A Revisão Contratual no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor e a Pandemia do Conoravírus (COVID-19)

Resumo

Trata-se de estudo que aborda a revisão dos contratos no momento da pandemia do coronavírus em razão da influência da crise sanitária na economia dos contratos. Cuida-se da possibilidade de revisão contratual por lesão e por excessiva onerosidade posterior à contratação nos modos expressos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Formula-se impressão acerca da revisão contratual no Código de Processo Civil de 2015. São tecidas críticas à Lei da Liberdade Econômica de 2019 e ao Projeto de Lei Federal das Relações Jurídicas de Direito Privado no Período da Pandemia do Coronavírus (Covid-19).

Abstract

This is a study that addresses the review of contracts at the time of the coronavirus pandemic due to the influence of the health crisis on the contract economy. We take care of the possibility of contractual review due to injury and excessive cost after the hiring in the ways expressed in the Civil Code and the Consumer Protection Code. An impression is made about the contractual revision in


1ProfessoraAdjuntadaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro(UFRJ),nocorpopermanentedocursodegraduação da Faculdade Nacional de Direito. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação daFaculdade Nacional de Direito. Possui pós-doutorado em Direito Público e Filosofia do Direito pelaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,(UFRGS).DoutoraemTeoriadoEstadoeDireitoConstitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, (PUC-Rio). Mestre em Direito CivilpelaUniversidadedoEstadodoRiodeJaneiro,(UERJ).
the Civil Procedure Code of 2015. Criticisms are made of the 2019 Economic Freedom Act and the Federal Private LawLegal Relations Bill in the Coronavirus(Covid-19)Pandemic Period.

Key-words:


Contractual review; lesion; unpredictability theory; excessive onerosity.

Artigo

A Revisão Contratual no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor e a Pandemia do Conoravírus (COVID-19)

 

Fabiana  Rodrigues Barletta1

Sumário

Introdução. 1 – Apontamentos acerca da lesão contratual no momento da pandemia do coronavírus. 1.1–A lesão no Código Civil de 2002. 1.2– A lesão no Código de Defesa do Consumidor de 1990. 2– Apontamentos acerca da excessiva onerosidade posterior à contratação. 2.1 –A excessiva onerosidade  posterior à contratação no Código Civil de 2002 e seu atrelamento à Teoria da Imprevisão. 2.2 – A excessiva onerosidade posterior à contratação no Código de Defesa do Consumidor de 1990 e seu atrelamento à Teoria da Onerosidade Excessiva. 3 – Nota sobre a revisão contratual no Código de Processo Civil de 2015. 4- A revisão contratual e a Lei da Liberdade Econômica de 2019.5 -O Projeto de Lei Federal das Relações Jurídicas de Direito Privado no período da  pandemia do Coronavírus (Covid-19). Conclusão. Referências Bibliográficas.

  

  Resumo:

Trata-se de estudo que aborda a revisão dos contratos no momento da pandemia do coronavírus em razão da influência da crise sanitária na economia dos contratos. Cuida-se da possibilidade de revisão contratual  por   lesão  e   por   excessiva  onerosidade   posterior  à  contratação   nos   modos   expressos   no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Formula-se impressão acerca da revisão contratual no Código de Processo Civil de 2015. São tecidas críticas à Lei da Liberdade Econômica de 2019 e ao Projeto de Lei Federal das Relações Jurídicas de Direito Privado no Período da Pandemia do Coronavírus(Covid-19).

 

  Palavras chave:

Revisão contratual; lesão; teoria da imprevisão; excessiva onerosidade.

 Abstract:

This is a study that addresses the review of contracts at the time of the coronavirus pandemic due to the   influence  of the health crisis on the contract economy. We take care of the possibility of contractual review due to injury and excessive cost after the hiring in the ways expressed in the Civil Code and the Consumer Protection Code. An impression is made about the contractual revision in

1Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ),no corpo permanente do curso de graduação da Faculdade Nacional de Direito. Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Nacional de Direito. Possui pós-doutorado em Direito Público e Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,(UFRGS).Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, (PUC-Rio). Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro,(UERJ).

the Civil Procedure Code of 2015. Criticisms are made of the 2019 Economic Freedom Act and the Federal  Private LawLegal Relations Bill in the Coronavirus(Covid-19)Pandemic Period.

Key-words:

 

Contractual review; lesion; unpredictability theory; excessive onerosity.

 

 

Introdução.

 

        A discussão a respeito da revisão dos contratos por excessiva onerosidade é necessária e oportuna, pois a ocorrência da lesão ou de mudanças no cenário social e econômico podem gerar a necessidade de equalizar o contrato e reinstaurar o equilíbrio contratual num pacto excessivamente oneroso desde a origem, ou, que assim se torne, por motivos    ulteriores     à contratação, quando esta se prolonga no tempo.

        Com a pandemia do coronavírus que inesperadamente chegou ao Brasil recentemente, torna-se muito importante tratar das hipóteses de revisão dos contratos, porque se observa que esse fato deflagará excessiva onerosidade nas relações contratuais pelos    impactos   econômicos   e   sociais   desta   ocorrência.   Alguns   podem   entender   que, pelo   noticiário   jornalístico de   alguns      meses     atrás,   já    fosse     possível   prever      que       a        pandemia desde vírus chegaria ao Brasil. O que não se pode negar é que ninguém sabia como seria tratada a pandemia em nosso país.       Atualmente   vemos – e estamos    no     mês   de    março do ano de 2020 – negócios parados, estabelecimentos  comerciais fechados, bancos operando em horários reduzidos, a população convencida de que deve ficar em casa, a impossibilidade de sair e de entrar em vários municípios. Não era possível prever, há alguns meses atrás, que a pandemia do coronavírus (COVID19) geraria tamanha comoção e repercussão no ambiente negocial e econômico brasileiro. Evidentemente que vários contratos realizados antes ou durante a pandemia vão ser afetados por ela.

A revisão contratual por excessiva onerosidade pode dar-se por dois motivos:

  1. Por lesão, quando prestações excessivamente onerosas são levadas ao contrato no momento de sua formação por um dos contraentes;
  2. Por excessiva onerosidade vindoura à contratação, quando as prestações se tornam excessivamente onerosas no curso do contrato por motivos posteriores, que não existiam ao tempo da pactuação.

