ATUAÇÃO DA AUDITORIA FISCAL NA DEFESA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES CONTRA O TRABALHO INFANTIL

Resumo

O estudo discute o papel da fiscalização no combate ao trabalho infantil e as estratégias de enfrentamento ao labor precoce, por meio do emprego das técnicas bibliográfica e documental. O texto aborda experiências concretas e perspectivas de atuação da Inspeção do Trabalho, de modo articulado com os órgãos da rede de proteção da criança e do adolescente. Apresenta o resultado das fiscalizações voltadas à eliminação do trabalho infantil, de 2017 a 2022, realizada pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho: 4.858 fiscalizações e 8.791 crianças e adolescentes alcançados. Discute o perfil das vítimas em situação de labor precoce: pessoas de 14 a 17 anos de idade (84,9%), do gênero masculino (77,6%) e em atividade econômicas de comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas (27,5%). Ao fim, propõe mudanças para defesa de direitos de crianças e adolescentes em condição de trabalho infantil, como o funcionamento constante do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Infantil, a atuação interinstitucional e o estímulo ao encaminhamento das vítimas com mais de 14 anos de idade para vagas de aprendizagem profissional.

Abstract

The study discusses the role of inspection in the fight against child labor and the strategies to face early labor, using bibliographical and documental techniques. The text deals with concrete experiences and perspectives for the work of the Labor Inspection, in articulation with the bodies of the child and adolescent protection network. It presents the result of inspections aimed at eliminating child labor, from 2017 to 2022, carried out by the Undersecretariat for Labor Inspection: 4,858 inspections and 8,791 children and adolescents reached. It discusses the profile of victims in a situation of early labor: people aged 14 to 17 years old (84.9%), male (77.6%) and in economic activity of commerce, repair of motor vehicles and motorcycles (27.5%). In the end, it proposes changes to defend the rights of children and adolescents in child labor, such as the constant operation of the Mobile Group to Combat Child Labor, inter-institutional action, and encouragement to refer victims over 14 years of age to professional apprenticeships.
Keywords: Labor Inspection, Child labor, Professional learning.

Artigo

ATUAÇÃO DA AUDITORIA FISCAL NA DEFESA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES CONTRA O TRABALHO INFANTIL

 TAX AUDIT PERFORMANCE IN THE DEFENSE OF CHILDREN AND ADOLESCENTS AGAINST CHILD LABOR

 

Emerson Victor Hugo Costa de Sá[1]

 

RESUMO: O estudo discute o papel da fiscalização no combate ao trabalho infantil e as estratégias de enfrentamento ao labor precoce, por meio do emprego das técnicas bibliográfica e documental. O texto aborda experiências concretas e perspectivas de atuação da Inspeção do Trabalho, de modo articulado com os órgãos da rede de proteção da criança e do adolescente. Apresenta o resultado das fiscalizações voltadas à eliminação do trabalho infantil, de 2017 a 2022, realizada pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho: 4.858 fiscalizações e 8.791 crianças e adolescentes alcançados. Discute o perfil das vítimas em situação de labor precoce: pessoas de 14 a 17 anos de idade (84,9%), do gênero masculino (77,6%) e em atividade econômicas de comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas (27,5%). Ao fim, propõe mudanças para defesa de direitos de crianças e adolescentes em condição de trabalho infantil, como o funcionamento constante do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Infantil, a atuação interinstitucional e o estímulo ao encaminhamento das vítimas com mais de 14 anos de idade para vagas de aprendizagem profissional.

Palavras-chave: Inspeção do Trabalho, Trabalho infantil, Aprendizagem profissional.

 

ABSTRACT: The study discusses the role of inspection in the fight against child labor and the strategies to face early labor, using bibliographical and documental techniques. The text deals with concrete experiences and perspectives for the work of the Labor Inspection, in articulation with the bodies of the child and adolescent protection network. It presents the result of inspections aimed at eliminating child labor, from 2017 to 2022, carried out by the Undersecretariat for Labor Inspection: 4,858 inspections and 8,791 children and adolescents reached. It discusses the profile of victims in a situation of early labor: people aged 14 to 17 years old (84.9%), male (77.6%) and in economic activity of commerce, repair of motor vehicles and motorcycles (27.5%). In the end, it proposes changes to defend the rights of children and adolescents in child labor, such as the constant operation of the Mobile Group to Combat Child Labor, inter-institutional action, and encouragement to refer victims over 14 years of age to professional apprenticeships.

