AS HIPÓTESES NUMERUS CLAUSUS DE DEMOLIÇÕES ADMINISTRATIVAS NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO

Artigo

AS HIPÓTESES NUMERUS CLAUSUS DE DEMOLIÇÕES ADMINISTRATIVAS NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO

 João Renato Lima Paulon

O exercício do poder de polícia e a função social limitadora

 A Lei Orgânica do Município (LOM) do Rio de Janeiro atribuiu ao Executivo Municipal o poder de licenciar e o de polícia para fiscalizar obras[1].

A função social da propriedade e da posse prevista na Constituição advém como um importante balizador da forma como será gerido o espaço geográfico:

Assim, analisar as funções sociais da posse e da propriedade e sua relação com o direito à moradia é relevante porque demonstra um raciocínio limitador do poder de polícia. E, aqui, não está a defender em supressão, mas, de fato, em restrição do exercício desse poder para o caso da presença de situações específicas, cuja violação possa ensejar diretamente em prejuízo à dignidade da pessoa humana, à comunidade cooperativa, à prevalência dos direitos humanos e, por último, na consecução de uma sociedade livre, justa e solidária.[2]

A demolição irregular é nítida prática de gentrificação[3] na medida que as edificações demolidas irão propiciar a mudança dos grupos sociais ali existentes, e onde sai a comunidade de baixa renda e entram moradores das camadas mais ricas, das quais o art. 429 da LOM não as privilegiou.

Competência legislativa exclusiva e indelegável sobre leis complementares e matéria de desenvolvimento urbano, licenciamento e fiscalização de obras

 A LOM claramente deixou as matérias de desenvolvimento urbano no rol não taxativo[4] de leis complementares.

A Edilidade detém, conforme o art. 75, §1º, IV da LOM, a atribuição indelegável de elaborar as Leis Complementares, incluindo a legislação sobre licenciamento e fiscalização de obras em geral:

Art. 75. As leis delegadas serão elaboradas pelo Prefeito, que deverá solicitar delegação à Câmara Municipal.

  • Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva (grifos nossos) da Câmara Municipal (grifos nossos), a matéria reservada a lei complementar nem a legislação sobre:

I – matéria tributária; (…)

IV – desenvolvimento urbano, zoneamento e edificações, uso e parcelamento do solo e licenciamento e fiscalização de obras em geral; (…)

Diretrizes finalísticas das normas infralegais municipais sobre desenvolvimento, licenciamento e fiscalização de obras

A finalidade do arcabouço legislativo infraconstitucional municipal é atender as diretrizes LOM concernente ao desenvolvimento urbano:  urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, edificação do uso do solo, in verbis:

Art. 429 A política de desenvolvimento urbano respeitará os seguintes preceitos:

II – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;

III – ordenação e controle do uso do solo de modo a evitar:

  1. a) a ociosidade, subutilização ou não utilização do solo edificável;

VI – urbanização, regularização fundiária e titulação das áreas faveladas e de baixa renda, sem remoção dos moradores, salvo quando as condições básicas da área ocupada imponham risco de vida aos seus habitantes, hipótese em que serão seguidas as seguintes regras:

  1. a) laudo técnico do órgão responsável;
  2. b) participação da comunidade interessada e das entidades representativas na análise e definição das soluções;
  3. c) assentamento em localidades próximas dos locais da moradia ou do trabalho, se necessário o remanejamento;

O gestor não pode desviar-se das diretrizes urbanísticas ao interpretar e aplicar as normas infralegais.

 Demolições na LOM e na Lei Complementar n.º 111/2011 que dispõe sobre a Política Urbana Municipal

 O art. 443 da LOM, institui as sanções administrativas de interdição, embargo ou demolição, nos termos de legislação pertinente (complementar).

Art. 443 Qualquer construção ou atividade de urbanização executada sem autorização ou licença é sujeita à interdição, embargo ou demolição, nos termos da legislação pertinente (grifos nossos), excetuadas aquelas localizadas nas áreas de regularização fundiária (grifos nossos) conforme previsto em legislação específica.