              O estudo da lesão remonta ao Direito Romano, onde esta foi pensada de maneira objetiva.2

Assim, bastava que se vendesse um objeto por menos da metade de seu valor e teria havido lesão, podendo o contrato ser resolvido em benefício da parte que sofrera a excessiva onerosidade.

           Já o estudo da excessiva onerosidade posterior à contratação iniciou sua teorização na Idade Média e recebeu o nome de cláusula rebus sic stantibus, que significa: estando assim as coisas.3 Mas só é possível entender o que significa a máxima rebus sic stantibus, isto  é,  estando  assim    as   coisas,   se   atrelada ao brocardo       romano      pacta sunt servanda, ouseja, os contratos fazem lei entre as partes.4

  • OSTI,Giuseppe.Clausolarebussicstantibus.In:NovissimoDigestoItaliano.Torino:UTET,v.3.1957, p. 354,verbis: “Certo que nas fontes jurídicas romanas podiam-se encontrar afirmações particulares relativas a determinadas relações, suscetíveis de serem reconduzidas à cláusula, mas não um reconhecimento desta como princípio geral” [traduziu-se]; também FONSECA, Arnoldo Medeiros da.Caso fortuito e teoria da imprevisão. 3 ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958, p. 198,verbis: “A cláusula rebus sic stantibus, pela qual o vínculo obrigatório, em certa categoria de contratos, entendia-se subordinado à continuação daquele estado de fato existente ao tempo da sua formação, foi obra, comodissemos, dos juristas do direito canônico e da jurisprudência dos tribunais eclesiásticos, assim como dos pós-glosadores ou bartolistas. O direito romano não parece ter formulado nenhum princípio geral e constantea tal respeito.”também CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina,1997, p.940, verbis:“A regra da eficácia jurídica das alterações das circunstâncias era desconhecida, como princípio, no Direito romano, não por se tratar de alterações desse tipo, mas por estar em jogo um princípio geral.”; também MAIA, Paulo Carneiro.Cláusula rebus sicstantibus.In: Enciclopédia Saraiva de Direito. Coordenador: Limongi França. São Paulo. v. 15. 1977, p.125, verbis: “… a formulação definitiva, em teor doutrinário nítido, adveio dos canonistas medievais, osquais conceberam a cláusula, subentendida nos contratos em que as partes contratantes se obrigassem ao cumprimento da avença desde que as mesmas condições econômicas da época da contratação se mantivessem íntegras e imutáveis”; também LINS, JairA cláusula ‘rebus sic stantibus’. In: Revista Forense. Belo Horizonte. v. XL. Janeiro/Julho/1923, p. 512,verbis: “Eis porque os interpretes do direitoromano – glosadores e post-glosadores – effectuaram a creação juridica, a que deram o nome ‘latinamente brutto ma concettualmente energico’de cláusula rebus sic stantibus.” Em sentido contrário, SIDOU, José Maria Othon. Rebus sic stantibus. In: Enciclopédia Saraiva de Direito. Coordenador: Limongi França. São Paulo. v. 63. 1977, p. 294, verbis: “Dissentimos, portanto, da opinião provecta dos doutrinadores que negam ter a cláusula tácita da imprevisão contratual suas origens no direito romano.”;
  • CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes.Da boa fé no direito civil., p. 941-943, explica que,comentando a Glosa, Bártolo escreveu “…et hoc est quod glossa vult hic dicere, vel quandiu matrimoniumcontra hipotest, debet intellegire bussics e habentibus”[grifou-se].,ou seja,“…e is só é o que a Glosa quer ensinar aqui, quando o casamento pode ser contraído, a situação deve ser entendida permanecendo o mesmo estado de coisas.” [traduziu-se].. Assim, segundo MENEZES CORDEIRO, teria havido o nascimento deum conceito novo: o da cláusula rebus sic stantibus, p. 942-943, verbis: “Em Bártolo, a situação é, já, diferente: a locução rebus sic se habentibus ganha vida própria.”

4SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e.A teoria da base do negócio jurídico no direito brasileiro.In:Revista dos Tribunais. São Paulo. v. 655. Maio/1990, p. 8,verbis: “É certo que o princípio ‘pacta suntservanda’ salienta, por um lado, a obrigatoriedade do contrato, a necessidade de serem cumpridas as obrigações que dele resultam, o que não merece menor reparo; por outro, indica, o que é e sempre foi inexato, a sua absoluta imodificabilidade, ainda quando as condições econômicas, no curso de sua vigência, se tenham alterado de modo essencial.”

A cláusula rebus sic santibus consagra a relativização da regra pacta sunt servanda, pois os contratos só fazem lei entre as partes e as vinculam do modo que foram pactuados imperativamente, caso as coisas se mantenham também da mesma maneira que estavam quando o contrato fora avençado, conservadas as suas bases.5

1   – Apontamentos acerca da lesão contratual no momento da pandemia do coronavírus

 

          A lesão não era prevista no Código Civil de 1916. Vivia-se, nessa época, sob a égide de um Estado Liberal. No âmbito do contrato poder-se-ia falar em Liberalismo, no sentido de que todos eram livres para contratar ou não, e se o pactuado fosse desproporcional para uma das partes, essa não haveria de resolver ou reequilibrar o contrato lesivo, pois, ao usar sua liberdade contratual os contraentes teriam, por consequência, que se responsabilizar pelo adimplemento do contrato, independentemente de ter avençado algo muito oneroso ou que se tornasse muito oneroso para si. Havia também excessiva valoração à vontade emitida pelos contratantes, fenômeno chamado voluntarismo.6

Ademais, compreendia-se que todos eram iguais perante a lei, como propugnava a igualdade formal, que colocava todas as situações numa mesma fôrma, como se pudessem ser todas iguais, encaixando-se no modelo.

