A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS MULHERES IDOSAS COMO GRUPO VULNERÁVEL SOB O PRISMA DA INTERSECCIONALIDADE

Resumo

A invisibilidade e vulnerabilidade das mulheres idosas na sociedade contemporânea: uma abordagem interseccional. Após breves notas sobre interseccionalidade, discute-se a exclusão das mulheres idosas nos movimentos feministas e de idosos, sua marginalização nos canais de proteção contra a violência doméstica e o impacto do conceito de “envelhecimento ativo” na invisibilidade desse grupo. É examinada a posição das mulheres idosas como um grupo vulnerável, considerando sua idade avançada e sua identidade de gênero, e por fim são apresentados os instrumentos e serviços de proteção à mulher idosa no contexto brasileiro, destacando os avanços e desafios a serem enfrentados para garantir a plena efetivação de seus direitos.

Artigo

A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS MULHERES IDOSAS COMO GRUPO VULNERÁVEL SOB O PRISMA DA INTERSECCIONALIDADE

Márcia Dinis

RESUMO:

A invisibilidade e vulnerabilidade das mulheres idosas na sociedade contemporânea: uma abordagem interseccional. Após breves notas sobre interseccionalidade, discute-se a exclusão das mulheres idosas nos movimentos feministas e de idosos, sua marginalização nos canais de proteção contra a violência doméstica e o impacto do conceito de “envelhecimento ativo” na invisibilidade desse grupo. É examinada a posição das mulheres idosas como um grupo vulnerável, considerando sua idade avançada e sua identidade de gênero, e por fim são apresentados os instrumentos e serviços de proteção à mulher idosa no contexto brasileiro, destacando os avanços e desafios a serem enfrentados para garantir a plena efetivação de seus direitos.

PALAVRAS-CHAVE: mulheres idosas; interseccionalidade; invisibilidade; vulnerabilidade; proteção jurídica; direitos humanos.

  1. Introdução

Para um estudo crítico das dinâmicas sociais contemporâneas, é essencial que se compreenda as estruturas que moldam as relações de poder, discriminação e opressão. A interseccionalidade é um conceito central no auxílio do exame da complexa interação entre diferentes dimensões identitárias, como gênero, raça, classe social e sexualidade. Ao considerar a experiência de grupos marginalizados, como as mulheres idosas, a abordagem interseccional oferece uma base teórica robusta para compreender as múltiplas formas de opressão que enfrentam.

Este artigo examina a invisibilidade das mulheres idosas na sociedade contemporânea, destacando sua exclusão tanto nos movimentos feministas quanto nos movimentos de idosos. Explora-se como essa exclusão se manifesta em diferentes contextos, desde a participação em conferências até os canais de proteção contra a violência doméstica. Além disso, é imprescindível compreender como a construção do conceito de “envelhecimento ativo” contribui para a marginalização dessas mulheres, ao impor ideais de produtividade e independência que nem sempre refletem suas realidades.

Sob o prisma da interseccionalidade, a análise do grupo vulnerável das mulheres idosas considerou não apenas sua idade avançada, mas também sua identidade de gênero e as desigualdades estruturais que enfrentam. Foram destacadas as formas específicas de violência e discriminação que as assolam, muitas vezes dentro de seus próprios lares, e a falta de acesso a serviços de proteção e apoio.

Finalmente, aborda-se os instrumentos e serviços de proteção à mulher idosa no contexto brasileiro, destacando avanços significativos, como o Estatuto do Idoso e a Lei Maria da Penha. No entanto, importante ressaltar a necessidade de contínuo aprimoramento desses mecanismos e a ampliação do acesso aos serviços oferecidos, visando garantir a plena efetivação dos direitos das mulheres idosas e a erradicação de todas as formas de violência e discriminação.