Resta claro que o art. 443 da LOM não é autoaplicável, e deixou para a Lei Complementar, isto é, aquelas que complementam a Lei Orgânica, a sua normatização, com exceção a hipótese de demolição da LOM é para resguardar o livre acesso às praias:

Art. 68 – O Poder Executivo providenciará a demolição de todas as edificações existentes que impeçam o exercício do direito previsto no art. 313, promovendo junto ao Poder Judiciário a nulidade dos atos que venham autorizar construções em desacordo com a legislação.

Art. 313 – O Município garantirá o livre acesso de todos às praias.

A Lei Complementar n.º 111/2011 que dispõe sobre a política urbana municipal e o art. 60 da LC n.º 111/2011 previu a demolição como uma sanção através do Código de Licenciamento e Fiscalização de Obras Públicas que ainda não foi aprovado pela Câmara Municipal:

Art. 60. O Código de Licenciamento e Fiscalização de Obras Públicas ou Privadas disporá sobre:

  • 1º O Poder Executivo aplicará as sanções de interdição, embargo, demolição ou multa, na forma e valores disciplinados na regulamentação da Lei.

O Código de Licenciamento e Fiscalização de Obras Públicas (Projeto de Lei Complementar n.º 32/2013) possui uma única hipótese de demolição administrativa do se for será a situação de desrespeito ao embargo (art. 151 do PLC 32/2013)[5].

No caso o art. 62, §2 da LC n.º 111/2019 previu a aplicação da pena de demolição apenas em situações de emergência, isto é, um risco qualificado pelo perigo grave e iminente e nos demais casos de risco a determinação de providências para eliminação do risco, in verbis:

Art. 62. O Município poderá, a qualquer tempo, realizar vistoria administrativa, para apuração de responsabilidades, constatação de irregularidades ou para, preventivamente, determinar providências para eliminação de risco ou ameaça à integridade física de pessoas ou bens.

  • 1º O responsável pelo risco ou ameaça não poderá obter licença para quaisquer outras obras enquanto não tomar as providências necessárias à eliminação do risco e quitar a sua dívida.
  • 2º O Município poderá assumir e executar obras, retomar posse, demolir ou tomar qualquer providência para garantia dos interesses coletivos, a preservação da segurança e do patrimônio público, em situações de emergência, independentemente de prévio processo administrativo ou de autorização judicial, inscrevendo em dívida ativa o total dos custos da sua intervenção.

O legislador municipal, criou uma cláusula de exceção através do §2º, para aplicação das providências preventivas constantes no caput do art. 62 da LC 111/2011.

Portanto, apenas em situações de emergência, justifica-se a execução obras, retomada posse, ou qualquer providência que melhor se ajuste ao caso, realizável de plano, sem prévio processo (administrativo ou judicial), e diante dos evidentes custos para afastar aquela situação de perigo grave e iminente, se inscreve na Dívida Pública os custos da intervenção para cobrança a posteriori dos responsáveis.

Portanto, as situações não emergenciais, não resultam em uma intervenção imediata, isto é, decorrem do art. 62 caput e dependem de processo administrativo ou judicial, podendo o Poder Executivo determinar quais as providências necessárias para eliminação de risco ou ameaça à integridade física de pessoas ou bens é mais adequada ao caso concreto.

O fluxograma abaixo pode-se resumir o procedimento:

Figura 1 – Organograma Vistoria Administrativa

O gestor não tem discricionariedade para aplicação da sanção de demolição, pois esta decorre da existência de um laudo emitido pela Defesa Civil e/ou da Fundação Instituto de Geotécnica do Município do Rio de Janeiro (art. 3º do  Decreto nº 42.992/2017) que demonstre a situação de emergência.