Hoje é sabido que nem sempre a igualdade é encontrada quando se tenta colocar situações díspares na mesma fôrma, pois pessoas em estado de necessidade, pessoas de pouco traquejo nos negócios ou pessoas vulneráveis ao contratar, não possuem uma igualdade de fato, também chamada igualdade material, perante a contra parte.

5COGLIOLO, Pietro.La cosi detta clausola ‘rebus sic stantibus’ e la teoria dei pressuposti.In: Scrittivariididirittoprivato.2ed.Torino:UTET,1910,p.369,verbis:“Windscheid não bracitada teve o méritode colocar em evidência a importância do estado de fatopara a formação do consenso.” [traduziu-se]; por FIÚZA,César.Aplicaçãodacláusularebussicstantibusaoscontratosaleatórios.In:RevistadeInformação Legislativa. Brasília. n. 34. Outubro/Dezembro/1999, p. 7; LARENZ, Karl.Base del negocio juridico y cumplimento de los contratos. Tradução de: Carlos Fernandes Rodrigues. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado.[19–],s.d.,p.21-29,passim;WINDSCHEID, Bernardo. Diritto delle Pandette. Tradução italiana de: Carlo Faddae Paolo Emílio Bensa. v. 1.Torino:[sn].1930,p.332-333.

6CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes.Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina,1997,p. 954.

Com o advento do Estado Social, o Direito tratou de expurgar os excessos do Liberalismo usando do dirigismo contratual para, ao afastar a pacta sunt servanda, proteger as pessoas em situação de excessiva onerosidade nos negócios celebrados, tirando-as da fôrma em que não cabiam as peculiaridades de suas situações.7

              Nessa esteira de socialização dos institutos jurídicos de Direito Civil, a lesão, que não constava positivada no Código Civil de 1916, consta hoje estabelecida no Código Civil de 2002, como instrumento de que o Estado Social utiliza para interferir na economia contratual reinstaurando o equilíbrio.8

 

1.1  –A lesão no Código Civil de 2002.

           A lesão, excessiva onerosidade que se dá na formação do contrato, está prevista no art. 157 do Código Civil brasileiro de 2002, que, diferentemente de suas origens romanas objetivas, consagrou-a em bases subjetivas. Portanto, subjetivamente, não basta haver o requisito da desproporcionalidade no valor das prestações contratuais para a lesão restar configurada, pois são justamente os aspectos subjetivos apostos ao instituto, a saber, a “premente necessidade” ou a “inexperiência”, somada ao aspecto objetivo da“desproporcionalidade da prestação em face à contraprestação”, que darão a situação lesiva.9

7ROPPO, Enzo.O contrato. Tradução de: Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina.1988, p.41. NETO, Antonio José de Mattos. A cláusula ‘rebus sic stantibus’e a cláusula de escala móvel. In: Revista de Direito Civil. São Paulo. n. 63. Janeiro/Março/1993, p. 89. SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A teoria da base do negócio jurídico no direito brasileiro. In: Revista dos Tribunais. SãoPaulo. v. 655.Maio/1990, p.8, verbis: “É certo que o princípio ‘pacta sunt servanda’salienta, por um lado, a obrigatoriedade do contrato, a necessidade de serem cumpridas as obrigações que dele  resultam, o que não merece menor reparo; por outro, indica, o que é e sempre foi inexato, a sua absoluta imodificabilidade, ainda quando as condições econômicas, no curso de sua vigência, se tenham alterado de modo essencial.”

8BARLETTA, Fabiana Rodrigues.Revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa doConsumidor.2ed.Indaiatuba: Foco, 2020, p. 145-146.

9BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, p. 98- 102; SCHEREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo:Saraiva Educação, 2018, p.73; CARDOSO, Vladimir Mucury. Revisão contratual e lesão: à luz do Código Civil de 2002 e da Constituição da República. 1ed. .Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.195, JÚNIOR, Humberto Theodoro. Comentários ao Novo Código Civil: Dos Defeitos do Negócio Jurídico ao Final doLivroIII.RiodeJaneiro:Forense,2003,p.242-243.PEREIRA,Caio Mário da Silva. Lesão nos Contratos. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 165; FRANTZ, Laura Coradini. Revisão dos Contratos. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 164.

A lesão, na forma dos arts. 171 e 157 do Código Civil é também vício do consentimento, passível de gerar a anulabilidade do negócio jurídico na forma dos parágrafos 1º e 2º do segundo artigo citado.

 A título de exemplificação:

        Se A, pessoa natural, vendeu para B, também pessoa natural, que acabara de completar dezoito anos e se apresentava a inda inexperiente para realizar negócios jurídicos, um imóvel por valor desproporcional à qualidade desse objeto de valor inferior, no momento da formação do contrato, ocorreu lesão contratual numa relação entre iguais, prevista pelo Código Civil.

        Se A, pessoa jurídica empresária, vendeu para B, também pessoa jurídica empresária, que passava por um momento de premente necessidade causado pela pandemia da corona vírus, um bem, por valor desproporcional à sua qualidade de valor inferior, no momento da contratação, ocorreu também lesão contratual numa relação entre iguais, previstapelo Código Civil.

        Haverá contratos realizados ao tempo de a pandemia do coronavírus ainda estar no Brasil. Pode ser, portanto, que pessoas naturais ou jurídicas em situações de igualdade (não em hipóteses de vulnerabilidade como ocorre nas relações de consumo) realizem negócios jurídicos instantâneos, premidas por grave necessidade ou por inexperiência, muito mais onerosos do que seria normal. Nesse caso aludido observa-se a lesão contratual, que ocorre quando um contrato é, no momento de sua formação, muito custoso para uma das partes.10 Porém, se o bem pactuado é importante para a parte que sofre a lesão, ela celebrará o negócio jurídico por demais oneroso e depois discutirá o quão excessivamente caro ele era.

          Quando as partes contratantes estão em situação de igualdade no âmbito contratual a situação da excessiva onerosidade que ocorre no momento da contratação é tratada como lesão pelo Código Civil.

          Diz o artigo 171 do Código Civil: “Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: por vício decorrente de […] estado de perigo, lesão…” Se o negócio jurídico não for revisado ele pode ser anulado, portanto.

