A apropriação indébita previdenciária do não recolhimento de imposto declarado pelo contribuinte e a crise econômica provocada pelo COVID-19

Resumo

Com o julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº 163334, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento, por maioria dos ministros, de que o não recolhimento do ICMS próprio declarado seria crime de apropriação indébita previdenciária, nos termos do artigo 2º, II da Lei 8.137/90. A pandemia e seus reflexos provocaram uma crítica mudança no cenário atual econômico e empresários que não eram devedores tributários passaram a ser. Com isso, discutimos no presente artigo a decisão do STF, seus reflexos, bem como as especificidades do caso diante desta crise mundial.

Artigo

A apropriação indébita previdenciária do não recolhimento de imposto declarado pelo contribuinte e a crise econômica provocada pelo COVID-19

Resumo

Com o julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº 163334, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento, por maioria dos ministros, de que o não recolhimento do ICMS próprio declarado seria crime de apropriação indébita previdenciária, nos termos do artigo 2º, II da Lei 8.137/90. A pandemia e seus reflexos provocaram uma crítica mudança no cenário atual econômico e empresários que não eram devedores tributários passaram a ser. Com isso, discutimos no presente artigo a decisão do STF, seus reflexos, bem como as especificidades do caso diante desta crise mundial.

Tulio Fiori Rezende Cordeiro é advogado criminalista, inscrito na OAB/RJ sob o nº 167.691, especialista em Direito Penal e Processo Penal e membro da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas.

Quarentena e isolamento podem ser, apesar de discutível, uma boa opção para a preservação da saúde das pessoas em tempo de pandemias mundiais como a que vivemos em virtude do COVID-19, porém, para empresas, as receitas caem significativamente e daí começa as dificuldades em cumprir com o pagamento de obrigações, incluindo aqui, os impostos.

Em dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº 163334, firmou entendimento, por maioria dos ministros, de que o não recolhimento do ICMS próprio declarado seria crime de apropriação indébita previdenciária, nos termos do artigo 2º, II da Lei 8.137/90, cuja pena é de detenção de 06 meses a 02 anos e multa.

Apesar de neste julgamento a discussão ter como cerne o não recolhimento do ICMS declarado, nada impede que este entendimento seja aplicado a outros impostos, o que nos gera grande receio.

O cenário do país quando do julgamento deste recurso era completamente diferente do vivenciado hoje, onde empresários experimentam uma situação dramática, com o encerramento de várias empresas pelo país, e o passivo tributário sendo aumentado em larga escala.

Feita esta breve exposição, necessário nos faz uma análise quanto a decisão do STF que criminalizou o ato do não recolhimento de imposto declarado pelo contribuinte.

Tal decisão vem a colocar em cheque o princípio da legalidade e institutos muito caros para todos, abrindo um precedente que impactará a todo o sistema, e, justamente por isso temos que alertar para o perigoso precedente que está se criando.

Em primeiro lugar é importante dizermos que a decisão discutida aqui ainda pende do julgamento do recurso de embargos de declaração, onde se definirá os parâmetros de aplicação dessa nova orientação nos casos em concreto.

Em segundo lugar por não se tratar de uma ação de controle concentrado, não tem efeito erga omnes, muito menos vinculante pros juízes do país, portanto, todos os argumentos que foram levados para discussão no STF podem ser levados ao Juízo de primeiro grau.

Os magistrados e magistradas não estão obrigados a seguirem a orientação do supremo, o que pode ser muito interessante por um lado, por que eles têm a possibilidade de manter o posicionamento tradicional e não criminalizarem esta conduta, mas por outro pode ser muito perigoso, pois estes juízes podem criar parâmetros e critérios próprios de criminalização.

E em terceiro lugar essa questão ainda pode ser discutida novamente no STF, em ação de controle concentrado, ou mesmo pode ter um novo marco legal, uma nova lei, haja vista que há notícias de projetos de lei que tratariam sobre o tema, esclarecendo o que seria uma conduta criminosa e o que seria uma conduta de mera inadimplência.