Keywords: Labor Inspection, Child labor, Professional learning.

  

Definição de trabalho infantil e o contexto do enfrentamento no Brasil

A fiscalização do trabalho infantil e da aprendizagem profissional é uma das atribuições a cargo dos agentes da inspeção do trabalho no Brasil. Trata-se de atividade desempenhada por agentes integrantes de carreira de Estado reconhecida na Constituição da República de 1988 (artigo 21, inciso XXIV) e na Convenção 129 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, além de outros documentos e normativas. A inspeção do trabalho, como é internacionalmente conhecida, será aqui também referida como fiscalização ou auditoria fiscal do trabalho.

Em termos gerais, o trabalho infantil envolve uma realidade presente em muitos municípios brasileiros. É uma situação que envolve, notadamente, a exposição de crianças e adolescentes a variadas formas de violências. A ideia de trabalho precoce varia conforme a percepção de cada indivíduo e divide opiniões. Por isso, é importante começar pela definição.

Utilizaremos, então, a definição de trabalho infantil elaborada pela Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil – CONAETI. Trata-se de um organismo composto por representantes do poder público, empregadores, trabalhadores, sociedade civil organizada e organismos internacionais. Tem como objetivo implementar as disposições das Convenções n. 138 e 182 da OIT, e viabilizar a elaboração e acompanhamento da execução do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil.

Conforme o terceiro plano nacional, considera-se trabalho infantil a “atividade econômica ou de sobrevivência com ou sem a finalidade de lucro, remunerada ou não, realizada antes da idade mínima” (BRASIL, 2019). É um conceito genérico, que abrange o desenvolvimento de uma atividade econômica, mas também compreende a exposição a condições como a mendicância, o manuseio de malabares, o trabalho doméstico, a exploração sexual e o aliciamento pelo tráfico de drogas. Além disso, pode ou não haver uma remuneração atribuída em razão do trabalho desempenhado, e a atividade pode ou não ter o intuito de lucro. Esse caráter genérico da definição permite o alcance de todas as formas de trabalho que não devem ser exigidos da criança e do adolescente. Um conceito mais restrito não viabilizaria esse adequado grau de proteção.

Existe outro ponto importante nessa definição, consistente na identificação da idade mínima para determinada atividade. Significa dizer que não há uma só idade mínima, pois o piso etário varia a depender do trabalho e das condições laborais. Então, a indicação da idade mínima, demanda a observância de alguns parâmetros. São limitações que constam no artigo 7º, inciso XXXIII, da Constituição (BRASIL, 1988), nos artigos 402 a 405 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (BRASIL, 1943) e nos artigos 60 a 69 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (BRASIL, 1990).

Desse modo, a proibição trabalho infantil alcança pessoas com menos de dezoito anos de idade em determinadas situações. De início, tem-se a vedação ao trabalho noturno, que consiste naquele realizado a partir de 22 horas, para o trabalhador urbano, com algumas exceções; e a partir de 19 horas, para o trabalhador rural. A proibição também alcança o trabalho perigoso, que gera risco imediato à vida e à saúde, como a atividade de frentista de posto de gasolina; insalubre, que afeta a saúde de modo mediato, como a atividade hospitalar; e penoso, que ainda não possui regulamentação no Brasil. Essas vedações também alcançam as atividades previstas no Decreto n. 6.481 (BRASIL, 2008), a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil – Lista TIP, que será tratada com detalhes adiante.

Então, a regra é que aos dezoito anos de idade a pessoa pode trabalhar, desde que a atividade não configure trabalho noturno, perigoso, penoso, insalubre ou, ainda, em locais que prejudiquem a formação e o desenvolvimento físico, psíquico, moral, social, e, por fim, em locais que não permitam a frequência à escola.