  1. Breve nota sobre interseccionalidade

A compreensão das estruturas que moldam as relações de poder e, consequentemente, de discriminação e opressão em nossa sociedade é fundamental para a análise crítica das dinâmicas sociais contemporâneas. Diante da importância de considerar a complexa interação entre diferentes dimensões identitárias – como gênero, raça, classe social, sexualidade, entre outros – no estudo das experiências individuais e coletivas, a interseccionalidade emerge como um conceito central.

A interseccionalidade propõe que a compreensão completa das formas de opressão requer uma abordagem que vá além de uma única categoria identitária e reconheça as interseções entre diferentes formas de subordinação[2]. Por exemplo, ao considerar a experiência de uma mulher negra, é necessário compreender como sua identidade é moldada pela interseção entre sua raça e gênero, assim como por outros fatores como classe social e orientação sexual, por exemplo.

Além disso, o conceito de interseccionalidade é útil ao exame da forma como políticas e práticas sociais específicas podem produzir e perpetuar opressões que se manifestam de forma diferenciada nesses diversos eixos identitários. Assim, as análises interseccionais fornecem percepções mais completas das desigualdades sistêmicas e os mecanismos de poder em uma sociedade[3].

A abordagem interseccional oferece uma base teórica robusta para a análise crítica das estruturas sociais e políticas, permitindo uma compreensão profunda das formas como a opressão é articulada e perpetuada em diferentes contextos sociais e históricos.

Kimberlé Crenshaw, autora e jurista afro-americana, foi a responsável pela difusão do conceito internacionalmente[4]. No entanto, movimentos sociais já colocavam em pauta diferentes vulnerabilidades sociais de maneira coligada[5]. Patricia Hill Collins assinala que, antes de Crenshaw, o trabalho de June Jordan “imprimiu um ímpeto interseccional ao feminismo negro assim como estreitou laços entre movimentos sociais do século XX”[6]. Além disso, indica outras autoras e feministas negras estadunidenses, como Angela Davis, Toni Cade Bambara, Shirley Chisholm, Alice Walker, Audre Lorde, que produziram “uma declaração forte e precoce sobre interseccionalidade (…) tanto intelectualmente quando nas múltiplas lutas políticas”[7].

Collins faz, ainda, referência ao manifesto A Black Feminist Statement, do Coletivo Combahee Riber, para elucidar como as primeiras análises interseccionais surgiram de dentro dos movimentos sociais, na pauta das mulheres integrantes do movimento negro nos Estados Unidos nas décadas de 70 e 80:

Em 1982, o Coletivo Combahee River, um pequeno grupo de mulheres afro-americanas de Boston, publicou um manifesto chamado “A Black Feminist Statement”, que apresentou uma declaração mais abrangente do quadro de políticas do feminismo negro (Combahee-River-Collective 1995). Esse documento inovador argumentava que um manifesto propunha que os sistemas separados de opressão, como eram tratados, fossem interconectados. Porque racismo, exploração de classe, patriarcado e homofobia, coletivamente, moldavam a experiência de mulher negra, a libertação das mulheres negras exigia uma resposta que abarcasse os múltiplos sistemas de opressão[8].

No Brasil, também emergiu dos movimentos sociais o clamor por uma percepção das desigualdades sociais de maneira entrelaçada. Nas décadas de 70 e 80, Lélia González, como uma grande porta-voz das demandas do movimento negro, participou ativamente nas lutas sociais e pela redemocratização não só no país, mas por toda a América Latina[9]. Nesse período, a ativista chamava atenção para as diferentes dimensões de opressão sob as quais vivem as mulheres negras, campesinas e indígenas latino-americanas[10].

A intenção de Lélia González, assim como das ativistas estadunidenses, era expor a situação de desigualdade destas mulheres, a fim de exigir respostas estatais que compreendessem a real dimensão de suas necessidades.

Em 1991, Kimberlé Crenshaw popularizou o conceito de interseccionalidade na academia por meio do artigo Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Polictics, and Violence Against Women of Color, publicado na revista Stanford Law. Um dos objetivos do artigo é “lembrar leitoras que o propósito dos estudos interseccionais é contribuir com iniciativas de justiça social”[11].

