direções” (um comunicado que encontrou apenas uma menção passageira nos meios de informação tradicionais).

Os “salafistas” dissolveram, finalmente, a Irmandade Muçulmana, con- siderada o “Inimigo Principal”, que, durante décadas, era o epítome de “islamitas terroristas”. Até pouco tempo atrás, mesmo a Fundação Adenauer havia descoberto a “modernidade” daquela irmandade, sustentando a sua compatibilidade com os valores ocidentais, tendo ido se encontrar com os seus líderes no Cairo.  O período dos semivalores dos salafistas poderia ser ainda mais curto  – por um lado, porque não lhes são atribuídos, na Alemanha, nenhum outro  ato de violência, a não ser o de dois policiais feridos (ou seja, um total menor do que os muitos confrontos ocorridos à margem dos jogos de futebol); por outro lado, porque uma corrente marcada pela suposta violência, particularmente intensa, de salafistas, do “wahhabismo”, é financiada pela  Arábia Saudita, Estado islâmico que desfruta do apoio do Ocidente e, especialmente, da República Federal  da Alemanha, como igualmente demonstram a entrega prevista de várias centenas de tanques blindados Leopard à família real saudita ou ainda o apoio de grupos armados de insurgentes na Síria, dos quais vários são atribuídos ao “salafismo”,  que parecem gozar muito  mais do que a mera simpatia do Ocidente.

Essas contradições revelam que se trata de algo diverso da preocupação com a nossa “segurança interna”: aqui, constrói-se uma imagem do inimigo que, sob o ângulo  científico, é completamente insustentável, sendo  instrumentalizada para o atingimento de fins políticos de outra natureza. Tal como já aconteceu em casos de antigos estereótipos negativos da Alemanha – o comunismo, durante a Guerra Fria, e, mais tarde, o “terrorismo do PKK” –, os direitos e as liberdades fundamentais são restringidos e solapados, sob a alegação de existência de uma ameaça para a nossa democracia. A característica especial da nova imagem do inimigo,  “terrorismo islâmico”,  é que  serve  à permanente “Guerra contra o Terrorismo Internacional” do Ocidente, sendo igualmente alimentada por ele, tal qual o racismo antimuçulmano que se encontra enraizado em nós, pois que dotado de milhares de anos e sempre revivido.

SALVAÇÃO ATRAVÉS DA UNIÃO EUROPEIA?

Nas discussões sobre a ameaça à democracia evoca-se, frequentemente, a “Via Especial Alemã”. Parece existir a ilusão de que se poderia esperar uma ajuda, vinda da União Europeia: eis aí um ledo engano. Em verdade, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos tem a apresentar um balanço surpreendente de positivas decisões, favoráveis à preservação dos Direitos Humanos. Isto concerne,  porém, em primeira linha,  a nações  como a Turquia. Porém, o Reino Unido da Grã-Bretanha (Inglaterra) foi condenado, em alguns pontos, apenas depois de extensos processos em conexão  com o combate ao IRA (Exército Revolucionário Irlandês). De maneira semelhante, raras são as condenações à Espanha devidas às violações dos Direitos Humanos em conexão com o com- bate à organização País Basco e Liberdade (ETA), para nem falar das decisões prolatadas por autoridades e tribunais alemães, em seu combate à Fração do Exército Vermelho (R.A.F.), na Alemanha.

Não se deve, também, olvidar que, desde a criação da superpolícia euro- peia – a Europol –, passando pelo mandado de prisão europeu e uma série de diretrizes, foram introduzidas numerosas medidas legais e administrativas de antiterrorismo que restringiram consideravelmente e puseram em questão os direitos fundamentais e de liberdade, sem falar da política draconiana de isolamento da “Fortaleza da Europa”  em relação aos refugiados e imigrantes, munida de medidas de intimidação e monitoração paramilitares. Isso é válido para ambos os níveis: o da “perseguição ao terrorismo”, em sentido estrito, e o da ampla monitoração e controle de toda a população.