10BARLETTA, Fabiana Rodrigues.Revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, p. 98-100.

Por sua vez dispõe o artigo 157 do Código Civil: “Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta”.

A revisão se dará na forma do §2º desse mesmo artigo: “Não se decretará a anulação do negócio se for oferecido suplemento suficiente ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.”

     Muito parecido com a lesão é outro vício do consentimento, o estado de perigo, previsto no art.156 do Código Civil e seu respectivo parágrafo que, todavia, com ela não se confunde. Na lesão há desproporção no valor de uma prestação obrigacional por causa da premente necessidade ou da inexperiência da vítima, caso do exemplo supramencionado. Já no estado de perigo há desproporção no valor de algo que não é uma prestação obrigacional, mas uma situação de grave dano conhecida pela outra parte, ou seja, exige-se dessa última o dolo de aproveitamento diante da situação de grave dano de quem se sente em estado de perigo.

Dispõe o artigo 156 do Código Civil: “configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.”

1.2  –A lesão no Código de Defesa do Consumidor de 1990.

 

 No Código de Defesa do Consumidor a lesão também consta positivada, mas de forma diferente da prevista no Código Civil de 2002.11

              Numa relação em que os sujeitos da relação jurídica são o fornecedor de produtos ou serviços e, de outra banda, o consumidor, parte vulnerável na acepção do referido Código, apenas esse último pode pedir revisão contratual, na forma do art. 6º, inciso V,1ª parte, do Código de Defesa do Consumidor, pois, prevista como direito básico do consumidor, a lesão apresenta-se de maneira objetiva. Basta a ocorrência da desproporção no valor das prestações no momento da gênese do contrato para assegurar sua modificação em benefício do consumidor.12

11BARLETTA,Fabiana Rodrigues. Revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, 102-105. SILVA, Luís Renato Ferreira da.Revisão dos contratos: do código civil ao código do consumidor, Rio de Janeiro, Forense, 1998,p. 92,verbis: “No Brasil, em face do diploma dos consumidores, sustenta-se a possibilidade de revisão por incidência do art. 6º, V, que refere à revisão de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais, o que não é outra coisa senão a figurada lesão.”;também ALMEIDA, João Batista de Almeida. A revisão dos contratos no código do consumidor.In: Revista de direito do Consumidor. São Paulo. Revista dos Tribunais.v.33. Janeiro/Março/2000,p.145,verbis:“…O código de defesa do consumidor estabeleceu como direito básico do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais (art.6º,V, 1ªparte),oque coincide com a noção de lesão.”

 

Quandoumcontratodeconsumoprevêcláusulaabusivaemprejuízodoconsumidor há, sem maiores discussões sobre a inexperiência ou premente necessidade deste,e,justamente, por conta de sua indiscutível vulnerabilidade no mercado de consumo, afigurada lesão.

Note-se, contudo, que o fornecedor não vulnerável também poderá alegar lesão em seu favor, mas deverá buscar subsídio no Código Civil, provando sua premente necessidade ou  inexperiência.

A lesão consta positivada como pratica abusiva também no art. 39, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor, quando este apregoa que é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, além de outras práticas, exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.

            E, pela terceira vez, a lesão é encontrada no art.51, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor, como cláusula abusiva, que se estabelece sejam nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos ou serviços que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em vantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé e com a equidade.

          Evidente que o Código de Defesa do Consumidor protege o consumidor e não outros sujeitos de direito que não se enquadrem nos conceitos jurídicos de consumidor e sofram excessiva onerosidade no momento da contratação, pois ele estabelece desde logo, no referido art. 6º inciso V, a modificação do contrato em via de exceção à nulidade contratual como direito básico apenas do consumidor – ator social sempre vulnerável, o que não acontece no parágrafo 2º do art. 157 do Código Civil.13

Dispõe o artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor em sua primeira parte que; “são direitos básicos do consumidor: […]V-a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais.”

12MARQUES, Cláudia Lima.Contratos no Código de Defesa do Consumidor.7 ed. São Paulo; Revistados Tribunais, 2014, p. 988: “… Efetivamente, o caráter de abusividade da cláusula é concomitante com aformação do contrato – logo, nenhuma ligação tem com as chamadas causas de revisão do contrato poratuação de fatos supervenientes ( regime diferenciado no CDC, por força do art. 6º, V,). A identificaçãodessa abusividade, exercício de aplicação/subsunção da lei e de interpretação dos contratos como um todoedaspráticascomerciais, éque pode serposterioràformaçãodocontrato.”

13MARQUES, Cláudia Lima.Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 1001 e 1002; “ …O consumidor é livre para requerer ou a modificação da cláusula e a manutenção do vínculo, ou a rescisão do contrato com o fim do vínculo e concomitantemente decretação seja da nulidade, se abusiva, ou a modificação se excessivamente onerosa a cláusula.”

       Se, durante a pandemia do Coronavírus um produto ou um serviço oferecido pelo fornecedor é vendido ao consumidor por um valor muito mais oneroso que o habitual, esse contrato poderá sofrer revisão judicial desde que se prove a excessiva onerosidade do bem consumido.14

2  –Apontamentos acerca da excessiva onerosidade posterior à contratação.

  

  • –A excessiva onerosidade posterior à contratação no Código Civil de 2002 e seu atrelamento à Teoria da Imprevisão.

 Outra hipótese de revisão contratual contida no Código Civil provém da onerosidade superveniente ao momento da contratação.

            Apesar de o Código Civil de 1916 não ter positivado a Teoria da Imprevisão pelos mesmos  motivos que não positivou a lesão, quais sejam, o excesso de valor atribuído à liberdade contratual atrelado ao voluntarismo, 15 o Código  Civil de 2002, em harmonia como princípio da socialidade, o fez.

           Hodiernamente, em vez de se permitir a manutenção todo tipo de pacto, equilibrado ou não, como ocorria no Estado Liberal, há, de modo diverso, o qual se coaduna com o Estado Social, intervencionismo na seara contratual a fim de proteger partes que, posteriormente ao ajuste, se tornem incapazes de cumprir os negócios pactuados nos termos inicialmente firmados, pois vigora nos dias atuais, em contratos entre pessoas em situação de igualdade, a teoria da imprevisão, que foi regulamentada em artigos do Código Civil de2002.

