ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL – O BRASIL NA ESFERA INTERNACIONAL

Resumo

O artigo traça um panorama geral da evolução e da situação do acolhimento institucional no Brasil, conforme relatórios submetidos pelo país ao Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas a partir do ano de 2003. O artigo também trata das observações e recomendações feitas pelo referido Comitê, considerando a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil.

Artigo

ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL – O BRASIL NA ESFERA INTERNACIONAL

Beatriz Machado Gonçalves [1]

Resumo:

O artigo traça um panorama geral da evolução e da situação do acolhimento institucional no Brasil, conforme relatórios submetidos pelo país ao Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas a partir do ano de 2003. O artigo também trata das observações e recomendações feitas pelo referido Comitê, considerando a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil.

Palavras-chave: Acolhimento institucional; ECA; CDC; ONU

O acolhimento institucional de crianças e adolescentes, previsto no inciso VII do artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n. 8069/90), é, conforme o parágrafo primeiro do mesmo artigo, medida protetiva provisória e excepcional, a ser utilizada como “forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade.”.

A disposição legal é lógica, na medida em que a institucionalização, por sua própria natureza, importa em violação do direito constitucional do direito da criança e do adolescente à convivência familiar. Sendo excepcional, é aplicável apenas a casos extremos de ameaça ou violação de direitos, quando outras medidas protetivas não bastem para colocar a criança ou o adolescente a salvo de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão.

O Estado, portanto, deve empenhar esforços sérios e adequados para que a reintegração ou a colocação em família substituta de fato se materialize, fazendo com que a institucionalização não seja mais do que um período de transição, para que essa não se torne uma terceira via.

A fim de completarmos o pano de fundo do tema a ser tratado neste artigo, cabe aqui ressaltarmos alguns dos princípios e dos dispositivos legais que regem a aplicação das medidas protetivas previstas no ECA e notadamente relevantes no que tange ao acolhimento institucional.

O primeiro, repetido à exaustão quando tratamos de crianças e adolescentes, é sua condição de sujeitos de direitos, em outras palavras, detentores de direitos previstos não só no ECA, mas também na Constituição Federal, na Convenção sobre os Direitos da Criança – CDC e em outras leis esparsas.

Há que se ter em conta que crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento e, por isso, aplica-se o princípio da responsabilidade primária e solidária do poder público (leia-se das três esferas de governo), pela plena efetivação dos direitos que lhes são assegurados.

São igualmente importantes os princípios da proteção integral e prioritária e do interesse superior da criança e do adolescente. A prioridade absoluta conferida à criança e ao adolescente implica que tenham preferência, em qualquer circunstância, no recebimento de proteção e ajuda; no uso de serviços públicos ou relevantes para o público; na elaboração e execução de políticas públicas; na alocação de recursos públicos.

Em conjunto, esses princípios não deixam margem a interpretações ou dúvidas quanto ao dever do Estado trabalhar em prol da garantia de seus direitos, aí incluídos o direito à vida, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária e à proteção.

Outros princípios, que devemos mencionar, são o da responsabilidade parental e o da prevalência da família. Para que a família, seja ela biológica ou substituta, possa bem cumprir o seu papel essencial ao desenvolvimento e à formação de crianças e adolescentes, é evidente que também merece proteção especial, o que a Constituição Federal reconhece em seu artigo 226.

Lembremos, ainda, o princípio da intervenção mínima, ou seja, o Estado deverá intervir apenas quando e na medida indispensável à efetiva promoção de direitos e à proteção da criança e do adolescente.

Finalmente, destacamos o artigo 227 da Constituição Federal que, com cristalina clareza, diz que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão.

O ECA está alinhado à Constituição Federal, dispondo em seu artigo 4º que:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

O ECA, a fim de afastar qualquer dúvida sobre o tema dos direitos humanos, esclarece, ainda, em seu artigo 3º, que:

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

E em seu artigo 15, determina que:

A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.

