A Democracia Ameaçada

Artigo

 A Democracia Ameaçada.

Marta Skinner[i]

Movida pela imensa amizade e admiração ao grande mestre Miguel Baldez, com quem tive a honra de trabalhar durante três décadas na Universidade Candido Mendes e no IBMEC, nos cursos de Direito e assistir de perto sua dedicação incansável na capacitação da juventude de instrumental emancipatório para construção da cidadania, dos direitos humanos e a dignidade política para o exercício do Direito, é que me apresento nesse espaço para homenageá-lo com esse pequeno artigo em que procuro reafirmar que  seu exemplo de luta em defesa da justiça e de respeito aos direitos humanos não serão esquecidos.

Baldez se foi num momento em que o mundo já enfrentava esse momento trágico da pandemia mundial, que costuma mudar o curso da história, mas nem sempre de uma maneira imediatamente evidente para os sobreviventes. A pandemia já encontrou o mundo num momento de extraordinárias mutações. São esses momentos que geralmente abrem oportunidades aos povos de fazerem opções que podem ser decisivas para seu futuro como nação. Sabemos que o quadro internacional vem mudando nos últimos anos de forma brusca e a pandemia agravou mais ainda algumas tendências, expondo ao mundo a mudança radical da política externa brasileira, que já vinha mostrando sinais catastróficos a partir da eleição do capitão Bolsonaro. Ao fazer a opção extrema, de alinhamento incondicional aos EUA, somada a toxidade das suas manifestações nos fóruns internacionais, o Brasil hoje é visto como um pária internacional, imagem agravada ainda pelo impacto absolutamente devastador da gestão da pandemia, com mais de cento e vinte mil mortos e um estado governado por um governo disfuncional e incompetente, em grande parte responsável pelas taxas de mortalidade.

Como foi possível que tal tragédia se abatesse sobre nós, um país que experimentou nos quatorze primeiros anos do século XXI uma transformação profunda e irreversível, do ponto de vista econômico, sociológico e político?

 No início do século XX, éramos um país de cafezais, com seu setor dinâmico assentado na exportação de bens primários, com um Estado fraco e fragmentado e com um poder econômico e militar muito inferior ao da Argentina. Hoje, na segunda década do século XXI, o Brasil se tornou o país mais industrializado da América Latina e a sétima maior economia do mundo; possui um Estado centralizado com uma burocracia profissionalizada, uma sociedade urbanizada – ainda que desigual – foi o principal player internacional do continente sul-americano. Além disso, é um dos países do mundo com alto potencial de crescimento pela frente, levando em conta seu território, sua população e sua dotação de recursos estratégicos.

Talvez, os ganhos expressivos nesses anos podem nos explicar a vitória sucessiva, por quatro mandatos seguidos da coalizão antiliberal e popular.

Desde 2005, o Brasil vinha assumindo uma posição de mais autonomia no cenário mundial de não alinhamento automático aos EUA e com orientação de política econômica na contramão do ideário neoliberal. Apesar do engessamento da política monetária, na política externa ousamos uma estratégia de bastante independência e altivez frente ao mundo central, derrubando um dos projetos prioritários dos Estados Unidos, nos primeiros anos de seu mandato. Graças aos esforços empenhados pela Chancelaria junto aos países da região, foi barrado o avanço da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que finalmente foi enterrada em 2005, durante a Cúpula das Américas, na Argentina. Sem dúvidas, a política externa altiva e ativa foi fortalecendo a percepção de que amadurecia a olhos vistos uma potência regional, que avançava, sob a liderança de um governo de base popular com plena democracia, com cada vez mais independência em relação aos interesses norte-americanos no continente e dos capitais internacionais.

Quem se debruçasse sobre a América Latina, naqueles anos, se surpreenderia com os avanços que logramos em termos de integração regional e com a mudança de rumo, notadamente antiliberal, das políticas governamentais. Para completar esses avanços, ainda anunciamos ao mundo a grande descoberta pela Petrobrás, de farto potencial de extração de petróleo, na camada do pré-sal.

O Brasil entrou na moda e o protagonismo do Brasil se ampliou passando a ocupar uma posição de destaque internacional, que nunca havia tido anteriormente. Era visível que o Brasil dava passos importantes para assumir a liderança sul-americana e projetar sua influência para fora do continente. Nem sempre esses movimentos foram bem assimilados pelos grupos internos que sempre se opuseram ao expansionismo brasileiro, a autonomia da política externa, em nome da defesa do chamado cosmopolitismo de mercado, que oferece ganhos econômicos imediatos em troca do abandono de um projeto autônomo de projeção internacional do poder e de liderança internacional. A excessiva visibilidade e a própria ascensão da liderança do Brasil já seriam em si mesmo um desafio e um questionamento da ordem estabelecida.

