CONTRIBUIÇÕES DE UM OLHAR PSICOLÓGICO À MEDIAÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES

Resumo

A partir de um olhar psicológico sustentado pelos aportes teóricos da Psicologia Humanista de Carl Rogers e pela abordagem sistêmica, esse artigo pretende ampliar as contribuições do mediador na fluidez do processo de diálogo, pensado como uma forma produtiva de negociação de diferenças, que ele conduz numa mediação, especialmente em se tratando de conflitos de família. Quanto mais multifocal for a compreensão, abordagem e mapeamento dos conflitos familiares pelo mediador, melhores as possibilidades de intervenções facilitadoras, desde o acolhimento e fortalecimento dos mediandos até a legitimação de suas respectivas potências, criatividade e responsabilidade. Eles são os protagonistas de suas histórias e interdependentes na construção e desconstrução dos conflitos, na colaboração 2 em busca de entendimentos e possíveis acordos, que impliquem em satisfação e benefícios mútuos, preservando sua relação social.

Artigo

CONTRIBUIÇÕES DE UM OLHAR PSICOLÓGICO À MEDIAÇÃO DE CONFLITOS FAMILIARES

 

Daniella Guimarães Nakad de Mello e Souza1

  

 RESUMO

A partir de um olhar psicológico sustentado pelos aportes teóricos da Psicologia Humanista  de Carl Rogers e pela abordagem sistêmica, esse artigo pretende ampliar as contribuições do mediador na fluidez do processo de diálogo, pensado como uma forma produtiva de negociação de diferenças, que ele conduz numa mediação, especialmente em se tratando de conflitos de família. Quanto mais multifocal for a compreensão, abordagem e mapeamento dos conflitos familiares pelo mediador, melhores as possibilidades de intervenções facilitadoras, desde o acolhimento e fortalecimento dos mediandos até a legitimação de suas respectivas potências, criatividade e responsabilidade. Eles são os protagonistas de suas histórias e interdependentes na construção e desconstrução dos conflitos, na colaboração 2 em busca de entendimentos e possíveis acordos, que impliquem em satisfação e benefícios mútuos, preservando sua relação social.

Palavras-chave: Mediação; conflitos; sistema familiar; psicologia humanista

INTRODUÇÃO

 Num Estado democrático de direito, aqui pensando nas sociedades ocidentais, o exercício da cidadania é entendido, dentre outras coisas obviamente, pela presença da Justiça na vida dos indivíduos. O Estado neoliberal promove uma concepção de Justiça associada à ideia de que quanto mais a população busca o Judiciário para solucionar seus conflitos, mais os seus direitos são garantidos. Essa ideia é defendida pelo jurista francês Garapon (2001) e nós, no Brasil, igualmente vivemos esta crença de que o Estado é o provedor e presenciamos  o que o jurista citado chama de judicialização da vida cotidiana – uma forma de governo, na qual a Justiça é destinatária de uma nova demanda justamente pela ausência de outros referenciais e falência das Políticas Públicas.

Diante do endereçamento de múltiplas controvérsias das mais diferentes naturezas, emocional, de consumo, relacional ao Judiciário e dos números comprovando o gigantesco volume de processos ajuizados no Brasil, com um índice superior a 70% de congestionamento dos mesmos3, a consequência é a impossibilidade de um atendimento jurisdicional efetivo à sociedade e a evidência da insustentabilidade do atual sistema. Ademais e paradoxalmente, a situação provoca a reflexão do que significa acesso à Justiça, bem como o enorme esforço coletivo que precisará acontecer para que outro sistema de tratamento de conflitos torne-se, de fato, realidade na sociedade brasileira, tanto dentro do Judiciário, como fora dele (extrajudicial).

O modelo tradicional conhecido como heterocomposição ou adversarial tem se mostrado incapacitado estruturalmente para encarar a multiplicação de litígios e, nas ações de família, dar conta da complexidade das controvérsias familiares. A morosidade e o formalismo acentuado da Justiça, assim como a ineficácia na resolução dos impasses, pois a sentença e a decisão imposta por um terceiro, em detrimento da vontade e autonomia das pessoas envolvidas, demonstra que os conflitos não se resolvem, a insatisfação permanece e os litígios perduram indefinidamente.

Sendo assim, o Poder Judiciário entendeu que caberia a ele apresentar à sociedade novos métodos de tratamento de conflitos de interesses, começando dentro da própria Justiça. Propõe-se uma nova cultura, de pacificação ao invés da sentencial, consensual e não adversarial, em cujo bojo novas práticas institucionais ganharam força e legitimidade. Em pauta, os métodos adequados de resolução de conflitos, entre eles a mediação, objeto do presente estudo. O marco regulatório da mediação veio com a Lei da Mediação de Dezembro de 20154 e o Novo Código de Processo Civil5 de 2015, que entrou em vigor em março de 2016, regulamentando a Mediação no âmbito do processo judicial civil. Ambas as normativas representam uma mudança de perspectiva, enfatizando a autocomposição, apostando na autonomia das partes, bem como na competência relacional na solução dos seus problemas e construção de acordos de forma responsável e sustentável.

O presente artigo objetiva, a partir de um olhar psicológico, sustentado pelos aportes teóricos da Psicologia Humanista de Carl Rogers e pela abordagem sistêmica, poder ampliar as contribuições do mediador na fluidez do processo de diálogo, que ele conduz e coordena, bem como na integração, sem anulação, das singularidades das pessoas 6 envolvidas, promovendo maior satisfação e responsabilidade de todos, especialmente em se tratando de conflitos de família. Não é possível lidarmos com questões objetivas se as relações não forem minimamente cuidadas.