Mas o ECA, atento à relevância do tema, ainda detalha o direito à liberdade em seu artigo 16, esclarecendo que compreende os seguintes aspectos: ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários; opinião e expressão, crença e culto religioso; brincar, praticar esportes e divertir-se; participar da vida familiar e comunitária; participar da vida política; e buscar refúgio, auxílio e orientação.

Quanto ao direito ao respeito, o artigo 17 do ECA explica que:

[…] consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.”

Finalmente, no seu artigo 18 o ECA determina (sem qualquer exceção) que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.”.

O ECA está assim em perfeito alinhamento com a perspectiva de que, no que tange a direitos humanos, são indivisíveis os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais das crianças e dos adolescentes, e, assim, devem ser garantidos de forma completa, integral. Em outras palavras, o desrespeito a qualquer direito implica a violação de todos, posto que interligados e necessários à garantia um do outro.

A pergunta essencial, portanto, é se estes três atores família, sociedade e Estado estão cumprindo esses seus deveres tão relevantes. O acolhimento institucional no Brasil, como apresentado no cenário internacional, é uma medida protetiva efetiva? São devidamente observados os direitos das crianças e adolescentes acolhidos ou são elas vítimas de novo abandono e negligência por parte do Estado? Essa medida é de fato transitória (há um esforço para reintegração ou colocação familiar) ou, por ineficiência, falta de estrutura ou de vontade política, há o risco de que perdure até que os jovens tutelados pelo Estado atinjam a maioridade? As crianças e os adolescentes acolhidos são devidamente preparados no ambiente institucional? A medida protetiva do acolhimento institucional está disponível para todos que dela precisam?

Infelizmente os dados disponíveis (poucos relatórios e esclarecimentos encaminhados ao Comitê para os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas a partir de 2003) indicam que a resposta para todas essas perguntas é não, um retumbante não. As evidências apontam para uma falha da sociedade, da família e do Estado no cumprimento de seus deveres em relação àqueles naturalmente vulneráveis pela sua condição de crianças e adolescentes – condição agravada no caso daqueles que estão em risco e precisam do acolhimento institucional para sua proteção e garantia de direitos. Notamos também que essa falha impacta negativamente não só crianças e adolescentes, mas também a comunidade e a sociedade como um todo, já que sofreremos todos juntos as consequências adversas do mal causado às crianças e adolescentes.

Após a Constituição Federal de 1988, novas leis para a proteção de crianças e adolescentes foram incorporadas ao nosso sistema normativo, contendo disposições relevantes quanto aos direitos daqueles que tenham se afastado de suas famílias. Merecem destaque Convenção sobre os Direitos da Criança e o ECA, ambos de 1990, além de tratados internacionais sobre direitos humanos, que o Brasil ratificou e internalizou.

A CDC, aprovada pela Resolução n. 44/25 de 20 de novembro de 1989 da Assembleia Geral das Nações Unidas, entrou em vigor no dia 2 de setembro de 1990, sendo rapidamente ratificada e internalizada pelo Brasil, através do n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. A importância atribuída à CDC é expressa pelo fato de que se tornou o documento sobre direitos humanos mais amplamente ratificado ao redor do mundo – são 196 Estados Partes. Apenas os Estados Unidos da América a assinaram, mas ainda não a ratificaram e internalizaram.

Logo no início da CDC, o parágrafo 1º do Artigo 9º, trata da possibilidade de acolhimento de crianças (aqueles menores de 18 anos) como alternativa excepcional:

  1. Os Estados Partes deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade dos mesmos, exceto quando, sujeita à revisão judicial, as autoridades competentes determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos legais cabíveis, que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal determinação pode ser necessária em casos específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus tratos ou descuido por parte de seus pais ou quando estes vivem separados e uma decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança.

