CONFLITOS FEDERATIVOS ENVOLVENDO LICENCIAMENTO E FISCALIZAÇÃO AMBIENTAIS

Resumo

O presente artigo visa a discorrer, primordialmente, sobre o conflito de competências legislativas entre os três entes da federação brasileira, abordando aspectos sobre federação, legislação e, ao fim, analisando dois casos concretos que se sucederam recentemente em território nacional e que tiveram ampla repercussão na mídia.

Artigo

CONFLITOS FEDERATIVOS ENVOLVENDO LICENCIAMENTO E FISCALIZAÇÃO AMBIENTAIS

Isabella Macedo Torres

Resumo

 O presente artigo visa a discorrer, primordialmente, sobre o conflito de competências legislativas entre os três entes da federação brasileira, abordando aspectos sobre federação, legislação e, ao fim, analisando dois casos concretos que se sucederam recentemente em território nacional e que tiveram ampla repercussão na mídia.

Palavras-chaves:     federação;    competência     legislativa     ambiental;     conflitos     de competência ambiental; amianto; Samarco.

1.       Introdução

 “Chego à sacada e vejo a minha serra, a serra de meu pai e meu avô,

de todos os Andrades que passaram e passarão, a serra que não passa. […]

Esta manhã acordo e não a encontro, britada em bilhões de lascas, deslizando em correia transportadora entupindo 150 vagões,

no trem-monstro de 5 locomotivas

– trem maior do mundo, tomem nota – foge minha serra vai,

deixando no meu corpo a paisagem mísero pó de ferro, e este não passa.”.

Os versos de Drummond1, que debutaram no poema “A montanha pulverizada”, demonstram a crescente preocupação com a devastação ambiental durante a década de 70, momento em que o meio ambiente teve sua proteção alçada a status constitucional.

Inicialmente, no Brasil, sua tutela constituía uma das facetas da dignidade humana, porém, após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, ingressou na esfera dos valores fundamentais dos pactos políticos nacionais, encontrando guarida no artigo 2252.

O trecho do poema faz-se pertinente para introduzir o presente artigo, cuja finalidade será demonstrar os conflitos existentes no que tange ao licenciamento e à fiscalização ambiental, tendo em vista que os três entes federativos possuem competência para legislar e regulamentar matéria sobre meio ambiente.

A questão inicia-se em sede constitucional, haja vista a autonomia e independência dos entes e a forma genérica como o assunto é tratado pela Constituição. Abordar-se-á, por esse motivo, aspectos da Lei Complementar 140/2011, cujo principal intuito foi delimitar a competência para a fiscalização e concessão de licenciamento, a fim de encerrar os inúmeros conflitos existentes.

Demonstrar-se-á que a recorrente preocupação do Estado, denominado por parte da doutrina de Estado Socioambiental de Direito3, tem origem na efemeridade das nuances econômicas e ambientais: se, por um lado, há incentivo ao livre desenvolvimento econômico – dando causa à problemática do licenciamento – de outro, existe a crescente preocupação em fazer valer o direito ao mínimo existencial socioambiental4 – fato atrelado à fiscalização do meio ambiente pelos entes federativos e pela população direta e indiretamente afetada.

2.       Competência para legislar sobre Meio Ambiente – entes federativos e CONAMA:

 O artigo 1º da Constituição da República define o Brasil como uma república federativa, possuindo os entes que a constituem independência e autonomia entre si. Conquanto haja discussão doutrinária acerca da inclusão das comunas a nível federativo, o certo é que a Constituição de 1988 inovou ao consagrar o município como ente autônomo, tendo fortalecido o reconhecimento da esfera política municipal no pacto federativo, com importantes reflexos em matéria constitucional5.

De qualquer forma, a natureza jurídica de tais entes torna-se salutar no que tange à distribuição de competências delineada pela Carta Magna.