Observa-se, portanto, que a indicação da idade mínima para o trabalho não admite um discurso objetivo, pois é necessário verificar o contexto. Pode-se pensar no trabalho como atendente em um bar, por exemplo, que não configura, necessariamente, labor noturno, perigoso, insalubre ou penoso, mas prejudica a formação e o desenvolvimento do infante. Em uma outra situação, o trabalho de uma adolescente de dezesseis anos de idade em um escritório, em um primeiro momento, não se encaixa nas limitações apontadas, mas, se o deslocamento demanda um tempo significativo a ponto de prejudicar a frequência escolar, o quadro muda de figura e o trabalho passa a ser contraindicado, vedado, em razão do contexto prejudicial ao acesso ao ensino básico.

Além disso, há proibição de todo e qualquer trabalho abaixo de dezesseis anos de idade. Então, a contratação a título de estágio demanda ao menos essa idade. A contratação como celetista é perfeitamente viável a partir dessa mesma idade, desde que não configure alguma das vedações acima indicadas para quem tem menos de dezoito anos. Existe, ainda, a possibilidade de contratação na modalidade de aprendizagem, desde os quatorze anos.

Então, a definição da idade mínima para o trabalho varia, conforme o contexto e forma de contratação. Essa análise deve considerar, sobretudo, se o labor configura alguma das piores formas de trabalho infantil, que constam no Decreto 6.481 (BRASIL, 2008). Essa regulamentação atende à indicação constante na Convenção 182 da OIT, criada com o fim de complementar a Convenção 138 da OIT, que versa sobre a idade mínima para o trabalho. Esse decreto possui como anexo a lista com 93 atividades que são proibidas para crianças e adolescentes, ou seja, para quem tem menos de 18 anos de idade.

Quanto aos números, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNADC 2016 apontou a existência de 2,5 milhões de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos de idade em situação de trabalho.  A PNADC mais recente, de 2019, apontou que a redução desse contingente para 1,8 milhões. Ocorre que a pandemia foi posterior esse levantamento, de modo que os anos seguintes podem apresentar a elevação na quantidade de pessoas submetidas ao labor precoce. Assim, a tendência é de aumento nas pesquisas subsequentes e, quadro que será mais detalhado quando ocorrer o Censo.

Se considerarmos que o número atual pode variar entre 1,8 milhões e 2,5 milhões de crianças e adolescentes, só essa parcela da população brasileira é compatível com a sétima capital mais populosa, Manaus, que possui a estimativa de 2,2 milhões habitantes. É como se todas as pessoas que moram em Manaus fossem crianças de cinco a dezessete anos em uma situação de trabalho infantil. Quem não conhece Manaus pode comparar com a sua própria realidade, mas o fato é que se trata de um número elevado.

Desse público indicado no levantamento de 2019, aproximadamente 1,5 milhões de pessoas têm idade compatível com aprendizagem profissional (80,0%). Ou seja, são adolescentes de 14 a 17 anos em situação de trabalho infantil, mas que poderiam perfeitamente ocupar uma vaga de aprendiz. Isso permitiria a substituição de uma situação laboral proibida para uma condição protegida.

A referência aos números justifica-se em razão da necessidade de compreender a dimensão do problema. No entanto, mais do que números, sabe-se que a prioridade é a educação e o direito fundamental de não trabalhar, previstos no texto constitucional (artigo 7º, inciso XXXIII, e artigo 227). Esse nível de compreensão é fundamental, mas, para quem deseja trabalhar ou se profissionalizar, ou já trabalha de modo informal ou inseguro, o contrato de aprendizagem é uma possibilidade, e atende ao direito fundamental à profissionalização (artigo 227).

O encaminhamento para a aprendizagem, porém, apresenta barreiras. Uma das principais dificuldades consiste na etapa inicial, o processo de seleção. Muito embora haja intenção e interesse por parte dos adolescentes encontrados em situação de trabalho precoce, a distorção entre a idade e a série cursada é vista como um fator prejudicial diante de outros adolescentes e jovens considerados mais qualificados, segundo a percepção dos contratantes. É preciso, pois, perceber a vulnerabilidade e o risco social, e considerar esse público como preferencial nas políticas de contratação de aprendizes.