Sobre a decisão do Supremo:

A grande questão discutida no Supremo é se o crime de apropriação indébita tributária se aplica ou não ao empresário que não paga o ICMS próprio apesar de tê-lo declarado.

O STF entendeu que sim, o empresário que declara o ICMS próprio e não faz o recolhimento do tributo pratica o crime de apropriação indébita tributária.

A nosso ver, a decisão do STF foi totalmente equivocada quando criminaliza o empresário que declara e não paga o ICMS próprio e dizemos o porque:

Em primeiro lugar, não há qualquer tipo de desconto ou cobrança neste caso de tributo.

E em segundo lugar, não existe o dolo de apropriação indébita, não existe o dolo, o desejo, de lesar o ente público.

Sobre a inexistência de desconto ou cobrança do ICMS próprio.

Quando falamos de ICMS próprio ele incide sobre a circulação de mercadoria, portanto, o contribuinte, o sujeito passivo da obrigação tributária, é aquele que faz circular a mercadoria, o empresário, é ele quem tem uma relação jurídica com o Fisco, é ele quem tem um fato gerador próprio, ele é o devedor.

No entanto o STF entendeu que uma vez que o valor do ICMS está embutido no valor da mercadoria, o empresário quando cobra o preço da mercadoria do consumidor, de alguma forma estaria cobrando o ICMS, portanto ele passaria a ser responsável pelo repasse tributário ao Fisco, e assim, se não o fizer, estaria cometendo o crime de apropriação indébita.

O que o STF fez foi equiparar o não pagamento do ICMS próprio a outras figuras como a retenção de tributo pela fonte pagadora ou do ICMS em substituição tributária.

Ocorre que estas figuras são completamente diferentes do ICMS próprio, pois nestes casos em que não há o repasse da contribuição previdenciária ou do ICMS em substituição tributária, o empregado ou o consumidor é quem são os contribuintes, e, em sendo assim, o empresário estaria se apropriando de valor que não era dele.

Nestes casos há uma previsão legal de cobrança ou de desconto de imposto.

O valor retido nestes casos não se incorpora ao patrimônio do empresário, na verdade o empresário funciona como uma espécie de depositário do Fisco devendo o mesmo repassar aquilo que não lhe pertence.

Isso não acontece no caso do ICMS próprio, neste caso o consumidor não tem relação com o fisco, ele não é o contribuinte, tanto que o consumidor não tem nem mesmo legitimidade para entrar com uma ação de indébito tributário, ele apenas suporta o encargo econômico daquele tributo que é incorporado no preço do produto, assim como também é incorporado ao preço outros tributos, o salário dos funcionários, o aluguel do estabelecimento e outros tantos encargos suportados pelo empresário e que compõe o preço final do produto.

Nem por isso o consumidor tem alguma relação de vínculo empregatício com empresário, ou como inquilino com o dono do imóvel, mesmo estando estes valores incorporados no preço do produto adquirido.

Se assim não fosse, imagine que o não pagamento do valor do aluguel por parte do empresário, importaria em dizer que o mesmo estaria cometendo apropriação indébita, pois, este valor incorporado ao preço não constitui patrimônio do empresário, posto que ele ao receber do consumidor, deveria repassar ao proprietário do estabelecimento, evidente que isso não se sustenta.

O consumidor jamais será cobrado do ICMS próprio, por este não ter relação jurídica tributária com o Fisco.

Sendo assim, em se tratando de ICMS próprio, o devedor direto deste imposto é o empresário, mesmo que o consumidor adquira e não pague o produto, o empresário é devedor do imposto, este valor integra o patrimônio do empresário, e, em sendo assim, não tem o que se falar em apropriação indébita.

Sobre o Dolo

Mas, ainda que haja a apropriação indébita nestes casos, como é o atual entendimento do STF, para a configuração do crime é necessário o dolo.

O dolo neste caso é a vontade de se apropriar dos valores retidos, omitindo o cumprimento do dever tributário, com a intenção clara e evidente de não recolhe-lo.