As contribuições de Rogers nos permitirão pensar analogamente as posições do terapeuta e do mediador, por exemplo, no que diz respeito à posição de empatia e aceitação, bem como quanto às intervenções que devem emergir do contexto da relação, partindo do ponto de referência das partes em conexão com as habilidades técnicas, pessoais e experienciais do terapeuta/mediador. A crença de que o ser humano tem um organismo positivo e construtivo que tende a crescer e atualizar suas potencialidades se encaixa perfeitamente nos princípios da Mediação e o mediador é co-responsável pelos resultados que suas ações venham a provocar. Aqui vale o alerta que o mediador não tem o papel de terapeuta dos mediandos, não interpreta o que é dito e não aprofunda questões intrapsíquicas, mas poderia ser comparado a um maestro, que dá o ritmo na condução do processo musical da orquestra e o tom de suas intervenções será dado por sua subjetividade, emoção sempre presente e, neste sentido, o mediador está implicado no campo de trabalho, faz parte do sistema e não do conflito, compreendendo-se, portanto, o mediador como um conhecedor, que tem papel ativo no processo de construção do conhecimento.

Por sua vez, é importante sinalizar que a Ciência ajudou a todos compreenderem que a realidade é socialmente construída, não é uma verdade dada a ser descoberta, e sim uma co- construção dos que dela participam. Somos todos partes do sistema, observador/observado se integram, rejeitando o dualismo sujeito-objeto e o conhecimento como representação adequada do mundo. Desse modo, há uma nova concepção da construção do conhecimento, na qual se entende “o conhecimento como um processo construtivo-gerador” (SCHNITMAN; LITTLEJOHN, 1999, p.8)

Nós construímos o mundo em que vivemos ao longo de nossas vidas e somos construídos por ele. Assim, se vivemos e nos comportamos de um modo que torna insatisfatória a nossa qualidade de vida, a responsabilidade é nossa. Somos parte do problema e da solução. Nesse contexto, intervir nas desavenças com a mediação é como plantar uma semente que servirá como subsídio, prevenção e aprendizado transferível para o futuro. Ela atua a nível micro, com a possibilidade de modificação psicossocial das partes e no macrocosmo, a partir do efeito multiplicador desta aprendizagem nas relações humanas dentro da cultura. Continuando com as ideias de Schnitman e Littlejohn,

o mediador, o operador comunitário, o consultor e outros especialistas interessados na busca de soluções alternativas para as disputas criam condições para a resolução e para a “apropriação” responsável de ações, soluções, conhecimentos. O termo empowerment alude, precisamente, a essa “recuperação” como uma magnitude da transformação. (SCHNITMAN; LITTLEJOHN, 1999, p.11)

1.            MEDIAÇÃO COMO UM SABER E PRÁTICA TRANSDISCIPLINAR

  

Conviver com o conflito é algo inevitável à condição humana e mediar, derivado do verbo latino mediare, significa intervir, colocar-se no meio e que remonta a práticas milenares que fundamentaram tanto a cultura ocidental quanto a oriental, bem como àquelas observadas em comunidades aborígenes na África, Américas e Oceania, calcadas na reciprocidade, paz e compreensão. A mediação de conflitos foi estruturada na década de 70, nos Estados Unidos, na Universidade de Harvard, área de Direito, como um método autocompositivo, alternativo ao Judiciário, onde as partes envolvidas, auxiliadas por um terceiro imparcial, retomavam sua capacidade decisória e a responsabilidade pelos acordos construídos. Ao longo dos anos, a Mediação contou com a contribuição de múltiplas áreas do conhecimento e a influência de inúmeras culturas e, considerando que seu objeto de trabalho é o ser humano e suas relações, ou seja, um objeto multifacetado, complexo, imprevisível e não determinado, foi alçada a mais do que uma prática ou instrumento de negociação de diferenças, a um plano7 de saber transdisciplinar.

O romeno Basarab Nicolescu, um dos mais atuantes e respeitados físicos teóricos no cenário científico contemporâneo, nos auxilia no entendimento do que seria transdisciplinar, afirmando “como  o  prefixo trans o  indica,  diz  respeito  àquilo  que  está  ao  mesmo  tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas, e sobretudo, além de qualquer disciplina.” (NICOLESCU, 1999, p.27)

As ideias de Nicolescu se coadunam com a teoria do pensamento complexo de Morin (2005), onde é defendida a urgência em se reagrupar os saberes, para buscar a compreensão do universo e restituir um conhecimento que se encontra adormecido, integrando unidade e diversidade. O conhecimento do complexo condiciona uma política de civilização. É preciso encarar o desafio da complexidade das questões do homem e não será pela via da fragmentação dos saberes.

Na Mediação, identificamos que os limites das disciplinas implicadas, como o Direito, a Psicologia, Sociologia, Comunicação e Filosofia foram perturbados, assim como diversos outros fluxos que se inseriram no plano (corpo, sensibilidade, crenças, arte, religião, experiência….),e presenciamos uma ligação e transformação dos saberes que forneceram o instrumental para uma nova estratégia de trabalho, uma prática estruturada com uma série de passos ordenados no tempo, que opera num sistema aberto relacionado a circunstâncias,  “onde não há verdade a ser descoberta ou preservada, mas sim uma que deverá ser criada a cada novo domínio” (PASSOS; BARROS, 2000, p.77).

Entre os objetivos da mediação, podemos elencar: a transformação da dinâmica adversarial, insatisfatória em dinâmica cooperativa com satisfação mútua; promoção de aprendizado de convívio com as diferenças; fomento a novas formas de perceber e encaminhar a controvérsia e a relação; revelação dos verdadeiros interesses, propiciando sua convergência, bem como às partes, a oportunidade de adquirirem outro olhar para os conflitos e uma nova cultura para lidarem com eles. Os mediadores precisam estar preparados para lidar com a complexidade de seu objeto de trabalho e com todos os problemas vividos por  este homem contemporâneo, buscando intervenções que não fragmentem ou limitem suas vidas, subordinando-os a uma ordem política ou poder hegemônico, mas sim que acionem reflexões, representem um empoderamento das partes, a transformação social e a propagação de uma cultura de paz.