Essa trajetória foi interrompida pelo golpe de estado que fará quatro anos amanhã. Hoje, com distância do tempo já ficaram mais claras as motivações e os grupos de interesse que estiveram no planejamento do golpe parlamentar- jurídico- midiático que retirou do poder a presidenta eleita com 54 milhões de votos, sem o uso das tradicionais quarteladas, mas com novas ferramentas para consecução de seus objetivos: o uso do Judiciário.

 No ano eleitoral de 2014, quando a presidenta se apresentava para eleição do 2º mandato, inicia-se a Operação Lava Jato, uma operação do MPF, voltada aparentemente para investigação de um grande esquema de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, a maior empresa petrolífera do continente, que no ano anterior tinha sido um dos alvos da espionagem norte-americana. A investigação se estendeu às grandes empreiteiras do país, indiciando, prendendo seus dirigentes e bloqueando seus recursos e prendendo diversos políticos “investigados”, na sua maioria, ligados ao partido da presidenta. A frente dessa cruzada estava um juiz de 1ª instância, Sergio Moro, treinado em 2009, pelo Departamento de Justiça norte americano em táticas e estratégias de investigação de lavagem de dinheiro e com uma relação muito estreita com instâncias judiciais nos EUA.

A investigação trabalhou no timing político daquele ano eleitoral, com batidas policiais, prisões em massa, uso de algemas, com direito a alertas antecipadas para a mídia televisiva. Cada ação era cuidadosamente numerada e nomeada com nomes de efeito dramático remetendo ao imaginário cinematográfico que se estendeu às grandes empreiteiras do país, fornecedoras da Petrobrás, que hoje sabemos, substituíra o principal fornecedor norte americano, Halliburton, a maior empresa mundial em serviços em campos de petróleo, cujo CEO era o poderoso, vice-presidente norte americano, Dick Cheney, o grande responsável pelas mentiras que levaram os EUA à guerra contra o Iraque.

Cabe pensar que tenha sido por esse caminho que o Departamento de Justiça norte-americano tenha através das relações intimas com os operadores, que hoje temos informações pelos vazamentos do jornal Intercept, tenha acessado as informações financeiras e repassadas aos integrantes do Judiciário, do MPF e da PF brasileira para viabilizar que a Operação Lava Jato atingisse, o mais rápido possível, o seu alvo, que era impedir a eleição do 4º mandato do partido dos trabalhadores.

 Ao longo desse ano de 2014, foi ficando evidente que a Operação Lava Jato, antes de qualquer preocupação com a corrupção, tinha um alvo político estratégico, ou seja, criminalizar a política, o programa de conteúdo nacional, as parcerias com o setor privado e demolir a engenharia nacional, a qualquer custo.  Tanto é verdade, que o apelo moralista contra a corrupção em 2014, nem disfarçava, só acusava o partido da presidenta e com maior ênfase para seu maior representante, o ex-presidente Lula.

Em pleno calor da campanha eleitoral, realizou-se no Brasil, a 6ª cúpula dos BRICS, aonde o Brasil assinou junto com os outros parceiros o documento de criação do Novo Banco de Desenvolvimento e de um Fundo de Reserva, no valor de mais outros 100 bilhões de dólares, com objetivo de financiar projetos de infraestrutura e desenvolvimento no próprio grupo, mas também em nações mais pobres da África e América Latina.  Além dessa iniciativa, o governo Dilma ainda tomou posição corajosa e sem precedente da diplomacia brasileira frente aos ataques de Israel à Faixa de Gaza, e silenciou diplomaticamente frente à crise ucraniana.

Apesar de todo o massacre midiático da Lava Jato, do clima de ódio e de toda sorte de acusações inverídicas, por pouca diferença, a presidenta Dilma venceu o pleito com 54 milhões de votos. A estratégia das oposições passou a ser a de inviabilizar a governabilidade, fazendo o governo sangrar, através das pautas bombas, enquanto na outra ponta, a operação Lava Jato bloqueava os recursos das principais empreiteiras, encarcerando seus principais diretores e inviabilizando a engenharia nacional, nas grandes obras do Programa de Aceleração do Crescimento. O resultado óbvio foi um crescente desemprego, aumento da inflação, queda da demanda e retração dos investimentos. Em pouco tempo, manifestações gigantes se armaram nas principais capitais, com apoio televisivo da rede Globo e pelos grupos nascidos em 2013, Vem p/ Rua e MBL, usando uma competente ação de marketing e um gestual de ódio contra tudo que se relacione, não apenas ao governo Dilma, mas ao seu partido.