Mais tarde, nos parágrafos 1º e 2º do Artigo 19, no parágrafo 1º do Artigo 20 e no Artigo 39, a CDC volta a tratar do tema em mais detalhes:

Artigo 19

  1. Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela
  2. Essas medidas de proteção deveriam incluir, conforme apropriado, procedimentos eficazes para a elaboração de programas sociais capazes de proporcionar uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, bem como para outras formas de prevenção, para a identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior dos casos acima mencionados de maus tratos à criança e, conforme o caso, para a intervenção judiciária.

Artigo 20

  1. 1. As crianças privadas temporária ou permanentemente do seu meio familiar, ou cujo interesse maior exija que não permaneçam nesse meio, terão direito à proteção e assistência especiais do Estado.

Artigo 39

Os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para estimular a recuperação física e psicológica e a reintegração social de toda criança vítima de qualquer forma de abandono, exploração ou abuso; tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; ou conflitos armados. Essa recuperação e reintegração serão efetuadas em ambiente que estimule a saúde, o respeito próprio e a dignidade da criança.

Considerando que o entendimento da criança e do adolescente como sujeitos de direito era ainda uma novidade no sistema normativo global e que se fazia (e se faz) necessário acompanhar os progressos realizados pelos Estados Partes no cumprimento de suas obrigações, a CDC tratou da criação do Comitê para os Direitos da Criança (o “Comitê”), a quem os Estados Partes devem apresentar “relatórios sobre as medidas que tenham adotado com vistas a tornar efetivos os direitos reconhecidos na convenção e sobre os progressos alcançados no desempenho desses direitos” (parágrafo 1 do artigo 44). Com base em referidos relatórios, o Comitê poderá formular sugestões e recomendações gerais a serem encaminhadas aos Estados Partes. Os documentos são disponibilizados ao público pelas Organização das Nações Unidas através do sítio https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CRC/Pages/ReportingProcedure.aspx.

Pois bem, em que pese o Brasil ter ratificado e internalizado a CDC já em novembro de 1990, apenas em 2003 encaminhou seu Relatório Inicial ao Comitê, portanto, com mais de dez anos de atraso. Esse documento consolida também os dois relatórios periódicos subsequentes, cobrindo, portanto, o período de 1991 a 2002. No parágrafo 30 do Relatório Inicial, o Brasil destaca a proteção especial a que fazem jus crianças e adolescentes:

[…] os direitos especiais reconhecidos às crianças e adolescentes partem de sua condição particular de seres humanos em desenvolvimento. Como consequência, o Estado e a sociedade devem assegurar, através de leis ou outros meios, toda oportunidade e facilidade para permitir que eles desenvolvam integralmente suas capacidades física, mental, moral, espiritual e social, assegurando que isso ocorra em condições de liberdade e dignidade” (Tradução livre).

Porém, no que respeita crianças negligenciadas e instituições de acolhimento (ou “children’s homes”, conforme nomenclatura usada no Relatório Inicial), o documento é sucinto, vago e até mesmo confuso. Ainda assim, o que se apreende dos parágrafos 235 a 241 do Relatório Inicial, é que o Brasil já reconhecia que crianças privadas de um ambiente familiar apresentam problemas de desenvolvimento e constituem um desafio para a sociedade e para o Governo, na medida em que se tornam um sério problema psicossocial. O Relatório Inicial destacou a situação de bebês institucionalizados, cujos problemas de desenvolvimento (interação inadequada com o ambiente) se dariam pela falta de afeto e separação prematura de sua mãe ou responsável, explicando que os cuidados na instituição nunca seriam substitutos maternais satisfatórios. Também destacou que o cuidado coletivo de crianças pequenas, separadas prematuramente de suas famílias, muito frequentemente produz consequências irreversíveis ao seu desenvolvimento psicoafetivo, dado que a falta de cuidado afetivo compromete profundamente suas estruturas psíquicas. Considerando esse reconhecimento da ineficácia do sistema de acolhimento, o Relatório Inicial ressaltou as medidas tomadas pelo Governo para ampliar a rede de assistência social às famílias, com foco em políticas básicas (o entendimento era de que esse investimento resultaria na redução da necessidade de institucionalização). Apesar da falta de estudo consolidado sobre o número e a situação das crianças institucionalizadas, o Relatório Inicial mencionou experiências de sucesso como instituições reduzidas e concebidas para substituir apenas a função parental, com as demais atividades relacionadas a crianças e adolescentes (mencionados pela primeira vez nessa seção do Relatório Inicial) sendo fornecidas por serviços comunitários de educação, saúde, esporte e outros.