Patricia Hill Collins, ao examinar o artigo de Crenshaw, considera que o conceito de interseccionalidade é um instrumento de “construção de justiça social” e não deve ser utilizado como “uma teoria da verdade desvinculada das preocupações de justiça social”[12]. Nas palavras da própria Crenshaw, “através de uma conscientização da interseccionalidade, podemos reconhecer e fundamentar melhor as diferenças entre nós e negociar os meios pelos quais essas diferenças encontrarão expressão na construção de políticas de grupo” (tradução livre)[13].

Nesse contexto, todas as análises interseccionais devem ter o objetivo de promover a justiça social. O exercício de reconhecer o entrelaçamento das múltiplas condições de desigualdade e discriminação que podem atingir determinado grupo serve à identificação dos meios necessários para vencer tais condições e assegurar seus direitos. O presente texto suscita o tema e busca inspirar novas investigações sob a vertente das mulheres idosas.

  1. A invisibilidade das mulheres idosas

Embora as mulheres idosas façam parte de dois grupos minoritários, são comumente excluídas das respectivas lutas sociais. É possível notar uma desqualificação dessas mulheres, tanto nos movimentos feministas, quanto nos movimentos de idosos.

A exclusão de mulheres mais velhas dentro do movimento feminista revela um “vácuo” nas lutas sociais em prol desse segmento. Isolda Belo, pesquisadora e especialista em Gerontologia Social, observou esse fato no depoimento de uma das participantes do Fórum Nacional da Mulher Idosa, que relatou ter comparecido a uma Conferência de Mulheres e, ao se dirigir para fazer o cadastro, informada que “a Conferência da terceira idade ainda ia ser no outro mês”[14]. Esse incidente ilustra a marginalização das mulheres mais velhas dentro do movimento e ilustra sua frequente exclusão de espaços nos quais deveriam ser representadas.

A desqualificação de mulheres idosas também ocorre nos canais de proteção destinados às mulheres vítimas de violência. Mulheres com mais de sessenta anos, muitas vezes, não recebem apoio nos órgãos especializados de atendimento à mulher e são direcionadas a buscar ajuda em serviços voltados especificamente para idosos[15], fenômeno que evidencia a falta de reconhecimento da interseccionalidade entre gênero e idade. A idosa é despojada de sua identidade de gênero ao ser encaminhada para instâncias que não reconhecem suas necessidades específicas como mulher.

A mesma situação se verifica no movimento organizado de idosos. As demandas e reivindicações desse movimento muitas vezes não diferenciam as experiências de envelhecimento entre homens e mulheres[16], de forma a negligenciar as particularidades das mulheres idosas e contribuir para sua invisibilidade e vulnerabilidade.

É o caso do conceito de “envelhecimento ativo”, originado nas Assembleias Mundiais do Envelhecimento da Organização das Nações Unidas (ONU), se refere ao processo de maximização das oportunidades de bem-estar físico, social e mental ao longo da vida com o fim de aumentar a expectativa de vida saudável, a produtividade e a qualidade de vida na terceira idade e incentivar a contínua participação da população idosa em atividades socialmente úteis, inclusive no mercado de trabalho[17].

Tal conceito foi adotado no Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), como fundamento da necessidade de revalorização da pessoa idosa através do estímulo à sua participação e produtividade. Contudo, trata-se da tentativa de criação de um consenso associando a velhice a apenas alguns aspectos que podem ser benéficos. Este alinhamento se revela, principalmente, pela adoção de um discurso que omite as dificuldades presentes nesta fase do ciclo vital (“estou na melhor idade”) e/ou pela incorporação de comportamentos ávidos pela manutenção da juventude, tão amplamente divulgados pela mídia e pela indústria de cosméticos e a de entretenimento[18].

