A ESCRAVIDÃO NA CONSTRUÇÃO DO DIREITO NACIONAL: UM PANORAMA

Resumo

O artigo traça um quadro sobre a legislação brasileira do século XIX, sua relação com o regime escravista de trabalho, instalado no país naquele período, e como juristas e historiadores têm trabalho com o tema.

Artigo

Introdução

Este artigo é baseado em pesquisa desenvolvida ao longo de parte de minha vida acadêmica, para compreender alguns efeitos históricos, sociais e políticos da interação entre o direito brasileiro, em plena formação no século XIX, e uma das mais importantes instituições jurídicas existentes no país, base do sistema socioeconômico alimentador da prosperidade de parte da sociedade brasileira à época: a escravidão. Dessa equação se tornou possível elaborar um texto que procura acompanhar a forma como juristas e historiadores vêm tratando o tema. Neste se persegue a proposta de mitigar o formalismo jurídico, traço acentuado do Direito Brasileiro. Embora reflita o processo de racionalização do mundo jurídico moderno, esse fenômeno acarretou a constituição e o posterior reforço de um 2 dogmatismo acrítico. Este feito aponta, em nossa opinião, uma crise no que tange ao processo de autonomia e ponderação do próprio profissional do Direito. Torna-se necessário o seu enfrentamento, que pode ser realizado através de uma abordagem histórica que leve à compreensão da formação do Direito Nacional; assim como da “Ciência do Direito”. Dessa forma, talvez servir à efetivação de estratégias que possam dar respostas a alguns desdobramentos do referido formalismo e do dogmatismo legal. Metodologia Utilizada O método usado para a pesquisa, que deu origem a este texto, foi o de confrontar os estudos mais representativos empreendidos por juristas e historiadores escolhidos a partir da relevância do trabalho por eles desenvolvido. E, a partir daí, erguer uma nova percepção que desvele a formação jurídico-histórica de nossa legislação escravista captada pelos textos escolhidos para além dos aspectos formais desta. Dessa forma, estes textos foram analisados e reorganizados, debatidos com colegas e alunos, até a redação do presente artigo. A Escravidão e o Estudo Histórico do Direito Nacional A Escravidão Antes de qualquer explanação é preciso definir os parâmetros do nosso objeto de estudo: a escravidão. Distintos estudos históricos já comprovaram que esta foi somente uma das formas de trabalho compulsório implantadas nas Américas, quando de sua ocupação pelos europeus e – ousa-se a afirmar – nem a crucial. Mita, encomienda etc.: as configurações de trabalho abraçadas pelos colonizadores atrelavam-se a vários fatores. Por exemplo, no que diz respeito às forças produtivas, pesou sobre a escolha do tipo de trabalho mais adequado à colonização a demografia local, a distribuição geográfica dos recursos naturais e as técnicas de produção existentes. Outro ponto importante a se considerar foi, a maior ou menor interação com o mercado internacional nas diversas regiões continentais. Além disso, não se pode esquecer o papel exercido pelos mecanismos básicos da estruturação das relações de produção, como a 3 apropriação dos recursos naturais considerados imprescindíveis e a estratificação social e étnica dos colonizadores (CARDOSO: 2010, 72-77).

