A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, POR SI E EM TEMPOS DE COVID-19

Artigo

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, POR SI E EM TEMPOS DE COVID-19

Autoria: Barbara Ewers

Presidente da AMAZOESTERJ

Mentora do Projeto de Mentoria da OAB-RJ

Coautoria: Patrícia de Almeida López

Mentorada do Projeto de Mentoria da OAB-RJ

 

O Covid-19 trouxe a restrição da liberdade de ir e vir, levando a um convívio mais frequente entre as pessoas que residem no mesmo local.  De uma hora para a outra, todos tiveram que se adaptar a uma nova realidade, que traz muitos receios:  não poder sair de casa quando quiser; correr o risco de ser infectado pelo novo coronavírus e adquirir Covid-19, que pode ser fatal; poder transmitir ou receber o vírus de pessoas próximas;  perder o  emprego ou forma de conseguir o mínimo de renda para sobrevivência sua e de seu família; aumentar o consumo de bebida alcóolica ou drogas; aumento nas tarefas domésticas com a presença constante de todos os membros da família, já que não há trabalho nem escola.

Essas são as consequências possíveis desse isolamento e que tem gerado uma enorme insegurança em toda a população, aumentando a tensão e o estresse nas relações interpessoais.

Com a pandemia, todas e todos, sem exceção, estão vivendo sob momentos de tensão. E, no caso das mulheres, se já havia uma situação de violência doméstica antes do confinamento, agora as mesmas estão muito mais expostas ao controle e agressividade. Além de extremamente sobrecarregadas, com acúmulo de funções nas chamadas jornadas duplas, triplas, etc.

O isolamento social contribuiu para o aumento da violência doméstica, não só no Brasil como em vários outros países, além de um aumento significativo de divórcios. O confinamento nesses casos não é saudável, vez que se trata, na realidade de um espaço de medo e insegurança face a violência sofrida, onde as mulheres não se sentem acolhidas, como se estivessem num lar de fato, mas, na maioria das vezes, extremamente tensas, passando a viver rotineiramente preocupadas em se defenderem de uma nova e possível agressão.

Portanto, ficar em casa em isolamento social, para algumas mulheres pode significar o risco de morte pelo feminicídio, já que a vulnerabilidade da mesma está aumentada.

A Lei Maria da Penha foi muito importante e uma conquista histórica para nós, mulheres, onde sequer éramos consideradas como sujeitos de direito e, na realidade, não tínhamos qualquer direito.

Verificamos uma mudança considerável de paradigmas envolvendo nossos direitos, onde todos os casos de violência contra mulheres passam a ser apreciados pelas varas especializadas ou criminais e as medidas protetivas passam a existir.

As formas de violência foram visibilizadas, o que foi muito positivo e benéfico, vez que a sociedade somente levava em consideração a violência física, com marcas visíveis, mas há violências que são extremamente graves e com conseqüências desastrosas, como a violência psicológica, que se traduz no desrespeito, xingamentos, desqualificações, etc, ocasionando o desenvolvimento da depressão e da baixa autoestima.

A violência doméstica, que atua na esfera psicológica, moral, física, sexual, patrimonial, violência de gênero ou virtual, transforma o “lar” – que deveria ser “o melhor lugar para se estar” – em um ambiente perigoso.

Segundo a ONU Mulheres, as quarentenas reduzem, consideravelmente, a atividade econômica e de subsistência e afetam setores geradores de empregos/renda para as mulheres, o que também aumenta a violência doméstica.

Mas porque algumas mulheres se submetem ao agressor?

Ninguém é obrigado a viver e a se submeter a uma violência doméstica em prol do confinamento, decorrente de uma pandemia.

Se a mulher puder, faça o isolamento social na casa de uma familiar, desde que não lhe gere outros problemas. Neste caso, se faz necessário manter o contato virtual com outros familiares e amigos para que o marido agressos perceba que ela não está sozinha e pode se socorrer.

Deixar registrados na agenda do celular, ou anotados em algum lugar seguro e de fácil acesso, os números de emergência: 180 (Disque denúncia), 190 (Polícia Militar), 197 (Registro de Ocorrência), bem como os telefones da Patrulha Maria da Penha da localidade.

