Reeducação de agressor de violência doméstica e familiar como medida protetiva de urgência: da ressignificação dos papéis de gênero pelo agressor como medida a impedir a continuidade ou reincidência da agressão

Resumo

As Medidas Protetivas de Urgência são o instrumento mais acessado pelas mulheres vítimas de violência doméstica e familiar no país. Tomando-se que a punição penal estatal, entendida apenas como a determinação de prisão do agressor, nos casos de violência doméstica não encontra efetiva resposta social quanto à diminuição dos casos albergados pela lei, buscou-se, através de uma pesquisa bibliográfica e um estudo de caso de Parecer do Ministério Público do Maranhão, analisar a possibilidade de comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação como a principal medida protetiva de urgência a ser deferida. Por meio dos estudos acerca das introjeções de conceitos machistas pelos agressores e do uso da violência como exercício simbólico de poder, concluiu-se que a reeducação é um importante mecanismo de garantir eficácia na diminuição da reincidência em casos de violência de gênero.

Artigo

REEDUCAÇÃO DE AGRESSOR DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR COMO MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA: DA RESSIGNIFICAÇÃO DOS PAPÉIS DE GÊNERO PELO AGRESSOR COMO MEDIDA A IMPEDIR A CONTINUIDADE OU REINCIDÊNCIA DA AGRESSÃO

Artenira da Silva e Silva [1]

Gabriella Sousa da Silva Barbosa[2]

RESUMO

 As Medidas Protetivas de Urgência são o instrumento mais acessado pelas mulheres vítimas de violência doméstica e familiar no país. Tomando-se que a punição penal estatal, entendida apenas como a determinação de prisão do agressor, nos casos de violência doméstica não encontra efetiva resposta social quanto à diminuição dos casos albergados pela lei, buscou-se, através de uma pesquisa bibliográfica e um estudo de caso de Parecer do Ministério Público do Maranhão, analisar a possibilidade de comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação como a principal medida protetiva de urgência a ser deferida. Por meio dos estudos acerca das introjeções de conceitos machistas pelos agressores e do uso da violência como exercício simbólico de poder, concluiu-se que a reeducação é um importante mecanismo de garantir eficácia na diminuição da reincidência em casos de violência de gênero.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha; Medida Protetiva de Urgência; Reeducação; Agressor; Eficácia.

 

INTRODUÇÃO

A criação da Lei nº 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, é reconhecida como um marco para a proteção de mulheres em casos de violência doméstica no país. Instituída por influência de uma condenação no caso Maria da Penha Maia Fernandes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao Estado Brasileiro, no ano de 2001, por omissão e negligência do Sistema de Justiça no enfrentamento das questões relativas à violência doméstica (DIAS, 2007, p. 14), em específico por descumprimento do artigo 7º da Convenção de Belém do Pará, assim como aos artigos 1º, 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a lei reflete um longo processo de luta dos movimentos feministas e organizações da sociedade civil ao longo de décadas no país (CALAZANS; CORTE, 2011, p. 56).

É nesse diploma legal que se chega a uma inovação em todo o ordenamento jurídico: as Medidas Protetivas de Urgência – MPUs. Figura sui generis, de natureza jurídica ainda indefinida, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência pátrias, são tais medidas, previstas entre os artigos 18 e 24 da lei, as mais acessadas pelas jurisdicionadas, representando cerca de 60% da atuação dos juizados especializados em violência doméstica de toda a jurisdição nacional. (CNJ, 2010, p. 116).

Intentando proteger a mulher em caráter de urgência de lesões ou ameaça de lesões a sua integridade física, sexual, patrimonial, moral e/ou psicológica, a popularidade dessas medidas dá-se por uma série de fatores. Podem-se destacar não só a agilidade do procedimento, deferido em até 48 horas da solicitação nas delegacias de polícia, como o caráter mais protetivo à mulher, garantindo a esta que seu agressor – pessoa com quem guardou relação íntima de afeto e com a qual pode compartilhar vínculo de parentalidade –apenas será encarcerado caso haja desobediência da medida (PIRES, 2011, p. 125).

