DIREITO PENAL ECONÔMICO E SUA RELAÇÃO COM O SETOR PRIVADO

Resumo

O presente artigo pretende discutir a adequação do uso do direito penal econômico em um cenário globalizado, de relações sociais complexas e onde as empresas se constituem em fontes geradoras de riscos. Partindo da noção de que com a globalização as pessoas tornaram-se sujeitas a todo tipo de impacto em suas vidas cotidianas, busca-se examinar a possibilidade de um equilíbrio entre o uso do direito penal econômico paralelamente aos mecanismos administrativos de regulação econômica, verificando-se ainda se em um mundo altamente digitalizado e com complexas estruturas empresariais o direito penal econômico poderia se beneficiar dos mecanismos de autorregulação das pessoas jurídicas para auxiliar na detecção e prevenção de condutas ilícitas.

Artigo

DIREITO PENAL ECONÔMICO E SUA RELAÇÃO COM

O SETOR PRIVADO

Ana Luiza Barbosa de Sá

Resumo

O presente artigo pretende discutir a adequação do uso do direito penal econômico em um cenário globalizado, de relações sociais complexas e onde as empresas se constituem em fontes geradoras de riscos. Partindo da noção de que com a globalização as pessoas tornaram-se sujeitas a todo tipo de impacto em suas vidas cotidianas, busca-se examinar a possibilidade de um equilíbrio entre o uso do direito penal econômico paralelamente aos mecanismos administrativos de regulação econômica, verificando-se ainda se em um mundo altamente digitalizado e com complexas estruturas empresariais o direito penal econômico poderia se beneficiar dos mecanismos de autorregulação das pessoas jurídicas para auxiliar na detecção e prevenção de condutas ilícitas.

Palavras-chave: Globalização, Direito Penal Econômico, Autorregulação, Compliance.

  1. A globalização, os riscos e o direito.

            Com os acontecimentos mundiais recentes, incluindo pandemia, guerras, tragédias ambientais, crise climática, vem cada vez mais se intensificando a sensação de que os países e suas respectivas populações, se antes se consideravam beneficiários do fenômeno da globalização, agora acabaram se tornando reféns de seus reflexos.

            O mundo passou a testemunhar um encurtamento das fronteiras mundiais, no sentido de que “nenhum acontecimento no mundo nos é alheio e nenhuma parte do mundo nos é estranha”, seja no tocante à tecnologia, cultura, meio ambiente, política, economia, e daí por diante (FERRAJOLI, 2002, p. 47).

            Ulrich Beck, em sua obra “sociedade risco: rumo a uma outra modernidade” já alertava, em 1986, que a moderna sociedade industrial traria um sentimento de insegurança e de quebra de confiança por parte das pessoas, que se veriam obrigadas a um estilo de vida transnacional mesmo contra a sua vontade: “a vida da folha de grama na floresta bávara passa a depender da assinatura e implementação de acordos internacionais” (BECK, 2010, p. 27).

            Em sua obra, fala de riscos decorrentes do desenvolvimento das forças produtivas (muitas vezes fora da percepção humana imediata), de situações sociais de ameaças produzidas pela própria sociedade industrial, de riscos de modernização que ultrapassam a competência de um único Estado Nacional, dos problemas de saúde resultantes para a natureza e o ser humano, e dos efeitos colaterais sociais, econômicos e políticos que poderiam levar a sociedade de risco a um constante estado de exceção (BECK, 2010 p. 27/28).

            Tais questões mencionadas na obra de Beck continuam sendo atuais e podem também se projetar para o futuro. Como exemplo, pode-se citar os mais recentes estudos sobre a existência de micro plásticos nos oceanos, prejudicando o ecossistema e por consequência a saúde humana. Na mesma linha, não é incomum que os consumidores se vejam sujeitos a uma gama de produtos cuja matéria prima possa estar viciada na origem, ou cuja produção em território estrangeiro possa dificultar a devida fiscalização nacional quanto a sua aptidão ao consumo, antes mesmo de impedir que a distribuição já tenha alcançado a cadeia global de fornecimento, fazendo com que as consequências venham a ser conhecidas somente a posteriori e dificultando o exame quanto à relação de causa e efeito.