Um ponto positivo para o qual o Relatório Inicial, no parágrafo 263, chama atenção, é que a legislação brasileira inovou ao estabelecer que organizações governamentais e não governamentais responsáveis por instituições de acolhimento devem ser fiscalizadas pelo Judiciário, pelo Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares (artigo 95 do ECA). Portanto, atribui-se ao Juiz da Infância, ao Ministério Público e à sociedade civil (por meio dos Conselhos Tutelares) o papel e o dever de zelar para que as crianças e adolescentes recebam cuidados adequados. Essa fiscalização, conforme esclarece o parágrafo 265 do Relatório Inicial, tem como objetivo:

Observar as condições encontradas nos lares de crianças, os programas pedagógico, psicológico e de cuidados médicos, e também a capacitação da equipe, com vistas a prover um cuidado integral à criança e ao adolescente temporária ou permanentemente privado da vida familiar.  (Tradução livre).

Em seguida, o parágrafo 266 do Relatório Inicial observa que diversas penalidades (previstas no artigo 97 do ECA) serão aplicáveis às instituições que apresentarem irregularidades, incluindo, de acordo com a gravidade das infrações ou sua prática reiterada, o afastamento de dirigentes e o fechamento da instituição (no caso de entidades governamentais) e a suspensão do repasse de verbas públicas e a cassação do registro (no caso de entidades não-governamentais).

Abrimos aqui parênteses para mencionar o parágrafo 2º do artigo 97 do ECA, com redação dada pela Lei n. 12.010/09, que determina que, caracterizado o descumprimento dos princípios norteadores das atividades de proteção, as pessoas jurídicas de direito público e as organizações não governamentais responderão pelos danos que seus agentes causarem às crianças e aos adolescentes.

            Finalmente, no parágrafo 410 do Relatório Inicial, o Brasil reconheceu que à época (2003) não se sabia quantos abrigos existiam no país e tampouco o número de crianças que precisavam dessa medida protetiva, mas não a recebiam. Essa falta de dados era alarmante, especialmente se considerarmos que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 1999, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, mencionada no Relatório Inicial, indicou que 41,7% das crianças de 0 a 6 anos pertenciam a famílias cuja renda era inferior a meio salário mínimo, que 38,7% das crianças entre 7 e 14 anos e 30,8% dos adolescentes de 15 a 17 anos estavam na mesma situação (conforme parágrafo 420 e Tabela 13 do Relatório Inicial).

Em novembro de 2004, o Comitê apresentou suas observações (as “Observações) ao Relatório Inicial, manifestando satisfação com a Constituição Federal e com o ECA, que incluiu os direitos previstos na CDC e contemplou a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. Entretanto, o Comitê enfatizou sua preocupação com a desigualdades dramáticas baseadas em etnia, classe social, gênero e localização geográfica, que dificultam o progresso no sentido de realizar os direitos das crianças e adolescentes previstos na CDC.

O Brasil encaminhou, em 8 de dezembro de 2014, um novo relatório (o “Relatório Consolidado”) pelo qual não só combinou os relatórios periódicos 2, 3, e 4 (período de 2003 a 2007), mas também respondeu às Observações do Comitê. Assim, passaremos a analisar em conjunto as Observações e o Relatório Consolidado.