No caso do ICMS próprio declarado e não pago, há uma declaração, um registro, uma confissão, o que é totalmente incompatível com a idéia do dolo, da vontade de apropriar.

Aquele que tem a vontade de apropriar ele escamoteia, oculta, sonega, ele não compartilha com o fisco informações.

Ao compartilhar com o fisco, ao reconhecer o débito e a inadimplência, é evidente, ao nosso entender, que não existe o dolo.

Portanto não tem o elemento objetivo, que seria a apropriação de valor indevido, e nem o subjetivo, que seria a existência do dolo.

Para o devedor de ICMS próprio declarado, há a execução fiscal, para o que omite informações, aí sim há a ocorrência do crime.

A decisão do STF vem a provocar no empresário inadimplente algo muito delicado, pois gera o desejo de omitir a informação, haja vista que declarando o ICMS próprio, estaria o empresário praticamente confessando o crime, e, omitindo, ao menos contaria com a possibilidade de não ser descoberto.

Ou seja, o STF ao decidir da forma como decidiu, está incentivando a marginalidade por parte do empresário.

Na decisão do STF, apesar de ali terem dito que o crime se aplica somente ao devedor contumaz, é importante frisar que o STF não disse o que seria de fato um devedor contumaz.

Importante ainda lembrar o que já dissemos, essa decisão não vincula os demais juízes e juízas do país, portanto nós teríamos cada um interpretando esta decisão da forma como lhe convém, o que coloca em risco todo empresário que declara e não recolhe o ICMS próprio.

Passemos aqui a discorrer sobre os critérios de devedor contumaz e sobre o dolo para a caracterização do crime de apropriação indébita tributária.

Devedor contumaz:

Há uma dúvida sobre o que seria essa contumácia na medida em que o STF não definiu tal critério.

Alguns dirão que se trata do devedor que regularmente, durante um período de tempo, declara e não recolhe o ICMS próprio.

Porém não é tão simples assim.

Por exemplo, quando da criação do crime de “Gestão temerária de instituição financeira” houve uma discussão sobre o que seria considerado “gerir”.

Em um primeiro momento entendeu-se que “gerir” seria uma soma de atos ao longo de certo período.

Porém, posteriormente, ficou definido que “gerir” pode ser considerado mesmo que o agente tenha praticado apenas um ato, em um único momento, e, assim, seria responsabilizado pelo crime de gestão temerária.

Como o STF não definiu o que seria essa contumácia, nada impede de invocarem esse mesmo entendimento para configurar o que seria o devedor contumaz, considerando assim típico o fato do empresário que declarou e não recolheu o ICMS próprio apenas uma única vez.

Do Dolo:

Neste ponto pensamos que o STF definirá uma das duas posições apresentadas abaixo:

Primeira posição:

  • O dolo se presume em todos os casos em que o sujeito não pague o ICMS próprio, ainda que o declare. Neste caso caberá a defesa do devedor demonstrar que não se trata de devedor contumaz ou que ele estava em dificuldade financeira, para assim, tentar se esquivar do crime.

Segunda posição:

  • A presunção tem que ser a falta de dolo. Presunção de inocência do empresário. Se o sujeito declarou e não pagou, presume-se que não houve dolo, pois houve a declaração do débito. Neste caso, caberá a acusação comprovar que se trata de devedor contumaz e que a inadimplência é uma estratégia negocial daquele empresário. Este é nosso entendimento.

E ainda, como se trata de crime de apropriação de coisa, será necessária a constituição deste crédito através de um procedimento fiscal, e mais, precisará demonstrar que aquele débito de ICMS próprio foi efetivamente cobrado do consumidor e não recolhido ao fisco, o que traz uma complexidade para a caracterização do crime.

Cabe aqui ainda discorrermos sobre dois institutos do processo penal que impactarão diretamente na análise destes casos, que são:

Não retroatividade da lei penal: Com o novo entendimento do STF, há uma nova forma de aplicação da lei, e, com isso, entendemos que somente poderá ser aplicado este entendimento deste momento em diante, não podendo retroagir para penalizar fatos passados.