            Aliado a isso, as empresas, pelo seu gigantismo, passaram a desempenhar papel fundamental nas relações econômicas, trocando o local de suas instalações de acordo com os benefícios que podem auferir, seja de rentabilidade seja de maior flexibilidade dos domínios fiscal, ambiental, trabalhista, entre outros. O que, de acordo com a professora Anabela Rodrigues, incluiria também a disciplina do direito penal, cuja maior ou menor rigidez da legislação poderia atuar como uma das condicionantes para o investimento ou, por outro lado, ser por este último condicionado (RODRIGUES, 2019, p. 17).

            Mas seria no campo econômico onde os riscos se materializariam de forma mais evidente no aspecto da globalização. De fato, tem sido possível observar tanto uma intensa ligação entre os mercados financeiros, quanto uma maior fragmentação e dispersão do processo produtivo, fazendo com que muitas vezes as pessoas acabem sentindo em seu dia a dia o reflexo pelo aumento geral dos preços, das elevadas taxas de inflação e do capital especulativo.

            Estar-se-ia diante de um capitalismo financeiro catapultado pela revolução tecnológica, em especial após a disseminação do uso da internet, do incremento do uso da tecnologia e da proliferação de cibermundos. É a transição de uma economia real para uma economia virtual, onde títulos de dívidas são negociados, dados em garantia, moedas virtuais são criadas, criptomoedas adotam forma de investimentos, mas quando acontece uma quebra na cadeia de confiança creditícia não é raro que se tenha dificuldade em identificar o real responsável pela crise econômica instalada.

            Esses são temas muito afetos ao setor privado, principal detentor das mais sofisticadas tecnologias, mas que parecem merecer a intervenção por parte do Estado para assegurar qualidade de vida aos seus cidadãos, o que poderia se dar com a adoção de políticas públicas, com a intensificação da atuação dos órgãos de fiscalização e com o fortalecimento do papel das agências reguladoras.

            Da mesma forma o direito precisará se adaptar a essa nova realidade e auxiliar na estruturação da regulamentação necessária para que a Administração Pública disponha de instrumentos de gestão mais eficazes para tentar controlar os riscos que poderão advir das atividades empresariais desempenhadas.

            Resta saber qual o papel a ser desempenhado pelo ramo penal do direito, caracterizado pela segurança jurídica e pela estrita legalidade, em um mundo cada vez mais digitalizado, de incremento dos riscos, de desigualdades sociais, de crises climáticas e de incertezas quanto às novas formas de agir e aos mais variados danos que poderão vir a ser suportados pela população em geral.

  1. Direito penal econômico e seu papel em um mundo globalizado

            O direito penal clássico como hoje se observa deve sua estruturação ao surgimento da noção de Estado de Direito, onde os poderes públicos são limitados pelas normas constitucionais, e cuja missão principal consiste em defender a sociedade do próprio Estado a partir da técnica da divisão de poderes e do uso do princípio da legalidade. Assim, se entendia estar preservada a vida privada dos cidadãos e garantida a livre circulação de ideias, pessoas e bens, em um Estado pautado pelo princípio da legalidade, com os poderes limitados pela criação de regras gerais, abstratas e previsíveis (SÁ, 2014, p. 124).

            Nesse contexto, o direito penal deve exercer a função de limitar o poder punitivo do Estado, evitando arbitrariedades. Como consequência, as sanções penais devem ser utilizadas de forma equilibrada e proporcional, fazendo uso de determinados princípios capazes de lhes conferir legitimidade, nomeadamente os princípios da legalidade (leis escritas, prévias, estritas e certas), da proporcionalidade, da subsidiariedade, intervenção mínima, fragmentariedade e lesividade.

            Paralelamente, o direito penal foi se afastando da ideia de que teria como objetivo evitar ofensas a um direito subjetivo, e se fortalecendo o conceito de tutela de bens jurídicos, admitindo-se que faz parte do “poder del Estado garantizar parejamente el disfrute de ciertos bienes a todos los hombres que viven em él, bienes dados a éstos por la naturaliza o que son el resultado de su desarrollo social et de la asociación civil” (BIRNBAUM, 2010, p. 58).

            Logo, para caracterização do fato criminoso seria necessário identificar de maneira precisa o autor do delito, o ato criminoso, o bem jurídico violado, a vítima e o dano sofrido. O que, de acordo com Cavero, era mais fácil de ser observado em uma época em que as atividades econômicas e as relações de produção e de consumo não se revestiam de tanta complexidade (CAVERO, 2007, p. 5).