Sofrendo algum tipo de agressão, deve tentar se deslocar primeiramente ao hospital mais próximo e após a Delegacia, que funcionam 24h e estão atendendo esses tipos de ocorrências.

Nesse momento pode ser pedida a aplicação das medidas protetivas que tiver direito, como também deverá ser preenchido o Formulário Nacional de Risco para que seja avaliado o risco atual da mesma. Quanto as referidas medidas, estas são supervisionadas e acompanhadas pela Patrulha Maria da Penha.

Em épocas de confinamento e isolamento social foram registradas 516 medidas protetivas no plantão extraordinário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – o RDAU, no período entre os dias 17 e 31 de março, tendo sido o 2º maior volume por assunto. E face a ocorrência, o TJ/RJ criou, a partir do dia 10 de abril do corrente, um plantão especializado para atendimentos referentes aos pedidos que envolvam a violência contra a mulher.

O porquê da violência contra as mulheres?

As mulheres acabaram sendo colocadas numa posição desvantajosa em relação aos homens, vez que estes são criados com a compreensão da mulher como objeto do poder masculino.

O homem cresce acreditando nessa objetificação e cria uma expectativa sob o comportamento feminino perfeito e a frustração dessa expectativa é que gera a violência, pois o homem a utiliza para fazer com que a mulher se submeta ao papel social que lhe é imposto pelo patriarcado e pela cultura machista.

Vários fatores existem para que a mulher se submeta a violência e não denuncie. Por medo, vergonha, temor da possível exposição, temor do isolamento e discriminação social, temor por criar os filhos longe do pai, ou por dificuldades financeira, pois depende economicamente do marido ou companheiro. Sem falar também nos casos de dependência emocional.

Há ainda a predominância de uma questão psicológica onde a mulher, mediante a repetição, acaba acreditando que não há mais nada a ser feito, pois não há mais solução. Trata-se da síndrome do desamparo aprendido, onde muitas mulheres ficam com a sua capacidade de resistência totalmente anulada.

No trecho do artigo reproduzido abaixo, de autoria de Patrícia Alves de Souza e Marco Aurélio da Ros, publicado na Revista de Ciências Humanas, da EDUFSC, em 2006, fica muito claro o estado psicológico e emocional em que se encontra a mulher quando cria coragem para denunciar o companheiro:

“As mulheres, quando realizam queixa na delegacia, estão em um momento de conflito, pois, a esses sentimentos de desespero, vergonha e humilhação, junta-se o temor de expor o homem a quem escolheu para ser o pai de seus filhos.

A violência contra a mulher, mesmo atualmente, aparece ainda recoberta pelo manto da invisibilidade política, pela vergonha da denúncia, pela falta de acesso às informações jurídicas, pelo descaso das autoridades, pela ausência de políticas públicas e pela pouca legitimidade social que, muitas vezes, é-lhe atribuída.  A principal é a violência que ocorre no âmbito doméstico. Há, até o momento, muita dificuldade de trabalhar com essa questão. A interferência do público no privado é delicada. As relações afetivas são complexas.

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Há necessidade de um apoio mais efetivo às mulheres vítimas de violência física, para que elas compreendam que têm direito sobre seu próprio corpo, sobre sua própria vida e para que vejam que a violência não deve funcionar como punição por algo de que elas julguem ser “merecedoras”. Isso requer a intervenção de diferentes profissionais e instituições — do setor jurídico ao pedagógico, do psicológico ao setor de Saúde Pública.” (SOUZA, Patricia Alves e DA ROS, Marco Aurélio in Os motivos que mantêm as mulheres vítimas de violência no relacionamento violento – Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, n 40, p. 509-527 – link na webgrafia ao final).

O fator que mais impede as mulheres de não denunciarem seus agressores é  a crença de que a violência não foi grave, justificando, inclusive, a atitude e acreditando na mudança.

Ocorre que essa crença errônea acaba por alimentar o ciclo da violência no âmbito do relacionamento abusivo, fazendo com que a cada ciclo a violência aumente cada vez mais, até culminar no pior, que é o feminicídio.

