A vida em Juízo: a teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central no ordenamento jurídico brasileiro

Resumo

No presente trabalho, estudou-se as principais teorias do começo da vida e traçou-se uma análise jurídica até a formação do sistema nervoso rudimentar como tutela dos direitos dos nascituros.
Explorou-se fontes históricas, antropológicas e sociológicas para desconstruir os paradigmas e poder ter uma análise isenta acerca dessa temática tão afeita a discursos radicalistas.
Utilizou-se dados sobre a morte materna e as principais instituições de saúde do Brasil e do mundo para confrontá-los com as fontes do Direito e assim verificar a juridicidade da vida até a formação do sistema nervoso central. Assim busca-se estabelecer objetivamente a tutela do bem jurídico vida.

Artigo

A vida em Juízo: a teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central no ordenamento jurídico brasileiro.

  

Ana Carolina Frazão*

 *Advogada civilista, presidente da Comissão Especial de Apoio à Advocacia Empreendedora OAB/RJ, Mentora no Programa Mentoria OAB/RJ; Eixo temático: Biodireito.

RESUMO

                                No presente trabalho, estudou-se as principais teorias do começo da vida e traçou-se uma análise jurídica até a formação do sistema nervoso rudimentar como tutela dos direitos dos nascituros.

                               Explorou-se fontes históricas, antropológicas e sociológicas para desconstruir os paradigmas e poder ter uma análise isenta acerca dessa temática tão afeita a discursos radicalistas.

                               Utilizou-se dados sobre a morte materna e as principais instituições de saúde do Brasil e do mundo para confrontá-los com as fontes do Direito e assim verificar a juridicidade da vida até a formação do sistema nervoso central. Assim busca-se estabelecer objetivamente a tutela do bem jurídico vida.

  1. VIDA. 2. MORTE. 3.SISTEMA NERVOSO CENTRAL. 4. BIOÉTICA.  5. BIODIREITO.

 

INTRODUÇÃO

                        Para compreender as repercussões jurídicas da pandemia no ordenamento jurídico brasileiro, preliminarmente, faz-se necessária a análise preambular delimitando o bem jurídico vida no Brasil. Decantar, chegar à essência, trazer para a contemporaneidade o conceito da vida para o Direito é basilar para compreender todos os desdobramentos que do seu conceito nuclear decorre.

                        Vidas ceifadas pelo Covid-19 faz a sociedade jurídica refletir sobre os entornos éticos deste bem jurídico. Contudo, do que é, e a partir de qual momento esta deve ser tutelada está imersa em embrolhos filosóficos e jurídicos. Por isso a necessidade deste trabalho buscar um critério tangível e objetivo para a gênese da celeuma que orbita entre a vida e a morte.

                        É preciso também compreender o significado de termos como eutanásia, distanásia e ortotanásia, dentre outros e a relação simbólica da sociedade contemporânea entre a vida e a morte. Para Bourdieu, não se deve subestimar a importância dessa análise preliminar para a compreensão do objeto de pesquisa, pois, a “força do pré-constituído está em, achando-se inscrito ao mesmo tempo nas coisas e nos cérebros, ele se apresenta com as aparências da evidência, que passa despercebida porque é perfeitamente natural.” (sic.). Em síntese, segundo o sociólogo a ruptura é, uma “convenção do olhar” (BOURDIEU, 1989, p. 49). Em outras palavras, deve-se suspender o tanto possível prejuízos de valores para que se possa analisar as questões éticas que se relacionam com o que se pretende examinar, neste estudo, a punibilidade do aborto até a formação do sistema nervoso central. Somente dessa forma consegue-se traçar uma análise científica isenta sobre uma temática frutífera para discursos apaixonados.

                        O objetivo deste trabalho é estudar como a tutela do bem jurídico vida, elegendo a Teoria da Formação dos Rudimentos do Sistema Nervoso Central para dirimir o conflito entre esses interesses no ordenamento jurídico brasileiro.

                        DESENVOLVIMENTO

                        Na dicção do filósofo Ronald Dworkin, “as concepções das pessoas a respeito de como vão viver dão cor as suas convicções sobre quando morrer e o impacto se torna mais forte quando está em jogo o segundo sentido no qual se pensa que a morte é importante”  (DWORKIN, 2016, p. 298). Esse tema que dá azo para discursos carregados de passionalidade, seja dos que são a favor ou contra a descriminalização, precisa ser examinado sob um ponto de vista distanciado, racional e objetivo.