A doutrina define competência como “parcelas de poder atribuídas pela soberania do Estado Federal, aos seus entes políticos, permitindo-lhes tomar decisões, no exercício regular de suas atividades, dentro do círculo pré-traçado pela Constituição da República”, destacando-se que “o exercício harmônico dessas atribuições é responsável pela manutenção do pacto federativo, pois uma entidade não pode adentrar o campo reservado à outra, praticando invasão de competências”6. Desta feira, infere-se que as competências foram definidas de forma a evitar conflito entre os entes federados. O inciso IV do artigo 24 da Constituição definiu que a União, os estados e o Distrito Federal são competentes para legislar de forma concorrente sobre matéria ambiental. À União foi dado o poder de estabelecer normas gerais, sendo a competência dos estados suplementar, e, na ausência de norma federal, poderão exercer competência legislativa  plena.  Frise-se,  no  entanto,  a  determinação  do  §4º  do  supramencionado artigo, que contém regra que a doutrina denomina de limitação qualitativa e temporal, uma vez que lei estadual já existente adaptar-se-á a norma federal superveniente7.

Por fim, e não de menor relevância, os artigos 30, VIII, e 182, §1º, da Constituição Federal conferiram às comunas a responsabilidade de ordenação e zoneamento do solo urbano mediante plano diretor. Tal competência tem estrita relação com o meio ambiente, já que permite a delimitação de zona de impacto das atividades potencial ou efetivamente poluentes8. Ademais, ressalte-se que, conforme estipulado pelos incisos I e II do mencionado artigo 30, os municípios complementarão as legislações federal e estadual no que diga respeito a peculiaridades locais.

É de suma importância ressaltar que a autonomia dos entes federativos deve ser preservada, haja vista ser corolário da descentralização política inerente à própria definição de estado federado, mantendo-se, dessa forma, a síntese de pluralidade de vontades9.

Além da competência legislativa dos entes federativos, o Poder Executivo também possui competência para expedir regulamentos referentes à matéria ambiental. Apesar de há muito ter-se discutido sobre a legalidade de tais regulamentos, modernamente entende-se que “se relativizada a ideia clássica e absoluta de separação dos poderes, o amplo poder regulamentar dos órgãos e entidades da Administração Pública em nada contraria a divisão de funções estabelecidas pelas constituições contemporâneas e os valores do Estado de Direito, que, afinal, constituem o principal parâmetro da admissibilidade ou não do exercício de distintas funções estatais pelo mesmo órgão-Poder”10.

Sendo assim, a Lei 6.938/81 instituiu o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, sendo um de seus órgãos o CONAMA – Comitê Nacional do Meio Ambiente. Este órgão possui competência prevista no artigo 8º da aludida lei, dentre as quais está o poder de editar linhas de direção que devem tomar as políticas para a exploração e preservação do meio ambiente e dos recursos naturais, podendo criar normas e determinar padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado11.

Em relação à legitimidade do CONAMA, o STJ já teve a oportunidade de se manifestar, conforme se depreende do acórdão em destaque12:

“Possui o CONAMA autorização legal para editar resoluções que visem à proteção das reservas ecológicas, entendidas como as áreas de preservação permanentes existentes às margens dos lagos formados por hidrelétricas. Consistem elas normas de caráter geral, às quais devem estar vinculadas as normas estaduais e municipais, nos termos do artigo 24, inciso VI e §§ 1º e 4º, da Constituição Federal e do artigo 6º, incisos IV e V, e §§ 1º e 2º, da Lei

  1. 6.938/81. (REsp 194.617/PR, rel. Min. Franciulli Neto, 2ª T., DJ 01.07.2002)”.

Por conseguinte, a competência para legislar sobre matéria ambiental é concorrente entre os entes federativos, sendo a competência para editar normas gerais  da União, suplementar dos estados e, a nível local, dos municípios, ressaltando-se que, em caso de legislação federal superveniente, esta deverá prevalecer. Outrossim, o CONAMA tem papel de suma importância quanto à expedição de regulamentos, sendo sua competência para editar atos reconhecidos pela doutrina e corroborada pelo STJ.