Essa representação de envelhecimento ativo pode ser prejudicial ao impor determinada realidade a todas as pessoas de mais idade, indiscriminadamente. Isolda Belo considera que o conceito omite as desigualdades estruturais enfrentadas por grupos mais vulneráveis, particularmente mulheres e, especialmente, aquelas de baixa renda[19].

Todos esses pontos levam ao apagamento das mulheres idosas como grupo vulnerável, seja pela exclusão de sua participação dentro dos movimentos de mulheres e de idosos, seja pelo crescimento da idealização do envelhecimento ativo na sociedade, que favorece a visão desse grupo como composto por pessoas em sua “melhor idade”, que não enfrentam dificuldades e nem requerem auxílio.

  1. As mulheres idosas como grupo vulnerável

Para examinar a posição das mulheres idosas na sociedade há de se considerar a realidade da desigualdade de gênero por elas enfrentadas no passado, certamente mais crítica do que a enfrentada pelas mulheres na sociedade atual, uma vez que as conquistas profissionais e dos espaços públicos foram posteriores a sua geração, mas que as acompanha no curso de suas trajetórias.

Durante a construção de suas vidas, as mulheres que hoje possuem mais de sessenta anos muitas vezes não logravam espaço no mercado de trabalho, razão pela qual frequentemente não tinham condições financeiras para viver de forma verdadeiramente autônoma. Aquelas que trabalhavam, em grande parte, não possuíam paridade de gênero em suas funções e, hoje, possuem aposentadorias referentes a salários abaixo do que de fato lhes era devido[20].

A própria construção da identidade dessas mulheres se deu em um contexto totalmente diferente, pois foram socializadas para representar um papel social e chegaram à velhice antes da propagação da ideia de envelhecimento ativo, isto é, de que se pode ser um idoso produtivo e independente[21].

Isolda Belo reforça que a geração feminina da terceira idade foi socializada para chegar a essa idade e “ser idosa”, ou seja, “reforçar o seu papel de cuidadora, afetuosa, doméstica, amorosa, passiva e, contraditoriamente, forte para ser o esteio familiar”[22]. Aborda, ainda, o trabalho de cuidado dessas mulheres, que precisam zelar e assistir seus maridos, tendo em vista que os homens possuem, em regra, menos tempo de vida[23]. Ao final, muitas dessas mulheres acabam sozinhas.

Vera Regina Pereira Andrade revela que o sistema patriarcal estabelece padrões nas interações entre homens e mulheres e molda a construção social dos gêneros por meio da definição de papéis e estereótipos. Nesse contexto, a esfera pública é associada à identidade masculina, em contrapartida, a esfera privada está ligada à identidade feminina. O papel atribuído ao homem é caracterizado por qualidades como racionalidade, atividade, força, potência, guerra, virilidade, presença pública e posse. Em contrapartida, o papel da mulher é restrito às relações familiares, como casamento, sexualidade reprodutiva, maternidade, trabalho doméstico, sendo concebida como um ser emocional, subjetivo, passivo, frágil, impotente, pacífico, recatado, doméstico e subjugado[24].

Quanto mais restritas ao ambiente familiar, mais estas mulheres estarão  sujeitas a sofrerem violência doméstica, o que é atestado pelos dados trazidos por Isolda Belo:

Na cidade do Recife, onde existe um levantamento sobre a violência contra a pessoa idosa, foi registrada, entre janeiro de 2010 e abril de 2011, a ocorrência de 7.333 agressões a pessoas idosas, sendo a ampla maioria das vítimas (quase 70%), mulheres acima de 65 anos. Em 89% dos casos, os agressores são familiares, entre filhos/as (55%) ou netos/as (11%), fato que dificulta a notificação às instituições competentes, seja pela dependência física ou afetiva que a pessoa idosa tem pelo(a) agressor(a), seja pelo desconhecimento dos canais existentes para realizar a denúncia[25].