A maneira como esses fatores interagiram, ao longo do processo de exploração do continente americano, esclarece o porquê da utilização do trabalho compulsório e os tipos a que se recorreu – em especial, o trabalho escravo puro e simples. Se considerarmos somente nosso país e as áreas nacionais que, em cada época, concentraram a população e as produções coloniais, podemos dizer que a escravidão foi instituída para atender a uma procura já presente e progressivamente aprofundada pela ampliação da demanda. Em outros termos, a escravidão, inicialmente implantada pela exploração agrícola, foi alargada, a partir do século XVIII, devido a diversificação das atividades econômicas com oi advento da mineração, pelo surgimento de uma rede urbana e – mais tarde – de uma maior relevância da manufatura. O trabalho compulsório introduzido em terras brasileiras, sob a forma da escravização dos indígenas, estendeuse com e pela importação de africanos, para atender aos fatores citados e era, por eles, limitado (CARDOSO: idem, 79). Conforme estimativas moderadas, do total de mais de dez milhões de escravos transportados para terras americanas entre os séculos XVI e XIX, algo em torno de quatro milhões de negros desembarcaram no Brasil (LEWKOWICZ; GUTIÉRREZ & FLORENTINO: 2008, 20). Em pleno século XIX, a escravidão negra estava amplamente disseminada por várias regiões do país; seja nos engenhos do Nordeste; seja nas fazendas e sítios do Sudeste; ou nos grandes centros urbanos. Mas também, pelos diferentes grupos sociais então existentes: o dos ricos proprietários das plantations escravistas no interior ou dos comerciantes que vendiam de porta em porta seus produtos nos aglomerados urbanos. Todas as áreas e classes faziam uso do trabalho escravo; mas regiões mencionadas. O Estudo Histórico do Direito Nacional Definido sob que limites se entende a questão da escravidão, se passa a abordar como a formação o direito nacional se relacionou com a o trabalho compulsório hegemônico em nosso país e como foi tratado pelos estudiosos relacionados. O primeiro deles, o historiador Arno Wehling (2014, 374), parte da proposta de que, com a independência brasileira, deu-se início a uma nova ordem jurídica. Esta teve por base 4 sociopolítica, o controle do poder central pela elite de proprietários rurais reunidos “em torno do programa político do partido regressista”. Tal grupo era contrário as condições políticas e institucionais anteriores, estabelecidas pelas medidas descentralizadoras oriundas do Ato Adicional de 1834 – caracterizador da Regência. Ou seja: a ordem legal estava sob o controle daquela fração mais conservadora da sociedade colonial; contrária a qualquer medida liberal. Seu núcleo principal era a oligarquia fluminense. Para os regressistas, o importante era restaurar a autoridade do Estado, fortalecer o Poder Executivo e banir a “anarquia” e a “desordem” que se espalharam pelo país no período de 1831 a 40. Com este grupo no poder, a escravidão continuou a ser o alicerce do sistema econômico-social predominante em nosso meio, já que aquela era, por sua vez, alicerce do seu poder de classe. Seus interesses, portanto, afetaram o direito então existente. Tanto as normas constitucionais quanto as infraconstitucionais regulavam quotidianamente a existência dos escravos. A ordem legal ordinária estava fincada, no campo cível, nas Ordenações Filipinas e na legislação colonial não derrogada; no Código Comercial (1850); na jurisprudência; nos atos administrativos do governo imperial; nos pareceres oficializados do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB); e, subsidiariamente, nos direitos canônico e romano (WEHLING: id., 378). Este corpo legal não concedia direitos formais ao cativo, mas reconhecia certas situações fáticas. Por exemplo, privava-o de capacidade jurídica impedindo o acesso a direitos civis – e políticos. Não podia testemunhar em juízo, testar, contratar ou exercer tutela. Mas, com base no direito canônico, permitia a constituição de famílias. Infelizmente, os efeitos civis deste ato jurídico eram mínimos. Não impedia, por exemplo, a venda do escravo casado; o que, frequentemente, ocorria. O escravo nada adquiria para si, mas ao seu senhor. A exceção era a herança que, se deixada a escravo de outrem, não revertia para o amo. Os escravos poderiam contrair obrigações, mas a legislação proibia ação judicial para fazer valer seus direitos. No entanto… Ao contrário da legislação civil, a penal tem dois momentos diferentes: o período colonial, caracterizado pelo livro 5 das Ordenações Filipinas; e o período imperial, caracterizado pelo Código Criminal de 1830, pelo Código de Processo Criminal e pela legislação específica, como as leis decretadas pela Assembleia Geral, as assembleias provinciais e os atos administrativos, sobre tudo dos ministérios da Justiça e do Império ou os pareceres do IAB (WEHLING: ibdem, 388). 