3.       Licenciamento Ambiental e o Estudo Prévio de Impacto Ambiental – EIA/RIMA

 A Lei Complementar 140/2011 traz o conceito de licenciamento ambiental em seu artigo 2º, sendo este definido como o “procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental”.

Sendo elencado como um dos instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente (artigo 9º, inciso IV, da Lei 6.938/81), constitui um dos procedimentos de controle ambiental adotados pelo Estado, cujo objetivo é assegurar que as atividades a ele submetidas gerem o menor impacto ambiental possível13, e será exigido quando da construção, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental (artigo 10, LC 140/2011).

O licenciamento ambiental se materializa em alvarás ambientais, que são fornecidos pela Administração Pública através de licenças ou autorizações14. Além disso, a Lei Federal nº 99.274/90, ao regulamentar a PNMA, “estabeleceu uma tripartição no licenciamento ambiental que se faz mediante três licenças distintas que são outorgadas de acordo com as diferentes etapas de planejamento da atividade pretendida”15. Assim dispõe o mencionado artigo:

Art. 19. O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças:

  • – Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento de atividade, contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação, observados os planos municipais, estaduais ou federais de uso do solo;
  • – Licença de Instalação (LI), autorizando o início da implantação, de acordo com as especificações constantes do Projeto Executivo aprovado; e III – Licença de Operação (LO), autorizando, após as verificações necessárias, o início da atividade licenciada e o funcionamento de seus equipamentos de controle de poluição, de acordo com o previsto nas Licenças Prévia e de Instalação.

1º Os prazos para a concessão das licenças serão fixados pelo Conama, observada a natureza técnica da atividade.

2º Nos casos previstos em resolução do Conama, o licenciamento de que trata este artigo dependerá de homologação do Ibama.

 Conforme assevera a melhor doutrina, apesar de sua natureza jurídica ser pouco discutida, é “atividade diretamente relacionada ao exercício de direitos constitucionalmente assegurados, tais como o direito de propriedade e o direito de livre inciativa econômica que deverão ser exercidos com respeito ao meio ambiente”16, conforme prescreve o inciso VI do artigo 170 da Constituição.

Outrossim, de acordo com o inciso IV, §1º, do artigo 225 da Constituição, quando a obra ou atividade for potencialmente causadora de significativa degradação ambiental, incumbe ao Poder Público exigir estudo prévio de impacto ambiental – EIA, a que se dará publicidade. Necessário ressaltar que “o licenciamento ambiental, como está definido e tratado na Lei Complementar 140/2011, não abrange o estudo de

16Ibidem. P. 212.13ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. P. 216. 18ª Edição. São Paulo: Atlas, 2016. 14ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. P.207. 18ª Edição. São Paulo: Atlas, 2016. 15Ibidem. P. 228.

impacto ambiental. Os dois instrumentos administrativos ambientais são autônomos, ainda que entrelaçados, como mostra a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81)”17.

Ainda sobre a Lei 6.938/81, dois artigos têm suma importância no que tange ao licenciamento: o artigo 8º, I, que instituiu competência ao CONAMA para a criação de licenças ambientais, e o artigo 10, que concedeu ao IBAMA o poder de supervisionar as licenças concedidas18.

Após a realização do EIA, será elaborado o Relatório de Impacto Ambiental – RIMA, que “refletirá as conclusões dos Estudos de Impacto Ambiental. Por ele, a equipe multidisciplinar oferece seu parecer sobre a validade do projeto, seu impacto no meio ambiente, as alternativas possíveis e convenientes, assim como a síntese das atividades técnicas desenvolvidas no Estudo”19.

Por último, vale ressaltar que “no que tange ao Estudo de Impacto Ambiental sobra muito espaço para a atuação estadual e municipal, bastando lembrar que estado e municípios têm ampla competência para a ordenação dos respectivos territórios” e “a legislação federal reconhece essas competências ao estabelecer que cabe primariamente ao órgão estadual a aprovação do Estudo de Impacto Ambiental, e ao IBAMA supletivamente (Resolução CONAMA-001, de 1986, artigo 2º)”20.