            Entre o final do século XVIII e o século XIX, dois eventos tiveram reflexo direto na regulação jurídica: a eclosão da Revolução Industrial, em que o mundo passou a testemunhar um processo de produção em massa e a criação de um sistema econômico independente dos interesses patrimoniais individuais, e o surgimento da ideologia do liberalismo econômico, com a ideia da mão invisível do mercado. Ou seja, o Estado somente deveria atuar o mínimo necessário para impedir abusos das regras de mercado pelos particulares (CAVERO, 2007, p.8).

            Essa ideologia liberal permitiu a concentração de capital por parte das empresas, fazendo surgir uma rivalidade entre o poder privado e o poder público. Foi possível então observar uma superprodução sem a correspondente demanda, e as consequências econômicas daí decorrentes, como o crack da bolsa de 1929 (ZINI, 2012, p. 150).

            Além disso, os prejuízos causados pelas Grandes Guerras e a necessidade tanto de reconstrução das estruturas sociais abaladas, quanto de suprimir os mais diversos riscos especialmente nos campos econômico e financeiro, fizeram com que o Estado se visse obrigado a assumir o papel de controlador da vida econômica para tentar garantir níveis mínimos de bem-estar à sociedade (RODRIGUES, 2019, p. 21).

            Nesse cenário de um Estado pós-liberal ganhou força a construção e a ideia de autonomia de outro ramo do direito, o do Direito Econômico, reconhecido expressamente no art. 24, I, da Constituição de 1988 e intimamente relacionado com a política econômica adotada pelo Estado na condução da economia em cada época. Como dito acima, já se assistiu a política liberal pautada na lei do mercado, para em seguida se adotar o intervencionismo pós guerra até os dias atuais, em que se fala em neoliberalismo de expansão do sistema econômico (ZINI, 2012, p. 152/153).

            Uma das peculiaridades do direito econômico é a busca do equilíbrio dentro de uma visão social, possuindo dentre suas características a eficiência pela maximização dos benefícios sociais obtidos, além da mobilidade, da flexibilidade e da revisibilidade, uma vez que lida com fatores econômicos influenciados tanto pela política econômica nacional quanto pela economia globalizada, o que lhe exige a capacidade de constante mudança (ZINI, 2012, p. 155).

            A política criminal estatal certamente não ficou imune a essa guinada do trato econômico, e vem sendo possível observar uma certa expansão do direito penal, com o desenvolvimento de leis criminais mais voltadas para a área econômica.

            Para salvaguardar a política econômica adotada, assegurar o cumprimento de metas pela Administração Pública, e ao mesmo tempo reverter a suposta corrente de crimes e de desordem trazidas pela industrialização, o Estado lançou mão de todas as ferramentas possíveis, aí incluído o direito penal em sua vertente de direito penal econômico. O controle da criminalidade passaria pela perseguição e acusação dos ditos criminosos, ou seja, “tudo o que se exigia era um enquadramento de ameaças e de respostas reativas” (GARLAND, 2008, p. 102/103).

            Ao mesmo tempo, com a pesquisa de Edwin H. Sutherland ganhou publicidade a noção de que agentes pertencentes a classes econômicas privilegiadas também poderiam cometer delitos, cunhando-se a expressão white colar crime, considerando os delitos econômicos como “crime in the upper, or white-collar class, which is composed of respectable, or at least respect, business and professional men” (SUTHERLAND, 1995, p. 29).

            Apesar de reconhecer a importância da pesquisa de Sutherland, não foi capaz de fornecer uma conceituação satisfatória do objeto de atuação dos delitos econômicos, surgindo ainda a discussão sobre a existência de um direito penal econômico como disciplina própria, com conceitos e institutos próprios, amparado no crescimento do progresso econômico, tecnológico e social e visando “combater a criminalidade que se imiscui nas relações econômicas aproveitando da dinamicidade, da impessoalidade e do anonimato” (ZINI, 2012, p. 155).

            Seu objetivo, portanto, seria tentar resguardar bens jurídicos coletivos ou supra individuais da vida econômica, buscando um equilíbrio entre o poder público e o privado dentro de um “conjunto de normas que define, institucionalmente, um determinado modo de produção econômica” (GRAU, 2004, p. 63).

            O risco na assunção da ideia de um direito penal econômico autônomo estaria em aceitar a possibilidade de flexibilização de garantias tão caras ao direito penal, supostamente justificada pela necessidade de acompanhar o ritmo dinâmico e maleável das regras econômicas. Mas esse argumento parece não se sustentar, pois até mesmo em ramos como o direito administrativo sancionador, aparentemente isento da carga punitiva, exige-se o respeito aos princípios de natureza penal e de processo penal como fonte de segurança jurídica.