Falar em interações sociais implica necessariamente em se pensar num campo de forças. Os autores Schnitman e Littlejohn nos lembram que o conhecimento e as práticas elaboram realidades para nós, em que construímos nossos mundos e a nós mesmos como atores deste processo e falam que, de fato, a epistemologia e os modelos e práticas de resolução alternativa de conflitos podem ser entendidos como campos polifônicos que, como tais, validam a existência de múltiplas vozes, a existência do diferente, do diálogo, do outro, da diversidade. (SCHNITMAN; LITTLEJOHN, 1999, p.12)

Por sua vez, Muszkat (2008) aborda a questão do poder no campo das interações sociais pela visão “foucaultiana” e aponta o importante papel do mediador no entendimento dos mecanismos do poder como uma estratégia utilizada numa correlação de forças, na explicitação dos poderes em jogo e no restabelecimento do equilíbrio entre os diferentes poderes, tudo pela promoção do diálogo entre as partes. A autora classifica o poder como construtivo ou autoritário e diz que “a mediação baseia-se na lógica do poder construtivo, investindo no protagonismo e no pacto entre as pessoas”. (MUSZKAT, 2008, p.51) e acrescenta que “este tipo de poder expressa a real potência do indivíduo que jamais se utiliza da violência” (2008, p.50), advertindo que, em uma mediação, os conflitos só poderão ser resolvidos de uma forma produtiva se houver um equilíbrio relativo de poderes e caberia ao mediador “exercer a arte de converter o poder ter em poder ser” (MUSZKAT, 2008, p.54)

2.            A CONTRIBUIÇÃO DA PSICOLOGIA PARA COMPREENSÃO DA FAMÍLIA COMO UM SISTEMA

 

Dentro desta dimensão do “Ser”, impossível não pensarmos na família, o primeiro e principal grupo social na formação e desenvolvimento do indivíduo. A família é a matriz da aprendizagem humana. Nossa espécie é a única no reino animal que depende da própria espécie para se tornar humana, para se constituir enquanto sujeito e para aprender as regras civilizatórias. Ao entrar no mundo, o homem se introduz em uma organização social nutrida pelas mais variadas necessidades e simbolismos, o que o coloca em contínua e indefinida interdependência do outro. As relações humanas são um complexo de caminhos pavimentados de parcerias, conflitos, paixões, angústias, contradições, embates e daí por diante. É nesse emaranhado que se consolida a intersecção entre o desenvolvimento do indivíduo, o grupo social e a forma de produção e organização da sociedade.

2.1.       Reflexões acerca da teoria sistêmica familiar e a mediação de conflitos

  

O presente estudo baseia-se no pensamento sistêmico para delinear o conceito de família como um sistema interativo, nutrido pela teoria geral dos sistemas desenvolvida por Bertallanfy (1976) e pela cibernética. Sendo assim, ela é vista como um sistema aberto por estar, através de seus membros, dentro e fora de uma interação com os outros e com sistemas extrafamiliares. Por ser um sistema, as ações e comportamentos de um dos membros influenciam simultaneamente o comportamento de todos os outros, e vice-versa. Nobre (1987) nos oferece uma definição interessante deste delineamento de família,

… um sistema aberto em permanente interação com seu meio ambiente interno e/ou externo, organizado de maneira estável, não rígida, em função de suas necessidades básicas e de um modus peculiar e compartilhado de ler e ordenar a realidade, construindo uma história e tecendo um conjunto de códigos (normas de convivência, regras ou acordos relacionais, crenças ou mitos familiares) que lhe dão singularidade. (NOBRE,1987, p.118,119)

A instituição família é um sistema relacional inserido numa diversidade de contextos e apesar de ser multimilenar, apresenta-se sempre com novas roupagens. Ao mesmo tempo em que tem um funcionamento próprio, procura atender às demandas da sociedade, da qual é o núcleo, e nesse esforço para adaptar-se, busca novas soluções para novos eventos. A família do século XXI é plural em sua configuração e “comporta, com legitimidade, matizes em sua composição, funcionamento e valores”, como afirma Tânia Almeida (2016, p.293) em seu artigo “Particularidades da Mediação Familiar”. Ela fala em mosaico interativo, ao pensar nos mais diferentes desenhos de convivência, pessoas e contextos, como as uniões homoafetivas, os casamentos e recasamentos, com ou sem filhos, famílias monoparentais, filhos adotivos, uniões interraciais, interculturais, enfim, em contexto tão complexo e diverso, com relações nunca antes vivenciadas, é premente a necessidade de sabermos lidar com estas novas questões, dentro da urgência do tempo e espaço, reconhecendo e respeitando as diferenças em nossa realidade atual.

Bem sabemos que a família é um sistema complexo que se move através do tempo e que se constitui em algo muito maior do que a soma de suas partes. Existe um ciclo de vida individual que acontece dentro do ciclo de vida familiar, integrante de um sistema geracional, que pode abranger até quatro gerações em movimento, através de diferentes etapas desta vida familiar no tempo. Essas etapas demarcam os distintos momentos de vida de seus integrantes.

As autoras Carter, Mc Goldrick e colaboradores (1995) em muito contribuíram para a ampliação de nosso pensar com seus trabalhos voltados às mudanças no ciclo de vida familiar. Elas subdividem estas etapas em estágios, iniciando com o “jovem adulto solteiro”, o casal recém-formado, o estágio do filho pequeno, a família com os adolescentes, o lançamento dos filhos ao mundo e o estágio tardio da vida.