4.     A fiscalização ambiental – Poder de Polícia Ambiental

 A fiscalização ambiental é um conceito que está intimamente atrelado à atividade econômica que será exercida após o processo de licenciamento, embora a doutrina entenda que o próprio procedimento de licenciamento constitui espécie de fiscalização por meio da qual tanto o Poder Público quanto a população poderão estabelecer padrões e alterações advindas de sua participação21. Segundo José Afonso da Silva: “a legislação prevê controle prévios, concomitantes e sucessivos, por parte de autoridades públicas, a fim de verificar a regularidade do exercício das atividades controladas. Permissões, autorizações e licenças são formas clássicas de controle prévio, porque atuam antes do início da atividade controlada”.

Quanto à sua natureza jurídica, a Lei Complementar 140/2011, corroborada pela doutrina, definiu que a fiscalização constitui poder de polícia, instituto que tem seu conceito delimitado no artigo 78 do Código Tributário Nacional, consistindo na “atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão do Poder Público, a tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais e coletivos”, sendo atividade indelegável do Estado22.

Tendo em vista tais características, pode-se dizer que “é o exercício do poder de polícia que servirá de parâmetro para os limites de utilização legítimos, segundo a ordem jurídica vigente”. Desta feita, o poder de polícia poderá ser utilizado para a harmonização dos direitos individuais, desde que sejam observadas as normas vigentes, devendo a autoridade agir conforme determina a legislação ambiental23.

No que concerne à competência para exercer a fiscalização ambiental, é essencial que seja mencionado o artigo 17 da Lei Complementar 140/2011, cujo caput dispõe que:

“Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.”.

 Conclui-se, por conseguinte, que o ente federativo que concedeu o licenciamento será responsável também por fiscalizar a atividade exercida. Cumpre ressaltar que também a população exercerá a fiscalização, uma vez que o §1º do aludido artigo estabelece que qualquer pessoa poderá denunciar infração ambiental. E, embora o ente federativo que concedeu a licença tenha a função primordial de fiscalização, o §3º do artigo 17 ressalta que essa competência é comum aos demais entes, sendo o auto de infração lavrado por órgão vinculado ao ente federativo que concedeu o licenciamento.

Saliente-se que a função de proteger, defender e conservar o meio ambiente constitui objetivo fundamental dos três entes, conforme define o artigo 3º da LC 140/2011, devendo as atividades de fiscalização obedecer precipuamente aos princípios fundamentais da República, mormente os expressos no caput do artigo 37 da Carta Maior, priorizando-se os princípios da legalidade, publicidade e impessoalidade24.

Ainda no que diz respeito ao mencionado artigo 3º da LC 140, destaque-se que uma de suas finalidades é justamente a de evitar sobreposição entre os entes federativos, para que não haja conflitos de atribuição, mesmo que, na prática, ainda sejam verificados tais problemas (conforme será exposto adiante)25.

Cumpre trazer à tona o fato de a LC 140/2011 ter instituído a Comissão Tripartite Nacional e Estadual, com o objetivo precípuo de fomentar a gestão ambiental compartilhada e descentralizada, sendo tais comissões integradas por membros dos Poderes Executivos. A esse respeito, ressalte-se que “a existência de norma procedimental para a atividade fiscalizatória é fundamental, pois a fiscalização sem regras claras e predefinidas é algo que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito. Infelizmente, a grande maioria dos estados e dos municípios não possui regulamentos internos de fiscalização, exercendo-a de forma aleatória”26. Suas funções estão definidas no Capítulo III da LC 140/2011, que define a competência de cada ente federativo.