            Não se contesta que o direito penal econômico constitui um instrumento utilizado pelo Estado para tentar impedir violações à regulação estatal da economia, com a finalidade de preservar interesses supraindividuais (TIEDEMANN, 1985, p. 19), nem que o custo financeiro suportado pela prática do delito de colarinho branco é muito superior que o dos delitos tradicionalmente considerados (SUTHERLAND, 1995, p. 13).

            Também não é possível ignorar que se trata de um instrumento com extrema carga simbólica, muitas vezes utilizado apenas para tranquilizar a sociedade, funcionando como uma espécie de minimizador de riscos de vida em comunidade pela simples previsão de uma punição penal, o que afastaria sua legitimidade.

            Mas desde que não se extrapole essa carga simbólica que a matéria já possui por natureza, e respeitados os princípios como os da legalidade, necessidade e da ultima ratio, o direito penal econômico pode servir como um recurso para o Estado combater novas e sofisticadas formas de lesão a bens jurídicos como meio ambiente, sistema financeiro etc. (RODRIGUES, 2019, p. 18-27).

            O que se rechaça é o uso do direito penal como um mero reforço de disposições administrativas, criando-se bens jurídicos-penais para atuarem não como limite de criminalização, mas como sua força propulsora, sendo constante o recurso a tipificações vagas e de perigo abstrato (RODRIGUES, 2019, p. 26). O risco estaria ainda no uso de expressões como “periculosidade social”, antecipando a tomada de providências pela justiça penal e favorecendo que sejam proferidas decisões judiciais, condenando ou absolvendo, sem a certeza necessária daquilo que o legislador pretendeu criminalizar (HASSEMER, MUNOZ CONDE, 1995, p. 40/41).

            A busca, portanto, é pelo equilíbrio entre os limites constitucionais e o respeito aos princípios penais, conjugados com a obrigação do Estado de assegurar a proteção a bens jurídicos relevantes, claramente identificáveis, que podem vir a sofrer ataques pelo desenvolvimento da atividade econômica (RODRIGUES, 2019, p. 28/29).

            É o reconhecimento de que os avanços tecnológicos atuais influenciaram decisivamente na rapidez com que se movem pessoas, ideias, coisas, dinheiro, e que isso teve reflexo direto no surgimento de comportamentos econômicos ilícitos que também merecerão a atenção do direito penal.

  1. A autorregulação e o compliance como instrumentos de auxílio à prevenção dos delitos econômicos.

            Nos dias atuais as empresas são vistas como principais agentes de riscos aos bens jurídicos coletivos, as quais geralmente se associa a prática de crimes contra o meio ambiente, contra a saúde pública, fraudes contábeis, dentre outros. Além disso, a produção de produtos e alimentos em larga escala, com sua comercialização em grandes cadeias de distribuição, pode dificultar a determinação dos processos causais e de definição de responsabilidades, somado a um anseio de oferecer o melhor produto pelo menor preço, o que poderia levar ao risco de falhas no processo produtivo com repercussões negativas aos consumidores e ao meio ambiente (ZUNIGA RODRIGUEZ, 2004, p. 155/156).

            De fato, esse progressivo aumento da complexidade das estruturas organizativas empresariais, do processo de globalização, da especialização de cada atividade e de suas correspondentes boas práticas são apenas exemplos de fatores que paulatinamente vêm tirando do Estado a capacidade de supervisionar e sancionar os mais variados setores produtivos de forma adequada (COCA VILA, 2013, p. 46).

            Ademais, as mais recentes tendências tecnológicas como transações financeiras envolvendo NFTs e empresas que buscam adquirir imóveis virtuais no metaverso, parecem indicar um futuro irreversível de intensificação da digitalização que poderia abrir espaço para novos meios de atuação da criminalidade econômica, envolvendo, por exemplo, uma maior sofisticação das práticas de lavagem de dinheiro e das fraudes em geral.

            De se destacar ainda as transações econômicas não nominativas, que utilizam tecnologias digitais e usam como identificador apenas um link com o hash da transação (basicamente um complexo número serial).Trazem consigo grande potencial para a prática de ilícitos, inclusive possibilitando o  financiamento ao terrorismo, em especial através do uso de transações eletrônicas de movimentação de criptomoedas, que a depender do tipo utilizado podem garantir anonimato e agilidade nas movimentações financeiras, dificultando seu rastreamento. Nessa senda, também perece a atuação do Estado, não só pela celeridade das transferências e questões de jurisdição nacionais, mas também pela dificuldade de rastreamento, o que compromete seu controle.