As Observações contêm as recomendações do Comitê para que o Brasil avance na garantia de direitos e na proteção das crianças e adolescentes. Considerando o tema do acolhimento institucional, merecem destaque as recomendações a seguir.

O Comitê encorajou o Brasil a elaborar um plano de ação que cobrisse todas as áreas de direitos da criança e do adolescente, assegurando recursos humanos e financeiros suficientes para sua implementação.

O Brasil, a fim de reduzir o número de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento, mencionou no Relatório Consolidado a implementação de uma Agenda Social em 2007, que incluía o projeto “Caminho pra Casa”, para incentivar famílias substitutas e o cuidado comunitário. Ainda sobre o mesmo tópico, o Relatório Consolidado informa que já em 2006 foi aprovado o Plano Nacional de Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à convivência Familiar e Comunitária. Esse plano apresentava propostas relativas a quatro eixos estratégicos: (1) avaliação da situação e sistemas de informação; (2) serviços de cuidado; (3) melhoria da legislação e dos padrões regulatórios; (4) mobilização, articulação e participação social.

O Relatório Consolidado destacou que o Plano Nacional articulava ações estratégicas, como programas de suporte às famílias, a reorganização das instituições de acolhimento e o fortalecimento de medidas que facilitassem a adoção de crianças e adolescentes cujos perfis fossem menos desejados pelos habilitados à adoção.

Quanto ao monitoramento e à avaliação do progresso na implementação da CDC, o Comitê manifestou sua preocupação com a ausência de um mecanismo independente e com autoridade para receber e endereçar demandas individuais, inclusive de crianças. Recomendou o estabelecimento de referido mecanismo.

Sobre esse aspecto, merecem destaque as notas contidas no Relatório Consolidado sobre os Conselhos Tutelares, criados a partir do ECA, como órgãos permanentes e autônomos em nível municipal, encarregados de supervisionar a implementação dos direitos das crianças e dos adolescentes, com as seguintes atribuições: receber relatórios sobre violação de direitos, dar orientações e aplicar medidas protetivas relativas a crianças, adolescentes e suas famílias. O Relatório Consolidado deixou claro o número insuficiente de Conselhos Tutelares então existentes, sua falta de estrutura, sua dificuldade para realizar o trabalho, a falta de reconhecimento e cooperação dos órgãos públicos (especialmente das autoridades municipais) e, notadamente, a insuficiência da rede de cuidado para a família e para a criança que necessita de medidas protetivas (esse, o maior desafio).

Recomendou ainda que o Brasil dê especial atenção à previsão orçamentária, priorizando a implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais das crianças e adolescentes e utilizando, nos termos do artigo 4º da CDC, “o máximo de recursos disponíveis e, quando necessário, dentro de um quadro de cooperação internacional.”

Quanto à cooperação do Estado com organizações não governamentais (“ONGs”), o Comitê a destacou como positiva, mas com potencial para fortalecimento, especialmente por meio do envolvimento das ONGs em todos os estágios da implementação da CDC.

Nesse ponto, o Relatório Consolidado destacou o trabalho do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, criado já em 1991, na intensificação das negociações e dos processos decisórios relacionados a questões estratégicas, influenciando nas agendas e estabelecendo parcerias através de acordos de cooperação com as ONGs. Aqui vale observar que recentemente, em 5 de setembro de 2019, pelo Decreto n. 10.003/19, todos os Conselheiros do CONANDA foram dispensados de sua função e até o momento em que esse artigo é escrito, nenhum novo Conselheiro foi nomeado – em suma, o CONANDA, essencial para a proteção de crianças e adolescentes, está paralisado.

Em relação ao princípio do interesse superior da criança, integrado à Constituição Federal e ao ECA, o Comitê manifestou preocupação com sua integração sistemática à implementação de políticas e programas que afetem crianças e adolescentes. Por isso, o Comitê recomendou que tal princípio seja não só devidamente refletido na legislação, nas políticas e nos programas aplicáveis às crianças e aos adolescentes, mas também em decisões judiciais e administrativas que as afetem. Reiterou a recomendação de treinamento de profissionais e foi além, recomendando também a conscientização do público em geral sobre referido princípio.