Ocorre que, mesmo representando o instrumento mais acessado pelas mulheres vítimas de violência doméstica, tais medidas tem sido interpretadas de modo a subutilizar seu potencial de prevenir e inibir futuros atos de violência, o que, por si só não satisfaz o apelo social de punição do agressor e ou de qualquer medida que de fato possa prevenir a ocorrência dos fatos trazidos emergencialmente a juízo.

Deve-se destacar nesse contexto o processo de naturalização da violência de gênero, que comumente leva o agressor a não perceber suas ações ou omissões como violência, demarcações sociais e institucionais que frequentemente responsabilizam a vítima pelos descontroles do autor, o que tem levado muitas mulheres a não se perceberem, como vítima de violência de gênero ou ainda de introjetar culpa pela violência sofrida.

Percebe-se, nesse sentido, que a violência contra a mulher em ambiente doméstico e familiar, enquanto violência de gênero, possui forte demarcação das significações introjetadas pelo agressor. É diante dessa dinâmica masculino-feminino que os membros da sociedade constroem suas identidades, pautados nos lugares que ocupam nas relações sociais, sendo estas alocações fortemente influenciadas pelas intersecções sociais às quais os sujeitos veem-se entrecortados, a exemplo da classe e raça. (CRENSHAW, 2002, p. 177)

Assim sendo, observa-se a complexidade da relação agressor-agredida em todos os tipos de violência, mas em especial no que tange à violência psicológica e ou moral, fortemente atrelada às demais modalidades de violência ou mesmo considerada a porta de entrada para o início das demais modalidades, incluindo-se o feminicídio (SILVA; COELHO; CAPONI, 2007, p. 99).

Tanto a adoção de um vetor punitivo, em resposta a apelos sociais, quanto o uso exclusivo das medidas protetivas de urgência explicitadas entre os artigos 22 a 24 da Lei Maria da Penha aplicados a cada caso concreto, são insuficientes para fazer cessar a continuidade da lesão ou ameaça de lesão aos direitos humanos das mulheres. Tendo em vista que o agressor é, assim como a vítima e seus julgadores, pessoa inserida na sociedade, cujas assujeitações inserem-se em uma dinâmica em que, em maior ou menor grau, em termos conscientes ou inconscientes, a mulher é ainda significada como um ser humano naturalizado como infravalorado, devendo, por vezes, ser subordinada a seu companheiro e devendo ainda manter a família a qualquer custo.

1 VIOLÊNCIA DE GÊNERO E AS SUJEITAÇÕES DOS INDIVÍDUOS

A violência remonta às origens da humanidade. Percebem-se as constantes disputas de poder que envolvem a convivência humana na sociedade ao longo da história, enredadas pelo ódio e vontade de se aniquilarem povos ou indivíduos. Apesar de seu caráter  sociohistórico, a violência passa a tornar-se questão de saúde pública à medida em que começa a afetar a saúde individual e coletiva dos membros da sociedade. (MINAYO, 2005, p. 10).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a violência como o uso de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação. (DAHLBERG; KRUG, 2007, p. 1.165)

Perceba-se que o uso da expressão “poder” na definição da Organização Mundial de Saúde é revelador quanto à potencialidade da violência em relações de assimetria social, quando uma das partes se vê vulnerabilizada, tal qual ocorre nos casos de violência pautados no gênero.

A violência não é uma, é múltipla. De origem latina, o vocábulo vem da palavra vis que quer dizer força e se refere às noções de constrangimento e de uso da superioridade física sobre o outro. No seu sentido material o termo parece neutro, mas quem analisa os eventos violentos descobre que eles se referem a conflitos de autoridade, a lutas pelo poder e a vontade de domínio, de posse e de aniquilamento do outro ou de seus bens. Suas manifestações são aprovadas ou desaprovadas, lícitas ou ilícitas segundo normas sociais mantidas por usos e costumes naturalizados ou por aparatos legais da sociedade. Mutante, a violência designa, pois – de acordo com épocas, locais e circunstâncias – realidades muito diferentes. Há violências toleradas e há violências condenadas. (MINAYO, 2005, p. 13)

A violência pautada no gênero amolda-se à categoria das violências toleradas, uma vez que os sujeitos que as cometem acreditam estar exibindo um comportamento absolutamente normal, logo, tolerável e minimizável (MINAYO, 2010, p. 23), sendo a violência doméstica e familiar uma de suas expressões mais cruéis.