A Pesquisa Nacional de Violência Contra a Mulher efetuada pelo Instituto de Pesquisa DataSenado em 2023 também demonstrou que esse grupo de mulheres está mais suscetível a sofrer violência doméstica e familiar. Entre as que declararam ter sofrido violência nos últimos doze meses, a maior parte (21%) possuía mais de sessenta anos. O segundo grupo que mais sofreu (16%) possuía entre dezesseis e vinte e quatro anos, idade em que normalmente também se depende muito do núcleo familiar[26].

A dependência financeira, afetiva e emocional das mulheres da terceira idade em relação à família é reforçada culturalmente e pode levar a situações extremas.

Nesse cenário, o conhecimento dos canais de proteção é fundamental para evitar e coibir violências, porém poucas mulheres da terceira possuem informações a esse respeito. Um estudo conduzido por Isolda Belo em Pernambuco, por exemplo, atestou que 38,6% das mulheres idosas entrevistadas não sabia ou não respondeu quais instituições poderiam atende-las em caso de violência; 45,4% respondeu a Polícia Militar; e apenas 0,3% e 0,2% respondeu as Delegacias do Idoso e da Mulher, respectivamente[27].

  1. Os instrumentos e serviços de proteção à mulher idosa

No contexto jurídico brasileiro, os instrumentos de proteção à mulher idosa são fundamentais para assegurar seus direitos e prevenir situações de vulnerabilidade. O Estatuto do Idoso, instituído pela Lei nº 10.741/2003, representa um marco legislativo ao garantir uma série de prerrogativas específicas para essa parcela da população e fornecer respaldo legal às mulheres idosas para reivindicar seus direitos à saúde, à assistência social e à proteção contra quaisquer formas de violência e abuso, inclusive as de natureza doméstica e familiar.

No que tange à proteção contra a violência doméstica, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) assume um papel preponderante. Reconhecida internacionalmente como um instrumento eficaz no combate à violência contra a mulher, a legislação visa prevenir, impedir e punir os diversos tipos de agressões. As mulheres idosas, mais suscetíveis a abusos no âmbito familiar, são tuteladas por essa lei que estabelece medidas protetivas e mecanismos para a responsabilização dos agressores. Entretanto, assim como o Estatuto do Idoso não atentou para as vulnerabilidades específicas da mulher idosa, a Lei nº 11.340/2006 não previu tratamento diferenciado a esta condição.

Neste contexto, a estruturação de órgãos especializados no atendimento, como as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), as Delegacias de Polícia de Proteção ao Idoso e os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), é essencial para a efetividade das políticas de proteção.

As DEAMs, em particular, buscam oferecer um ambiente propício para o acolhimento e encaminhamento adequado das vítimas, proporcionando apoio psicológico, jurídico e social. Para as mulheres idosas, esses espaços devem representar um canal seguro para denunciar violações de direitos e buscar assistência especializada.

As Delegacias de Polícia de Proteção ao Idoso, concebidas para atender os casos com vítimas da terceira idade, estão longe de atender à demanda nas poucas unidades disponibilizadas no país[28]. No caso do Rio de Janeiro,

a Delegacia do Idoso, além de investigar e solucionar os casos, exerce papel de órgão informativo, sobretudo em relação ao SOS Idoso e Ligue Idoso para esclarecimentos sobre a natureza da denúncia (criminal ou cível). A orientação é de que a denúncia criminal seja encaminhada para a delegacia mais próxima da residência da vítima, uma vez que existe apenas uma delegacia especializada para o atendimento a esse grupo populacional em todo o Estado (…).[29]

No âmbito da assistência social, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) desempenha um papel crucial na construção de uma rede de proteção integral. Por meio dos Centros de Referência de Assistência Social, mulheres idosas têm acesso a serviços e benefícios que visam promover sua autonomia e seu bem-estar. A atuação integrada desses órgãos possibilita a identificação precoce de situações de violência e a articulação de medidas preventivas e protetivas com o objetivo de garantir uma resposta eficaz diante das demandas específicas desse grupo[30]. Todavia, a partir de 2015, o governo federal reduziu os investimentos nesse seguimento, o que resultou na “desestruturação financeira” e “desconstrução institucional do SUAS”[31].