Para as autoras, o estresse familiar é geralmente maior nos pontos de transição de um estágio para outro no processo desenvolvimental familiar. Adicionalmente, estes diferentes estágios trazem diferenças significativas na maneira como as famílias lidam com os eventos que surgem em suas histórias particulares. Por exemplo, o nascimento de um filho, evento tão significativo, que poderia ser celebrado com muita alegria em um determinado momento, se acontece concomitantemente com o falecimento de um avô, pode se tornar um problema.

As autoras trabalham com conceito de estressores, movimentos que provocam estresse ou tensão, geradores de ansiedade ao sistema familiar. Estes poderiam ser horizontais e verticais. Os primeiros seriam os previsíveis, desenvolvimentais relativos às transições de ciclo de vida, mencionados nos estágios acima, incluindo também eventos imprevisíveis, como morte precoce, doença crônica ou acidente. Os verticais incluem os padrões de relacionamento e funcionamento do sistema, a partir de tabus, segredos, crenças, expectativas transmitidas pelas gerações e que irão interferir fortemente, não só nas relações internas do grupo, como também nas relações entre o grupo familiar e o meio social.

Carter e Mc Goldrick ressaltam que embora as famílias tenham papéis e funções, seu principal valor são os relacionamentos, que são insubstituíveis. Membros familiares jamais serão substituídos em seus aspectos emocionais. Os novos participantes das famílias são incorporados pelo nascimento, adoção ou casamento e vão embora apenas pela morte, se é que vão. Não se entra em nenhum relacionamento familiar por escolha, a não ser no casamento, e a conjugalidade pode não ser para sempre, mas a parentalidade sim, é eterna.

Além da complexidade das questões e temas envolvendo a família, estes ainda se mesclam com aspectos legais, religiosos, políticos, econômicos, de gênero, culturais e emocionais, quando, por exemplo, o litígio se transforma em forma de vínculo, com os sujeitos do inconsciente e do Direito embolados entre si. Precisamos ter consciência de que toda e qualquer intervenção sobre um membro da família, repercutirá em todos, como defende a visão sistêmica, e esse olhar e abordagem precisam de lentes multifocais, especialmente no âmbito de conflitos que uma mediação terá que cuidar.

A mediação é uma prática e um saber transdisciplinar, que utiliza esse olhar multifocal e prospectivo para clarear, compreender e mapear o conflito, focando o futuro, preservando as relações, convidando os envolvidos na situação controversa a reconhecerem seu vínculo de interdependência na origem do problema e em sua solução. Trabalhando em conjunto, eles poderão chegar a resoluções de interesse comum e benefício mútuo. É a composição ganha- ganha com aprendizado do convívio com as diferenças. Seu propósito é humanizador e transformador para toda sociedade.

A Mediação é um método de manejo de conflitos em sintonia com a contemporaneidade e com a natureza das questões da área da família, base de nossa sociedade. O instituto vem experimentando intenso crescimento em todo o Brasil e as ações ou demandas mais atendidas nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania são: divórcio ou dissolução de união estável, com e sem partilha de bens; guarda ou responsabilidade compartilhada e convivência dos filhos com as famílias materna e paterna; questões da forma de contribuição dos pais para a manutenção financeira dos filhos menores ou ainda estudantes; inventário/espólio; casos de adoção e relações entre sócios de empresas familiares. A mediação, além de célere, com menores custas processuais, tem soluções flexíveis, adequadas e efetivas, de rápida implementação. O novo Código de Processo Civil (2015) vem ratificar a especial atenção dada às famílias pelo legislador, quando torna obrigatória a mediação nas ações familiares.

Os novos paradigmas acolhendo a totalidade em detrimento da fragmentação, a inserção da complexidade, visão sistêmica e a noção de sustentabilidade, a partir da mobilização dos recursos próprios das pessoas em prol de seu crescimento, desenvolvimento pessoal e coletivo estão em conexão integral com os princípios norteadores da Mediação. Embalados nesta busca de um novo rumo em nossa sociedade, elegemos, para nos conduzir na empreitada de adentrar no campo de forças operantes nos conflitos familiares e que precisará ser reconhecido e cuidado numa mediação, as contribuições do psicólogo humanista Carl Rogers, que dedicou a última década de sua vida à aplicação de sua teoria na área de conflitos sociais, contribuindo enormemente ao campo de Mediação de Conflitos.

3.    TRABALHANDO A NOÇÃO DE CONFLITO EM MEDIAÇÃO FAMILIAR

 

Para podermos avançar em nossa discussão, precisaremos demarcar a noção de conflito que utilizamos e contamos com as valiosas contribuições da psicóloga argentina Marinés Suares, a partir de seu texto “La noción de conflicto em mediación”.

Para a autora, conflito poderia ser definido como um complexo processo interacional, que nasce, cresce, se desenvolve e pode, às vezes, se transformar, desaparecer e/ou se dissolver e, em outras vezes, permanecer relativamente estacionado. Este processo seria construído por duas ou mais partes (pessoas, grupos grandes ou pequenos) que se relacionam de forma integral8, na qual as relações antagônicas, não necessariamente agressivas, predominam sobre as relações atrativas. Este conflito poderá ser conduzido pelas partes ou por um terceiro (SUARES, 1996, p.78).

Suares amplia nossa visão para a questão ao pontuar as funções positivas dos conflitos, percebendo-os como um fenômeno natural, lembrando que vivemos dentro de sistemas, com regras, elementos e atributos diversos e as diferenças existem, levando a relações antagônicas (crenças, interesses, necessidades diferentes), tão fundamentais no caminho da evolução, crescimento e aprendizagem, porém mal vistas pelo imaginário social, que propaga o amor ao semelhante, o desejo pela tranquilidade, por vezes, a diferença como agressão e o conflito como algo negativo. O conflito então se originaria numa “luta”, uma oposição entre as pessoas em função de alguma incompatibilidade em algum setor de suas vidas, seja em condutas, bens, poder, aspectos cognitivos e seria co-construído e gerenciado (uma condução que pode escalar ou diminuir o conflito) por elas. O conflito em si não é algo bom ou ruim, mas a forma com que lidamos com ele, é que poderá ser construtiva ou não. Podemos encará- lo como uma oportunidade de crescimento, mudanças e co-operação, uma necessidade de atualizar acordos ou combinados que não servem ou não funcionam mais, preservando a relação social ou como disputa, competição, fuga e polarização, deteriorando a relação.