           Partindo da concepção de que pacta sunt servanda– os pactos fazem lei entre as partes só pode prevalecer rebus sic stantibus – estando assim as coisas, atualmente, é concebido que, se as circunstâncias iniciais se modificaram, há razão para que o negócio jurídico seja resolvido ou revisado, de modo que se assegure, tanto quanto possível, o valor da prestação.16

14BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Revisão Contratual no Código civil e no Código de Defesa doConsumidor,p. 104.

15BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Revisão Contratual no Código civil e no Código de Defesa do Consumidor,p.149-154.

1616BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Revisão Contratual no Código civil e no Código de Defesa do Consumidor, p. 1.

Com base na Teoria da Imprevisão o Código Civil de 2002 dá ao contratante excessivamente onerado o direito de pedir a revisão da prestação excessivamente onerosa na forma do art. 31717, que dispõe:

“Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte,de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”

Outra possibilidade para a parte prejudicada pela onerosidade ulterior à contratação é pedir a resolução do contrato na forma do art. 478, que dispõe:

“Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resoluçãodo contrato.”

            Observe que o art.479 do Código Civil dá à parte não prejudicada, ou seja, o réu na ação de resolução contratual, a possibilidade de se oferecer para modificar equitativamente as condições do contrato, promovendo a revisão. Dificilmente, a parte não prejudicada terá a atitude de requerer a revisão contratual. O referido art. 479 dispõe: “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.”18

            Convenha-se, ainda, que é o art.317 e não o art.478, aquele que mais se coaduna com o princípio do equilíbrio contratual abraçado pelo vigente Código Civil, pois considera suficiente a imprevisibilidade dos motivos supervenientes que deem ensejo à desproporção da prestação no momento de sua execução, para que o juiz corrija o contrato a pedido da parte prejudicada, de modo a assegurar o valor real a ser pago.

Compreende-se mais: o art. 478 peca pelo excesso de requisitos para se pedir, frise-se, a resolução contratual, menos adequada ao princípio da conservação dos negócios jurídicos19 do que a revisão contratual, impondo ainda ao prejudicado provar, além da excessiva onerosidade sofrida, a extrema vantagem auferida pela outra parte, em virtude de acontecimentos não só imprevisíveis, mas também extraordinários. Com tamanhas exigências, a revisão contratual dificilmente ocorrer se alicerçada no art. 478 do Código Civil.20

A título de exemplificação da necessária aplicação do art. 317 do Código Civil:

17BARLETTA, Fabiana Rodrigues.Revisão Contratual no Código civil e no Código de Defesa doConsumidor,p. 156e158,159.

18BARLETTA,FabianaRodrigues.RevisãoContratualnoCódigoCivileno CódigodeDefesadoConsumidor,p. 159.

19BARLETTA,FabianaRodrigues.RevisãoContratualnoCódigoCivileno CódigodeDefesadoConsumidor,p.154-157.

20BARLETTA,FabianaRodrigues.RevisãoContratualnoCódigoCivileno CódigodeDefesadoConsumidor,p. 159.

       Imagine-se uma sociedade empresária construtora que tenha se comprometido a vender imóveis comerciais no valor de um milhão de reais cada, a serem pagos parceladamente pelos comerciantes durante a construção, cujo piso, colocado também durante a construção, seria de mármore importado. Todavia, ulteriormente ao pactuado,ocorreu mundialmente a pandemia do coronavírus, algo imprevisível, que culminou na dificuldade da importação e na elevação de preço do valor do mármore importado para a construtora. O valor de um milhão tornou-se incompatível com o real preço gasto na construção.

         Caso fossem seguidos à risca os termos do contratado apesar dessa alteração de valores imprevisível no momento da pactuação, a construtora poderia não ter lucro algum como empreendimento e até mesmo sucumbir.

         A construtora, então, poderia se dirigir ao Poder Judiciário e pedir a modificação do conteúdo da sua prestação de construir imóveis com piso em mármore importado para a prestação de construir imóveis com piso em mármore nacional, em virtude da excessiva onerosidade ocorrida posteriormente ao ajuste. A revisão da prestação contratual que se tornou excessivamente onerosa é preferível para que não sejam frustradas as legítimas expectativas dos contraentes. A construtora poderia pedir também a resolução do contrato por excessiva onerosidade posterior ao ajuste, sempre com base na Teoria da Imprevisão, tal como regrada pelo art. 478 do Código Civil de 2002, que considera a prova da imprevisibilidade das circunstâncias posteriores ao ajuste necessária para que se proceda à modificação nas bases contratuais.

2.2   –A excessiva onerosidade posterior à contratação no Código de Defesa do Consumidor de 1990 e seu atrelamento à Teoria da Onerosidade Excessiva.

De modo diverso, para o consumidor, quando há onerosidade excessiva posterior à formação do contrato a prejudicá-lo, a lei dispensa a imprevisibilidade das circunstâncias ulteriores causadoras do desequilíbrio.

Problema fático dessa ordem no Brasil decorreu da extrema desvalorização do Real perante o Dólar em 1999. Bancos haviam feito do Dólar índice de correção de contratos de leasing de automóveis realizados por consumidores quando o valor desta moeda estava quase equiparado ao valor do Real. Tudo acertado entre as partes, o Real passou a valer muito menos que o Dólar no momento da execução do contrato, razão pela qual se tornou excessivamente oneroso para o consumidor continuar pagando as prestações reajustadas com base no valor da moeda americana.

Independentemente de tal situação poder ter sido prevista pelo consumidor ou não, coube a ele o direito de pedir a revisão contratual por excessiva onerosidade, na forma do art.6º, incisoV, segunda parte do Código de Defesa do Consumidor e o Poder Judiciário interveio no conteúdo do contrato indicando outro índice de reajuste que não o onerasseem demasia. Posteriormente, contudo, o STJ alterou seu entendimento e, no julgamento do Resp. 472.594-SP, decidiu pela distribuição igualitária de ônus entre o fornecedor e o consumidor.21

Preceitua o art. 6º, V , 2ª parte do Código de Defesa do consumidor que: “são direitos básicos do consumidor: V-a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão (das cláusulas contratuais referidas na primeira parte do inciso) em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.”