A fiscalização do trabalho infantil em números

Os números da fiscalização do trabalho infantil referidos adiante decorrem da consolidação de dados, que compreende o período de 2017 a 2022, realizada pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – SIT. Nesse lapso, foram condensadas e lançadas 4.858 fiscalizações, nas quais houve afastamento de 8.791 crianças e adolescentes do trabalho infantil. Essas fiscalizações indicam o seguinte perfil do público em situação de labor precoce: 14 a 17 anos de idade (84,9%); gênero masculino (77,6%); em atividade econômicas de comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas (27,5%).

Se o último quantitativo estimado consiste em 1,8 milhões, os números expostos indicam que estamos distantes da meta de erradicação das formas de trabalho infantil até 2025, e imediatamente das piores formas, conforme item 8.7 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.

A análise das quantidades de fiscalizações de trabalho infantil e de crianças e adolescentes afastadas ao longo do período analisado (Figura 1) apontam o aumento dos números absolutos nos últimos dois anos (2021 e 2022). A redução observada em 2020 deve-se às restrições ao trabalho da fiscalização decorrente da pandemia, em razão da necessidade de proteção do público de fiscais de grupos de risco. No entanto, é importante esclarecer que essa realidade está distante do que se evidenciou no período pandêmico: a maior exposição de crianças e adolescentes aos diferentes tipos de trabalho infantil, sobretudo em situações invisibilizadas, como o labor no ambiente doméstico.

Figura 1 – Quantidade de fiscalizações de trabalho infantil e de crianças e adolescentes afastadas (2017-2022).

Fonte: Elaboração própria, com base em dados fornecidos pela DTIOP/SIT.

Os maiores quantitativos de crianças e adolescentes afastadas do trabalho infantil conforme a seção da Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE (Figura 2) revelam a concentração em atividades de comércio, reparação de veículos automotores e motocicletas (27,5%). Outra seção que se destaca abrange o público relacionado ao labor em atividades de alojamento e à alimentação (16,3%).

Figura 2 – Quantidade de crianças e adolescentes afastadas do trabalho infantil conforme a seção da Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE (2017-2022).

Fonte: Elaboração própria, com base em dados fornecidos pela DTIOP/SIT.

As faixas etárias mais representativas nos afastamentos de crianças e adolescentes do trabalho infantil (Figura 3) consistem no público com 16 ou 17 anos de idade (55,0%) e com 14 ou 15 anos de idade (29,9%). Significa exatamente o público compatível com a aprendizagem profissional, que corresponde à principal política de profissionalização de adolescentes e de ingresso no mercado de trabalho.

Figura 3 – Faixa etária das crianças e adolescentes afastadas do trabalho infantil (2017-2022).

Fonte: Elaboração própria, com base em dados fornecidos pela DTIOP/SIT.

A aprendizagem é possível para adolescentes a partir de 14 anos de idade e tem como objetivo combater o desemprego concentrado nessa faixa de idade, que representa praticamente o triplo da média geral. Embora os números de aprendizes ativos no mercado de trabalho sejam crescentes (Figura 4), ainda há espaço para mais adolescentes e jovens.

Considerando a cota mínima de 5%, ainda é possível dobrar a quantidade os contratos de aprendizes no país. Como a reserva de vagas para aprendizes pode chegar a 15%, o potencial da aprendizagem ultrapassa o patamar de 2 milhões de contratações, o que é suficiente para afastar todos os adolescentes em situação proibida de trabalho infantil e direcioná-los para formas protegidas de trabalho, representadas pela figura do aprendiz.

Figura 4 – Números de aprendizes ativos no mercado de trabalho (2007-2019).

Fonte: Elaboração própria, com base em dados fornecidos pela DTIOP/SIT.

O gênero masculino é mais frequente dentre crianças e adolescentes encontradas em situação de trabalho infantil pela fiscalização do trabalho (77,6%). A proporção mantém-se praticamente fixa ao longo do período analisado (Figura 5).

Figura 5 – Gênero das crianças e adolescentes afastadas do trabalho infantil (2017-2022).

Fonte: Elaboração própria, com base em dados fornecidos pela DTIOP/SIT.