5 Neste corpo legal, o cativo era considerado como sujeito ativo do crime cometido. Era “pessoa”, respondendo pelos seus atos. O que não lhe garantia igualdade de tratamento. Ao inverso: a condição de escravo era circunstância agravante da penalidade. Os crimes cometidos sob esta condição eram punidos com mais rigor. As penas não eram as mesmas aplicadas aos homens livres – ainda que estivessem implicados em crimes semelhantes. É o que alerta um jurista que se debruçou sobre o assunto: A visão anfíbia do direito escravista oscilou, irremediavelmente, entre os conceitos do escravo-pessoa (necessário sujeito dos crimes) e escravo-coisa, propriedade do Senhor, que representava judicialmente e pagava as custas de sua condenação. Necessitou, pois, de coisificar os acusados, julgando-os sem defesa e irremediavelmente, para concretizar o a priori da condenação. E, para tanto, a ordem escravista mobilizou força armada, juízes de paz e de direito, promotores, advogados, encenando a farsa processual do julgamento (PINAUD: 1987, 99-100) Se sujeito passivo no ocorrido, o mal a ele feito não era considerado dano, mas ofensa física. Cabia ao proprietário, então, indenização civil. Embora a legislação negasse ao senhor o “direito de vida e morte” sobre o elemento servil, concedia-lhe a garantia da aplicação de castigos moderados. Se, entretanto, ocorressem excessos; aí sim, o Estado interveria. Havendo sevícias nas punições, o cativo podia requerer sua própria venda. Frente ao receio fundado de maus tratos, o senhor poderia ser obrigado a assinar um termo de segurança. Esta dicotomia legal foi melhor aprofundada por outro jurista, Nilo Batista, que afirmou ser a própria existência da escravidão sem fundamento jurídico claro em nossa legislação e este lapso era suprido e avigorado pela transferência de regras jurídicas da escravidão antiga. Segundo ele (2007, 35), a dubiedade não repousava na forma como era tratado o escravo pela lei, mas na própria lei. Esta, mais do que resolver casos concretos servia, principalmente, para legitimar a condição escrava; um tipo de trabalho compulsório que – como já dito – se ampliava pressionado pela demanda econômica e social. Os estudos históricos e jurídicos consultados demonstraram que o quadro legal existente no Brasil dos oitocentos não era simples nem transparente no que se refere a escravidão. Não existiu em nosso país, à exemplo do que ocorreu na América 6 Espanhola, uma legislação específica – um “Código Negro” – para definir legalmente a escravidão. Esta forma de trabalho compulsório, se ancorava em um sistema jurídico no qual o indivíduo estava totalmente submetido ao poder punitivo privado que “jamais foi regulamentado” e que estava ligado de modo contraditório ao poder punitivo público (BATISTA: id., 33). A doutrina jurídica vigente no período – e mesmo hoje -, dizia que o Direito é monista. Daí surge um grave conflito, pois o poderio dos grandes senhores era percebível até mesmo no Judiciário. Os grandes fazendeiros recusavam-se a permitir que o Estado fosse o árbitro nas questões ligadas as suas relações com seus “bens semoventes” – para usar uma expressão da época. Se afirmava ser “usurpação de poder” o fato de o Estado dizer o Direito, quando se tratava de punir escravos. Como o historiador mencionado à abertura deste artigo, Ciro Cardoso (op. cit., 76), afirmou: a coação privada complementava a do Estado mas, “às vezes, competia com ele”. Assim, em termos jurídicos, as teorias combinatórias das penas, que agregavam funções retributivas e preventivas, gerais ou especiais, facilmente habilitavam o poder punitivo. A eventual deficiência da necessidade preventiva foi suprida pela exigência retributivista e vice-versa pois, “tanto mais totalizante e reticular seja o controle punitivo pretendido por certo sistema penal historicamente determinado, mais precisará ele de uma teoria combinatória da pena” (BATISTA: op. cit., 52-53). A historiadora Silvia Lara (2007, 136), citada aqui à título de exemplo, convergindo com as opiniões de Nilo Batista, lembrou que nenhum título legal mais