O ciclo da violência é composto por três fases: a primeira é caracterizada pelos primeiros desgastes da relação. Às vezes sutis, onde nós minimizamos e justificamos que é culpa de fatores externos (até podem potencializar a violência, mas não são a causa e o fator fundamental desencadeador da violência) ou até mesmo nossa culpa! Ou então romantizamos a questão (¨ele age assim porque me ama demais!¨). A segunda fase é o da explosão das tensões, das ameaças e  ocorrência efetiva da violência. E a terceira fase, que chamamos de ¨lua de mel¨, onde ocorre a mudança temporária de comportamento, com pedido de desculpas e promessa de mudança!

Nos relacionamentos abusivos é muito comum que o agressor, que tem o perfil controlador, atinja as quatro estruturas principais da mulher, enquanto ser humano: –base da família (isola a mulher do convívio social com a sua família, sob o argumento de que ela não precisa da mesma); –base econômica/financeira (atinge o emprego da mulher e consequentemente sua autonomia ou realização profissional); –base religiosa (isola a mulher desse grupo social); –base pessoal (quando atinge a autoestima da mulher, fazendo com que ela acredite na sua imprestabilidade e na sua incapacidade e infelicidade se ficar longe dele).

Ao iniciar um relacionamento amoroso, a mulher deve ficar atenta a alguns detalhes e comportamentos do parceiro ou parceira que identificam uma futura relação abusiva. Porque ela não será abusiva de início. Primeiro ele irá conquistá-la para depois mostrar seu lado abusivo. Importante frisar que, nem o maior amor que essa mulher sinta por esse parceiro será capaz de modificá-lo. Essas são algumas atitudes que demonstram a abusividade de um parceiro para com a mulher: rápido envolvimento amoroso, podendo exteriorizar um sentimento exacerbado em pouco tempo, querer olhar e controlar as redes sociais, o celular, o modo de vestir, de maquiar, criação de expectativas irreais em relação às parceiras, onde devem ser as melhores mulheres, esposas, mães e amantes, descontrole emocional com oscilações repentinas de humor, violência contra animais domésticos, agressões verbais, desrespeito, abuso das expressões agressivas e humilhantes, criticar os amigos, isolar a mulher para que ela só tenha à ele, demonstrando possessividade, fazer piadas e deboches depreciativos às mulheres através de redes sociais,  e, comportamento de negação, quando afirma que é ¨frescura da mulher¨.

A origem da coisificação da mulher.

O baixo crescimento populacional na Europa nos séculos XVI e XVII transformou a taxa de natalidade em assunto de Estado, com a finalidade de regular a procriação, tirando das mulheres o controle sobre seus corpos – já que a riqueza de uma nação mercantilista está intimamente ligada à reprodução da força de trabalho -, colocando a procriação à serviço da acumulação capitalista.

A mulher passa a ser vista como objeto e, infelizmente, apesar de todas as lutas do movimento feminista ao longo da história para que a desigualdade de gênero acabe, ainda hoje a mulher é vista como objeto, por grande parte da sociedade moderna.

O trabalho doméstico ou as tarefas de dona de casa, exercidos diariamente e exaustivamente nunca foram, e não são até hoje, considerados trabalho. Se as mulheres saíram de casa para o mercado de trabalho, nada mais justo que os homens, maridos ou companheiros, que já frequentavam o mercado de trabalho, dividam com elas os trabalhos domésticos. Mas isso raramente acontece. As mulheres, além do trabalho doméstico, têm outras duas jornadas: cuidar dos filhos e atuar no mercado de trabalho, no qual, inclusive, ganham sempre salários menores do que dos homens nos mesmos cargos e funções.

Do século XVI ao XXI muita coisa mudou, mas a cultura patriarcal e machista se mantem até os dias atuais.  A influência da cultura, através de valores morais, costumes e crenças,  que são transmitidos desde que nascemos,  pela família, pela escola, pelos grupos que frequentamos (clubes, igrejas, amigos, futebol carnaval, festas, etc.), pelos meios de comunicação e pela sociedade enquanto Estado,  reforçam os papéis do homem e da mulher dentro dessa sociedade onde o homem tem papel sempre superior à mulher.