Quanto a essas recomendações, no Relatório Consolidado, o Brasil focou especialmente nas iniciativas de treinamento. O interessante a notar é que, em que pese se falar no treinamento e capacitação de conselheiros, operadores do sistema legal, policiais, operadores do sistema socio educacional e outros atores relevantes, não houve nenhuma menção específica aos educadores e demais profissionais de instituições de acolhimento.

No que se refere especificamente a crianças e adolescentes acolhidos, o Comitê manifestou preocupação com sua quantidade e com a precariedade de sua condição de vida. A importância atribuída à questão pelo Comitê é evidente nas suas várias recomendações, quais sejam: (a) a realização de estudos amplos para avaliar a situação das crianças e adolescentes em acolhimento institucional, incluindo suas condições de vida e os serviços que lhes são providos; (b) o desenvolvimento de programas e políticas públicas preventivos ao acolhimento institucional, incluindo, dentre outros, apoio e orientação às famílias vulneráveis, campanhas de conscientização e desenvolvimento de medidas alternativas como o acolhimento familiar; (c) a tomada de todas as medidas necessárias à reintegração familiar (com a institucionalização como último recurso); e (d) a determinação de padrões claros para as instituições existentes, com a revisão periódica da situação das crianças.

No Relatório Consolidado, o Brasil mencionou uma pesquisa nacional realizada em 2003 para apurar a situação de crianças e adolescentes acolhidos. A pesquisa indicou a necessidade de fortalecimento de políticas para assegurar o princípio da natureza excepcional e provisória do acolhimento. Um ponto relevante levantado pela pesquisa é que, apesar da falta de recursos materiais não constituir uma razão para a perda ou suspensão do pátrio poder, 24% dos casos de acolhimento foram motivados pela pobreza e que essa era a maior dificuldade para a reintegração das crianças e adolescentes. Outro aspecto importante evidenciado pela pesquisa foi que apenas 7% das instituições de acolhimento analisadas disponibilizavam todos os serviços necessários (por exemplo, educação fundamental, treinamento vocacional para adolescentes, cuidados de saúde e odontológicos, atividades culturais, esportivas e recreativas e assistência jurídica). A pesquisa também indicou que muitas das crianças estavam institucionalizadas por períodos mais longos do que os esperados. Além disso, a pesquisa mostrou que a maior parte das instituições de acolhimento eram não governamentais, orientadas por valores religiosos, dirigias por voluntários e fundamentalmente dependentes de seus próprios recursos. Em suma, a pesquisa indicou a necessidade de reorganizar a prática assistencial nas instituições de acolhimento e de fortalecimento das políticas de apoio às famílias.

O Comitê se manifestou profundamente preocupado com o alto número de crianças e adolescentes vítimas de violência, abuso e negligência, recomendando (a) a realização de campanhas preventivas que informem o público sobre as consequências negativas dos maus tratos a crianças e adolescentes; (b) a tomada das medidas necessárias à prevenção do abuso e da negligência de crianças e adolescentes; (c) em adição aos procedimentos existentes, estabelecer procedimentos sensíveis à condição da criança e do adolescente e mecanismos preventivos para receber, monitorar e investigar denúncias, tendo em consideração o interesse superior da criança e do adolescente; (d) endereçar e superar barreiras socioculturais que inibam as vítimas de procurar assistência; e (e) procurar orientação com instituições como a UNICEF e a Organização Mundial da Saúde.