Como se trata de relações regidas pela gramática sexual, podem ser compreendidas pela violência de gênero. Mais do que isto, tais violências podem caracterizar-se como violência doméstica, dependendo das circunstâncias. Fica, assim, patenteado que a violência de gênero pode ser perpetrada por um homem contra outro, por uma mulher contra outra. Todavia, o vetor mais amplamente difundido da violência de gênero caminha no sentido homem contra mulher, tendo a falocracia como caldo de cultura. Não há maiores dificuldades em se compreender a violência familiar, ou seja, a que envolve membros de uma mesma família extensa ou nuclear, levando-se em conta a consaguineidade e a afinidade. Compreendida na violência de gênero, a violência familiar pode ocorrer no interior do domicílio ou fora dele, embora seja mais frequente o primeiro caso. (SAFFIOTI, 2004, p. 71)

A fim de se aprofundar a explanação referente à violência doméstica, é fundamental delimitar o conceito de gênero que a engloba. Segundo Joan Scott (1995, p.76), gênero é uma categoria útil à história, não apenas à história das mulheres, perpassando as concepções unicamente oposicionistas aos determinismos biológicos entre homem-mulher, mas especialmente mostrando-se ser uma categoria em relacionamento recíproco com o poder (SCOTT, 1995, p. 79)

O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se refere à oposição homem/mulher e fundamenta ao mesmo tempo o seu sentido. Para reivindicar o poder político, a referência tem que parecer segura e fixa, fora de qualquer construção humana, fazendo parte da ordem natural ou divina. Desta forma, a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se, ambos, partes do sentido do próprio poder. Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema por inteiro. (SCOTT, 1995, p. 79)

É, portanto, o gênero, segundo entendimento da autora, uma categoria de análise, a possibilitar aos historiadores melhor compreensão das relações de poder. O gênero acaba por representar o primeiro modo de se dar significado às relações de poder, sendo a separação entre os sexos uma das formas de percepção das relações sociais que o compõe. (TORRÃO FILHO, 2004, p. 134).

A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente , ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento, de ação. (BOURDIEU, 2002, p. 11)

Apreende-se, então, que a própria subjetividade de mulheres e homens, agredidas e agressores, acaba por ser construída socialmente, tendo forte demarcação pelos binarismos sexuais impostos no seio das relações sociais.

A dificuldade maior de analisar o sofrimento de bilhões de mulheres no mundo, e de milhões no Brasil, deriva do fato dos eixos patriarcado, racismo, capitalismo não serem paralelos, mas entrecruzados. Isto posto, pode-se retomar várias questões anteriormente tangenciadas, embora alguns tipos de limite imponham a circunscrição deste artigo a menos de duas dezenas de páginas. Os três eixos estão sempre presentes, contribuindo para, ao longo da vida, formar subjetividades, matar algumas, construir outras. Só nesta mobilidade pode-se admitir o conceito de identidade social. De outro modo, ele é fechado, não contribuindo para o avanço do conhecimento. (SAFFIOTI, 2003, p. 32)

É, portanto, diante da alocação de subjetividades entre o masculino e o feminino, assim também das expectativas sociais trazidas por este binarismo que se insere a violência de gênero enquanto expressão da busca por afirmação dos sujeitos dominadores através do poder e do uso da força. (GOMES; MINAYO; SILVA, 2005, p. 118)

Nesse sentido, o Programa para Tecnologia Apropriada em Saúde (PATH, 2002, p.1) define a violência contra a mulher como:

Qualquer ato de violência baseada no gênero que resulta, ou que provavelmente resultará em dano físico, sexual, emocional ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças, coerções ou privação arbitrária da liberdade, seja na vida pública ou privada. (PROGRAMA PARA TECNOLOGIA APROPRIADA EM SAÚDE, 2002, p. 1).

O conceito de violência doméstica supra amolda-se àquele trazido na Lei Maria da Penha (artigo 5º), uma vez que para esta a violência doméstica e familiar pode ser encarada como aquela cometida contra a mulher, por meio de ação ou omissão, que seja baseada em seu gênero – cujo fato de ser mulher tenha sido determinante para a ocorrência da violência –, causando-lhe morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, dano moral ou patrimonial, tanto na unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto quando houver ou tenha havido convivência, independentemente da coabitação.