Semelhante fato pode ser elucidado, em primeiro lugar, através da assim chamada Lista de Terroristas da União Europeia:

— entre as cerca de quatro dúzias de organizações incluídas na Lista do Terror  da União Europeia, encontram-se grupos  dotados de um punhado de membros como também movimentos guerrilheiros que controlam regiões inteiras  de países,  organizações islâmicas  e comunistas (Frente Popular de Libertação da  Palestina – FPLP, a guerilha colombiana FARC, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão – PKK, o Partido de Libertação Revolucionário Turco-Marxista – DHKPC, o País Basco e Liberdade – ETA, e o Partido Comunista das Filipinas). A inclusão  do Hezbollah, estimulada pelo Governo dos EUA e favorecida pela Alemanha, pela Grã-Bretanha e pelos Países Baixos fracassou, segundo informações do consultor do Governo dos EUA, em virtude da objeção da França,  temendo por seus interesses na antiga colônia,  por um procedi- mento unilateral contra aquele partido xiita.

Contra a inclusão na lista de terror da União Europeia, inexiste, até o presente, qualquer proteção jurídica efetiva. Eis um exemplo: tentamos obter, sem sucesso, há anos, perante a Corte Europeia de Luxemburgo (CEL), uma medida cautelar contra a inclusão e as respectivas consequências existenciais que repercutiriam sobre o Professor Sison das Filipinas (um antigo  fundador do antigo Partido Comunista das Filipinas e, posteriormente, um intermediário entre  o Governo e o movimento de libertação nas negociações de paz de seu país, o qual teve de se refugiar na Holanda). Foi posto na lista de terroristas dos EUA, das Nações Unidas e da União Europeia, por pressão das Filipinas e dos EUA. Nosso requerimento foi, in limine, indeferido com o fundamento de que a tutela jurídica, neste  caso, não estaria prevista e nem seria necessária. Tão somente em 11 de julho  de 2007,  o tribunal de Luxemburgo deferiu o requerimento originário do Professor de Sison, declarando que a decisão  de sua inclusão na lista seria ilegal, com a argumentação de que a decisão violaria os direitos de defesa, o dever de fundamentação e o direito à proteção judiciá- ria efetiva.

Tratou-se de uma sentença positiva – porém, alentar uma esperança excessivamente grande seria equivocado –, embora o Professor Sison tenha sido, a seguir,  novamente incluído  na lista de terroristas da União Europeia, dessa feita com uma breve fundamentação, repleta de erros manifestos, mesmo depois  de uma sentença adicional da Corte Europeia de Luxemburgo (CEL). Particularmente revelador neste contexto, foi o fato de que o Professor seria, imediatamente, riscado da lista, se estivesse disposto a preencher certas con- dições determinadas pelo Governo das Filipinas.  Também os procedimentos introduzidos, entrementes, sob pressão do público crítico, de inúmeras organizações de Direitos Humanos e do Parlamento Europeu, para exclusão de nomes da lista estão muito  distantes dos mínimos padrões do Estado de Direito.

AO INVÉS DE UM RESUMO

Com uma perspectiva que parte  do Estado de Segurança Preventivo na Alemanha até atingir a respectiva arquitetura de segurança europeia e, até mesmo, mundial, permeada pela “Guerra Internacional contra o Terrorismo”, vemos confirmados os nossos piores  temores.

Assim, a “Nova Monitoração do Mundo” ocorre, ostensivamente, não apenas na política externa – incidente, nos dias de hoje, antes de tudo, sobre o Oriente Próximo e Médio, a Ásia, mas também sobre a África –, mas ainda em meio à nossa sociedade, na qual, cada vez mais, desaparecem os direitos clássicos fundamentais e de liberdade. Ela se encaminha para uma arquitetura de segurança global de índole  neoliberal que não se pode situar  no interesse da democracia e se volta contra as associações de Direitos Humanos e de Cidadania, sindicatos e organizações sociais, movimentos antiguerra e de críticos da globalização, empenhados em conscientizar e resistir, profunda e diferenciadamente.

Notas de Rodapé:

[1] Advogado Especialista em Direitos Humanos, Fundador e Presidente da Fundação Eberhard-Schultz para Direitos Humanos Sociais e Participação de Berlim.

[2] Sobre  a função  e a história do §129,  letra  a, e das condições do processo atual, consulte-se Gössner,  Rolf, em Ossietzky,  20 out. 2007.