O princípio da autoexecutoriedade dos atos administrativos, — encontrado na demolição —, possui severas restrições pela própria Lei Complementar n.º 111/2011, para que uma medida tão grave e irreversível não seja instrumento fraudatório do princípio da finalidade que é a legalização e urbanização (art. 429, inciso VI e VII da LOM) e ao trabalho e à livre iniciativa (arts. 1º e 6º da CRFB).

O art. 429, inciso VI da Lei Orgânica Municipal, prevê que quando a área ocupada estiver sob risco, haverá remoção dos moradores, atendendo-se os requisitos de laudo técnico do órgão responsável, participação da comunidade interessada e das entidades representativas na análise e definição das soluções e assentamento em localidades próximas da moradia ou do trabalho, se necessário o remanejamento.

 

As medidas administrativas presentes no Decreto 8.427/1989 contra as obras irregulares e a oportunidade de regularização

 A existência de obras irregulares ou em desacordo com as licenças estão sujeitas a embargo ou multa enquanto perdurar a irregularidade ou até o seu desfazimento conforme o Decreto nº 8.427/1989:

Art. 1º Serão passíveis de embargo e/ou de multa, renováveis periodicamente, enquanto perdurar a irregularidade ou até o seu desfazimento, as obras ou edificações que se enquadrem em um ou mais dos seguintes aspectos: (…)

Art. 2º As obras que estejam sendo executadas sem licença ou em desacordo com a licença concedida estarão sujeitas às seguintes penalidades:

I – embargo/notificação;

II – multas.

O Decreto nº 8.427/1989 é claramente compatível com a LOM e com a LC 111/2011, e, portanto,  foi recepcionada de forma que não agride os preceitos materiais das normas hierarquicamente superiores.

O Decreto 8.427/1989 prevê a possibilidade do interessado no prazo de 30 (trinta) dias requerer a demolição (a demolição precisa também ser licenciada) ou o licenciamento da obra em execução:

Art. 3º O embargo/notificação, feito por edital, ordenará a paralisação imediata das obras determinando ao interessado que, no prazo de 30 (trinta) dias, regularizem-nas requerendo sua demolição ou o licenciamento da obra, que não poderá ser protocolado caso a obra se enquadre nos itens I a VI do art. 10.

O requerimento de licenciamento da obra com projeto elidirá a multa e outras penalidades, de forma que nem a concorrência de diversas irregularidades gera para a administração o direito de demolição:

Art. 5º Feito o embargo, será aplicada multa de até vinte VR ou VC, renovável semanalmente, caso não seja apresentado projeto ou demolidas as obras, no prazo determinado no edital, sem prejuízo da aplicação de outras penalidades[6]. (Redação dada pelo Decreto nº 20.058/2001)

O mesmo Decreto 8.427/1989 prevê também a possibilidade do interessado no prazo de 30 (trinta) dias requerer a demolição (também é necessário licenciar) ou o licenciamento da obra concluída:

Art. 6º Os proprietários das obras concluídas, executadas sem licença ou em desacordo com a licença concedida serão notificados para que no prazo de 30 (trinta) dias regularizem-nas requerendo sua demolição ou o licenciamento da obra, que não poderão ser protocolado caso a obra se enquadre nos itens I a VI do art. 1º.

As penalidades tanto para obras não regularizadas se adequam as Leis posteriores e superiores, tanto o Lei Orgânica Municipal quanto a LC 111/2011, visto que não sancionam com demolição aquelas obras ou construções que por meras irregularidades já se consolidaram.

Apenas as obras executadas em logradouros públicos resultam no com o restabelecimento da situação anterior:

Art. 9º As obras executadas em logradouros ou em próprios municipais sujeitar-se-ão igualmente a embargo e/ou notificação, visando sua paralisação e a desocupação imediata do local, com o restabelecimento da situação anterior.

O Decreto 23.296/2003 e os avanços ilegais sobre matéria de competência exclusiva da Câmara Municipal

 O Decreto 23.296/2003 criou a heterodoxa figura do “decreto que regulamenta outro decreto”, no caso o acima citado 8.247/89 que convivia muito bem com a Lei Orgânica e a Lei Complementar nº 111/2011 e em plena compatibilidade caminhou mal em diversos aspectos, pois se sua função seria regulamentar dispositivo da Lei Orgânica, o certo seria propor uma Lei Complementar, e como tal é de competência exclusiva e indelegável da Edilidade (art. 75 §1º, IV da LOM).