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

Nesse ponto, o que se apreende quando da discussão sobre violência doméstica é a interligação entre os determinismos sociais de assujeitação dos indivíduos conforme a pertença ao masculino ou feminino e as relações de poder que entremeiam as relações sociais e até contribuem para tal processo de assujeitação, simbolizando dominadores e dominados.

Adentrando-se na seara do poder, percebe-se quando da análise das relações entre ambos os gêneros, que as imposições de vontades ou comportamentos – através de coações físicas, morais e/ou psicológicas – e as assujeitações embasadas nestas imposições acabam por se fazer invisibilizadas, redundando na naturalização da violência doméstica supramencionada.

 A própria construção dos sujeitos homem e mulher dentro da sociedade os tornam suscetíveis à prática e à aceitação da violência doméstica, uma vez que lhes são impostos “de maneira imperceptível os valores e a dominação através de instrumentos de conhecimento e comunicação, embora ignorados como tais na realidade social” (TAVARES; NERY, 2012, p. 2)

No entanto, num estado do campo em que se vê o poder por toda a parte, como em outros tempos não se queria conhece-lo nas situações em que ele entrava pelos olhos dentro, não é inútil lembrar que – sem nunca fazer dele, numa outra maneira de o dissolver, uma espécie de “círculo cujo centro está em toda a parte e em parte alguma” – é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. (BOURDIEU, 1989, p. 7-8)

A construção de sujeitos propensos à violência baseada no gênero e estimulada pelos valores e construções morais de uma sociedade constitui uma espécie de violência simbólica, a desembocar na dominação masculina e “amputação” feminina, sendo estas últimas socializadas de modo a exibirem comportamentos de mais passividade, docilidade e consequente aceitação pelo corpo social de que podem ser alvo justificável de violência em ambiente doméstico (SAFFIOTI, 2004, p. 35).

 2 MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA NA LEI Nº 11.340/2006

    Apesar de se configurarem como figura inovadora no direito pátrio, as Medidas Protetivas de Urgência nascem da forte influência da proteção a mulheres exercidas nos Estados Unidos da América, através de suas protective orders, surgidas em 1964 e expandidas aos 50 estados da federação em 1994, sendo, ainda hoje, o “principal meio de proteção das vítimas”. (PIRES, 2011, p. 148) Mesmo com a expansão das referidas medidas ao direito alienígena, como Austrália (PINHO, 2009, p. 309), Inglaterra (SUXBERGER, 2014, p. 314), Espanha (MACHADO, 2014, p. 51-52), Portugal (TÁVORA, 2014, p. 161), ou mesmo países da América Latina, como o Uruguai (Lei nº 17.514/2002, Cap. IV, artigo 9º) e a Bolívia (SOUZA, 2013, p. 10), não há um consenso internacional acerca do instituto, resguardando-se apenas o caráter protetivo à mulher vítima de violência em ambiente doméstico e ou familiar.

Ocorre que no Brasil, diferentemente do que ocorre nos países supramencionados – onde há uma definição interna clara quanto às medidas –, há uma série de especificidades das mesmas ainda não sanadas pela doutrina, que acabam por refletir negativamente na atividade judicial e, consequentemente, nas jurisprudenciais.

Por regular conduta tipificada como ilícito penal, a referida Lei tem sido alvo de análise mais detida pelos estudiosos do Direito Penal e do Direito Processual Penal. Sucede que a violência doméstica e familiar também configura ilícito civil, capaz, por isso mesmo, de gerar efeitos também na órbita civil dos envolvidos — tais como, por exemplo, a responsabilidade por perdas e danos, a separação do casal e a definição de obrigação de prestação alimentar.
Não bastasse isso, o simples fato de configurar um ato ilícito — pouco importa se ilícito penal ou civil — já revela a importância de estudar a violência doméstica e familiar também sob a ótica das tutelas jurisdicionais predispostas pela lei processual civil para inibir a prática de um ilícito (a tutela inibitória) ou para removê-lo/impedir a sua continuação (a tutela reintegratória). Isso porque a tutela jurisdicional penal, de um modo geral, tem por objetivo maior punir o agente de um ilícito já consumado, de sorte que a prevenção, no âmbito do Direito Penal, configura apenas um dos objetivos — indiretos, diríamos — da própria pena. (DIDIER JR.; OLIVEIRA, 2010, p. 2)

Conforme aduz Pires (2011, p. 125), essas medidas são as mais acessadas pelas mulheres que buscam a intervenção estatal, uma vez que, para além da agilidade no deferimento – encaminhadas ao Judiciário no expediente das delegacias – não há a necessidade de capacidade postulatória, ou seja, acompanhamento de um advogado.