                        São essas premissas, que, além de serem contraproducentes “na construção e descrição de seu objeto”, são também enganosas, visto que impedem àqueles que competem estudar questões que tratem temas inculcados de passionalidades realizem uma análise imparcial. Assim, para Bourdieu, não se pode “deixar guiar pelos princípios de visão e de divisão inscritos na linguagem comum, e, portanto, prenhes de juízos de valor, para descrever tais diferenças” (BOURDIEU, 1989, p. 10).

            Abraçada por teóricos contemporâneos como Pablo Stolze, Teixeira de Freitas, Clóvis Beviláqua, Silmara Chinelato, a Teoria Concepcionista afirma, em linhas gerais, que o nascituro seria considerado pessoa, para efeitos patrimoniais ou extrapatrimoniais, desde a concepção. O artigo 54 da lei 6015/1973 (lei dos registros públicos) é constantemente invocada por esses que defendem a tutela desde a concepção do bem jurídico vida. A Teoria Concepcionalista, também conhecida como Genética, é a teoria defendida oficialmente pela Igreja Católica.

                        A Teoria Natalista, além de ser a majoritariamente aceita em nosso ordenamento jurídico, parece também ser a eleita pelo Código Civil de 2002. Defendida por juristas como Vicente Ráo, Sílvio Rodrigues e Eduardo Espínola, a Teoria Natalista compreende que o nascituro é apenas um ente concebido ainda não nascido, desprovido de personalidade. Vale dizer que o nascituro não é pessoa, gozando apenas de mera expectativa de direitos.

                        Cabe ressaltar que, para a Teoria Natalista, a aquisição da personalidade só ocorre partir do nascimento com vida, ou seja, não sendo uma pessoa, o nascituro possui apenas uma expectativa de direito. Na Teoria da Personalidade Condicional se aceita a ideia do nascituro com direitos sob a forma suspensiva, ou seja, ao ser concebido o nascituro adquire efetivamente alguns direitos, como o direito à vida, mas não direitos referentes a patrimônios, por exemplo. Porém, mesmo nesta última teoria, a personalidade civil também só seria adquirida após o nascimento com vida.

                        Ainda tecendo elucubrações sobre a Teoria Natalista encontra-se importantes pontos a destacar. A lei 10.406/2002, em seus artigos primeiro e segundo estabelece que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”, bem como esclarece que personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, colocando a salvo os direitos do nascituro desde a concepção.

                        Depreende-se dessa ideia a proteção dada aos nascituros de que fala o art. 2, in fine, e a guarida trazida pela lei 11804/2008, a vulgarmente conhecida lei dos alimentos gravídicos. Ao vislumbrar que a probabilidade altíssima do nascituro vir a se tornar sujeito efetivamente de direitos, se faz necessárias as suas provisões.

                        A corrente conhecida como de Teoria da Gastrulação (derivada da escola genética), sustenta que o início da vida humana se dá com o processo de desenvolvimento embrionário da gástrula até a nêurula, na qual usa as características fisiológicas do embrião para designar um marco inicial da vida como um ser humano. Flávio Luiz Teixeira Júnior explica que:

Com a 3ª semana de gestação inicia-se a gastrulação, processo de diferenciação contínua que dará origem à gástrula e seus três folhetos germinativos: a ectoderma, que originará a pele, o sistema nervoso e estruturas sensoriais; mesoderma, que originará sistema esquelético, muscular e circulatório; e endoderma, que originará o sistema digestivo e respiratório.

                        Para os que defendem essa corrente como marco da vida humana, é a partir da gastrulação o embrião passa a ter uma relação de alteridade com a genitora. Celso de Mello explicou de Eliza Muto e Leandro Narloch que “nesse ponto, o embrião, que é menor que uma cabeça de alfinete, é um indivíduo único que não pode mais dar origem a duas ou mais pessoas. Ou seja, a partir desse momento, ele seria um ser humano”. (MELLO, Voto da ADI nº 3510).