No caso do Decreto 8.245/1989 admite-se a sua recepção no que não contrariar a Lei Orgânica Municipal só foi promulgada (art. 29 da CRFB) em 1990, e, portanto, um ano após a promulgação da Carta Magna de 1988 por força do art. 11 dos Atos e Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)[7].

No caso do Decreto 23.296/2003, a questão é bem diferente, pois claramente a competência da Câmara Municipal foi usurpada:

Art. 1º Ficam sujeitas à aplicação das multas previstas neste Decreto quaisquer obras, construídas ou que estejam sendo executadas, sem licença ou em desacordo com a licença que:

I – excedam o gabarito e/ou altura máxima permitida;

II – invadam área pública;

III – contrariem outras determinações da legislação vigente acarretando impacto ambiental ou de vizinhança significativo.

A primeira ilegalidade que se constata é que o poder regulamentador avançou claramente sobre matérias legislativas indelegáveis e não obstante criou sanções, claramente ilegais como a demolição administrativa fora da prevista pela própria LOM e pela LC 111/2011:

Art. 2º As providências e penalidades aplicáveis às obras irregulares, em execução ou executadas, descritas no art. 1º, são:

I – multa no valor de, no mínimo, um VR ou VC;

II – embargo/notificação ordenando a imediata paralisação da obra e determinando ao interessado que, no prazo de trinta dias, requeira licença, para regularização da obra em curso.

III – notificação para que no prazo de trinta dias o responsável requeira regularização, para a obra sem licença.

IV – edital de demolição/notificação ordenando a paralisação e a demolição imediata das referidas obras, sob pena de demolição administrativa a ser executada pela Prefeitura Municipal, nos termos do art. 443 da Lei Orgânica do Município, cobrando os custos do infrator, para as obras embargadas cujo embargo esteja sendo desrespeitado.

V – demolição administrativa com posterior cobrança dos custos ao infrator.

Parágrafo único. Do edital de embargo ou notificação constará advertência sobre as implicações administrativas e criminais decorrentes do seu eventual desrespeito.

Os incisos I, II, III e IV do Decreto 23.296/2003 já estavam concebidos no arts. 3º, 4º, 5º, 6º e 7º do Decreto 8.427/89, porém o Decreto 23.296/2003 criou uma medida administrativa de demolição para além dos casos previstos no art. 443 da LOM, regulamentado pela LC 111/2011, opondo-se materialmente às normas hierarquicamente superiores.

O art. 5º do aludido Decreto ilegal previu também a demolição por progressão de multas semanais, no art. 6º por razão de indeferimento do pedido de licença e no art. 9º em razão de descumprimento do embargo:

Art. 5º Feito o embargo e não paralisadas imediatamente as obras, serão aplicadas, em progressão, multas semanais no valor de dois à vinte VR ou VC, sem prejuízo da possibilidade de demolição administrativa.

Art. 6º Indeferido o pedido de licença, o responsável terá trinta dias de prazo para proceder à demolição da obra, a partir do qual passará a incidir a multa prevista no art. 8º do Decreto nº 8.427, de 1989.

Art. 9º As obras irregulares poderão ser objeto de demolição administrativa, praticada pela autoridade municipal, vencidos os prazos mencionados neste Decreto, ou a qualquer tempo, se estiver ocorrendo desrespeito ao embargo.

Essa gradação pelo mero descumprimento de um ônus administrativo violou a competência exclusiva da Câmara Municipal, e a prova é que existem sanções parecidas no PLC 32/2013.