O Relatório Consolidado, no que tange às recomendações acima, disse que o Governo Federal vinha promovendo campanhas sistemáticas de conscientização sobre a violência contra crianças e adolescentes e que algumas dessas iniciativas eram realizadas em parceria com o Judiciário, o Legislativo, segmentos de negócio, agências e organizações institucionais e setores da sociedade civil,

O Comitê manifestou uma grave preocupação com o número significativo de crianças e adolescentes de rua, com sua vulnerabilidade a assassinatos e a várias formas de violência (incluindo tortura, abuso e exploração sexual), com a falta de uma estratégia ampla e sistemática para endereçar essa situação e proteger as crianças e com os registros deficientes de crianças desaparecidas. Consequentemente recomendou uma estratégia que objetive a redução e a prevenção do fenômeno das crianças e adolescentes de rua e também a garantia de nutrição, abrigo, cuidados de saúde e oportunidades educacionais para que essas crianças e adolescentes possam se desenvolver plenamente e ter proteção e assistência adequadas.

O Relatório Adicional, no que toca às recomendações acima, foi absolutamente sucinto, quase melancólico. Mencionou a implementação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, que teria dado prioridade à população de rua e favorecido a reversão do fenômeno das crianças e adolescentes de rua através da aplicação da proteção social básica e da proteção social especial. Mencionou, ainda, a necessidade de mapeamento de uma pesquisa nacional sobre a população de crianças e de adolescentes de rua, que seria um dos objetivos da Agenda Social e da Criança a ser realizada até 2011 (vale observar que esse prazo já havia expirado quando o Relatório Adicional foi apresentado, em 2014).

Além das notas acima, o Brasil relatou que no período coberto pelo Relatório Consolidado (2003 a 2007) foram registradas melhorias no padrão de vida das crianças e adolescentes no Brasil, com a redução da pobreza e da mortalidade infantil, com uma queda no percentual de crianças mal nutridas, com um aumento geral nas taxas de escolaridade e de matrícula nas escolas públicas, progresso na eliminação do trabalho infantil e melhorias no acesso das comunidades mais pobres à água limpa, saneamento básico e luz.

O Brasil também destacou o reforço das políticas de proteção à criança e ao adolescente, com a expansão da rede de Conselhos Tutelares, a criação de novos canais para denúncia, a criação de sistemas de justiça especializada e de segurança pública. Tais medidas seriam promissoras em termos de erradicação do trabalho infantil e da exploração sexual.

Após o Relatório Adicional, em março de 2015, o Comitê solicitou mais alguns esclarecimentos, que foram apresentados pelo Brasil, levando à emissão das Observações Conclusivas do Comité, em outubro do mesmo ano.

Nas referidas Observações Conclusivas, o Comitê recomendou que o Brasil tomasse as medidas necessárias para endereçar as recomendações de 2004 que ainda não tinham sido implementadas, destacando, especificamente, a necessidade de monitoramento do cumprimento da CDC por meio de organismo independente e também a necessidade de treinamento daqueles envolvidos na garantia de direitos e na proteção de crianças e de adolescentes, incluindo os profissionais de instituições de acolhimento.

Vale enfatizar que o Comitê lamentou a falta de informações sobre objetivos e prazos, especialmente no que toca à situação de crianças e adolescentes de rua e deficientes.

Quanto ao sistema de cuidado alternativo às crianças privadas da vida em família, o Comitê reconheceu progressos em relação à adoção de padrões mínimos. Entretanto, manifestou-se ainda preocupado com a contínua institucionalização de crianças e adolescentes com base na vulnerabilidade socioeconômica de suas famílias. Aprofundando-se nessa questão, ressaltou (a) a falta de programas de acolhimento familiar em vários estados e também o fato de que representam um percentual baixo dos serviços de cuidado alternativo; (b) os altos níveis de violência e abuso de crianças e adolescentes institucionalizados; e (c) a falta de supervisão das instituições privadas pelo governo, posto que frequentemente não cumprem com os padrões mínimos e não contam com pessoal devidamente qualificado.