A estratégia do caos apostou na criminalização da política e na demonização de todo o legado dos três mandatos do anteriores, abrindo espaço para a aprovação do impeachment da presidenta. Por 367 votos favoráveis e 137 contrários, num espetáculo dantesco, com direito as mais inescrupulosas intenções e até homenagens a torturadores, a Câmara dos Deputados, frente ao silêncio do STF, autorizou o impeachment da presidenta Dilma, que foi concluído em seis meses.

Aos poucos, foi ficando claro aos mais ingênuos, que o golpe e a campanha de ódio eram na verdade uma bandeira dos grandes predadores internacionais e nacionais de sempre, que articularam esse acordão para criar a oportunidade de recolocar na pauta seus programas de Estado mínimo e desregulamentação geral. Em pouco tempo, os golpistas em perfeito conluio com as elites nacionais e internacionais foram deixando claros seus objetivos. Em nome do bom ambiente de negócios, era preciso desmontar o legado dos últimos 13 anos trazendo de volta um radical programa neoliberal para completar as reformas dos anos 90, que tinham sido interrompidas pelos treze anos dos governos do PT. Nesse sentido, os golpistas não tiveram nenhum pudor e em pouco tempo desmontaram as políticas de inclusão social, retiraram direitos dos trabalhadores e aposentados, derrubaram a lei de partilha na exploração do pré-sal, esvaziaram os cofres do BNDES, estrangularam as universidades públicas, congelaram gastos com saúde e educação por duas décadas, enfraqueceram o Mercosul, numa clara demonstração de submissão à estratégia imperial, geopolítica e geoeconômica da potência norte americana, para a qual o protagonismo do Brasil sempre foi inconveniente para a realização de seus objetivos estratégicos na região.

                        Destituída a presidenta Dilma, a perseguição na Lava Jato se voltou para o presidente Lula de forma obsessiva e acelerada para inviabilizar sua possível candidatura na próxima eleição, e o fez. A acusação de recebimento de um apartamento duplex em São Paulo e reformas fabulosas foi conduzida pelo juiz de Curitiba, de outro forum, usando a alegação de que estava relacionado ao caso Petrobrás, com anuência do STF. O processo foi julgado de forma acelerada, atropelando os trâmites do devido processo legal e chegando a 2ª instância em tempo record. Em 2018, sem ter o processo transitado em julgado, em mais uma manobra judicial, o ex-presidente foi encarcerado em Curitiba por decisão do magistrado de 1ª instância. Apesar dos diversos pedidos de habeas corpus até hoje não foram julgados no STF e o ex-presidente foi impedido de concorrer e mesmo dar qualquer entrevista no período eleitoral, num desrespeito total as regras democráticas. O resultado foi uma verdadeira fraude eleitoral com uso de fakenews e ameaças nas comunidades para premeditadamente promover a chegada ao poder da extrema direita, com um candidato espúrio e incompetente, que representa o lado mais sombrio da sociedade brasileira, uma extrema direita xucra e obscurantista, comprometida com a disputa geopolítica em jogo no continente e com a clara intenção de submeter o Brasil a uma camisa de força do atraso e do conservadorismo, sob a tutela norte americana.

Fica evidente quando olhamos pela lógica expansiva imperial do poder, que tanto para os EUA como para as corporações internacionais, a ascensão de uma possível potência regional, com amplo território, com inúmeras riquezas naturais e com uma liderança popular significava um desafio para a liderança desses grupos na América Latina. Em quase todos os passos desse Golpe e principalmente pela prisão arbitrária do ex-presidente Lula ficaram claras as relações espúrias dos interesses norte-americanos com grupos políticos e empresariais locais para impedir a volta de um governo com viés de esquerda e com uma postura altiva e soberana no mundo.

Através dos vazamentos do jornal Intercept, foi ficando evidente que a vingança dos poderosos, executada pelas mãos do seu preposto, o ex juiz S. Moro do procurador Dallagnol, em conluio com alguns Ministros do Supremo e o apoio espúrio da mídia nativa afrontaram a decência, a legalidade, a verdade, a ética e a própria Constituição.

 Foi a concessionária Globo, a grande artificie da popularidade da Lava Jato, com sua capacidade de organizar o debate simbólico e de levar a classe média às ruas. Ela estabeleceu uma parceria jurídico-político-midiática que deu base popular à Operação, elevando seu operador togado, o ex-juiz Moro, à condição de herói nacional e símbolo anticorrupção, que de certa forma lhe deu a liberdade de agir acima da lei, sem repreendas legais e ainda tentar impor seu projeto punitivista, autoritário e conservador. Não é de surpreender que mesmo frente às denúncias que foram amplamente divulgadas, o ex-juiz que se tornou Ministro da Justiça do governo, que ajudou desonestamente a eleger se comportasse como um robô, se negando a responder aos parlamentares e se ausentasse em pleno exercício da função para estabelecer contatos nos EUA buscando orientações de defesa, frente aos questionamentos dos parlamentares e de um grande número de juristas, que denunciaram a manipulação ilegal do processo judicial de condenação do ex-presidente e as claras intenções de interferir no rumo da eleição, que elegeu o atual presidente e tantos outros novatos que formam a sua base parlamentar de apoio no Congresso.