O Decreto 42.292/2017 que institui arbitrariamente a demolição por “razão de impossibilidade de legalização” ou que apresentem risco de desabamento

 O Decreto nº 42.992 de 4 de abril de 2017 criou o Sistema de Controle das Obras e Ocupações Irregulares (SICOI) no território municipal e estabelece no parágrafo único do art. 3º os órgãos competentes para elaboração de laudo sobre o risco:

Art. 3º As demolições das construções e edificações que apresentem risco de desabamento ou que sejam consideradas ilegalizáveis serão realizadas de acordo com o estabelecido neste Decreto e na legislação municipal cabível.

Parágrafo único. Compete à Subsecretaria de Defesa Civil e/ou Fundação Instituto de Geotécnica do Município do Rio de Janeiro identificar as construções e edificações que apresentem risco de desabamento, bem como apontar aquelas cuja integridade estrutural não possa ser atestada.

A única parte válida e legítima deste art. 3º Decreto é sobre a organização do Poder Executivo Municipal de organizar órgão para execução de uma tarefa (Subsecretaria de Defesa Civil e/ou Fundação Instituto de Geotécnica do Município do Rio de Janeiro),  visto que a matéria de organização administrativa é competência do Poder Executivo  na forma do art. 107, inciso VI, alínea “a” da LOM[8].

A Lei Orgânica Municipal e a LC 111/2011 também não instituíram a hipótese de demolição de edificação aquelas cuja integridade estrutural não possa ser atestada de forma que invadiu a competência da Edilidade.

A falsificação das diretrizes de política urbana, e portanto, o desvio de finalidade com o Decreto nº 42.992/2017  também é evidente pois mantém todas aquelas construções em áreas carentes (art. 1º §2º da Lei 1.006/1987), faveladas e de baixa renda (art. 429, VI da LOM), — logo protegidas pela diretrizes de política urbana (art. 429, caput) —, sob a nódoa do “ilegalizável”, especialmente quando exerce o poder totalitário de polícia administrativa ao decidir o que é e o que não é legalizável sem que haja o devido processo legal, ou ao eleger que tipo de integridade estrutural não possa ser atestada sem motivação específica, justamente daquelas edificações existentes nas áreas protegidas citadas.

Trata-se de uma norma guarda-chuva para deixar qualquer edificação, sob a espada de Dâmocles. A espada de Dâmocles (pendurada por um fio de rabo de cavalo sobre a cabeça) é uma alusão frequentemente usada para remeter a este conto, representando a insegurança contra aqueles com grande poder (devido à possibilidade deste poder lhes ser exercido de repente, simbolizado que o fio do rabo de cavalo que segura a espada pode ser rompido a qualquer momento).

Ademais, edificação cuja integridade estrutural não possa ser testada está longe de ser uma situação de emergência, além do que cabe ampla discussão sobre a possibilidade de atestar a integridade estrutural de uma edificação, de forma que a aplicação da parte final do Parágrafo Único do art. 3º, ou é ilegal ou deve ser devidamente ponderada resguardando-se o acumulo científico de conhecimentos que geraram métodos, a exemplo da NBR NM 78:96, bem como pela apresentação superveniente de projeto arquitetônico.

Desta forma, o Decreto 42.992/2017 esvaziou o art. 62, caput da LC 111/2011 que prevê que o Poder Executivo preventivamente, determine providências para eliminação de risco ou ameaça à integridade física de pessoas ou bens, visto que eleva as edificações sem projeto arquitetônico ao status de impossibilidade de atestar a integridade estrutural e portanto, o que geraria uma suspeita artificial de alto risco “idêntico” a situação de emergência (art. 62, §2º da LC 111/2011) a justificar a medida demolitória impedindo que os interessados regularizem suas edificações, seja pelas formas ordinárias como o Decreto n.º 8.427/1989ou pelas leis de Mais Valia (Lei Complementar 192/2018) que estabelece condições especiais para o licenciamento e a legalização de construções até então consideradas “ilegalizáveis”, mediante a cobrança de contrapartida (art. 2º, §5º da LC 192/2018).