Muszkat 9 , em seu “Guia Prático de mediação de conflitos”, fala do conceito de conflito intrapsíquico, como sendo a oposição das exigências internas/representações do ser humano, que precisará lidar com elas, a despeito do desconforto provocado. Nas relações humanas, falamos de conflitos interpessoais, quando as exigências, expectativas e idealizações pessoais são contrárias umas às outras e seria justamente “por meio desses constrangimentos gerados, quando os sujeitos sentem-se frustrados nos seus interesses, eles podem vir a se tornar opositores irreconciliáveis, mas também constroem a noção de Eu individual e singular” (MUSZKAT, 2008, p.27).

O convite é partirmos para uma gestão multidimensional dos conflitos, saindo do ‘certo ou errado’, ‘pode ou não pode’, incluindo diversos aspectos, como os subjetivos, que a Lei não consegue regular e a mediação abraça, por exemplo. Fundamental neste manejo é mapearmos os conflitos, separando as pessoas dos problemas e levantando todas as ações já adotadas para a resolução das controvérsias.

Dentro do âmbito das famílias e seus conflitos, trabalhadas neste estudo como  sistemas abertos de relações, compostos de subsistemas (conjugal, parental, filial, fraternal), integrante de um sistema social e onde cada membro influi e é influenciado pelo outro reciprocamente, onde tudo que acontece com qualquer um dos integrantes, afeta todos os outros e o comportamento do sistema não é a simples soma de como as partes se comportam, o manejo dos conflitos precisa considerar o forte conteúdo emocional e a preservação do relacionamento futuro entre as partes, pois a relação não se encerra com o episódio conflitivo. Fiorelli, Malhadas e Moraes (2004) alinham alguns passos para iluminar a abordagem sistêmica na mediação, entre eles, identificar os agentes formadores de opinião e o momento do ciclo vital do sistema, identificar os processos disfuncionais, atentar para a estrutura de relacionamento, para as narrativas, as emoções em jogo e ter sempre em mente que o  mediador é parte do sistema vivo de cada mediando. Esses passos estão em total sintonia com as contribuições da Psicologia Humanista.

4.    APORTES DA PSICOLOGIA HUMANISTA PARA A MEDIAÇÃO NOS CONFLITOS FAMILIARES

 

A Psicologia Humanista ganha maior evidência na história da psicologia, especialmente por apresentar uma nova proposta de abordagem humana, chegando como uma terceira força, na década de 60, capaz de fazer frente ao que julgava ser uma desumanização determinista da imagem de ser humano, promovida pelo Behaviorismo e pela Psicanálise. Carl Rogers foi um de seus maiores expoentes, cuja proposta de abordagem sempre foi de respeito e foco no Ser Humano e crença em suas potencialidades. Sua prática psicoterapêutica foi considerada profundamente inovadora e revolucionária para a época e ainda na atualidade. Justamente pela identificação de muitas contribuições rogerianas permeando o exercício da Mediação de conflitos no momento presente, é que as colocarei em destaque para nossa reflexão, fazendo uma analogia do terapeuta com o mediador10, razão pela qual em alguns momentos no texto usarei o termo terapeuta/mediador.

Os interesses de Carl Rogers assumiram focos diferentes ao longo de sua vida e repercutiram em sua teoria e abordagem, que ficou conhecida como Abordagem Centrada na Pessoa, amparada no pressuposto básico da “tendência atualizante”. Do mundo subjetivo do indivíduo, passando para as interações sociais, facilitação de grupos, mediação de conflitos entre nações até processos de paz, sua ideia central reside na crença de que todos os seres humanos possuem uma tendência inerente a desenvolver todas as suas potencialidades, de maneira a favorecer sua conservação e enriquecimento. Argumenta-se que todos possuem dentro de si os recursos necessários para o seu próprio crescimento.

Rogers busca discutir, incessantemente, a criação daquilo que ele definiu como as condições apropriadas ou “atitudes psicológicas facilitativas” para o afloramento dessas potências, apostando na capacidade que as pessoas têm, desde que sejam oferecidas algumas condições psicológicas básicas, para se conduzirem por conta própria, para “se governarem”(1980). Estas atitudes incluem o respeito pelo cliente11, a confiança nas suas capacidades inatas de crescimento e criatividade, uma atitude não-diretiva12 e as atitudes terapêuticas – congruência, olhar positivo incondicional e compreensão empática (1976). Todas as interações são focadas no aqui e no agora, com o terapeuta/mediador como um facilitador da ampliação do campo perceptual das pessoas e observador participante desta relação, entendendo que a relação que ocorre em mediação, tal como a relação terapêutica, é uma experimentação consciente de uma nova maneira de se relacionar e que só poderá acontecer se for a vontade dos mediandos.

4.1.       Consideração positiva incondicional, empatia e escuta ativa

  

As situações de conflitos, que serão manejadas numa mediação, mobilizam fortemente as partes envolvidas, que precisarão ser acolhidas, legitimadas, ouvidas e respeitadas, criando um ambiente facilitador para que possam sentir-se à vontade para expressarem seus sentimentos e poder ser construída uma relação de confiança. Essa integração de aceitação, atenção mútua, positividade e coordenação também é conhecida pelos mediadores como rapport e é tarefa do mediador criar e manter esta atmosfera receptiva e favorável, assim como conduzir o processo da mediação, cuidando e respeitando os princípios norteadores e as regras estabelecidas da prática.