Se, na forma do Código de Defesa do Consumidor, tiver sido adquirido anteriormente à pandemia do coronavírus um produto ou um serviço por meio de um contrato duradouro, cuja prestação, no momento da execução do contrato, por conta dessa pandemia e de seus reflexos na economia do contrato, se torna excessivamente onerosapela situação superveniente, é possível a revisão contratual a fim de se reinstaurar o equilíbrio contratual.

Acentue-se que o Código de Defesa do Consumidor não adotou a Teoria daImprevisão e sim a Teoria da Onerosidade Excessiva, pois basta a configuração daexcessiva onerosidade posterior à contratação para se conceder ao consumidor a revisãodo contrato pela mudança nas circunstâncias da economia brasileira, não existentes no momento da confecção do contrato, independentemente da imprevisibilidade de tais mudanças.22

3-  Nota sobre a revisão contratual no Código de Processo Civil de 2015

 

 

21MARQUES, Cláudia Lima.Contratos no Código de Defesa do Consumidor,p. 1000,1001.

22MARQUES, Cláudia Lima.Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 999, verbis: “…O elemento autorizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo da engenharia contratual,que agora apresenta a menciona da onerosidade excessiva para o consumidor, resultado de simples fato superveniente, fato que não necessita de ser extraordinário, irresistível, fato que podia ser previsto e não foi.”[grifou-se]

Porém, embora extremamente importante para reinstaurar o equilíbrio contratualperdido, a revisão contratual, conforme tratada, dá ares de dificultada pelo atual CPC. A disposição do art. 330 do CPC de discriminar na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, além de quantificar o valor incontroverso do débito, sob pena de inépcia, na forma do art. 330, § 2º, parece ser uma tarefa muito árdua para o devedor que precisará, além do advogado, de um perito. Pode ser também impossível pagar o valor incontroverso na forma que dispõe o §3º do Art.330. Veja-se o disposto no Código de Processo Civil brasileiro.23

Art.330. Apetição inicial será indeferida quando:

  • 2º Nas ações que tenham por objeto a revisão de obrigação decorrente de empréstimo, de financiamento ou de alienação de bens, o autor terá de, sob pena de inépcia, discriminar na petição inicial, dentre as obrigações contratuais, aquelas que pretende controverter, além de quantificar o valor incontroverso do débito.
  • 3º Na hipótese do § 2º, o valor incontroverso deverá continuar a ser pago no tempo e modo contratados.

4-  A revisão contratual e a Lei da Liberdade Econômica de 2019

Em 2019 entrou em vigor a Lei da Liberdade Econômica. Essa Lei destoa do conteúdo principiológico do Código Civil e da Constituição da República ao tratar da revisão contratual. É que o Código Civil de 2002 foi cunhado sob os princípios da eticidade, da operabilidade e da socialidade. O princípio da socialidade relaciona-se coma função social dos institutos entre as partes contratantes, para que o contrato não seja meio de promover a chacina de um contraente sob o outro, mantendo o equilíbrio nas relações contratuais e também em relação à coletividade com seus objetivos de paz em sociedade. A função social do contrato, também “importa na imposição aos contratantes de deveres extracontratuais, socialmente relevantes e tutelados constitucionalmente.”

23TARTUCE, Flávio.A Medida Provisória 881/2019 e as Alterações do Código Civil – Primeira Parte:desconsideração da personalidade jurídica e função social do contrato.In: flaviotartuce.jusbrasil.com.br.Acesso em 05.04.2020, sobre a revisão contratual nos contratos civis “Não obstante a exigência de requisitos tradicionais para a a sua incidência, constantes dos arts. 317 e 478 da codificação, sabe-se que o Código de Processo Civil trouxe outros pressupostos para a revisão contratual, na linha do que vinha exigindo a jurisprudência do STJ, quais sejam a verossimilhança das alegações, a determinação das obrigações contratuais controversas e incontroversas e o depósito referente às últimas,sob pena de inépcia da   petição  inicial ( art. 330, §§ 2º e 3º). Na    minha   leitura ,   a  revisão   contratua l de   um   contrato   civi  l  já  se situa há tempos no campo da excepcionalidade.”

A Constituição da República em seu art.3º, inciso I, objetiva uma sociedade livre, justa e solidária, consagrando o princípio da solidariedade social que repercute no direito contratual.  A crise sanitária chegou ao Brasil sem que fosse esperada ao tempo de vários contratos preexistentes a ela. O assunto que só foi transmitido pela mídia no mês de janeiro de 2020 como algo sem maiores implicações, gerou, já em março, a afetação de toda a sociedade brasileira e das relações contratuais civis e empresariais em geral, pelo isolamento da convivência social, que possui evidentes repercussões na economia dos negócios nacionais e internacionais que possuam contraentes brasileiros.

Antes do advento da Lei da Liberdade Econômica de 2019, Lei nº13.874, de 2019 como se viu, o Código Civil possibilitava, sem maiores óbices, a utilização dos institutos jurídicos da lesão e da excessiva onerosidade posterior à contratação.Teoricamente, bastaria o convencimento do Judiciário ou do tribunal arbitral da ocorrência da desproporção das prestações no momento da formação do contrato por inexperiência ou premente necessidade; ou, da excessiva onerosidade posterior à contratação em virtude da imprevisibilidade dos motivos supervenientes que oneraram sobre maneira a prestação, para que os contratos pudessem ser revisados. E eles ainda podem e devem ser revisados para que sejam mantidos os objetivos sociais da República dos incisos II e III, de garantir o desenvolvimento nacional e de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

         Porém a Lei da Liberdade Econômica excepciona a revisão contratual. Dispõe o art.421, caput, do Código Civil: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e aexcepcionalidade da revisão contratual.”