importante, sejam as Ordenações Manuelinas sejam as Filipinas, tratou especificamente da posse e domínio sobre os escravos, nem se discute sua legitimidade. As determinações legais não instituíam nem pretendiam moldar a relação senhor-escravo: ela pertencia a alçada do domínio privado do senhor. E, assim, foi mantido no Brasil independente. As leis tratavam do que interessava à Igreja, ao recolhimento dos impostos, aos contratos de compra e venda, aos que atentam contra o poder senhorial, incitando fugas. Havia o cuidado para não interferir no poder senhorial e no direito de propriedade do senhor sobre seu escravo (LARA: id., 137). O direito de propriedade – mencionado pela professora – é um tema importante para o mundo jurídico brasileiro de então. Como observou o historiador Ciro Cardoso (op. cit., 80-81), diversos atributos do escravo decorrem de ser uma propriedade. “A sua 7 relação não depende da relação que tenha com um senhor em especial e não está limitada no tempo e no espaço.” Sendo assim, sua condição de escravo é hereditária e transmissível por venda, doação, legado, aluguel, empréstimo, confisco etc. Esta qualidade, o converter legalmente em uma “coisa”; um objeto. No entanto, como já se mencionou, sua incapacidade jurídica não é compensada pela inaptidão penal; ao inverso, “ao escravo estão reservados os castigos mais duros e a tortura”. A já citada Silvia Lara (op. cit., 131), porém, alertou que a não se deve afirmar – pelo quadro legal existente – que os cativos não tivessem direitos. Primeiro, porque é possível discutir a existência de uma legislação escravista que distinguiu as relações entre senhores e escravos e que, de diferentes modos, delimitou direitos para os cativos – como já foi citado anteriormente neste texto. Segundo, porque as lutas e movimentos empreendidos pelos escravos resultaram na consolidação de tais direitos, ainda que não escritos, mas reconhecidos pelas autoridades. Entre os resultados dessas lutas temos, exempli gratia, as ações de liberdade impetradas por escravos. Esta prática, aliás, merece um pouco mais de atenção, pois, seu significado enquanto instrumento da resistência negra contra a escravidão é considerado importante. O historiador Argemiro Gurgel (2006, 135) as considerou “ecos” da Lei Feijó, como ficou conhecida a legislação promulgada em sete de novembro de 1831 e que declarava livres todos os escravos que entrassem no Brasil a partir dessa data e previa penalidades aos responsáveis pela importação de escravos. Desde a segunda metade daquele século, escravos, advogados, magistrados, parlamentares e jornalistas investiram em mecanismos legais, tendo por base a interpretação de que todos aqueles africanos importados após a lei, estavam no país ilegalmente. Era uma maneira de “guerrear” contra a sociedade escravista. Esta leitura da lei serviu de alicerce à gênese de um movimento de politização do tema que acabaria incorporada à campanha abolicionista surgida mais tarde; na década de 1880 (GURGEL: id., 159). A historiadora Beatriz Mamigonian (2007, 163) assegurou que, ao longo da segunda metade daquele século, duas atitudes podem ser notadas na sociedade brasileira: a primeira, advinda entre 1830-40, foi a de burla da Lei Feijó, pelos traficantes e proprietários de escravos. A segunda, nas décadas de 1860-80, em que foi considerada como peça-chave na reivindicação do direito à liberdade dos africanos importados “ilegalmente” e de seus descendentes. De modo geral, a resitência contra a escravidão não encontrou amparo objetivo na legislação. A Constituição de 1824, assim, determinava serem cidadãos os nascidos 8 no Brasil, fossem ingênuos ou libertos; o que incluía os escravos que tivessem alcançado a liberdade. No entanto, a cidadania do ex-escravo se restringia a participação política nas assembleias das paróquias. Os forros faziam parte da massa de cidadãos ativos, ao contrário dos escravos – que eram não cidadãos. Mas essa participação era pífia e contrariava o sentido do projeto que embasara a própria Carta Imperial. Nas discussões do Parlamento estava claro que se atribuiria cidadania aos “escravos que tivessem carta de alforria”, mas se exigiria uma determinada renda dos mesmos; o que reduzia drasticamente a atuação política dos libertos (WEHLING: op. cit., passim) É bom lembrar que a propriedade recebeu um peso especial nessa legislação – voltando a discussão já apresentada. Se por um lado a Constituição reconheceu “os direitos civis de todos os cidadãos