Com relação às piores formas de trabalho infantil mais frequentes nas ações de fiscalização (Figura 6), destacam-se os serviços externos, que impliquem em manuseio e porte de valores que coloquem em risco sua segurança (15,9%); de venda, a varejo, de bebidas alcoólicas (12,8%); com utilização de instrumentos ou ferramentas perfurocontantes, sem proteção adequada capaz de controlar o risco (11,2%); com exposição a abusos físicos, psicológicos ou sexuais (9,2%); de manutenção, limpeza, lavagem ou lubrificação de veículos, tratores, motores, componentes, máquinas ou equipamentos, em que se utilizem solventes orgânicos ou inorgânicos, óleo diesel, desengraxantes ácidos ou básicos ou outros produtos derivados de óleos minerais (6,0%); e em ruas e outros logradouros públicos (3,9%).

Figura 6 – Piores formas de trabalho infantil mais frequentes nas ações de fiscalização (2017-2022).

Fonte: Elaboração própria, com base em dados fornecidos pela DTIOP/SIT.

Alguns indicadores de piores formas de trabalho infantil merecem atenção diferenciada (Figura 7). As quantidades de crianças e adolescentes associadas aos trabalhos de cuidado (111), trabalho forçado (19), serviços domésticos (11), tráfico de drogas (2) e ao ar livre, sem proteção adequada contra exposição à radiação solar, chuva, frio (1). São condições de trabalho que necessitam de aprofundamento no processo de enfrentamento e da adequação e diálogo com outras instâncias públicas e privadas, com o fim de viabilizar a efetividade da identificação e do afastamento de mais crianças e adolescentes pela fiscalização laboral.

Figura 7 – Piores formas de trabalho infantil nas ações de fiscalização a serem investigadas (2017-2022).

Fonte: Elaboração própria, com base em dados fornecidos pela DTIOP/SIT.

As fiscalizações se iniciam com a identificação da situação de trabalho, passam pelo afastamento dessa condição e envolvem a autuação do responsável identificado, documento que dá início a um processo administrativo e pode resultar em aplicação de multa ao responsável. Além da repressão, busca-se a sustentabilidade da atuação, mediante a articulação interseccional para a promoção de direitos e da proteção social (ENIT, 2021).

Os setores econômicos alcançados por essas fiscalizações são estratégicos, em razão da maior incidência: feiras livres, comércio ambulante, lixões, cemitérios, oficinas mecânicas e lava-jato. Essas atividades reúnem apenas alguns dos 93 itens que estão na lista das piores formas. O esforço para atender esse público também envolve a participação do serviço social, educacional e de outros agentes da rede de proteção, até que a situação da criança ou do adolescente seja amenizada ou revertida.

A fiscalização, isoladamente, jamais resolverá esse problema, assim como tão somente o ministério público e o conselho tutelar. É uma tarefa coletiva, que compete a todos. A família, o Estado e a sociedade são corresponsáveis e devem buscar a efetividade do direito fundamental de não trabalhar, de profissionalização de adolescentes e jovens, e de proteção contra a exploração do trabalho infantil. Essa não é uma posição pessoal. Trata-se da literalidade da redação do artigo 227 da Constituição da República de 1988, dispositivo que deve ser lido e constantemente relido por todos.

Também existe a preocupação em proteger quem está trabalhando dentro das possibilidades legais, como os aprendizes, que foram talvez os primeiros contratos visados por muitos empregadores quando buscaram reduzir os quadros no início da pandemia, não obstante a vedação decorrente do fato de se tratar de contrato por prazo determinado. Em tais casos, a postura da fiscalização foi no sentido de notificar e, em caso de manutenção da irregularidade, autuar e encaminhar a situação à procuradoria do trabalho, para as providências que entendessem necessárias, o que compreende até mesmo a judicialização.

Quanto aos adolescentes, existe o foco no combate ao trabalho infantil e na garantia do labor protegido, que envolve a inclusão de adolescentes com idade a partir de 14 anos. É importante considerar que a fiscalização busca o encaminhamento de egressos do trabalho infantil para a aprendizagem profissional, desde que haja o interesse do adolescente encontrado naquela condição. Desse modo, a inserção de aprendizes no mercado de trabalho também envolve a sensibilização dos empregadores e das instituições formadoras, para que sejam oportunizadas as vagas para esse público prioritário.