Resta mencionar que a cada ente federativo está vinculado órgão de assessoramento e ações práticas, como fiscalização, por exemplo. À União, está vinculado o CONAMA, cuja competência foi salientada anteriormente, órgão regulamentado pela Lei 8.028/09, além do Instituto Chico Mendes – ICMBio, regulamentado pela Portaria ICMBio nº95/2012, autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. Quanto aos estados, estes também possuem competência para estabelecer Conselhos Estaduais do Meio Ambiente, ato este praticado por diversos brasileiros com competência prevista em suas respectivas constituições27.

Deve também ser mencionada a atuação do IBAMA, autarquia federal criada pela Lei7.735, que possui, dentre suas principais funções, exercer o poder de polícia

25MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. P 183. 24ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2016.24ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. P. 175. 18ª Edição. São Paulo: Atlas, 2016.

ambiental, executar ações supletivas de competência da União e exercer a fiscalização de atividades ambientais28.

5.       Conflito    de    competências    envolvendo    licenciamentos     e    fiscalização ambientais

 Tomando-se por base o que fora demonstrado, percebe-se que a Lei Complementar 140/2011 é utilizada para dirimir os inúmeros conflitos de competência envolvendo licenciamento e fiscalização, ao estipular que, embora o licenciamento deva ser expedido pelo ente onde as atividades serão exercidas, a fim de evitar-se sobreposição de atuação, todos os entes federativos estão incumbidos de fiscalizá-la, já que isso poderá propiciar maior conhecimento acerca do empreendimento a ser licenciado ou autorizado29.

Frise-se, no entanto, que a grande maioria dos estados e municípios não possui regulamentos internos de fiscalização, exercendo-a de forma aleatória, o que, na prática, gera inúmeros conflitos relacionados à sobreposição de atuação.

Quando o conflito for relacionado à sobreposição de normas ou regulamentos, tanto a doutrina quanto o STJ têm trazido à tona o Princípio do In Dubio Pro Natura, por meio do qual se dará prioridade à que melhor proteja o direito fundamental tutelado30, devendo a interpretação ocorrer sob o prisma do postulado da norma mais protetiva ao meio ambiente31.

Também merece destaque a garantia constitucional da proibição do retrocesso, cuja prioridade é impedir a atuação regressiva por parte do legislador ou de expedição de normas regulamentares que não obedeçam aos padrões já estabelecidos. Salienta a doutrina que os pilares axiológicos do Direito Ambiental devem criar padrões que propiciem a melhoria da qualidade e da segurança ambiental, o que não seria alcançado se houver redução da proteção32.

Em que pese os entes federativos serem independentes e autônomos entre si, conforme estipula o Princípio Federativo, há de se verificar que o interesse nacional prevalecerá sobre o local quando a questão envolver mais de um ente federativo. Porém, nada impede que normas estaduais e municipais, quando mais protetivas ao bem jurídico ambiental, sejam priorizadas em detrimento da norma federal. Destaque-se, no entanto, que o contrário não poderia ocorrer, pois, caso exista um retrocesso, no sentido de normas estaduais e municipais violarem o núcleo essencial de determinado direito fundamental, haverá inconstitucionalidade da medida legislativa33.

Interessante salientar que, no caso da fiscalização ambiental, há posicionamento no sentido de que, ao menos teoricamente, é atividade compatível com a sobreposição de competências, enquanto, no que concerne ao licenciamento, a sobreposição de atribuições poderá sujeitar certos empreendimentos a serem submetidos dezenas de licenças cumulativas e incompatíveis com a razoabilidade, gerando, inclusive, consequências na aplicação de sanção por parte do Estado, lesionando princípios fundamentais, como, por exemplo, a vedação do bis in idem34.

Visando a ilustrar o que se assevera, cumpre trazer à tona o desastre ambiental ocorrido no estado brasileiro de Minas Gerais, na área denominada de Quadrilátero Ferrífero, que engloba os municípios de Belo Horizonte, Congonhas, Nova Lima, Itabira e Brumadinho, além de Mariana e Ouro Preto. A principal atividade desenvolvida na região – não à toa a denominação – é a mineração, que é responsável por 17% do PIB do estado de Minas Gerais35.