                        Para os que esposam a Teoria Nidadória ou Embriológica, é no momento em que o embrião se fixa no útero que começa a vida humana, pois em outro ambiente o óvulo não resultaria em uma pessoa, assim como não pode mais se dividir em gêmeos monozigóticos (os chamados gêmeos idênticos, formados a partir de um óvulo).

                        A Teoria Nidatória ou Teoria Embriológica foi a mais invocada pela comunidade de geneticistas para permitir a utilização de pesquisas e terapias com células-troncos embrionárias na ação direta de institucionalidade nº 3510/DF de 2008. Segundo Cleyson de Moraes Mello ensina de Mônica Satori Scarparo, “não seria viável falar de vida humana enquanto o blastócito ainda não conseguiu a nidação, o que se daria somente no sétimo dia, quando passa a ser alimentado pela mãe”, ( SCARPARO, 2017, p. 90/91).

                        Para a Teoria Gradalista, também conhecida como Teoria Metabólica, é infrutífera a discussão acerca do momento que se dá o começo da vida humana. Como ensina Teixeira, para os que esposam a Teoria Gradalista, a relevância do papel dos espermatozoides e dos óvulos é a  mesma que qualquer outra etapa do desenvolvimento humano, uma vez isto se dá de maneira “contínua, interna, coordenada e gradual” (TEIXEIRA JÚNIOR, 2009, p. 40).

                        A principal fundamentação da decisão da Suprema Corte norte-americana que autorizou a interrupção da gestação, a Teoria Ecológica ou Teoria Tecnológica atribui o começo da vida entre 20ª e a 24ª semanas e acolhe como premissa a possibilidade do feto poder sobreviver autonomamente fora do útero da mulher. Ensina Clarissa Ribeiro Schinestsck que o principal argumento é o fato de que “bebês prematuros só sobrevivem se já tiverem pulmões desenvolvidos, o que acontece entre a 20ª e a 24ª semana de gestação. Assim sendo, se existe a possibilidade de sobrevivência alheio ao corpo da mulher, para esta corrente, há vida”, (SCHINESTSCK, 2008 p. 11).

                        A Teoria da Formação dos Rudimentos do Sistema Nervoso Central ou Teoria Senciente ou ainda Teoria Neurológica, defende que a vida humana começa com o surgimento do cérebro, ou seja, a partir da oitava semana. Para os que são signatários dessa corrente guarda uma correlação com a lei 9.434/97 (lei de transplantes de órgãos) que autoriza o reconhecimento da morte pelo fim das atividades encefálicas.

                        É delicada a relação dos direitos do nascituro conjugada à ideia do direito ao próprio corpo. É pífia a regulamentação brasileira sobre o direito de dispor sobre o próprio corpo, que se insurge sempre no sentido de proibir a livre disposição desse bem jurídico. Prestigiando os princípios constitucionais da autonomia da vontade privada e da dignidade da pessoa humana, neste trabalho elege-se um marco objetivo: o cérebro.

                        Será esse órgão do corpo humano que, utilizado pela medicina para convencionar o fim da vida no Brasil, auxiliar-nos-á a dissipar a turbidez conceitual que estão imersas as teorias jurídicas sobre o que é uma vida humana sob a óptica do biodireito. Neste artigo acredita-se que, ao entender os argumentos que delimitam o fim da vida, pode-se compreender sob quais diretrizes se poderia estabelecer o começo da vida humana por analogia.

                        A medicina contemporânea brasileira já manifestou seu entendimento através de proposta encaminhada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) ao Congresso Federal no Anteprojeto do Novo Código Penal, em que se pretende fazer uma alteração nos pontos que versam sobre a interrupção da gestação. O Conselho Federal sustenta seu posicionamento no fato de que até esta data não há a formação do sistema nervoso central, além de respeitarem a autonomia da mulher, como encontra-se na nota publicada no sítio eletrônico oficial da entidade:

Por maioria, os Conselhos de Medicina concordaram que a Reforma do Código Penal, que ainda aguarda votação, deve afastar a ilicitude da interrupção da gestação em uma das seguintes situações: a) quando “houver risco à vida ou à saúde da gestante”; b) se “a gravidez resultar de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida”; c) se for “comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestados por dois médicos”; e d) se “por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação”.