Rogers traz a consideração positiva incondicional como uma ferramenta essencial de valorização do outro, pois no ato de se buscar compreender esse outro, empática e ativamente, sem nenhum julgamento, possibilita-se uma reestruturação na maneira com que uma pessoa reconhece a outra, abrindo caminhos para desbloquear sentimentos, clarear percepções e para a retomada de uma comunicação, ampliando as alternativas mais saudáveis para a resolução das controvérsias. Esse movimento de se voltar para o outro, que seria iniciado pelo terapeuta/mediador com os mediandos, acreditando em sua potência, criatividade, em seu saber, empodera os mesmos, que, num segundo momento, poderão fazer o mesmo entre eles, abrindo caminhos e saídas para os impasses. Ninguém melhor que os envolvidos para saber e decidir o que é melhor para ambos, afinal são eles os protagonistas de suas vidas.

Em relação a esse esforço de compreensão do outro, Rogers acrescenta que o mesmo movimento também precisa ser realizado para dentro do terapeuta/mediador, de forma a que ele se perceba neste sistema do qual também faz parte e reconheça seus sentimentos. Nesse sentido, Battaglia complementa argumentando que o” terapeuta é um observador participante e um facilitador inserido”. (BATTAGLIA, 2002, p.64)

A autora, em sua dissertação de mestrado, é muito elucidativa em seu entendimento do que seria uma compreensão empática dentro da Abordagem Centrada na Pessoa de Rogers, apontando a impossibilidade de coexistência de uma postura de empatia e uma avaliação, seja diagnóstica ou de juízo de valor. O movimento de imergir no mundo subjetivo do outro, buscando compreender as experiências e percepções da forma com que são apreendidas e traduzidas por esse outro é o que se entende por empatia. É a conexão, que confortará muito mais as pessoas do que qualquer resposta que possa ser dita. Trazendo para a mediação, também não há interpretação e sim disposição para adentrar neste mundo do outro, compreender, abrindo mão de todo e qualquer saber ou poder. “Este poder está totalmente direcionado para a capacidade de facilitação do desabrochar do poder do cliente, que em nosso caso é a família”. (BATTAGLIA, 2002, p.66)

Nos trabalhos envolvendo famílias, notamos que os conflitos são maiores na medida em que as percepções de cada membro deste sistema sobre a própria família são mais distintas. Por isso, é fundamental que possamos criar um ambiente facilitador para que esses membros possam ter vez e voz, possam se escutar, se colocar no lugar do outro e, muito importante, que possam incluir em sua escuta o ponto de vista do outro. Desta forma, dissolvendo os ataques, julgamentos e com sentimento de valorização e respeito, as pessoas são afagadas em sua autoestima, se tornam mais abertas para discutir e rever suas posições, para costurar um entendimento mútuo, trazendo novas percepções, mudanças ao sistema, outras sugestões, percebendo que todos são co-laboradores e co-construtores do conflito e da solução.

A escuta ativa é uma ferramenta fundamental do mediador para a construção desse rapport e envolve um ouvir atento, interessado, paciente, persistente com o corpo inteiro e com a alma. Envolve compreender as percepções do outro, sentir suas emoções e ouvir efetivamente o que o outro está tentando dizer. Uma escuta rigorosa e acolhedora onde o mediador qualifica as falas dos participantes e consiga ter de fato um entendimento das condições que cercam o problema, demonstrando compreender, sem julgamentos, a questão, o sentimento, a dinâmica do conflito, o que não significa interpretar ou concordar. Esse escutar envolve um acompanhamento da linha de raciocínio das pessoas em seus discursos, um fazer perguntas para esclarecer pontos obscuros, ampliando as informações trazidas e promovendo reflexões, que posteriormente poderão levar à implicação dos mesmos.

Outro ponto de destaque é que os mediadores não ouvem insultos ou repetem palavras agressivas, mas os traduzem em valores, interesses, possibilidades e em pedidos explícitos e claros. Não visando apenas a questão do aprendizado, mas incentivando a reflexão e abertura do canal perceptivo dos mediandos sobre a forma como expõem seus pensamentos e suas propostas, pois interferirá na maneira pela qual o outro vai recebê-los. A intenção é que as pessoas possam replicar o mesmo cuidado com que foram tratadas pelo terapeuta/mediador consigo mesmas e com outros de suas vidas.

4.2.       Comunicação e narrativa

  

Pelo que foi exposto até agora, é possível perceber que todo esse panorama relacional envolve e necessita de processos comunicativos. O processo de facilitação que descrevemos acima vai se instrumentalizar pela comunicação, verbal e não verbal (gestos, olhares, expressões, inflexão na voz, silêncio) do terapeuta/mediador, que procurará na condução da mediação, promover e inaugurar novas formas de comunicação não violenta. Comunicação gera comportamento.

O termo “Comunicação Não Violenta”, cunhado por Marshall Rosemberg é central na mediação e essencial para uma convivência civilizatória mais pacífica e respeitosa. “Uma abordagem específica, um falar e ouvir, que nos leva a nos entregarmos de coração, ligando- nos a nós mesmos e aos outros de forma que permite que nossa compaixão natural floresça.” (ROSEMBERG, 2006, p.21). Uma comunicação que envolve respostas conscientes do que estamos percebendo, sentindo, desejando e pedindo. Uma expressão honesta e clara e uma atenção respeitosa e empática ao outro. O mediador é um facilitador da comunicação e precisa transformar a linguagem acusatória em conciliatória, as posições em interesses e necessidades, o debate em consenso, a polarização em entendimento. Muito importante também separar a pauta subjetiva, que diz respeito ao relacionamento entre as pessoas, da pauta objetiva, que remete às questões substantivas, para tentar separar, na medida do possível, o emaranhado de tantas questões.