Por esses e outros motivos, a empresa Samarco (controlada pela Vale do Rio Doce e pela Anglo-australiana BHP Billinton) se instalou na região no ano de 2008, após submeter-se ao processo de licenciamento ambiental. Após alguns anos operando na região, no final de 2014, houve o rompimento da barragem de Fundão, região onde estava localizada a Samarco, gerando como consequências uma onda de lama que atingiu cerca de 40 metros em linha reta da barragem. A mancha avançou em direção ao Rio Doce, tendo devastado ao menos 20 comunidades mineiras e atingiu o estado do Espírito Santos, especificamente a cidade de Linhares, onde há deságue para o Oceano Atlântico36.

Apesar de a instalação da Samarco ser sinônimo de significativo desenvolvimento econômico naquela região, merecem destaque algumas críticas relacionadas à atuação do Poder Público quanto a alguns pontos.

Primeiramente, reportagens denunciam a negligência quanto ao EIA/RIMA apresentado e disponibilizado à população no ano de 2008, em que as falhas ocorridas no ano de 2014 haviam sido constatadas37. Assim como ocorre com diversos outros empreendimentos econômicos ao longo do país, deu-se mais prioridade à instalação da atividade econômica do que aos potenciais (assim como priorizado pelo citado artigo 225 da Constituição) danos ambientais.

Ademais, segundo dados do Ministério Público mineiro, há dezenas de procedimentos abertos, de queixas de moradores a inquéritos sobre danos ambientais, que não são inventariados pelo governo de Minas Gerais devido à falta de estrutura para acompanhar a atividade mineradora. Constatou-se que há “afrouxamento” dos órgãos de controle e fiscalização.

Desta feita, conclui-se que, não obstante os avanços alcançados pelo advento da Lei Complementar 140/2011, cujo texto delimitou as competências dos entes federativos quanto à concessão de licenças e à fiscalização, o caso Samarco ilustra que, na prática, não houve equilíbrio quanto a, de um lado, instalação da atividade econômica, e, de outro, fiscalização por parte do Poder Público (que teve início assim que os danos constatados no EIA/RIMA apresentado em 2008 foram absolutamente ignorados).

Entretanto, é interessante notar que o Poder Judiciário tem tido importante relevância no que tange à proteção ambiental, com ocorreu, por exemplo, recentemente, em que esteve em voga conflito de competência envolvendo os entes federativos, no caso, especificamente, a União e dois estados da federação: o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 3937, oriunda de São Paulo, e da ADI 3406, do Rio de Janeiro, manifestou-se no sentido de que as leis estaduais 12.648/2007 e 3.579/2001, de origem respectivamente dos estados supramencionados, devem prevalecer sobre a Lei Federal 9.055/1995, cujo artigo 2º, que regulamenta a extração, industrialização, comercialização e distribuição do amianto, foi declarado inconstitucional. Tal decisão foi tomada tendo em vista a crescente preocupação socioambiental de preservação do meio ambiente e da população envolvida, entendendo o Pretório Excelso que normas estaduais podem prevalecer sobre as emitidas pela União, pois, nesta situação, não houve violação do estabelecimento de diretrizes gerais, mas sim maior restrição por parte dos demais entes federados38. Prevaleceu, portanto, o Princípio do In Dubio Pro Natura, tendo em vista, primordialmente, a saúde da população diretamente envolvida.