Veja-se, portanto, que deve haver revisão contratual, embora em caráter excepcional, observados os limites da função social do contrato. Significa dizer que a função social do contrato, que produz efeitos entre as partes contraentes deve ser observada e, com isso, observado também o princípio do equilíbrio contratual recepcionado pelo Código Civil nas hipóteses de revisão dos contratos. Observado olimite da função social do contrato, nos efeitos produzidos pelo contrato na sociedade, cabe às partes contraentes “deveres extracontratuais, socialmente relevantes e tutelados constitucionalmente.” 24. Entre esses deveres está a colaboração contratual solidária e de boa-fé objetiva. Repactuar resta necessário para que não ocorra o caos social. Num momento de pandemia e isolamento, o descumprimento de um contrato por uma parte, pode gerar o descumprimento de outro contrato dessa referida parte com outra pessoa natural ou jurídica e assim por diante. Melhor será se as revisões contratuais levarem em conta as relações jurídicas de Direito Privado dos parceiros contratuais, para que os contratos possam ser preservados na medida em que forem equalizados, recuperando a estabilidade da economia no país em conformidade com as vicissitudes vividas.

Dispõe atualmente o emendado art. 421 do Código Civil:

“Art.421-A.Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:

I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução.

II – aalocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e

III-a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.”

 

           Segundo o inciso art. 421 em sua letra A, existe uma presunção de os contratos serem paritários e simétricos. Porém, já mostra que essa presunção pode ser afastada napresença de elementos concretos, como compreende-se, a pandemia do coronavírus. O inciso I considera que as partes negociantes podem estabelecer parâmetros objetivos e pressupostos para a revisão ou a resolução das cláusulas contratuais. Mas pode ser que as partes não tenham previsto essas hipóteses no contrato justamente por tais causas sobrevierem em virtude de caso fortuito ou força maior de dimensões avassaladoras.Quando o inciso II preceitua que a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada, pensa-se que os ricos definidos devem considerar situações de normalidade na economia. Mesmo considerando que o inciso II se refere também aos fatos imprevisíveis na formação dos contratos não há previsão legal de não os revisar se as novas condições sinistras repercutirem em toda a economia de um país. O caos causado pelo coronavírus tem sido equiparado a um estado de guerra. A cláusula rebus sic stantibus e a teoria da imprevisão, antigas e de origem medieval, foram soluções criadas também para situações de guerra, ordinárias nesse período da história. Finalmente o inciso III preconiza que a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. Acredita-se que a limitação a que se refere o inciso seja a da própria função social do contrato, para que ele seja exequível e as partes alcancem suas expectativas. Dizer que só haverá revisão contratual maneira excepcional é mais um requisito que não afasta as disposições dos artigos 317, 478 e 479 do Código Civil. Porém se é permitido que haja revisão de maneira excepcional é omesmo que dizer que, provada a excepcionalidade das circunstâncias ocorridas, pode haver revisão contratual.

24 TEPEDINO,Gustavo.Temas de Direito Civil.Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.149.

Por fim, o Poder Judiciário e o juízo arbitral têm condições de interpretar a lei conforme o caso concreto colocado em sua apreciação. Apenas as circunstâncias concretas podem definir uma interpretação e um julgamento.

       Na sequência, o art. 422 do Código Civil consagra o princípio da eticidade no momento da conclusão do contrato e no de sua execução. De boa-fé objetiva, que significa lealdade e consideração com parceiro contratual, há de ser observado também o princípio do equilíbrio contratual na interpretação dos casos que surgirem. A boa-fé objetiva é também uma ferramenta para o alcance do princípio do equilíbrio contratual. Assim dispõe o art. 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”

        No que toca às relações de consumo a Lei da Liberdade Econômica não fez alterações na revisão contratual por lesão, também denominada cláusula contratual abusiva, disposta na formação do contrato e tratada de maneira objetiva pela existência de “prestações desproporcionais”; nem por excessiva onerosidade posterior à contratação, que, na lei que protege o vulnerável, independe da imprevisibilidade das circunstâncias supervenientes.

Sem maiores delongas continuam vigentes as duas hipóteses de revisão dos contratos do art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor.

5-   O Projeto de Lei Federal das Relações Jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)


         Está em tramitação no Senado Federal o projeto de lei que dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid 19).

         Ao tratar da resilição, da resolução e da revisão dos contratos o projeto diz em seu art. 7º: “Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.”

           Parece, pelo disposto, que o Projeto nega os fatosporque, evidentemente o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário, se ocorrerem no momento dessa crise sanitária inesperada e furiosa, decorrendo dela, merecem um olhar equitativo na medida de cada caso concreto. Ninguém estava preparado para isso! É ético e de acordo com o princípio da solidariedade constitucional que as contratações afetadas por esse acontecimento sim, imprevisível, sejam passíveis de resolução ou revisão. Pergunta-se:se a pandemia mundial não for considerada imprevisível, inclusive em seus efeitos econômico-contratuais no Brasil, o que se poderia chamar de imprevisível para justificar a revisão ou a resolução de um contrato que se tornou excessivamente oneroso e desproporcional para uma das partes? Felizmente o Projeto não toca no art. 317 do Código Civil, que prevê a regra geral de revisão contratual, que, aliás, parece mais benéfica para a parte prejudicada caso, em vez da resolução, era necessite de uma revisão contratual e da conservação do contrato.

           Dispõe o §1° do art. 7º: “As regras sobre revisão contratual previstas no Código de Defesa do Consumidor e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991 não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo.” Nesse ponto o projeto não apresenta retrocesso social, porque, sabidamente, o Código de Defesa do Consumidor possui um ator social vulnerável, que nem necessita da figura da imprevisibilidade dos fatos que geraram o desequilíbrio contratual para ter seu contrato revisado.

         Dispõe o § 2° do art. 7º: “Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários.” Critica-se essa elaboração pois devem se abraçadas, segundo a teoria do finalismo aprofundado,25as situações, mesmo que não propriamente de consumo, que possuam uma parte vulnerável diante da outra.

25MARQUES, Cláudia Lima.Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p.342-404.

Conclusão.