Ainda assim, em comparação a outros países da América Latina, o Brasil possui uma grande variedade de instrumentos políticos e jurídicos de proteção à pessoa idosa, uma vez que conta com políticas públicas, um plano nacional e uma lei especial. O Chile possui somente políticas direcionadas, ao passo que, México e Uruguai possuem apenas legislações especiais[32].

Em relação à Europa, alguns países possuem políticas bem desenvolvidas, como a Dinamarca, em que os municípios oferecem atendimento residencial ou de asilo por meio de assistência profissional aos idosos que necessitam de cuidados. Na Alemanha, são financiados cuidados “para os idosos que precisam, com base em contribuições que fizeram em seus empregos remunerados e por meio de aportes de seguros privados”. A legislação, ainda, possibilita e incentiva que os idosos sejam acompanhados por suas famílias[33].

Embora se trate de iniciativas legítimas e necessárias, muitos países europeus ainda precisam ponderar o crescimento populacional desse grupo e a imprescindibilidade de promoção de sua cidadania em outros aspectos:

Apesar do apoio dado por alguns governos aos direitos dos idosos, como, por exemplo, assistência médica e seguridade social gratuita ou subsidiada, estes sistemas partem do pressuposto de que os idosos representam uma porcentagem da população menor que indivíduos jovens ou adultos. É por este motivo que eles não estão adequadamente preparados para atender às demandas de uma população idosa cada vez mais numerosa. Além disso, as sociedades têm a obrigação de garantir um papel mais ativo para os idosos nas esferas política, social e cultural[34].

Em suma, os instrumentos de proteção à mulher idosa no Brasil refletem avanços significativos no campo jurídico e social. Verifica-se um compromisso do Estado em resguardar a dignidade e os direitos fundamentais dessa parcela da população, mas cuja implementação ainda enfrenta desafios. As políticas públicas, em regra, são pensadas para as mulheres ou para os idosos, o que dificulta o atendimento das demandas particulares da interseção desses dois grupos.

É imperativo o contínuo aprimoramento desses mecanismos, bem como a ampliação do acesso e da efetividade dos serviços oferecidos, visando à efetivação plena dos direitos das mulheres idosas e à erradicação de todas as formas de violência e discriminação. A tutela necessária somente será alcançada quando as legislações e políticas públicas considerarem a interseccionalidade que envolve a condição da mulher idosa.

  1. Conclusão

A invisibilidade das mulheres idosas na sociedade contemporânea é um reflexo das estruturas de poder e discriminação que permeiam nossa cultura. A exclusão dessas mulheres dos movimentos sociais e a idealização do envelhecimento ativo contribuem para sua marginalização e vulnerabilidade, tornando-as suscetíveis a diversas formas de violência e discriminação.

Os instrumentos e serviços de proteção à mulher idosa representam avanços significativos no campo jurídico e social, refletindo um compromisso do Estado em garantir a dignidade e os direitos fundamentais dessa parcela da população. É fundamental continuar aprimorando esses mecanismos e ampliando o acesso aos serviços oferecidos, garantindo a efetivação plena dos direitos das mulheres idosas e a promoção de uma sociedade mais justa e inclusiva para todas as idades e gêneros.

[1] Advogada criminalista. Graduada em Comunicação Social pela UFF (1986) e em Direito pela Faculdade de Direito da UERJ (1987), Mestra em Criminologia pela UCAM (2004). Presidente da Comissão de Criminologia do IAB e Diretora da Biblioteca Daniel Aarão Reis. Vice-presidente da Sociedade de Advogados Criminais do Rio de Janeiro (SACERJ). Conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Judiciária do Rio de Janeiro, e Membro da Comissão de Direito do Setor da Cannabis Medicinal da OABRJ.

[2] CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Polictics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, Stanford, vol. 43, nº 6, 1991. p. 1241-1299.