O Decreto 44.737/2018 que instituiu demolição administrativa se não pago o DARM da Contrapartida

 O Decreto 44.737/2018 dispõe de forma inválida sobre demolição administrativa se não pago o DARM da Contrapartida:

Art. 14. A cobrança de créditos administrativos, oriundos dos Laudos de Contrapartida elaborados de acordo com o artigo 9.º da Lei Complementar nº 192, de 18 de julho de 2018, é da competência exclusiva da Coordenadoria de Arrecadação Urbanística da Secretaria Municipal de Urbanismo – U/CAU.

Parágrafo único. No caso de não retirada do DARM-RIO, sem que tenha havido a interposição de recurso voluntário ao laudo ou, na hipótese de julgamento do recurso por decisão definitiva na via administrativa, o Município providenciará a notificação do proprietário ou responsável, a qualquer título, para promover a demolição imediata das obras irregulares, sob pena de demolição administrativa a ser executada pelos órgãos municipais competentes, com posterior cobrança dos custos pelo infrator, sem prejuízo das demais penalidades previstas nas legislações específicas.

Observa-se mais uma vez que o Poder Executivo avançou sobre matéria de competência exclusiva, e, portanto, indelegável, da Câmara Municipal (art. 75, §1º, IV da LOM), ademais, a cobrança de taxas e tributos é pela execução fiscal o que em tese viola dispositivos tributários por ser medida desproporcional como já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[9].

Considerações Finais

 

De muito pouco valeria o estado obedecer à lei, se pudesse manipulá-la seja na elaboração, seja na aplicação.

Diritto Costituzionale, 3.ª ed., Milão

Se a Lei Orgânica instituiu a demolição para acesso as praias (art. 68 da LOM) e para situações emergenciais (art. 62§ 2º da LC 111/2011),  tornam-se incompatíveis os abundantes Decretos entre 2003 e 2018: Decreto 23.296/2003, Decreto 42.292/2017 e Decreto 44.737/2018 que instituíram demolições de construções que acarretam impacto ambiental ou de vizinhança significativo (art. 1º e incisos c/c art. 2º, IV do Decreto 23.296/2003), demolição por edificações ilegalizáveis e daquelas cuja integridade estrutural não possa ser atestada (art. 3º do Decreto 42.292/2017) e por fim demolição pelo não pagamento de DARM-RJ pelas contrapartidas da Lei Complementar 192/2018 (art. 14, parágrafo único do Decreto 44.737/2018) pois violam do ponto de vista formal o art. 75, §1º, I, IV e VI da LOM, e do material, o art. 6º da CRFB, o art. 68 c/c 313, o art. 443, e art. 429 da LOM, bem como o art. 60, o art. 62 caput e o art. 62, §2º da LC 111/2011 e a LC 192/2018 especialmente o art. 1º, 2º e §5º que estabelece condições especiais para o licenciamento e a legalização de construções até então consideradas “ilegalizáveis” mediante a cobrança de contrapartida.

Os Decretos a disposição da Câmara Municipal legislam matérias de desenvolvimento urbano, zoneamento e edificações, uso e parcelamento do solo e licenciamento e fiscalização de obras em geral, tornando-se um vício formal que leva a ilegitimidade dos Decretos supramencionados.

Tal situação deve sofrer o controle hierárquico-normativo por via difusa visto que a compreensão de José Afonso da Silva: “as leis locais contrárias à lei orgânica serão ilegítimas e inválidas”, sendo que tal controle será procedido pelo Judiciário por via indireta, ante a falta de previsão normativa da “possibilidade de ação direta de ilegitimidade da lei local em face da lei orgânica do Município”[10].

Desta forma, os atos contrários a Constituição e à lei são inoperantes e não produzem qualquer efeito jurídico entre as partes tornando-se passíveis de invalidação pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário. Por serem nulos, não geram direitos, nem produzem situações jurídicas definitivas para o beneficiário da ilegalidade ou da inconstitucionalidade, porque como já decidiu o STF não se pode tirar consequências legais de atos ilegais” (RDA 51/127).