Durante todo esse período conturbado, a Globo representando os interesses da elite financeira deixou bem claro que não importa qual seja o governo e qual a sua ideologia, seu compromisso é com o programa selvagem liberal de desoneração do capital, com a reforma radical da previdência e a precarização do trabalho.

O núcleo duro do projeto de poder autoritário, fascista e criminoso em curso no Brasil tem deixado o mundo estupefato, frente à guinada radical do país, que, até outro dia, era o exemplo de sucesso internacional, pelas conquistas sociais, pela democracia inclusiva e pela sua postura internacional.

Nos dezoito meses de governo, o atual presidente já fez declarações de fazer corar qualquer mortal, já destruiu o impensável há pouco tempo atrás, já deformou a estrutura burocrática dos ministérios, a orientação pedagógica do ensino básico e o financiamento da Educação, já fez com que fossem demitidos pelas empreiteiras mais de 70 mil pessoas, expulsou do país o programa Mais Médicos, fechou todos os Conselhos da sociedade, já entregou a base de Alcântara para lançamento de satélites pelos EUA, já paralisou a construção do submarino nuclear a cargo da Odebrecht, que visava patrulhar a fronteira marítima, onde estão as reservas do pré-sal, que também teve sua exploração desregulamentada, assim como parte de suas reservas vendidas a preço vil aos capitais internacionais e já vendeu partes do complexo da Petrobrás .Fora tudo isso, está em curso inúmeras investigações sobre as relações de seus familiares com milicianos e assassinos de aluguel.

 Frente a pandemia que nos assola, o presidente destituiu dois ministros da Saúde e a pasta continua até hoje sem ministro, já debochou das mortes, já ameaçou fechar o STF, já declarou em alto e bom som que pretende concentrar mais poder para interferir na Polícia Federal, para desmatar as áreas protegidas e de indígenas. Seu ministro da Fazenda, por outro lado, vai seguindo seu programa selvagem neoliberal de desmonte das políticas públicas, com propostas de políticas de austeridade, numa hora em que no mundo todo, os governos têm feito programas de expansão de gastos para sustentar a demanda e impedir a miséria da população.

  O alarmante de tudo isso é que a história nos ensina que situações como a que vivemos hoje, no Brasil, com alto grau de polarização, com a criminalização diária da política e a sua consequente judicialização, com a economia estagnada com grande número de trabalhadores desempregados e desalentados, com a volta da fome ao país, com um sem números de moradores de rua nas grandes cidades, além das inúmeras incertezas sociais no horizonte e, sobretudo, com a humilhação da inteligência e com o moralismo cerceando as manifestações culturais e a educação criam o terreno propício para a instalação do fundamentalismo religioso e obscurantismo, como o mundo assistiu nos anos 30, em vários países ocidentais e, mais recentemente, no Oriente Médio, com consequências terríveis para toda uma geração.

 Nesse contexto, entendo que os operadores do direito vivenciem perplexidades que têm gerado impasses influenciando suas atuações, o que leva a um quadro de perda de referência e até de perda de confiança no papel das instituições, assim como no papel dos instrumentos que foram constituídos no plano de formação da nossa sociedade.  Essa perda de confiança e de referência tem gerado algumas ambiguidades que vão se localizar, especialmente no que diz respeito aos operadores, na convicção sobre a sua formação jurídica de um lado, e na convicção sobre o seu papel social, de outro.

É chegada a hora, do judiciário reagir e todas as esperanças estão voltadas para o julgamento no STF da parcialidade do juiz de Curitiba no processo de ex presidente, que representará a desautorização para que os abusos da autoridade, o desrespeito ao devido processo legal sejam tolerados .

 A sociedade amedrontada com o contágio da Covid 19 tem se mantido longe das manifestações de rua, mas uma parte expressiva do mundo jurídico, professores, associação de juristas, estudantes de direito e todos aqueles que tiveram na sua formação os valores pelos quais o nosso mestre Baldez tanto lutou, têm resistido bravamente , usado seus espaços de luta, difundido através de artigos, palestras e publicações de livros a indignação e, ao mesmo tempo, a esperança de preservação da nossa democracia pactuada na Constituição de 1988.

Notas:

[i] Marta Skinner é economista e cientista política. Professora dos cursos de Pós- graduação da UFRJ em Comercio Exterior, professora aposentada da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ, da Universidade Candido Mendes e do IBMEC/RJ.