            Nesse cenário futurístico, não necessariamente o caminho para a prevenção da prática desses crimes deve passar pela criação de novos tipos penais, o que infelizmente tem sido a lógica do legislador penal, mas sim por um reforço às regras de gestão pública.

Os bens jurídicos em jogo já são conhecidos, e com raras exceções as tipificações já são suficientes a englobar inclusive os crimes cometidos por meio de um ambiente virtual. O que se poderia cogitar para o futuro seria o incremento da parceria entre público e privado, onde o público poderia criar regulamentações para gestão pública tendo por base regras jurídicas extrapenais, buscando adequar-se a um cenário de constantes mudanças, cabendo ao privado, por outro lado, implementar internamente essas regulamentações. Assim, as empresas não seriam vistas apenas como fontes de riscos, mas também como agentes que pudessem contribuir com a implementação de políticas públicas, incluindo aquelas voltadas para a prevenção de delitos econômicos.

            Como exemplo desse relacionamento entre o público e o privado é possível encontrar a regra Volcker, promulgada pelos órgãos reguladores norte-americanos com a finalidade de impor regras, procedimentos e restrições às entidades bancárias dos Estados Unidos da América. Pela regra Volcker, criaram-se exigências quanto aos elementos que devem integrar os programas de compliance dos bancos, tais como políticas e procedimentos escritos; sistema de controles internos; estrutura de gerenciamento que delineie claramente a responsabilidade pela conformidade; aplicação de testes independentes e auditoria da eficácia do programa de conformidade; treinamento para o pessoal de negociação e gerentes; e manutenção de registros suficientes para demonstrar conformidade. No caso de megabancos, ou bancos de grande porte, a regra exige ainda processos de governança mais detalhados, relatórios independentes e atestado de operações assinado pelo CEO (MILLER, 2014, p. 14).

            Regras como essa fariam parte de uma estratégia estatal de autorregulação, que se valeria de uma delegação às próprias empresas para implementar uma regularização mais rigorosa, com melhora qualitativa e quantitativa, de modo a “aprovechar todo el potencial de empresas y mercados para cumplir com su función regulatória, pues la eficácia de la intervención pública em el mundo empresarial precisaria y dependeria del recurso a la autorregulación” (COCA VILA, 2013, p. 47).

            Uma das facetas do sistema de autorregulação seria a eficaz implementação de um sistema de governança corporativa, desenvolvido de acordo com os princípios de justiça e equidade relativo aos acionistas minoritários, transparência das informações societárias, accountability pela necessidade de prestação de contas com base nas melhores técnicas de contabilidade e de auditoria, e compliance, referindo-se à conformidade e cumprimento das normas reguladoras, retratadas nos instrumentos normativos empresariais (RODRIGUES, 2019, p. 54)

            Especificamente no tocante ao compliance, possui como uma de suas funções a avaliação e mitigação de riscos empresariais, auxiliando na elaboração de controles internos para prevenir ilicitudes ou irregularidades, o que lhe permitiria servir como um mecanismo de auxílio ao direito penal econômico para prevenir e detectar riscos por descumprimento de regulações legais, customizados de acordo com as especificidades de cada atividade empresarial (TEIXEIRA, RIOS, 2017, p. 140/141).

            Além disso, independentemente da área de atuação específica da empresa, os setores de compliance devem atender a algumas boas práticas empresariais de aplicação geral, tais como background checks, due diligences e monitoramentos periódicos, esta última inclusive recomendada pelo COAF na Resolução nº 40/2021 para evitar a ocorrência de lavagem de dinheiro nas hipóteses de transações comerciais envolvendo pessoas expostas politicamente, tudo visando reduzir a possibilidade de envolvimento com práticas à margem das regulamentações legais.

Também de acordo com os ensinamentos de Peter Drucker, a corporação é uma instituição, devendo ter uma política básica que subordine as ambições e decisões individuais às necessidades de bem-estar e sobrevivência da própria corporação. Em outras palavras, deve existir um conjunto de princípios e uma regra de conduta que limite e direcione as ações e comportamentos individuais (DRUCKER, 1972, p. 36/37).