Erro de proibição: À época em que houve o inadimplemento do imposto declarado, o empresário acreditava que aquele fato não era considerado crime, isso por que toda a jurisprudência apontava neste sentido, sendo assim, caso seja processado hoje, poderá ter essa alegação a seu favor.

Feita esta análise, importante aqui contrapor a decisão e a eventual inadimplência tributária imposta pela pandemia e suspensão de atividades por parte do empresário.

Neste ponto, precisamos fazer uma reflexão que o empresário, agora inadimplente, foi levado a um cenário econômico totalmente inesperado.

Empresas, que até então, pareciam saudáveis e empregavam dezenas, centenas ou milhares de colaboradores, devido as circunstâncias impostas pela pandemia e seus reflexos, reduziram drasticamente seus números de colaboradores na tentativa de um controle econômico ou mesmo, encerraram suas atividades.

Em um cenário deste, muita das vezes o empresário precisa optar entre o pagamento do salário de seus colaboradores e outras obrigações, optando, normalmente, em se abster de pagar tributos, para assim garantir o mínimo de dignidade à famílias representadas por aqueles que ocupam os postos de trabalho em sua empresa.

Não podemos chamar este empresário de devedor contumaz, já que sua dívida e condição de devedor se dá diante de circunstâncias que não poderíamos exigir deste conduta diversa que não fosse o inadimplemento dos tributos, muitos, declarados.

O conceito de inexigibilidade de conduta diversa está diretamente ligado ao principio da razoabilidade.

Em síntese, representa uma variação do positivado do estado de necessidade.

Aludida variação tem por base a segunda parte do art. 24 do Código Penal;

Art. 24. Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

A ponderação de bens está insculpida no final do art. 24, ao admitir o estado de necessidade, para proteger direito próprio ou alheio (cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se).

Essa excludente de culpabilidade tem como principal requisito o fato de não haver outro meio de proteger o bem jurídico, nem, tampouco, de evitar o resultado final.

O empresário em situação de vulnerabilidade, diante de desta situação de crise mundial, não consegue honrar com suas obrigações junto ao fisco, por não possuir condições materiais para fazê-lo, e, não raras vezes, acaba por dispor dos escassos recursos que possui para saldar outras obrigações fundamentais para o funcionamento de sua empresa, assim como pagar fornecedores e funcionários.

Mesmo nos casos em que o empresário saiba da ilicitude de deixar de recolher o tributo, a sua culpabilidade deverá ser excluída pelo princípio da razoabilidade e pela tese de inexigibilidade de conduta diversa, pois estariam presentes os requisitos de proteção de um bem jurídico importante, em detrimento de outro inferiormente importante, e o meio necessário para cessar o perigo.

Razoável é a atitude do agente que tem como sua única motivação a de salvar-se, e é exatamente isto que enxergamos neste momento de crise mundial.

Em um ambiente de instabilidade jurídica como o demonstrado, o risco do empresário inadimplente ser considerando réu em uma ação penal é real, devendo, portando, o devedor, buscar meios através de parcelamentos, ou, na impossibilidade, requerimentos administrativos demonstrando o interesse em quitar o débito, porém através de parcelamento que seja compatível com sua capacidade financeira, posto que, agindo assim, entendemos que haveria forte possibilidade de afastar a configuração de “devedor contumaz” e do dolo no inadimplemento do imposto.

Em não havendo capacidade financeira em virtude da crise instalada por conta do COVID-19, o empresário devedor ainda não poderia ser considerado devedor contumaz, mesmo que não faça nenhuma proposta de pagamento do débito, por ter assim agido em estado de necessidade, sendo assim aplicada a excludente de ilicitude prevista no artigo 24 do Código Penal.

Concluindo, entendemos que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar os Embargos Declaratórios no Recurso em Habeas Corpus nº 163334, deverá levar em conta a significativa mudança do cenário mundial, para então definir parâmetros de aplicação dessa nova orientação nos casos em concreto, não expondo a vulnerabilidade empresários que se tornaram devedores tributários em virtude da pandemia e seus reflexos.