                        Segundo o presidente do CFM, Roberto Luiz D’Ávila, o limite de 12 semanas para que possa haver a interrupção de gravidez se deve ao fato de que, segundo a experiência médica, a partir desse tempo há um risco maior para a mãe. “O outro fator é que a partir de então o sistema nervoso central já estará formado”.

                        Ao trazer à baila a questão da formação completa do sistema nervoso, novamente a Medicina Brasileira nos permite crer, fazendo uma dedução lógica, que sem o cérebro humano não é possível haver vida humana. O funcionamento do cérebro também é parâmetro para a decretação da morte, como observa-se nos casos de doação de órgãos por morte encefálica. O Conselho Federal de Medicina, na resolução CFM nº 1.346/91, define morte encefálica: perda definitiva e irreversível das funções do encéfalo por causa conhecida, comprovada e capaz de provocar o quadro clínico.

                        Assim, o órgão máximo brasileiro de medicina tem considerado que, tanto para interromper uma expectativa de vida, como para homologar a chegada da morte, é o cérebro, ou em sua etapa mais rudimentar, a formação do sistema nervoso central, a baliza ideal para determinar o que é vida humana.

                        Conforme se depreende da declaração feita pelo então presidente do CFM, Roberto Luiz D’Ávila, em nota publicada acerca da proposta de mudança no Código Penal Brasileiro, Projeto de lei do Senado nº 236 de 2012: “somos a favor da vida, mas queremos respeitar a autonomia da mulher que, até a 12ª semana, já tomou a decisão de praticar a interrupção da gravidez”. Compreende-se assim que, o Conselho Federal de Medicina vem se posicionando no sentido de buscar considerar não apenas aspectos científicos, mas também o dever constitucional que toda pessoa (física ou jurídica) tem de respeitar a livre manifestação da vontade de seus semelhantes.

                        A proposta oficiada pelo CFM é que o crime de interrupção da gravidez continuaria a existir, apenas com a inclusão de mais uma causa excludente de ilicitude, ou seja, um “procedimento deste tipo após a 12a semana de gestação continuará a ser penalizado”. Em ofício nº 4867/2013 encaminhado ao Senado, o Conselho Federal de Medicina em deliberação conjunta de seus 27 Conselhos Regionais de Medicina (CRM), no I Encontro Nacional de Conselhos de Medicina em 2013, firmou posição pela excludente da ilicitude da prática da interrupção da gravidez para os casos elencados anteriormente.

                        Acerca das questões éticas e bioéticas, para o CFM, o Código Penal de 1940 seria incoerente com compromissos humanísticos e humanitários, paradoxais à responsabilidade social e aos tratados internacionais subscritos pelo governo brasileiro e interpretar os princípios da bioética sem levar em consideração as questões sociais importaria em violar a finalidades desses princípios.

Tais parâmetros não podem ser definidos a contento sem o auxílio dos princípios da autonomia, que enseja reverência à pessoa, por suas opiniões e crenças; da beneficência, no sentido de não causar dano, extremar os benefícios e minimizar os riscos; da não maleficência; e da justiça ou imparcialidade, na distribuição dos riscos e benefícios, primando-se pela equidade.

                        O Conselho Federal de Medicina , através da Resolução 1995/2012- CFM, define o que é o testamento vital, privilegiando mais uma vez o princípio da autonomia da vontade, nos casos e somente nos casos de paciente terminais: “O paciente terminal pode determinar os limites do tratamento que aceita ser submetido, ou seja, pode manifestar sua vontade nas decisões terapêuticas, dividindo a responsabilidade da escolha.” (CFM, 2013).

                        Para Luiz Roberto Barroso e Letícia de Campos Velho Martel é prestigiar os institutos jurídicos consagrados pela Constituição de 1988, agasalhados nos princípios da Dignidade da Pessoa Humana:

É uma aceitação da morte, pois permite que ela siga seu curso. É prática sensível ao processo de humanização da morte, ao alívio das dores e não incorre em prolongamentos abusivos com aplicação de meios desproporcionados que imporiam sofrimentos adicionais”. Indissociável da ortotanásia é o cuidado paliativo, voltado à utilização de toda a tecnologia possível para aplacar o sofrimento físico e psíquico do enfermo. Evitando métodos extraordinários e excepcionais, procura-se aliviar o padecimento do doente terminal pelo uso de recursos apropriados para tratar os sintomas, como a dor e a depressão. O cuidado paliativo pode envolver o que se denomina duplo efeito: em determinados casos, o uso de algumas substâncias para controlar a dor e a angústia pode aproximar o momento da morte. A diminuição do tempo de vida é um efeito previsível sem ser desejado, pois o objetivo primário é oferecer o máximo conforto possível ao paciente, sem intenção de ocasionar o evento morte.