A ocorrência de desastres ambientais, como foi o caso da Samarco, colide com o que a doutrina moderna denomina de Estado Socioambiental de Direito, em que há convergência da tutela dos direitos sociais e dos direitos ambientais, prevalecendo características do Estado Liberal e do Estado Social, erigindo-se o direito ambiental a direito-garantia fundamental ao mínimo existencial ambiental atrelado ao livre desenvolvimento econômico (artigo 170, VI, CF)39. Frise-se, entretanto, que, apesar da previsão constitucional do artigo 170, VI, e do artigo 225, na prática, constata-se maior relevância do desenvolvimento das atividades econômicas do que a preocupação com a proteção do meio ambiente. Porém, como se demonstra em casos como os do amianto, tem restado ao Poder Judiciário aplicar as normas constitucionais atreladas aos princípios ambientais, a fim de que seja respeitado o que parte da doutrina denomina de mínimo existencial ambiental, que consiste em uma condição de possibilidade para o exercício dos demais direitos fundamentais, como é o caso dos direitos difusos, em que está incluído o meio ambiente40.

6.       Conclusão

 Acompanhando a tendência mundial iniciada na década de 70, o Brasil elevou a proteção ao meio ambiente à categoria constitucional. Conforme prevê o artigo 225 da Constituição Federal, incumbe ao Poder Público e à comunidade a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

A Constituição da República definiu que a competência para legislar sobre o meio ambiente deve ser concorrente, dividida entre os entes federativos, tendo sido as especificidades daí oriundas delineadas pela Lei Complementar 140/ 2011. Esta lei teve como escopo solucionar problemas práticos advindos do demasiado número de legislações ambientais e, principalmente, da expedição de licenciamento ambiental pelos diferentes entes, tendo inovado ao definir que o ato, a partir de então, seria expedido por um único ente e que a fiscalização seria exercida conjuntamente por todos, haja vista o status de direito fundamental conferido ao meio ambiente.

Não obstante os avanços obtidos, devido à existência de um número elevado de legislações, na prática, os conflitos ainda persistem, pois há falta de equilíbrio entre os interesses econômicos, de um lado, e a proteção ao meio ambiente e aos interesses das populações que serão atingidas, de outro. Constata-se que, embora a doutrina moderna tenha descrito, com base no artigo 170, VI, da Constituição, o denominado capitalismo socioambiental, capaz de compatibilizar a livre iniciativa com o desenvolvimento sustentável41, na prática, os princípios e normas que formam a base de proteção ao meio ambiente, cujo ápice encontra alicerce no artigo 225 da Constituição, não têm a devida importância.

O caso da Samarco vem a ilustrar de forma cristalina a ausência de fiscalização e negligência quanto aos instrumentos à disposição do Poder Público e da população, como se verifica quando foram ignorados dados trazidos à tona no EIA/RIMA  fornecido pela própria empresa antes do início da implementação da atividade mineradora.

Sendo assim, não obstante os esforços oriundos da integração e cooperação dos entes federativos e do legislativo para que as questões ambientais estejam em consonância com o desenvolvimento econômico do país, há que se atentar aos conflitos ainda em voga no ordenamento jurídico. Uma das inúmeras consequências desses conflitos é, justamente, ausência de critérios para que se estabeleça o ente responsável por indenizar as vítimas de um possível dano ambiental, haja vista todos possuírem dever de fiscalização, conforme estipula a Lei Complementar 140/2011. Cite-se como exemplo que, no caso da Samarco, há inúmeras ações judiciais sobrestadas devido a conflitos de competência.

Muito embora essas questões persistam, deve-se mencionar que há mudanças de posicionamento por parte do Poder Judiciário, com a finalidade de respaldar a proteção ao meio ambiente, conforme se constatou no supramencionado caso envolvendo a produção de amianto. Sendo assim, resta a esse Poder fazer análise do caso concreto a fim de que sejam respeitadas as regras de competência, como também aplicados os princípios atinentes ao Direito Ambiental, com o intuito de que haja maior proteção, não apenas quanto ao meio ambiente, mas à população direta e indiretamente afetada por leis permissivas e atos de fiscalização não respeitados.