 

Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Infantil

Desde a instituição do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Infantil – GMTI, houve cinco ações fiscais, distribuídas entre 2015, 2017, 2018 e 2019. Ocorre que essa configuração não se encontra em funcionamento regular dentro da estrutura da Inspeção do Trabalho. Porém, há necessidade de se retomar as atividades desse grupo móvel específico, porque a estrutura da fiscalização nos estados é precária.

No Brasil, são mais de 1.700 cargos vagos, quase metade do quadro da fiscalização. O déficit é maior na Região Norte, o que redunda na dificuldade de promover as atividades de fiscalização da forma devida. São áreas que possuem menos fiscais do trabalho e isso repercute no resultado da incidência estatal diante do fenômeno.

Apenas uma parte dos estados foi contemplada com a fiscalização do GMTI. Por isso, é importante que o grupo móvel funcione regularmente, assim como ocorre com o Grupo Especial de Fiscalização Móvel – GEFM, que combate as práticas análogas às de escravo. Ressalta-se que as fiscalizações de combate ao trabalho escravo das equipes regionais e do grupo móvel não se concentram apenas nas vítimas adultas. De 1995 a 2019, houve a identificação de 826 pessoas com menos de dezoito anos de idade em situação de escravização. A maior parte possuía idade entre dezesseis e dezessete anos (60,0%).

A sujeição ao trabalho escravo contemporâneo corresponde a uma das piores formas de trabalho infantil, constantes na Convenção n. 182 da OIT e no Decreto n. 6.481 (BRASIL, 2008). Notadamente por envolver crianças e adolescentes, esse problema merece atenção prioritária por parte do poder público e da sociedade civil, mediante ações e políticas específicas voltadas à prevenção e à repressão.

O funcionamento do GMTI não afasta, mas complementa as atividades realizadas no âmbito dos estados, notadamente nos estados onde há uma quantidade proporcionalmente reduzida de auditores fiscais do trabalho em exercício. Tomando como exemplo o estado do Amazonas, atualmente há apenas um membro da fiscalização dedicado ao combate ao trabalho infantil, sem exclusividade, pois, simultaneamente, também atua no projeto de inserção de aprendizes no mercado de trabalho. Ou seja, a precariedade do quadro de fiscalização é evidente e merece ser enfrentada com urgência.

Com base em informações obtidas junto à coordenação nacional e nas matérias que repercutiram as ações, foram promovidos cinco os operativos pelas equipes do GMTI, até junho de 2021 (Tabela 1).

Tabela 1 – Ações de fiscalização de trabalho infantil realizadas pelo Grupo Móvel de Fiscalização de Combate ao Trabalho Infantil (2014-2020).
Ano UF Município Atividades econômicas Crianças e adolescentes afastados
2015 PA Parauapebas Borracharia, lava-jatos e feiras livres 81
2017 RR Boa Vista Feiras livres, lixão, peixarias, carvoarias, ruas e logradouros públicos 118
2018 RR Boa Vista Feiras livres, lixão e vias públicas 51
2018 RO Porto Velho Borracharias, vias públicas e lixão 14
2019 BA/SE Casas de farinha e feiras livres 81
Total 345

Fonte: Elaboração própria, com base em dados fornecidos pela DTIOP/SIT.

As ações envolveram o afastamento das quantidades de crianças e adolescentes, nas atividades econômicas e nos municípios identificados. Ao todo, foram alcançados 345 crianças e adolescentes, e a última fiscalização ocorreu em 2019. Observa-se a diferença entre a primeira e a segunda abordagem no estado de Roraima. Isso demonstra que, se houver um trabalho continuado, é possível alcançar a redução da quantidade de crianças e adolescentes submetidos a situações de trabalho precoce.

Todavia, ainda que em termos totais, percebe-se que o alcance de crianças e adolescentes em situação de trabalho nos operativos realizados pelo GMTI foi reduzido. Isso denota que a identificação e a atuação diante de situações de labor precoce é um problema complexo e que demanda a atuação de muitas instituições componentes da rede de proteção, bem como a superação de determinados discursos infundados, reproduzidos no meio social.