                        A Teoria Neurológica compreende que a tutela do bem jurídico vida inicia-se entre a 8ª e a 20ª de gestação, assim, o cérebro humano, que serve de marco para a decretação da vida civil, também pode sê-lo para o começo da aquisição de direitos humanos.

                        Segundo Renata Rocha a Teoria dos Rudimentos do Sistema Nervoso Central relaciona o início da vida humana ao aparecimento dos primeiros sinais de formação do córtex central, traçando um paralelo com a decretação do óbito com o fim da atividade cerebral. Em outras palavras, é o funcionamento do cérebro que sinaliza para o mundo jurídico a vida humana. Enquanto ele ainda não surgir ou não mais funcionar, vida humana não existe. Explica Rocha a tese que se fundamenta no conhecimento biomédico (ROCHA, 2008. p 80/81):

A atividade elétrica do cérebro começa a ser registrada a partir a oitava semana de desenvolvimento embrionário. O conhecimento desse fato levou os simpatizantes da Teoria da Formação dos Rudimentos do Sistema Nervoso Central a sustentar que somente após a verificação da emissão de impulsos elétricos cerebrais é que se pode afirmar que se iniciou uma vida humana.

                        Esposam a Teoria Neurológica Peter Albert David Singer, filósofo atuante da área de ética prática, e o biólogo Jacques Monod. Para os defensores da Teoria, é o córtex cerebral que nos distingue dos seres inanimados. Através da formação do sistema nervoso central é que se estabelece a consciência humana, ainda que o feto não seja ainda autoconsciente.

                        Um outro fortíssimo argumento é o fato que na maior parte das vezes, a não formação do córtex central gera a interrupção espontânea da gravidez, uma vez que o organismo materno nega o embrião, como se não o reconhecesse, eliminando-o. Este é o principal motivo que leva os fetos anencéfalos a não nascerem no tempo normal.

                        Da óptica da Filosofia do Direito, aprende-se de Peter Singer que a Teoria Neurológica, a abraçada neste trabalho, que atenderá as demandas éticas, morais e jurídicas acerca da prática da interrupção da gestação, pois ela, ao mesmo tempo que resguarda o direito do nascituro, também o põe a salvo, estabelecendo o direito da mulher de decidir sobre seu próprio corpo até um marco temporal determinado, que seria o período onde biologicamente é impossível haver consciência humana (SINGER, 1993. p. 104).

                        Assim, na esteira de examinar a antijuricidade da interrupção da gestação até a formação dos rudimentos do sistema nervoso central, passa-se a amoldar o fato com as fontes do Direto, quais sejam: as leis, os costumes, as doutrinas, as jurisprudências, além dos fatos sociais que concorrem para a formação do Direito, que se aperfeiçoa com o tempo. Anote-se que fonte do Direito é diferente de fonte de normas.

                        Quanto à Lei, a temática da prática da interrupção da gestação apresenta inconsistências. Em que pese o Código Penal de 1940 trazer artigos que versam sobre a criminalização da interrupção da gravidez, as discrepâncias entre a exegese que o Supremo Tribunal Federal dá à Lei das Leis e às disposições do Código Penal de 1940 não se sustentam sequer sob o viés ético.

                        Recentemente, jurisconsultos que sustentam, através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, nº 442, que artigos do decreto lei nº 2848/1940 dos artigos 124 ao 128 constituem uma afronta à Lei Maior e ajuizaram petitória para o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade desses dispositivos.

                        Em que pese a teoria natalista ser a mais aceita, não se mostra atual para dar conta do aparente conflito entre as normas constitucionais que polarizam o direito do nascituro com o direito da autonomia ao próprio corpo da mulher.