brasileiros”; por outro, diferenciou esses direitos com bases em nas posses. Isto é: da propriedade (MATOS: 2000, 20). A cessação da condição de escravo, enquanto direito, também deve ser posta em foco. De modo geral, a alforria (ou manumissão) era dada através de carta, testamento ou por batismo e ocorria apenas nas situações previstas pela Constituição – ou pela morte do escravo… Para esta ser concedida era necessário um ato próprio do senhor. Mas admitiam-se exceções, como a do escravo ser vendido com a condição de ser liberto. Pela lei acontecia através do casamento, da descendência ou ascendência ou ainda por parentesco consanguíneo ou afim. Se descobrisse diamantes de certo quilate ou denunciasse contrabando de pau-brasil, o escravo também poderia ser alforriado. Havia, além disso, os casos em que a libertação poderia ser concedida: como a do cativo abandonado pelo seu senhor ou levado para fora do país. Em ambas as situações, legalmente, o indivíduo seria considerado liberto (WEHLING: id., 380-2). As alforrias podiam ser gratuitas ou onerosas, pagas à vista ou em parcelas, livre de obrigações ou condicionadas à prestação posterior de serviços. Em Campinas, dois terços das alforrias foram onerosas. Na Bahia predominaram as alforrias gratuitas até 1730, voltando essa característica a ser dominante na primeira metade do século XIX, e em outras regiões conforme a conjuntura, esse traço se alternava (LEWKOWICZ; GUTIÉRREZ & FLORENTINO: op. cit., 43). No entanto, o término da condição de cativo, fosse por resultado de ações jurídicas fosse nas condições previstas em lei, encontrou uma variação provocada por situações políticas e econômicas que se impunham sobre as normas vigentes. A classificação jurídica de “africano livre”, por exemplo, era encontrada nos tratados 9 bilaterais assinados por Portugal e Inglaterra para a abolição do tráfico de escravos. Os africanos descobertos em navios condenados por tráfico ilegal seriam emancipados e ficariam sob a tutela do governo do país onde a embarcação fosse julgada. Seriam, então, preparados por um período de catorze anos para o “trabalho livre”. No Brasil tinham status jurídico de pessoas livres sob tutela e submetidas a trabalho compulsório. “Com base nos acordos bilaterais de 1817 e 1826, na Lei de 1831 e na Lei Eusébio de Queirós, de 1850, foram emancipados aproximadamente 11.000 africanos (…)” (MAMIGONIAN: op. cit., 164-5) Mas, ao contrário do que determinava a legislação, os africanos não foram enviados de volta à África. Ou seja, a legislação foi desconsiderada em função das condições postas. Tais condições podiam ser tanto internas quanto externas. Por exemplo: segundo o professor Mário Maestri (2015, 98), desde o início do século XIX, o governo inglês vinha pressionando Portugal e outras nações escravistas para que interrompessem o tráfico negreiro. Após 1822 condicionou o próprio reconhecimento da independência do Brasil a um tratado, assinado em 23 de novembro de 1826 – já mencionado -, que tornava ilegal, a partir de março de 1830, o comércio internacional de africanos. Com o esgotamento das minas e a crise da produção açucareira nacional, a escravidão parecia extinguir-se no Brasil e, assim, D. Pedro I aceitou o tratado: ratificado, a seguir, pelo Parlamento. Entretanto, a posterior ampliação da cafeicultura demandaria quantidades cada vez maiores de mão-de-obra. Apesar do acordo, milhares de escravos continuaram sendo desembarcados, “clandestinamente”, nas costas brasileiras. Em oito de agosto de 1845, a Bill Aberden autorizou a marinha de guerra inglesa a tratar, de acordo com o diploma de 1826, os tumbeiros brasileiros como navios piratas e, assim, apreendê-los. O parlamento imperial, temendo ver os portos brasileiros bloqueados, votou, em setembro de 1850, a Lei Eusébio de Queirós, que proibia e reprimia o tráfico de cativos (MAESTRI: op. cit., 98). Com este cenário, a lei efetivamente extinguiu o tráfico internacional de africanos para o Brasil e comprometeu a reprodução do trabalho escravo. Sem sua fonte de abastecimento fundamental, mesmo com o incremento do tráfico interno de escravos, não se pode evitar sua desagregação. Assumiu corpo político, a tese de sua extinção. A campanha abolicionista, logo entrou em efervescência. Segundo Argemiro Gurgel (op. cit.,159), a Lei do Ventre Livre e a oficialização da compra da alforria pelo escravo – advindas posteriormente – seriam tentativas do governo imperial retomar o domínio das discussões que se