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro já se manifestou[11] contrariamente a legalidade de decretos do Poder Executivo Municipal.

Impossível, diante de elementos jurídicos concretos admitir a eficácia dos efeitos das demolições administrativas, diante de normas proibitivas ao Poder Executivo municipal em decretá-las, seja porque ofendem normas hierárquicas superiores subvertendo valores sociais, diretrizes de política urbana, intenções de entes políticos que editam normas com muita cautela e quórum de maioria absoluta, para evitar pulsões autoritárias, seja porque foram emanadas de autoridade incompetente.

Notas:

[1] Art. 30 Compete ao Município:

XVIII – exercer seu poder de polícia urbanística especialmente quanto a:

  1. a) controle dos loteamentos;
  2. b) licenciamento e fiscalização de obras em geral, incluídas as obras públicas e as obras de bens imóveis e as instalações de outros entes federativos e de seus órgãos civis e militares;

[2] A Limitação Do Poder De Polícia Pela Função Social: Uma Análise A Partir Do Recurso Especial N. 1.217.234-PB Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura | vol. 11/2019 | p. 63 – 87 | Out – Dez / 2019 | DTR201941135

[3] Gentrificação. Vem de gentry, uma expressão inglesa que designa pessoas ricas, ligadas à nobreza. O termo surgiu nos anos 60, em Londres, quando vários gentriers migraram para um bairro que, até então, abrigava a classe trabalhadora. Este movimento disparou o preço imobiliário do lugar, acabando por “expulsar” os antigos moradores para acomodar confortavelmente os novos donos do pedaço. O evento foi chamado de gentrification, que numa tradução literal, poderia ser entendida como o processo de enobrecimento, aburguesamento ou elitização de uma área.

Um processo de gentrificação possui bastante semelhança com um projeto de revitalização urbana, com a diferença que a revitalização pode ocorrer em qualquer lugar da cidade e normalmente está ligada a uma demanda social bastante específica, como reformar uma pracinha de bairro abandonada, promovendo nova iluminação, jardinagem, bancos… E quem se beneficia da obra são os moradores do entorno e, por tabela, a cidade toda.

A gentrificação, por sua vez, se apoia nesse mesmo discurso de “obras que beneficiam a todos”, mas não motivada pelo interesse público, e sim pelo interesse privado.

É exatamente nesta diferença entre o potencial e o real, que os investidores imobiliários enxergam a grande oportunidade para lucrar muito investindo pouco. Mas para que tudo isso se concretize, é necessário que haja um outro projeto, o de revitalização urbana, e este, sim, é bancado com dinheiro público, ou através de concessões públicas. Os governantes também costumam enxergar no processo de gentrificação uma grande oportunidade: de justificar uma obra, se apoiar no interesse privado da especulação imobiliária para promover propaganda política de boa gestão. (fonte: http://www.courb.org/pt/o-que-e-gentrificacao-e-por-que-voce-deveria-se-preocupar-com-isso/)

[4] Art. 70 As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta, em dois turnos, com intervalo de quarenta e oito horas, e receberão numeração distinta das leis ordinárias.

Parágrafo Único – São leis complementares, entre outras previstas nesta Lei Orgânica (grifos nossos):

V – o plano-diretor da Cidade;

VIII – o código de licenciamento e fiscalização;

IX – o código de obras e edificações.

[5] Art. 151 As obras irregulares poderão ser objeto de demolição administrativa, com posterior cobrança dos custos ao infrator, praticada pelo órgão municipal competente, vencidos os prazos mencionados nesta Lei Complementar, ou a qualquer tempo, se estiver ocorrendo desrespeito ao embargo.

[6] O Decreto 8.427/1989 quando se refere a “outras penalidades”, não deixou a cargo do Poder Executivo, e nem poderia, visto que a tais matérias são exclusivamente de competência da Câmara Municipal (art. 75 §1º, IV da LOM)

[7] Art. 11. Cada Assembleia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os princípios desta.