Neste momento de interação entre os mediandos, o mediador se dedicará a cuidar para que os diálogos sejam produtivos, ou seja, respeitosos, para que eles possam se expressar, se escutar, se entender, promovendo um refletir conjunto e uma co-autoria na busca de soluções de benefícios mútuos. O discurso positivo os estimulará a se ouvirem e assim poderão caminhar no sentido de realizarem os interesses mútuos.

Dentro deste processo, é preciso destacar o papel das narrativas, das perguntas e da reflexão. A narrativa envolve diversos aspectos do contar uma história: tempo, espaço, foco, personagens. É singular e cheia de recortes, escolhas conscientes ou não, de fatos e experiências vividas, sentidas e/ou desejadas trazidas pelas partes. O mediador ficará como depositário ou memória destas narrativas, que, nos momentos de conflitos e desentendimentos costumam vir mobilizadas de emoções fortes, carregadas de aspectos negativos, ataques,  visão unilateral e adversarial, desequilibrando as pessoas, que acabam perdendo a conexão com seu íntimo e com o outro. Neste momento é que se faz necessário o resgate de narrativas alternativas, aquelas que não foram ou puderam ser contadas, mas que existiram. No movimento do recontar das histórias, com conotação positiva, transformando acusações em preocupações e necessidades não atendidas, o mediador conduz as partes a revisitar o passado, não para ficar lá, mas para ter mais conhecimento sobre si, reconhecer seus atos, refletir, se implicar e poder fazer diferente. Objetiva-se que os mediandos consigam construir novas narrativas, ressignifiquem suas atitudes e as atitudes dos outros, transformem suas relações.

Assim como a conversa terapêutica, a mediação se pauta nas perguntas como intervenção mais significativa. É por meio das perguntas, obviamente bem cuidadas 13 e criteriosas, que promovemos o pensar, informar, esclarecer e que também demonstramos nosso interesse e o valor que as pessoas possuem. Com perguntas, também marcamos nosso não-saber, pois na qualidade deste perguntar estará implícita nossa disponibilidade em escutar ativamente, nossa conexão com as pessoas e nossa crença na potencialidade delas assumirem as rédeas de suas vidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

  

O sistema público de resolução de conflitos, que envolve o Poder Judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público, Secretarias de Justiça e vários outros órgãos de prevenção ou resolução de conflitos, caminha na direção de um sistema multiportas para tratamento dos conflitos, onde todos têm o direito de ir à Justiça, porém podendo escolher que opção considera melhor para seu caso. Da negociação direta entre os envolvidos, ao processo judicial com a sentença de um juiz, à arbitragem com a decisão de um árbitro, conciliação, até à mediação, judicial e privada (extrajudicial).

Atualmente, a grande estrela tem sido a Mediação que, desde a entrada do novo CPC, se tornou obrigatória nas ações de família e tem sido muito estudada, discutida, divulgada, indicada e utilizada em diversos âmbitos, dentro e fora do Poder Judiciário, seja envolvendo famílias, relação de consumo, conflitos empresariais, ambientais, entre outros. Houve um grande crescimento do número de câmaras de mediação no país, tanto na área pública quanto na esfera privada, de cursos criados para formação e capacitação de mediadores, bem como considerável empenho, de magistrados, advogados, mediadores, conciliadores, dentre outros agentes, na defesa dos consensos, ao invés dos confrontos, visando à busca de alternativas mais inclusivas e sustentáveis no tempo. A novidade mais recente foi a autorização para que os Cartórios realizem a mediação extrajudicial, âmbito especialmente promissor ao desenvolvimento desta prática. Paralelamente, também é grande a reação negativa de alguns juízes, advogados e setores públicos, ainda são muitas as indefinições e dúvidas envolvendo procedimentos e remuneração dos mediadores, bem como existe muita divergência entre as posturas adotadas pelos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania no Brasil.

A mediação é uma poderosa ferramenta não adversarial de resolução de conflitos, seja na esfera judicial ou extrajudicial e tem um cunho restaurativo, auto compositivo e preventivo. Sua proposta é de transformação na cultura e na qualidade relacional humana, trazendo uma nova lógica, uma nova forma de pensar, agir e existir. Como denuncia Foucault, “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (FOUCAULT, 1971/1996, p.26), relacionando as práticas discursivas e as diversas formas de poder, ficando a dúvida se o instituto será capturado, consumido, formatado e aprisionado pelos “velhos dogmas”14 ou se chegou como linha de fuga, resistência, um novo compromisso político- social. De qualquer forma, a mediação depende muito da prática para o aperfeiçoamento e aprofundamento desse saber vivo, dinâmico e, para se sedimentar na cultura, muitos são os desafios que já está enfrentando e outros que ainda virão.

Consideramos importante lembrar que a mediação não é apenas um conjunto de técnicas e habilidades que o mediador aprende e desenvolve, mas requer uma transformação de si mesmo como pessoa e não só como mediador. É uma maneira de se estar no mundo, uma maneira artística, não mecânica de ser. Todas as atitudes facilitativas, que deram embasamento teórico a este estudo, precisam estar internalizadas e continuamente nutridas, trabalhadas dentro do mediador, pois o mesmo movimento de acolhimento, legitimação e não julgamento que fazemos com os outros, precisa ser antes inaugurado dentro de nós. O mesmo se aplica à comunicação não violenta e às narrativas.

Diante de tantos elementos, o que nos ajudará a defender e cuidar do Instituto da Mediação é nossa ética, aqui entendida como uma reflexão constante das ações e intervenções que adotaremos, à luz dos princípios estruturantes da mediação, um modo de ser, um conjunto de atitudes que entendemos como corretas ou adequadas para cada situação. Uma nova ótica inaugurando uma nova ética e uma nova Justiça.