                        Os Costumes também são importantes fontes do direito, inclusive os de ordem pública. É o caso das condutas reiteradas da sociedade, como a utilização de métodos contraceptivos como DIU (Dispositivo Intrauterino) e da “pílula do dia seguinte” e a utilização terapêutica e para pesquisas de embriões ou de células-tronco embrionárias. Tais práticas, longe de serem consideradas abortivas, em razão do tempo do material biológico, estão estabelecidas como procedimentos de praxe no Sistema Único de Saúde.

                        Os programas de pesquisas de células-tronco e os métodos contraceptivos indicam que para o Estado brasileiro a vida humana depende do momento do estágio que se encontra a fecundação, o que é ignorado pela teoria concepcionalista, por exemplo.

                        Os tratados e as convenções que o Brasil é signatário são fontes importantes que se alinham no sentido de descriminalizar a prática da interrupção da gestação e cabe ressaltar que as normas internacionais que versam sobre direitos humanos têm status de supraconstitucionais.

                        A jurisprudência do Superior Tribunal Federal já assentou que nenhum direito fundamental é absoluto visto que podem ser relativizados, no caso concreto, quando, aparentemente, entram em conflito entre si. Desta forma, o direito à vida também não é absoluto (MELLO, Mandado de Segurança nº 23.452-RJ). A própria Carta Magna traz expressa em si uma exceção a este direito em seu artigo 84, inciso, XIX, o que corrobora a adoção da teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central no ordenamento jurídico brasileiro

                        Em razão da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que pleiteava o direito de Severina Maria Leôncio Ferreira de interromper a gestação de feto anencéfalo, o STF alterou a interpretação dos artigos 124, 126, 128, incisos I e II do Código Penal para os casos onde o feto tem diagnóstico de anencefalia.

                        O STF, em 29/11/2016, teve mais uma oportunidade de demonstrar seu posicionamento no julgado do Habeas Corpus (HC) 124306, quando afastou a prisão preventiva em que eram pacientes os denunciados pelo Ministério Público pelo crime de interrupção da gravidez com o consentimento da gestante. Para o ministro-relator Marco Aurélio, ao julgar o mérito do HC, a prisão preventiva não se justificava, pois não apontava os elementos individualizados que demonstrassem a necessidade da custódia cautelar ou de risco de reiteração delitiva pelos pacientes e corréus.

                        Em seu voto-vista, Luís Roberto Barroso declarou ser imperativo interpretar os artigos 124 a 126 do Código Penal, na incidência de interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre (BARROSO, Habeas Corpus nº 124.306/2016. Passim). Na dicção de Barroso, “a criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.” A criminalização da interrupção da gravidez até a formação dos rudimentos do sistema nervoso central é incompatível com os direitos fundamentais por violar os direitos sexuais e reprodutivos, a autonomia, a integridade física e psíquica ea igualdade.

                        O STF, em 01 de maio de 2020, julgou prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 5581), que incluía o pedido de interrupção da gravidez como uma possibilidade excepcional para mulheres infectadas pelo vírus Zika, por falta de legitimidade.

                        Acerca do que pretendia alcançar a ADI nº 5581, a interrupção da gravidez em casos da gestante portar o vírus da Zika, neste trabalho acredita-se haver nos fundamentos desta ação distinguishing, uma vez que não encontra guarida precedentes ensejados pelo caso da anencefalia e da discussão acerca do uso das células-tronco e não se ancora em nenhuma das teorias sobre o início da vida acolhidas pela comunidade científica. Compreende-se que até a formação do Sistema Nervoso Central (SNC) não há que se falar de vida humana. Porém, uma vez estabelecido este marco fisiológico que se dá entre a 8ª e 20ª semana não há que se falar que um feto com microcefalia não tenha um cérebro humano.

                        Assim, ainda que enfermo, a partir do momento em que existe SNC trata-se de uma estrutura cerebral humana. Em tempo, esclarece-se que não se vislumbrava em momento algum na ADI nº 5581 a hipótese de interrupção da gravidez terapêutico, e sim eugênico, vez que, ao contrário dos casos de anencefalia, aqui o feto tem formação do sistema nervoso central, como acontece nos casos das síndromes cromossômicas a exemplo das síndromes de Down, de Turner, de Klinefelter, de Patau, de Edwards, entre outras.