Parágrafo único. Promulgada a Constituição do Estado, caberá à Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na Constituição Estadual.

[8] Art. 107 Compete privativamente ao Prefeito:

VI – dispor, mediante decreto, sobre:

  1. a) organização e funcionamento da administração municipal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos, ressalvado o disposto no art. 134, § 5º;

[9] AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO TRIBUTÁRIO. Indeferimento de inscrição no CAD-ICMS. Em análise perfunctória, o indeferimento da inscrição dos recorridos não mostra proporcionalidade com o descumprimento de obrigação tributária acessória, já que impede o desempenho das atividades econômicas da impetrante, causando-lhe prejuízos incompatíveis com a finalidade do bem jurídico protegido pela norma, prejudicando a geração de empregos, movimentação da economia, e a própria arrecadação do Estado, já em grave crise econômica e fiscal. Em observância ao Princípio da Preservação da Empresa, Livre Iniciativa e Livre Concorrência, vislumbra-se, em juízo preliminar, a presença do fumus boni iuris que motivou o deferimento da liminar no juízo agravado. DESPROVIMENTO DO RECURSO. TJ/RJ – 0024112-67.2019.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO 1ª Ementa Des(a). PETERSON BARROSO SIMÃO – Julgamento: 07/08/2019 – TERCEIRA CÂMARA CÍVEL

[10] O Município na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989 (p.14)

[11] ACÓRDÃO APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. PUBLICIDADE. INSTALAÇÃO DE LETREIRO. LEGALIDADE. 1) O impetrante postula a concessão da segurança, com o objetivo de obter autorização para instalar letreiro indicativo da sua denominação (PETRO RIO), no topo do edifício no qual mantém a sua sede, localizada na Praia de Botafogo nº 370. 2) O entendimento predominante neste e. Tribunal é no sentido da ilegalidade do Decreto nº 35.507/12, o qual disciplina a veiculação e exibição de publicidade e cria a zona de preservação paisagística e ambiental – ZPPA – 1, vez que a matéria é de competência exclusiva do Poder Legislativo Municipal. 3) O aludido Decreto, ao proibir a colocação do letreiro sob análise veicula restrição a direitos, o que desborda da atividade meramente regulamentar. 3) Ademais, por força da ordem concedida no Mandado de Segurança Coletivo nº 0024628-34.2012.8.19.0000, as empresas de publicidade substituídas processualmente pelo respectivo Sindicato – SEPEX/RJ, observada a legislação vigente sobre o tema, poderão exibir anúncios dos seus clientes, sem que sejam alcançadas pela vedação preconizada, por si só, no mencionado Decreto. 4) Assim, o indeferimento do pleito da impetrante, tão somente com fundamento no aludido ato regulamentar, viola os princípios da legalidade, da isonomia e da segurança jurídica. 5) Recurso ao qual se dá provimento.
TJ/RJ Apelação Cível nº 0365053-22.2015.8.19.0001 Apelante : Petro Rio S.A. Apelado : Município do Rio de Janeiro Relator : Desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes — Julgamento: 16/10/2018 – QUINTA CÂMARA CÍVEL

Apelação cível. Exibição de publicidade em fachada de edifício. Zoneamento urbano. Competência indelegável do poder legislativo municipal. Precedentes deste órgão julgador. De acordo com a Lei Orgânica do Município, as matérias que tratam de zoneamento urbano e proteção do bem paisagístico da cidade são matérias reservadas à lei, cabendo ao Poder Executivo apenas a sua regulamentação. A ilegalidade do Decreto Municipal n° 35.507/12 já foi reconhecida por ocasião do julgamento proferido no Mandado de Segurança Coletivo nº 00024628-34.2012.8.19.0000. Recurso provido. Reforma da sentença.

0191674-45.2012.8.19.0001 – APELAÇÃO  Des(a). FERDINALDO DO NASCIMENTO – Julgamento: 29/11/2016 – DÉCIMA NONA CÂMARA CÍVEL