É fundamental perceber a quantidade de forças presentes neste campo e a necessidade de constante avaliação e reflexão da prática, seja antes e depois de cada mediação ou nas supervisões, importante para troca de experiências e alinhamento, do que é mediação. Que nós, mediadores, possamos ser faróis de luz, não para indicar o caminho a seguir para as pessoas, mas para iluminar as opções trazidas e escolhidas por elas, fazer desabrochar o seu poder.

A revolução paradigmática está nas ações, nos olhares, nos conceitos, nos materiais produzidos, nos enunciados que se voltaram para a preocupação com o Ser Humano e que assim precisa permanecer. Somente um trabalho conjunto em rede com os mais diversos atores sociais é que garantirá um novo pacto social.

Recorrer a Foucault (2004) nos suporta, pois ele propõe sempre reflexões trilhando o caminho da ética, pensada a partir da liberdade, responsabilidade e de uma estética da existência, que significa capacidade de nos autogovernarmos. Seguindo esta direção, que a prática da mediação possa ser vista e trabalhada como um instrumento de libertação, revolução e empoderamento das pessoas, rumo a uma pacificação social, enriquecimento relacional e sustentabilidade existencial. Jamais a serviço de um assujeitamento, aprisionamento, manipulação para celebração de acordos, visando apenas o desafogar da justiça, a satisfação de interesses econômicos, mantendo o status quo, a desigualdade e o empobrecimento relacional.

Carl Rogers, em seu livro Sobre o poder pessoal (1978), entende que as relações de poder próprias do sistema capitalista anulam a liberdade de escolha ou de decisão das pessoas. Para ele, essas relações, quando ocorrem assimetricamente, como vêm ocorrendo, reforçam ainda mais os laços de dominação. A qualidade relacional fica comprometida, com relações muito autoritárias, funcionando, basicamente, por meios opressivos. Diante dessas reflexões, uma saída, vislumbrada por Rogers, seria através do poder pessoal, como caminho de  combate à ordem social vigente, inaugurando novos modos de relacionamento e condução das pessoas em prol de um mundo mais justo.

Entendemos ser inegável que a Mediação representa em sua essência uma prática política, um saber emergente totalmente em sintonia com a contemporaneidade, com os novos paradigmas, uma nova cultura em consonância com as demandas e necessidades de nossa sociedade, produtora de impactos benéficos e transformadores para todos. Atende aos ideais democráticos de liberdade, afirmação dos direitos individuais, devolve aos cidadãos as rédeas de condução e responsabilização por suas vidas, assim como, a co-construção de um mundo melhor para se viver, juntos, misturados e com respeito.

Acordo não é barganha, onde um perde e o outro ganha. Acordo, com consenso e ganho para os dois, não haverá briga depois. As partes podem acordar, que acordo nenhum haverá.

O que é importante ficar é o respeito, o ouvir e dialogar. Somos parte do problema e também da solução. Intervir nas desavenças com mediação,

É como plantar sementes de amor em nossa Nação, É conviver com as diferenças e isso é revolução!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

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            . Novo Código de Processo Civil: Lei nº13.105 de 16 de Março de 2015

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Notas:

1 Economista, psicóloga e especialista em Psicologia Jurídica pela PUC – RJ. Pós graduada em Psicopedagogia pelo CEPERJ. Mediadora privada e judicial sênior do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Membro da Comissão de Mediação de Conflitos da OAB RJ, da Câmara Privada de Mediação da ABRH-RJ e da MEDIATHUS Câmara de

Mediação e Solução de Conflitos.

2 Ao longo de todo o trabalho, a escrita do termo em separado foi proposital para enfatizar o prefixo “co”, significando junto, em conjunto.

3 Relatório Justiça em números – http://cnj.jus.br/pesquisas-judiciais/justicaemnumeros/2016-10-21-13-13-04/pj- justica-em-numeros Acesso em 05 de agosto de 2019.

4      Lei        da       Mediação       nº       13.140       de       26       de       Junho       de       2015.       Disponível       em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13140.htm Acesso em 05 de agosto de 2019.

5 Novo Código de Processo Civil: Lei nº13.105 de 16 de Março de 2015.

6 Prefiro utilizar a palavra “pessoas” do que “partes”, pois além de ser um termo marcado juridicamente, nos transmite um sentido de fragmentação e não de totalidade do ser.

7 Em Passos (1995) é trabalhada a noção de campo, cujo eixo de sustentação seria, em ultima instância, a relação entre sujeito e objeto do conhecimento com fronteiras epistemológicas definidas e delimitação de disciplinas. Em Passos e Barros ( 2000), há uma crítica contemporânea desta estabilidade colocada pela transdisciplinaridade  que perturba estes limites e desestabiliza a dicotomia sujeito/objeto. Os autores propõem a noção de plano, desfazendo-se qualquer ponto fixo ou base de sustentação da experiência, abraçando todas as constituições e emergências a partir da qual toda realidade se constrói.

8 Em sua totalidade, com suas ações, pensamentos, afetos e discursos.

9 Psicanalista, mediadora e autora de outras obras envolvendo a Mediação.

10Novamente destacando que o mediador não é um terapeuta, não aprofunda as questões intrapsíquicas das partes, não interpreta e não trabalha com o mesmo tempo de um setting terapêutico, pelo contrário, precisa adequar os tempos do Direito, dos sujeitos envolvidos e da própria agenda do mediador.

11 Rogers aboliu o termo “paciente” para evitar a conotação de doença e passividade.

12 Entendida por Rogers como um respeito às decisões, escolhas e o saber do cliente (dos mediandos).

13 Atentando tanto para a forma quanto para o conteúdo, sempre no sentido de promoção de responsabilização, ampliação de ideias, empoderamento do sujeito e não aprisionamento.

14 Muszkat utilizou esse termo em seu Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações, 2008, p. 96.

Palavras Chaves

Mediação; conflitos; sistema familiar; psicologia humanista