 

Entre mitos, lendas e fake News do trabalho infantil

O combate à propagação de mitos ou lendas, as fake News do trabalho infantil também é uma ferramenta essencial para a melhoria desse quadro. É como são chamados os discursos utilizados para justificar, e não combater, o trabalho antes da idade adequada. Trataremos de alguns deles a partir deste momento.

Primeiramente, tem-se a fala de que “o trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”. Trata-se de uma frase equivocada por vários motivos, mas principalmente porque a realidade observada não é compatível com o grau de dignidade humana que o texto constitucional garante a todos. É difícil identificar algum patamar de dignidade de crianças que vendem peixe nas ruas de um bairro periférico de uma capital, à noite, e moram em palafitas nas margens de um rio amazônico.

Todo trabalho necessariamente promove a dignidade, inclusive o desenvolvido em condições análogas às de escravo? Na verdade, 92,6% das vítimas de trabalho escravo começaram a trabalhar antes dos dezesseis anos de idade (OIT, 2011, p. 81); logo, em situação de trabalho infantil. Além disso, a falta de acesso à educação possui um papel fundamental nesse processo de exploração laboral (OIT, 2011, p. 78). Isso porque uma parcela significativa dos escravizados compõe-se de analfabetos (18,3%), e apenas uma proporção reduzida relata o ensino médio completo ou incompleto (4,1%).

Outro mito ou lenda corresponde à ideia de que “trabalho não mata ninguém”. Será que não mata? Na realidade, mais de 46 mil crianças e adolescentes sofreram acidentes de trabalho e agravos à saúde em doze anos (FNPETI, 2020).

Quanto ao discurso de que “é melhor trabalhar do que roubar”, o que se nota é que a exposição ao trabalho infantil não afasta, mas aproxima e facilita o aliciamento para o tráfico de drogas. Quanto ao perfil da população carcerária, a maioria é jovem, não tem ensino fundamental completo, e muitos entraram no tráfico de drogas a partir de uma situação de aliciamento, o que também configura uma das piores formas de trabalho infantil. Também há casos em que o ingresso no mundo laboral, no comércio ambulante por exemplo, facilita o processo de aliciamento para o cometimento de crimes de diversas ordens.

Com relação ao discurso de que “é preciso trabalhar para ajudar a família”, pode-se questionar se essa responsabilidade é mesmo da criança ou do adolescente. Qual o nível socioeconômico da família destinatária desse discurso? A realidade demonstra uma condição de desigualdade das pessoas a quem, rotineiramente, se aplica essa forma de pensamento. Essa frase serve apenas para justificar a desigualdade e o ciclo perverso de pobreza, marginalização e outras formas de violação de direitos.

Em síntese, o que se busca é a preservação de direitos fundamentais, da proteção integral e da prioridade absoluta. Não é demais repisar que é dever da família, da sociedade e do estado assegurar, com absoluta prioridade, todos os direitos constitucionais. Destaca-se a proteção contra as variadas formas de violência, dentre as quais a exploração laboral em idade precoce (artigo 7º, inciso XXXIII), bem como a profissionalização e a educação (artigo 227), porque estão relacionados com a aprendizagem e podem impactar no desemprego de adolescentes e jovens.

Aprendizagem profissional e o desemprego entre adolescentes e jovens

Em que medida os números do desemprego no Brasil se relacionam ao trabalho infantil? E qual a relação dessas taxas com a aprendizagem? O afastamento do mercado de trabalho pode ser analisado sob o ponto de vista de quem busca uma ocupação e não encontra (desempregado), ou que desistiu de procurar (desalentado). O contingente de pessoas desalentadas no Brasil é de 5,9 milhões (IBRE, 2019). Somadas ao total de desempregados, estima-se que esses grupos representavam de 20 milhões de pessoas, em meados de 2021.