                        Sem julgamento, até o presente momento da conclusão deste trabalho, encontra-se sob a apreciação do STF o julgamento da ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF nº 442), que pugna pela declaração de inconstitucionalidade dos artigos que criminalizam da interrupção da gravidez até a 12ª semana de gestação, o que vai, em parte, ao encontro da teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central no ordenamento jurídico brasileiro

                        A jurisprudência do STF parece apontar no sentido que a criminalização da prática da interrupção da gravidez “é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios”, (BARROSO, HABEAS CORPUS nº: 124.306).

                        O princípio da interpretação conforme a constituição, para Luiz Roberto Barroso, entende que a hipótese é de não recepção dos artigos 124 a 126 do Código Penal. Na exegese constitucional, Barroso retira a interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana da hipótese de incidência de crime. Em seu voto-vista do HC nº 124.306 “em razão da não incidência do tipo penal imputado aos pacientes e corréus à interrupção voluntária da gestação realizada nos três primeiros meses, há dúvida fundada sobre a própria existência do crime”.

                        Também pelo princípio da razoabilidade (proporcionalidade) é possível compreender que há uma mácula ao texto constitucional quando, ao analisar os casos concretos, verifica-se que a lei penal recai sobretudo sobre as mulheres pobres, como lê-se do voto de Luís Roberto Barroso. A manutenção da criminalização da interrupção da gravidez impede que essas mulheres recorram ao Sistema Único de Saúde, o que engrossa o número de mulheres mutiladas e mesmo mortas por sujeitarem-se a clandestinidade.

                        Depreende-se também de Barroso que pelo princípio da interpretação constitucional evolutiva, bem como o princípio da proibição do retrocesso social, não poderia o Estado brasileiro negar direitos fundamentais, como os “direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da gestante”.

                        Ainda segundo o ministro, ”quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria”.

                        A ética biomédica tem sido uma importante aliada na busca por um Estado mais humanitário, estabelecendo principiologicamente a beneficência, a não maleficência, a autonomia e a justiça como parâmetros para alcançar uma bem-estar social.

                        Segundo a mestra em Bioética pela Universidade do Chile, Jussara de Azambuja Loch, o Princípio da Autonomia é “a capacidade de uma pessoa para decidir fazer ou buscar aquilo que ela julga ser o melhor para si mesma”(LOCH, 2002, p. 02/04). O referido princípio se harmoniza com a Teoria dos Rudimentos do Sistema Nervoso Central uma vez que a autonomia da mulher é preservada, tendo ela tempo hábil para decidir acerca de sua reprodução e, no que tange ao nascituro, até a formação do tubo neural ainda não há autoconsciência, não ferindo assim uma autonomia que inexiste.

                        O Princípio da Não Maleficência também é prestigiado com a adoção da Teoria Neurológica. De acordo com a mestra em bioética Jussara Loch, este princípio versa sobre a obrigação de não causar dano intencionalmente. Comumente empregado na hora de decidir sobre a necessidade de uma intervenção médica, deve o profissional abster-se de não aumentar os males que já sofre o paciente, caso não possa fazer algo benéfico. Esse princípio é o que impediria milhares de mulheres serem mutiladas ou que continuem indo a óbito pela prática clandestina da interrupção da gravidez, o que majora em muito os riscos da interrupção da gravidez sem assistência médica.

                        O Princípio da Beneficência se relaciona com a atuação do médico. Como ensina Loch, de uma maneira prática, isto significa que tem-se a obrigação moral de agir para o benefício do outro. Este conceito, quando é utilizado na área de cuidados com a saúde, que engloba todas as profissões das ciências biomédicas, significa fazer o que é melhor para o paciente, não só do ponto de vista técnico assistencial, mas também do ponto de vista ético. É usar todos os conhecimentos e habilidades profissionais a serviço do paciente, considerando, na tomada de decisão, a minimização dos riscos e a maximização dos benefícios do procedimento a realizar. Dessa maneira, o Estado tem o dever de assistir as mulheres que decidem pela interrupção da gravidez até a formação dos rudimentos do sistema nervoso, acolhendo-as, no lugar de lançá-las a própria sorte.