[3] Cf. CRENSHAW, Kimberlé. Op. cit.; e RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019. 112p.

[4] CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, vol.10, n.1, 2002, p.171-188.

[5] COLLINS, Patricia Hill. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Revista Parágrafo, v. 5, n. 1, jan-jun, 2017.

[6] Idem, p. 7.

[7] Idem, ibidem.

[8] Idem, p. 8.

[9] GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio Janeiro: Zahar, 2020, p. 6-10.

[10] Idem, p. 130-132.

[11] COLLINS, Op. cit., p. 12.

[12] Idem, ibidem.

[13] No original: “Through an awareness of intersectionality, we can better acknowledge and ground the differences among un and negotiate the means by wich these differences will find expression in constructing group politics”. (CRENSHAW, 1991, Op. cit. p. 1299).

[14] BELO, Isolda. Velhice e Mulher: vulnerabilidades e conquistas. Revista Feminismos – UFBa, Salvador. vol. 1, n. 3, set.-dez. 2013, p. 2. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/issue/view/1775. Acesso em 02/01/2024.

[15] Idem, ibidem.

[16] Idem, ibidem.

[17] Idem, p. 5.

[18] Idem, p. 6.

[19] Idem, p. 7.

[20] Idem, p. 8.

[21] Idem, p. 9.

[22] Idem, ibidem.

[23] Estatisticamente, as mulheres vivem mais do que os homens. Segundo dados do IBGE, as mulheres brasileiras vivem em média 79 anos, ao passo que, os homens brasileiros 72 anos, cf. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/38455-em-2022-expectativa-de-vida-era-de-75-5-anos. Acesso em 10/02/2024.

[24] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012, p. 141.

[25] BELO, Op. cit., p. 13/14.

[26] INSTITUTO DE PESQUISA DATASENADO. Pesquisa DataSenado: Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher. Brasília: Instituto de Pesquisa DataSenado. Senado Federal, nov. 2023, p. 42. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/publicacaodatasenado?id=pesquisa-nacional-de-violencia-contra-a-mulher-datasenado-2023. Acesso em: 16/01/2024.

[27] BELO, Op. cit., p. 15.

[28]

[29] SOUZA, Edinilsa Ramos de; et. al. Rede de proteção aos idosos do Rio de Janeiro: um direito a ser conquistado. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 13(4), 2008, p. 1157. Disponível em: https://cienciaesaudecoletiva.com.br/. Acesso em: 16/01/2024.

[30] MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Sistema Único de Assistência Social. Brasília: Secretaria Nacional de Assistência Social, 2009. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Consolidacao_Suas.pdf. Acesso em 16/01/2024.

[31] ABRUCIO, Fernando Luiz; et. al. Ascensão e crise do Sistema de Assistência Social (SUAS) no federalismo brasileiro. Revista. Katálysis., Florianópolis, v.26, n. 2, p. 243-254, maio-ago. 2023. ISSN 1982-0259. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/view/91292. Acesso em 26/02/2024.

[32] AGLIARDI, Delcio Antônio. Os direitos humanos da pessoa idosa numa perspectiva comparada em países ibero-americanos. Olhar de Professor [online], vol. 18, núm. 1, 2015, p. 86-87. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=68459083008. Acesso em 19/02/2024.

[33] MINAYO, Maria Cecília de Souza; et. al. Políticas de apoio aos idosos em situação de dependência: Europa e Brasil. Ciênc. Saúde Colet. [online] 26 (01). Jan 2021, p. 140-141. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232020261.30262020. Acesso em: 19/02/2024.

[34] IVIC, Sanja. O Direito dos Idosos na União Europeia. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 56, no 1, 2013, P. 196-197. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0011-52582013000100008. Acesso em: 19/02/2024.

Palavras Chaves

mulheres idosas; interseccionalidade; invisibilidade; vulnerabilidade; proteção jurídica; direitos humanos.