         O advento do Código de Defesa do Consumidor de 1990 e do Código Civil de 2002 interpretados à luz dos mandamentos constitucionais que objetivam uma sociedade solidária, na forma de seu art. 3º, inciso I, não se coaduna com a ideia de um contrato imutável quando ele já se apresenta de início, ou acaba por desandarem seu curso, deveras oneroso e desequilibrado.

Se os pactos continuam a obrigar as partes, os contornos dessa obrigação podem ser modificados em caso de excessiva onerosidade na sua formação ou em razão de circunstâncias supervenientes.

             É que, se o princípio da autonomia privada e o da força obrigatória do contrato se mantêm presentes, o da liberdade contratual tenha sito recentemente exaltado, há, no Direito Contratual Contemporâneo, outros princípios que temperam os primeiros e propugnam a conservação do contrato e o equilíbrio nas relações obrigacionais. Tratam-se dos princípios da conservação do contrato, do equilíbrio contratual, da boa-fé objetiva e da função social do contrato.

        Reviravoltas na economia envolvendo vários continentes em decorrência de uma crise sanitária repercutem no ambiente contratual, que deve ser espaço de renegociação entre as partes, de boa-fé objetiva, que, aliás, é a regra de conduta entre os contratantes.Se não houver acordo entre as partes, a bem do equilíbrio contratual e da realização das justas expectativas dos contraentes com a revisão consensual do contrato, o Judiciário ou o tribunal arbitral possuem caminhos para revisá-lo.

        De todo modo, o que parece certo é que, nesse cenário, estarão, pelas circunstâncias notórias que o acompanha, vários acordos com cláusulas contratuais abusivas, lesivas. E há no ordenamento jurídico brasileiro hipótese de revisão contratual por lesão objetiva Código de Defesa do Consumidor que requer apenas a prova da desproporcionalidade das prestações.

          Segundo o Código Civil, podem ser utilizadas as hipóteses de revisão ou resolução contratual previstas a depender do caso concreto, considerando a Lei da Liberdade Econômica de 2019 na interpretação das relações jurídicas paritárias de Direito Civil que não forem de consumo.

O colapso do coronavírus, caso fortuito ou de força maior que assolou o Brasil e o mundo era totalmente imprevisto e imprevisível. Para as relações jurídicas paritárias, reguladas pelo Código Civil de 2002, pode ser aplicada a Teoria da Imprevisão, apesar de ter que se observar a Lei da Liberdade Econômica de 2019.

     Nas relações de consumo duradouras, afetadas pela inesperada pandemia, será direito do consumidor buscar a revisão por excessiva onerosidade posterior à contratação independente de se provar a imprevisibilidade das circunstâncias posteriores. É que o Código de Defesa do Consumidor dispensa, em favor do consumidor, a imprevisibilidade do fato ulterior ao ajuste, bastando, para a revisão do contrato de consumo, a prova da excessiva onerosidade posterior àcontratação em face doconsumidor.

No Código de Defesa do Consumidor, em nenhuma hipótese, os intérpretes levarão em consideração a Lei da Liberdade Econômica, pois ela não incide sob as relações de consumo.

Referências Bibliográficas

  

BARLETTA, Fabiana Rodrigues. Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. 2 ed.Indaiatuba:Foco,2020.

CARDOSO, Vladimir Mucury. Revisão contratual e lesão:à luz do Código Civil de 2002 e da Constituição da República. 1 ed.Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

COGLIOLO,Pietro.Lacosidettaclausola‘rebussicstantibus’elateoriadei pressuposti.In: Scrittivarii di dirittoprivato. 2 ed. Torino: UTET,1910.

CORDEIRO,António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil.Coimbra: Almedina, 1997.

FONSECA,Arnoldo Medeiros da. Caso fortuito e teoria da imprevisão. 3ed. RiodeJaneiro:RevistaForense,1958.

FRANTZ, Laura Coradini. Revisão dos Contratos.1ed.SãoPaulo: Saraiva,2007.

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Comentários ao Novo Código Civil:Dos Defeitos do Negócio Jurídico ao Final doLivro III. Rio de Janeiro:Forense, 2003.

OSTI,Giuseppe. Clausolarebussicstantibus.In:NovissimoDigestoItaliano.Torino:UTET, v.3. 1957.

PEREIRA,Caio Mário da Silva. Lesão nos Contratos. 6ed. Rio de Janeiro: Forense,1999.

LARENZ,Karl. Base del negocio juridico y cumplimento de los contratos. Tradução de:Carlos Fernandes Rodrigues. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado.[19–],s.d..LINS, Jair. A cláusula ‘rebus sic stantibus’. In: Revista Forense. Belo Horizonte. v. XL.Janeiro/Julho/1923,p. 512.

MAIA, Paulo Carneiro. Cláusula rebus sic stantibus. In: Enciclopédia Saraiva de Direito. Coordenador: Limongi França. São Paulo. v. 15. 1977.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 7 ed. São Paulo; Revistados Tribunais, 2014.

NETO, Antonio José de Mattos. A cláusula ‘rebus sic stantibus’ e a cláusula de escala móvel. In: RevistadeDireitoCivil. São Paulo. n.63.Janeiro/Março/1993.

SCHEREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo:Saraiva Educação, 2018.

SIDOU, José Maria Othon. Rebus sic stantibus.In: Enciclopédia Saraiva de Direito. Coordenador: Limongi França. São Paulo. v. 63. 1977.

SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. A teoria da base do negócio jurídico no direito brasileiro.In: Revistados Tribunais. São Paulo. v. 655.Maio/1990.

SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: do código civil ao código do consumidor. Rio de Janeiro, Forense, 1998.

TARTUCE, Flávio.A Medida Provisória 881/2019 e as Alterações do Código Civil –Primeira Parte: desconsideração da personalidade jurídica e função social do contrato.In:flaviotartuce.jusbrasil.com.br.Acesso em 05.04.2020.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009WINDSCHEID, Bernardo.Diritto delle Pandette. Tradução italiana de: Carlo Fadda ePaoloEmílio Bensa. v. 1.Torino:[sn]. 1930.

Palavras Chaves

Revisão contratual; lesão; teoria da imprevisão; excessiva onerosidade.