            A partir daí seria possível falar-se na edição de regras internas de acordo com a especificidade de cada nicho de atuação, viabilizando inclusive a criação de criminal compliance programs, que não apenas poderiam diminuir o risco de incidências penais, mas principalmente facilitariam alcançar os contornos para uma adequada responsabilização individual, sem a necessidade do oferecimento de denúncias coletivas genéricas, que podem acabar levando à imputação de pessoas físicas sem qualquer relação com a conduta criminosa pelo simples fato da dificuldade dos órgãos persecutórios em compreender a por vezes complexa estrutura organizacional empresarial.

            Não se pretende com isso aceitar qualquer argumento no sentido de que seria legítimo ao Estado transferir para as empresas a responsabilidade absoluta por prevenir e investigar a prática dos delitos econômicos, mesmo porque o setor de compliance das empresas não possui a força cogente de que se revestem as estruturas de persecução estatal. O que se sugere é que a parceria entre o Poder público e o setor privado pode ser benéfica para fornecimento de informações mais precisas que confiram eficácia às apurações de crimes econômicos e permitam uma adequada individualização das condutas, desde que o Estado confira algum tipo de incentivo que garanta às empresas, por exemplo, uma atenuação das sanções administrativas aplicadas em razão de eventuais desvios nela identificados.

            Em síntese, muitos são os desafios que o direito penal econômico deve enfrentar em um mundo cada vez mais virtualizado, com um fluxo de informações tão ágil e onde a complexidade das estruturas organizacionais dificulta identificar de onde teria partido a falha na gestão empresarial que pudesse levar, por exemplo, à lavagem de dinheiro de altas somas em um mercado de NFTs, a desastres ambientais ou a intoxicações alimentares que transcendem as populações de um Estado.

            Ao invés de se buscar apenas a criação de tipos penais vagos, sem a correta delimitação do bem jurídico que se pretende tutelar, e cuja aplicação é de duvidosa constitucionalidade, o futuro parece apontar para uma maior compreensão das atividades empresariais por parte dos órgãos de persecução penal, conferindo maior importância aos setores de compliance como ferramentas de prevenção.

  1. Bibliografia

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.

BIRNBAUM, Johann Michael Franz. Sobre la necesidad de una lesion de derechos para el concepto de delito. Montevideo: B de F Ltda., 2010.

CAVERO, Percy García. Derecho Penal Económico: parte general. Lima: Editora Jurídica Grijley, 2ª ed., 2007.

COCA VILA, Ivó. Programas de cumplimiento como forma de autorregulación regulada? In: Criminalidad de empresa y Compliance: prevención y reacciones corporativas. Barcelona: Atelier, 2013.

DRUCKER, Peter. Concept of the Corporation. Nova York: John Day Co, 1972.

FERRAJOLI, Luigi. A soberania do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 9ª ed., 2004.

HASSEMER, Winfried. MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por el producto em derecho penal. Valencia: Tirant lo blanch, 1995.

Miller, Geoffrey P. The compliance function: an overview (2014). New York University Law and Economics Working Papers. Paper 393.

RODRIGUES, Anabela Miranda. Direito penal econômico: uma política criminal na era compliance. Coimbra: Almedina, 2019.

SÁ, Ana Luiza Barbosa de. Controle racional das normas de direito penal econômico. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2014.

SUTHERLAND, Edwin H. White-Collar Criminality. In: White-Collar Crime. Classic and Contemporary Views. New York: The Free Press, 3ª ed., 1995.

TEIXEIRA, André Luiz Rapozo de Souza. RIOS, Marcos Camilo da Silva Souza. Compliance e Direito Empresarial Penal. In: Direito empresarial. Coord.: SIMÃO FILHO, Adalberto. GABRICH, Frederico de Andrade. Florianópolis: Conpedi, 2017.

TIEDEMANN, Klaus. Poder económico y delito. Barcelona: Editorial Ariel, 1985.

ZINI, Julio Cesar Faria. Apontamentos sobre o direito penal Econômico e suas especificidades. In:  Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 60, p. 147 a 207, jan./jun. 2012.

ZUNIGA RODRIGUEZ, Laura. La cuestión de la responsabilidad penal de las personas jurídicas :um punto y seguido. Revista de Derecho, Universidad Católica del Norte (Coquimbo. En línea), Ano 11, nº 2, 2004, 149-186.

 

[1] Doutora em direito penal pela Faculdade de Direito da UERJ. Especialista em Direito Penal e Compliance, pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu, IDPEE, Portugal. Professora convidada dos cursos de pós-graduação da FGV e do IBMEC, Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Advogada, CCEP-I, membro do IAB e da AIDP.

Palavras Chaves

Globalização, Direito Penal Econômico, Autorregulação, Compliance.