                        O Princípio da Justiça visa garantir que todos os pacientes tenham acesso aos mesmos tratamentos e recursos, numa tentativa de igualar as oportunidades de acesso e garantir a equidade na distribuição justa de assistência à saúde das populações. Para Loch, o Princípio da Justiça visa proteger aqueles economicamente mais vulneráveis, como no caso de pessoas que morrem por estarem desamparadas de assistência médica e condições mínimas de moradia e saneamento.

                        O Princípio da Justiça está associado em garantir à coletividade a distribuição dos meios disponíveis para saúde de forma entre grupos sociais.  As Nações Unidas revelaram que no mundo a criminalização é responsável pelos óbitos maternos de quase 70.000 mulheres ao ano devido às complicações da ausência de profissionais qualificados para realizar o procedimento e em virtude das precárias condições de higiene. Os óbitos maternos são considerados marcadores importantes para avaliar a garantia do saneamento básico, dentre outras políticas públicas voltadas à saúde de um país.

                        As fontes do Direito brasileiro claramente apontam para uma revisão da interrupção da gravidez enquanto prática punitiva como enumerado exaustivamente acima. Os fatos sociais, por sua vez, vêm corroborar a necessidade iminente de repensar a política de repressão à interrupção da gravidez, com o gigantesco número de mulheres que são penalizadas com as sequelas de um procedimento inseguro e totalmente à margem da proteção estatal.

                        Estuda-se, segundo a epifitologia jurídica, a questão da interrupção da gravidez no Brasil segundo a Teoria da Formação dos Rudimentos do Sistema Nervoso Central e sua juridicidade no ordenamento jurídico pátrio.

CONCLUSÃO

                        Estudar a teoria do bem jurídico vida que deve ser adotada no Brasil é condição sine qua non para analisarmos os desdobramentos causados em toda a cadeia jurídica. Em um primeiro momento, com o auxílio de estudos transdisciplinares estudou-se as políticas públicas voltadas à saúde pública, viu-se através dos dados que, ao contrário do que preconiza os tratados internacionais e a Organização Mundial da Saúde, o Brasil está muito aquém das necessidades básicas de saúde pública. O contexto da saúde no Brasil há muito é precária e com a pandemia do Covid- 19, colapsou totalmente.

                        Por tal motivo escolheu-se um critério que pudesse ser mensurado para estabelecer o começo da vida. As ciências biomédicas, que foram se refinando ao longo dos tempos, instrumentalizam o problema do começo da vida humana, que antes só poderia ser alvo de meras especulações.

                        Disso surgiram diversas teorias jurídicas sobre o começo da vida humana e o Conselho Federal de Medicina estabeleceu com marco final para vida humana a paralisação das funções cerebrais.

            A Teoria da Formação dos Rudimentos do Sistema Nervoso Central considera que há vida humana a partir da capacidade de existir uma relação de alteridade entre o feto e a mulher, de haver (ainda que não uma autoconsciência) uma consciência humana capaz de sentir e comandar por si a formação corpórea até o nascimento. Não por acaso, um corpo sem cérebro não conseguirá viver fora do corpo materno ao contrário do que, em regra, se dá aos demais corpos humanos dotados com o órgão cerebral. Assim, abraçou-se nesse trabalho a formação dos rudimentos do sistema nervoso central para o começo da tutela da vida humana.

                        Ancoram essa teoria a tendência jurisdicional do STF em não tutelar o feto anencéfalo e permitir que as mulheres vítimas de estupro possam interromper a gestação até a 12ª de gravidez assistidas pelo Sistema Único de Saúde.

                        Ao confronta-se esse fato social com as fontes do Direito, conclui-se que o Juízo poderá indenizar os familiares daqueles que tiveram suas vidas interrompidas em virtude da omissão do Estado em garantir uma vida digna a todos, em especial na pandemia de 2020. A tutela do bem jurídico vida deve permanecer como um tipo penal, contudo, como entendeu o Conselho Federal de Medicina, deve-se considerar como uma excludente de ilicitude o caso no qual é realizado antes da formação dos rudimentos do sistema nervoso, por não ferir a tutela do bem jurídico vida e, exclusivamente, em casos que pacientes com doenças terminais é acolhida a expressa manifestação da vontade, através de testamento vital.

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Palavras Chaves

1. VIDA. 2. MORTE. 3.SISTEMA NERVOSO CENTRAL. 4. BIOÉTICA. 5. BIODIREITO.