As mulheres são maioria no total de desalentados no país (55,2%), assim como as pessoas declaradas pretas e pardas (73,0%) e o grupo de 14 a 23 anos de idade (33,5%). Ademais, o desalento é maior para os grupos menos escolarizados, pois atinge especialmente as pessoas com ensino fundamental incompleto (41,2%). Os desalentados estão assim distribuídos nas regiões do país: Nordeste (60,0%), Sudeste (21,5%), Norte (9,9%), Sul (4,9%) e Centro-Oeste (3,9%). As principais razões declaradas pelas pessoas desalentadas compreendem a “falta de trabalho na localidade” (63,0%), “não ter conseguido encontrar um emprego adequado” (19,5%), “ser muito jovem e muito idoso” (9,9%) e “não ter experiência ou a qualificação exigida” (7,7%).

O desemprego dobrou desde o início da série histórica, em 2012 (Figura 8). A importância da análise desse indicador, para efeito dos assuntos aqui tratados, consiste no fato de que a faixa etária mais prejudicada consiste, precisamente, em um público que poderia manter contratos de aprendizagem, que se destinam, em regra, a pessoas de 14 a 24 anos.

Figura 8 – Desemprego no Brasil (2012-2021).

Fonte: Elaboração própria, com base em dados do IBGE até maio de 2021.

Atualmente, há em torno de 400 mil aprendizes contratados. Desse quantitativo, 46% possuem a idade de 14 a 17 anos. A aprendizagem está em expansão no Brasil, em razão do trabalho desempenhado por muitos agentes, não só da fiscalização. Em 2019, eram 495 mil aprendizes no Brasil, mas esse número pode ir além. Considerando que a cota de aprendizagem pode variar de 5,0% a 15,0% em relação às funções incluídas na base de cálculo, é possível que o número atual mais do que dobre, pois apenas algo em torno da metade das vagas do percentual mínimo estão atualmente preenchidas.

O estado Amazonas possui um percentual considerável de atingimento da meta. Em meados de 2021, havia 77,7% das vagas preenchidas, o maior índice dentre todas as unidades federativas. Ainda assim, a meta da fiscalização do trabalho é alcançar 100,0% e até superar essa marca, vez que o parâmetro consiste no percentual mínimo da cota, de 5,0% do quadro de funções compatíveis com a aprendizagem, patamar que pode chegar até 15,0%.

Por fim, e porque a pandemia tem deixado um vazio ainda mais importante em eventos do gênero, menciona-se a experiência da Semana de Aprendizagem 2019. Naquela oportunidade, a organização estadual reuniu cerca de 800 pessoas no auditório do Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região, em Manaus. A meta é igualar ou superar essa marca quando aglomerações do gênero forem novamente possíveis.

Como resultado dessa mobilização, houve mais de 1.500 vagas preenchidas, com alcance de cerca de 300 empregadores. Uma parcela reduzida se manteve em descumprimento e foi alvo de autuações e encaminhamentos de relatórios à procuradoria do trabalho, para as medidas necessárias à adequação da situação irregular.

Em casos extremos, pode haver o ajuizamento de ação civil pública na esfera laboral, com o fim de obtenção de obrigação de fazer, no sentido de garantir o cumprimento da cota. Além disso, cabe o pedido de indenização por danos morais coletivos, em razão dos prejuízos à infância e à adolescência, titular do direito fundamental à profissionalização.

Portanto, a atuação da auditoria fiscal na garantia de direitos fundamentais de crianças e adolescentes é sobremaneira importante no contexto da exploração laboral precoce. Todavia, essa missão constitucionalmente prevista é encargo de uma gama mais vasta de agentes, tanto estatais, quanto particulares. Afinal, é preciso conscientização e mobilização constante para evitar a propagação de discursos e práticas que estimulam o trabalho infantil, e a atuação estatal voltada à proteção da família mostra-se ainda mais relevante.

  

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

BRASIL. Decreto n. 6.481, de 12 de junho de 2008. Regulamenta os artigos 3º, alínea “d”, e 4º da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6481.htm.

BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm.

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.

BRASIL. Ministério do Trabalho. Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. III Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador (2019-2022). Brasília, 2019.

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Notas:

[1] Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Auditor Fiscal do Trabalho, lotado no estado do Amazonas. Atua na coordenação regional das atividades de combate ao trabalho infantil e no estímulo à aprendizagem profissional.

Palavras Chaves

Inspeção do Trabalho, Trabalho infantil, Aprendizagem profissional.