Os meios de comunicação, principalmente a televisão, através dos comerciais e novelas veiculados, têm papel fundamental para que haja uma mudança nesse paradigma, deixando de naturalizar esses papéis e de reproduzir estereótipos que dificultam ou impedem a garantia de direitos, desestimula a denúncia e ainda culpa a mulher pela violência sofrida.

Nas escolas, através de professores, principalmente no ensino básico exercido por mulheres em sua maioria e nas famílias através das próprias mães, esses papéis são reafirmados.  As estórias da infância e contos de fadas retratam sempre os príncipes, escolhendo ou salvando as mocinhas, sempre indefesas, ingênuas, bonitas, castas, prendadas e jovens. E a grande maioria das histórias de super-heróis o personagem principal é sempre o masculino, forte, corajoso, vitorioso.

Na sociedade machista, o homem é a autoridade naturalizada. Os senhores feudais eram homens, o padre é mais importante que a freira, os homens são maioria na política e nos cargos de chefia. Um grupo com 6 pessoas sendo 1 homem e 5 mulheres, ao se referir ao grupo, na língua culta, você falará “eles” e não “elas” (afinal se a maioria é de mulheres deveria ser “elas”). O machismo é tão entranhado nos valores e costumes que não nos damos conta dessas peculiaridades e acabamos achando tudo muito natural, quando na verdade é cultural.

Mudar essa cultura machista, decorrente de uma construção histórica que criou uma desvantagem das mulheres em relação aos homens, depende de todas e todos da sociedade, já que sua desconstrução social é difícil e complexa em virtude da assimetria de desigualdades dos papéis sociais entre homens e mulheres, que encontra-se muito arraigada em nossa sociedade.

Precisamos de homens e mulheres conscientes sobre essa cultura e os seus efeitos, que afetam tanto eles, através do machismo tóxico, quanto nós, mulheres, desenvolvendo uma consciência crítica, nos tornando aptos a questionar os costumes e valores que permeiam essa cultura.

Esses papéis rígidos de homem e mulher, instituídos pela cultura de nossa sociedade e naturalizados em nosso cotidiano, acabam por perpetuar a discriminação feminina e, consequentemente, a violência doméstica. A sociedade como um todo e o Poder Público devem agir para prevenir a violência doméstica, resguardando a mulher, punindo o agressor, bem como o tratando, com mecanismos que mudem sua forma de pensar e agir em relação as mulheres.

Cabe às mulheres mais conscientes e especializadas, continuar erguendo essa bandeira, ombreadas por homens dispostos a contribuir, para fazer com que a sociedade realmente enxergue que ela é permeada por valores machistas que coisificam as mulheres e que para mudar esse paradigma há que se começar, primeiramente, revendo as atitudes do dia a dia, visando garantir o fim da violência doméstica a médio e longo prazo.

Bibliografia:

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. Editora Elefante. 2017

GIMENES, Eron Veríssimo; ALFERES, Priscila Bianchini de Assunção.  Lei Maria da Penha Explicada – Doutrina e Prática: Legislação Complementar: Atualizada com as alterações promovidas pela Lei nº 13.931, de 10 de dezembro de 2019. Edipro. 2020

Webgrafia:

https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-aumento-da-violencia-domestica-em-tempos-de-covid-19/ – acesso 02/04/2020.

https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/cultura-e-raizes-da-violencia/ – acesso em 02/04/2020.

https://delas.ig.com.br/comportamento/2015-03-07/sete-situacoes-em-que-mulheres-reforcam-machismo-contra-elas.html – acesso em 03/04/2020.

https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/viewFile/17670/16234 – Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, n. 40, p. 509-527, outubro de 2006 – acesso 03/04/2020.

http://www.onumulheres.org.br/noticias/onu-mulheres-americas-e-caribe-faz-14-recomendacoes-para-que-mulheres-e-igualdade-de-genero-sejam-incluidas-na-resposta-a-pandemia-do-covid-19/ – acesso 06/04/2020.

https://exame.abril.com.br/brasil/no-rj-vitima-de-violencia-domestica-percorre-20km-ate-delegacia-da-mulher/ – acesso 07/04/2020.

https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2020-03-09/delegacia-da-mulher-e-porta-de-entrada-para-acolhimento-mas-enfrenta-desafios.html – acesso 07/04/2020.