Do mesmo modo, há ainda a segurança à mulher agredida – muitas vezes envolvida em quadros de dependência financeira, ou mesmo emocional, como na Síndrome da Mulher Agredida (SAUÁIA; ALVES, 2016, p.92-93) – de que seu agressor apenas será encarcerado em caso de desobediência à determinação judicial. (PIRES, 2011, p. 125)

As Medidas Protetivas de Urgência brasileiras estão previstas no Capítulo II da Lei Maria da Penha, distribuindo-se expressamente entre os artigos 18 a 24 do diploma legal e dividindo-se entre aquelas que obrigam o agressor e as voltadas às ofendidas.

Adentrando-se à Seção II, observam-se as medidas protetivas que obrigam o agressor, artigo 22, desde a suspensão da posse ou restrição de porte de armas, inciso I, a proibição de contato com a agredida, até a obrigação de prestação de alimentos provisórios ou provisionais.

Destaque-se que o objetivo de tais medidas tem sido percebido como meramente  assecuratório dos direitos imediatos da mulher.  No entanto, o Estado sequer possui condições fáticas de vigiar indistintamente e a longo prazo o cumprimento da medida a todas as mulheres. Assim, mesmo diante do deferimento das Medidas Protetivas de Urgência, não há o  cumprimento de modo efetivo com o discurso oficial do diploma legislativo, vez que não se está trabalhando na raiz do problema, posto a ausência de uma proteção mais ampla possível dos bens jurídicos dos quais a mulher é titular, assim como não se está cumprindo o objetivo de a empoderar e de seguramente resguardá-la da violação ininterrupta de seus direitos (PIRES, 2011, p. 125).

 3 A REEDUCAÇÃO DO AGRESSOR COMO MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA – ESTUDO DE CASO

 A Lei Maria da Penha prevê em seu artigo 35, inciso V, a possibilidade de a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios criarem e promoverem centros de educação e reabilitação dos agressores. Do mesmo modo, no artigo 45 da mesma lei, impõe-se a modificação do artigo 152 da Lei nº 7.210/84 – Lei de Execuções Penais, acrescentando-se o parágrafo único, no qual se determina que em casos de violência doméstica contra a mulher, deverá o juiz determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.

Em que pese a inclusão do parágrafo único do artigo 152 à Lei de Execução Penal, não se vislumbra o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação do citado artigo 45 da Lei Maria da Penha como modalidade de pena.

Concebendo-se a pena como “[…] a imposição da perda ou diminuição de um bem jurídico, prevista em lei e aplicada pelo órgão judiciário, a quem praticou ilícito penal. Ela tem finalidade retributiva, preventiva e ressocializadora”. (DELMANTO, 2002, p. 67), percebe-se que o que limita o bem jurídico liberdade no cumprimento da pena do artigo 152 é a limitação de fim de semana, não o curso que poderá ser ofertado durante a referida limitação.

Do mesmo modo, importante que se leve em consideração as bases axiológicas do texto da Lei Maria da Penha quando do estudo da possibilidade de inserção da reeducação do agressor como Medida Protetiva de Urgência. O diploma legal é fortemente influenciado pelas convenções de direito internacional, tendo como escopo não apenas o resguardo aos direitos humanos da mulher vítima, como a ressignificação das assujeitações de gênero constantes em demandas de violência baseadas no gênero. (PIRES, 2011, p. 124-125)

É nesse sentido que no artigo 22 da Lei Maria da Penha, quando trata das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, o legislador elenca o rol de medidas e explicitando que são as citadas “dentre outras”, ou seja, trata-se de um rol exemplificativo, muito mais acertado à dinamicidade das complexas relações que envolvem a violência baseada no gênero.