puxavam sob a legalidade da escravidão. Esse debate se 10 consolidava e não podia ser mais ignorado. Acrescenta-se a esse rol, a própria Lei dos Sexagenários – tida como inócua. O movimento da abolição, “onda avassaladora que invadiu corações e mentes”, disseminou-se na década de 1880 pelas grandes e pequenas cidades e também pelas fazendas de café. A campanha abolicionista desembocou em crescentes fugas, sabotagens, crimes e insurreições coordenadas, com ampla participação de escravos. Estes reivindicariam a liberdade e também, uma vez libertos, muitos sonhariam com a posse de um lote de terra no qual plantar livremente, com ritmo próprio, distante do trabalho vigiado na fazenda. (…) Contudo, pouco se sabe dos caminhos seguidos pelos ex-escravos, deixados à sua própria sorte após a abolição da escravidão. (LEWKOWICZ; GUTIÉRREZ & FLORENTINO: op. cit., 50). Conclusão Juristas e historiadores consultados para este artigo convergem para duas formas de abordar o direito nacional em sua ligação com o trabalho compulsório, no século XIX. A primeira versa acerca da ciência jurídica, no seu sentido mais amplo. A segunda, fala do direito “à miúde”, objetivo, debruçando-se sobre determinadas leis ou conjunto legal. Ambas exploram a relação com a sociedade escravista Essa literatura deixa por óbvio a interferência das elites brasileiras no processo de construção desse direito. Em especial, na regulamentação do labor escravo sem prejuízo frontal à relação senhor-escravo. Não há como negar que, parte dessas abordagens – notadamente daquelas advindas de certas correntes historiográficas – aponta para a capacidade de interação dos escravos e ex-escravos na elaboração das normas. Este grupo diverge do senso-comum da hegemonia dos interesses dos proprietários de terras e mão-de-obra. Mas concordam todos os autores na prevalência das relações humanas sobre as jurídicas. No século XIX, o Estado brasileiro estava se consolidando e a legislação, instrumento deste processo, concorria com outros elementos importantes à formação social e política da nova nação. Desse interagir, tantas vezes contraditório, é que se desenvolveu o direito nacional. A própria efetividade das leis estatais só foi alcançada após longo período de enfrentamento. Normalmente encontramos em diversos textos – mas, principalmente, nos livros didáticos -, enfoques que, em muitos casos, não refletem de forma íntegra os acontecimentos daquele período. Em grande medida, isto se deve a simplificações 11 exageradas, generalizações superficiais etc. Com isso, o estudante de Direito – e as pessoas em geral – acabam por criar uma imagem distorcida da história normas obrigatórias que controlam as relações dos indivíduos em uma sociedade. Pode-se citar o processo de construção do direito pátrio e sua vinculação com a escravidão no Brasil como uma situação em que se construiu uma visão teleológica sobre sua narrativa, que escamoteia diversos aspectos de grande relevância à melhor compreensão do mesmo. Os textos estudados mostraram-nos uma realidade bem mais complexa que, por muitas vezes, chega a ser contraditória quando a confrontamos com os argumentos mais tradicionais. Estudos sistemáticos, quer no campo histórico como no jurídico – principalmente -, são importantes para reverter tal quadro. Muitos ainda acreditam que a escravidão é “sinônimo” de tratamento desumano. Em incontáveis casos era, realmente. No entanto, como se apreendeu, o relacionamento entre senhores e cativos era bem mais intricado. O escravo tinha a capacidade de entender certas obrigações e a necessidade de cumpri-las. Por sua vez, o senhor sabia que não estava lidando com uma simples mercadoria, mas com um ser dotado de vontades e do qual dependia quase integralmente. Esta situação gerava uma teia emaranhada de relações, de direitos e deveres, que o Estado tentou regulamentar, em várias ocasiões. Neste breve panorama, se procurou abordar a forma como os estudiosos vem tratando a relação entre as normas e o Direito com a escravidão e a sociedade que os engendrou. Viu-se isto na análise dos textos elaborados por Argemiro Gurgel, Beatriz Mamigonian, João Pinaud, Nilo Batista e Silvia Lara; entre outros. Entretanto, as implicações jurídicas desse embate na sociedade brasileira do século XIX precisam ser melhor investigadas por novas pesquisas – que não tardarão a chegar.

Referências Bibliográficas

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Palavras Chaves

Escravidão; Direito; História do Brasil.