Para que o Brasil supere as deficiências acima mencionadas, o Comitê recomendou (a) a implementação de programas de acolhimento familiar em todos os estados, com a garantia de suporte adequado às famílias acolhedoras; (b) a responsabilização daqueles que abusem de crianças e adolescentes em ambientes de cuidado alternativo, assegurando às vítimas canais para denúncia, acesso a aconselhamento, cuidados médicos e outras medidas assistenciais para sua recuperação; (c) o estabelecimento de um mecanismo de monitoramento sistemático das instituições privadas de acolhimento, para que cumpram com os padrões mínimos de qualidade; e (d) a implementação de um critério de seleção baseado em competência para os profissionais envolvidos no cuidado de crianças e adolescentes, assim como seu treinamento, suporte a avaliação.

Não consta do sítio das Nações Unidas nenhuma manifestação do Brasil desde então.

Vale comentar que o Instituto Interamericano del Niño, la Niña e Adolescentes – INN, organismo especializado da Organização dos Estados Americanos – OEA, compila periodicamente as recomendações do Comitê aos relatórios apresentados pelos Estados da região, consolidando os dados também por Estado e por tema, a partir da ratificação da CDC. Um dos temas é o “Cuidado Alternativo – Direito de Toda Criança e Adolescente à Família.” Na última versão da compilação, de 2018, disponível no sítio www.iin.oea.org, o INN destaca as Observações Conclusivas e as recomendações acima mencionadas.

Resta claro no ambiente internacional que o Brasil falha na garantia do direito das crianças e adolescentes à convivência familiar e falha mais uma vez por não promover cuidados alternativos eficazes. Pelo contrário, as deficiências do acolhimento institucional são mais uma violação grave dos direitos das crianças e dos adolescentes perpetrada pelo Estado que, em lugar de protegê-los, novamente os abandona e negligencia.

Referências:

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988.

BRASIL, Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990: promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Brasília, DF, 1990.

BRASIL, Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990: dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF, 1990.

BRASIL, Decreto n. 10.003, de 4 de setemro de 2019: altera o Decreto n. 9.579/18 para dispor sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília, DF, 2019.

_______ Initial Reports of States Parties Due in 1992 – BRAZIL, de 17 de dezembro de 2003, Ref. CRC/C/3/Add.65: Relatório Inicial submetido pelo Brasil ao Comitê dos Direitos das Crianças da Nações Unidas.

_______ Concluding Observations: Brazil, de 3 de novembro de 2004, Ref. CRC/C/15/Add.241: Observações Conclusivas do Comitê dos Direitos das Crianças da Nações Unidas sobre o Relatório Inicial do Brasil.

_______ Combined second and fourth periodic reports of States parties due in 2007- Brazil, de 8 de dezembro de 2014, Ref. CRC/C/BRA/2-4: Relatórios Periódicos de 2-4 submetidos pelo Brasil ao Comitê dos Direitos das Crianças da Nações Unidas.

_______ List of issues in relation to the combined second and fourth periodic reports of Brazil, de 10 de março de 2015, Ref. CRC/C/BRA/Q/2-4: Lista de Questões sobre os Relatórios Periódicos de 2-4 submetidos pelo Brasil ao Comitê dos Direitos das Crianças da Nações Unidas.

_______ Concluding observations on the combined second to fourth periodic reports of Brazil, de 30 de outubro de 2015, Ref. CRC/C/BRA/CO/2-4: Observações Conclusivas do Comitê dos Direitos das Crianças da Nações Unidas sobre os Relatórios Periódicos de 2-4 submetidos pelo Brasil ao Comitê dos Direitos das Crianças da Nações Unidas.

_______ Recopilación de Recomendaciones del Comité de los Derechos del Niño a Informes Nacionales de Estados de La Región, versão de 2018: Compilação das recomendações do Comitê dos Direitos da Criança a relatórios nacionais estados da região.

Notas:

[1] Advogada e Coordenadora do Projeto #Rolê do Instituto Rede Abrigo

 

Palavras Chaves

Acolhimento institucional; ECA; CDC; ONU