Por derradeiro, pertinente ressaltar o posicionamento de Ingo Sarlet, que faz alusão a um dos imperativos categóricos de Kant, por meio do qual o indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo, não podendo ser reduzido à condição de mero objeto das relações sociais e econômicas, assim como da ação estatal42. Desta feita, o posicionamento dos Tribunais tem vital importância na proteção dos princípios ambientais, mesmo que ainda sejam observados inúmeros conflitos, devido à vagueza das legislações anteriores à Lei Complementar 140/2011, que, não obstante o número elevado, não foram suficientes para acompanhar as diversas nuances advindas tanto do desenvolvimento econômico, quanto da crescente preocupação com a preservação do meio ambiente.

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NOTAS DE RODAPÉ:

1 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Boitempo II. Rio de Janeiro: Record, 1973.

2 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Meio Ambiente e Constituição: uma primeira abordagem.

3 SARLET, Ingo Wolfgan. Direito Constitucional Ambiental. P. 112, 3ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

4 SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Constitucional Ambiental. P. 143, 3ª Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

5 Ibidem. P. 42.

6 BULLOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. P. 826, 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009.

7 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. P. 143. 24ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2016.

8 BARROSO, Luís Roberto. Serviço de transporte ferroviário e federação: instituição de padrões ambientais e de segurança. P. 103-145. In: DAIBERT, Arlindo (Org.). Direito Ambiental comparado. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

9 BARROSO, Luís Roberto. O problema da Federação. P. 22. Rio de Janeiro: Forense, 1982.

10 ARAGÃO, Alexandre Santos. Legalidade e Regulamentos administrativos no Direito Contemporâneo – Uma análise doutrinária e jurisprudencial. P. 288. São Paulo: Revista dos Tribunais nº 4, 2002.

11Disponível em http://www.oeco.org.br/dicionario-ambiental/27961-o-que-e-o-conama/

12Disponível em https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/288487/recurso-especial-resp-194617

13ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. P. 216. 18ª Edição. São Paulo: Atlas, 2016.

14ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. P.207. 18ª Edição. São Paulo: Atlas, 2016.

15Ibidem. P. 228.

16Ibidem. P. 212.

17MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. P. 321. 24º Edição. São Paulo: Malheiros, 2016.

18Ibidem. P. 213.

19SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. P. 320. 10ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2013.

20Ibidem. P. 315.

21Ibidem. P. 300.

22Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=347229

23ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. P. 175. 18ª Edição. São Paulo: Atlas. 2016.

24ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. P. 175. 18ª Edição. São Paulo: Atlas, 2016.

25MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. P 183. 24ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2016.

26 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. P. 188. 18ª Edição. São Paulo: Atlas, 2016.

27 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. P. 201. 24ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2016.

28 Ibidem. P. 211 e 213.

29 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. P. 188.São Paulo: Atlas, 2016.

30 FARIAS, Paulo José Leite. Competências federativas e proteção ambiental. P. 356. Porto Alegre: Fabris, 1999.

31 SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Constitucional Ambiental. P. 175. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

32 Ibidem. P. 175, 176 e 177.

33 SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Constitucional Ambiental. P. 193. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

34 MASCARENHAS, Rodrigo Tostes de Alencar. P. 5. Parecer 01/13-RTAM-PG-2.

35 Disponível em http://temas.folha.uol.com.br/o-caminho-da-lama/capitulo-1/mineracao-abre-cratera-faz-pico-de-montanha-sumir-e-cria-bairros-fantasmas-em-regiao-de-minas.shtml

36 Disponível em https://www.nexojornal.com.br/especial/2016/11/04/Mariana-a-g%C3%AAnese-da-trag%C3%A9dia

37 Disponível em https://www.nexojornal.com.br/especial/2016/11/04/Mariana-a-g%C3%AAnese-da-trag%C3%A9dia

38 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=363263

39 SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Constitucional Ambiental. P. 141. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

40 Ibidem. P. 124.

41 SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Constitucional Ambiental. P. 142. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

42 SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Constitucional Ambiental. P. 125. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

Palavras Chaves

Federação; competência legislativa ambiental; conflitos de competência ambiental; amianto; Samarco.