 Mais ainda, no parágrafo 1º do mesmo artigo o legislador rememora sua preocupação com a proteção máxima da mulher, quando explicita que as medidas referidas “[…] não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem […]”.

É o que se percebe pelo pedido de deferimento de Medida Protetiva de Urgência (MPU) exarado pelo Ministério Público do Estado do Maranhão, representado pela promotora de Justiça MARUSCHKA DE MELLO E SILVA BRAHUNA nos autos da Ação Penal de número 561-97.2016.8.10.005, quando pugnou pela inclusão do agressor em Programa de Reeducação enquanto medida protetiva de urgência, visando não apenas a interrupção imediata da violência à qual as vítimas vinham sendo afligidas, mas, evidenciando que o agressor resiste em abandonar os padrões de comportamentos psicologicamente violentos, já reconhecidos nas sentenças de mérito de duas outras MPUs ( 478-52.2014.8.10.0005 e 140-53.2015.8.10.0005),  anteriormente deferidas contra ele.

Percebe-se que, aliado às penas previstas na Lei Maria da Penha ou mesmo à instituição das Medidas Protetivas de Urgência, a inclusão da obrigatoriedade de comparecimento dos agressores aos centros de educação e reabilitação pode de fato constituir a principal medida a possibilitar que se alcance maior eficácia dos objetivos do diploma legal (PIRES, 2011, p. 21), uma vez que o enfrentamento das alocações sociais e significações de gênero construídas histórica, cultural e socialmente poderão ser resignificadas ideativamente e reintrojetadas emocionalmente pelo agressor, em última análise contribuindo inclusive para sua proteção, evitando que ele reincida nos crimes que antes ele sequer reconhecia como atos de violência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vislumbrou-se que a violência doméstica e familiar, enquanto modalidade de violência de gênero, está insculpida nas significações introjetadas pelo agressor dos papeis sociais referentes ao binarismo masculino-feminino. É desse modo que o agressor pratica a violência de modo naturalizado, pautando-se em uma dinâmica na qual o homem busca, de modo simbólico, demonstrar ser o detentor de poder dentro das relações íntimas de afeto ou coabitação.

Nesse sentido, compreendeu-se que a previsão constante no artigo 45 da Lei Maria da Penha de inserção da reeducação do agressor ao parágrafo único do artigo 152 da Lei de Execução Penal não reveste tal medida de caráter de pena. Outrossim, demonstrou-se que o rol de medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor a diversas possibilidades de ações  é exemplificativo, estando explícito no texto legal a possibilidade de decretação de medida diversa, desde que voltada à proteção mais eficaz da vítima em conformidade com o caso concreto.

É diante da análise do Parecer do Ministério Público do Maranhão nos autos do processo de número 561-97.2016.8.10.005, que se compreendeu a necessidade de reeducação do agressor como medida passível de prevenir futuras agressões e lesões imediatas à integridade psicológica das vítimas.

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TAVARES, Ana Carolina Cerveira; NERY, Inez Sampaio. Violência doméstica conjugal contra as mulheres: uma reflexão acerca da dimensão simbólica proposta por Pierre Bourdieu. 17º Encontro Nacional da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Relações de Gênero.  Comunicações Orais. Universidade Federal da Paraíba, 2012.

TORRÃO FILHO, Amílcar. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Caderno Pagu, Campinas, São Paulo, ano 24, jan.-jun. de 2005, p. 127-152.

 Notas de Rodapé:

[1] Pós-doutora em Psicologia e Educação pela Universidade do Porto. Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Saúde e Ambiente pela Universidade Federal do Maranhão, Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Docente e pesquisadora do Departamento de Saúde Pública e do Mestrado em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Federal do Maranhão. Coordenadora de linha de pesquisa do Observatório Ibero Americano de Saúde e Cidadania e coordenadora do Observatorium de Segurança Pública (PPGDIR/UFMA/CECGP). Psicóloga Clínica e Forense. Email: [email protected]

[2] Mestranda em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Graduada em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB. Advogada. Pesquisadora CAPES.

Palavras Chaves

Lei Maria da Penha; Medida Protetiva de Urgência; Reeducação; Agressor; Eficácia.