DOAÇÃO DE SANGUE POR “HOMENS QUE FAZEM SEXO COM HOMENS” (HSHS): Entre a proibição discriminatória para o suposto grupo de risco e a necessidade de proteção da saúde pública por meio da enumeração de condutas de risco, uma análise do julgamento proferido na ADI 5543 do Supremo Tribunal Federal.

Resumo

O presente estudo objetiva a análise do julgamento em andamento no Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5543, em que se discute a inaptidão temporária, por um período de 12 (doze) meses, após a prática sexual, de indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes. Demonstra-se, inicialmente, a adequação da jurisdição constitucional para o trato do tema, considerando a centralidade da Constituição e seus valores erigidos à norma jurídica de efetividade pelo Constituinte originário num Estado Democrático de Direito. É o Tribunal Constitucional Superior quem detém os meios para reconhecer a impossibilidade de discriminação de grupos estigmatizados e vulneráveis, dignos de ampla tutela, ainda que em controle abstrato de normas. O debate enseja a ponderação dos interesses em jogo, de um lado encontra-se a busca por uma adequada prestação de serviços, por meio da entrega de sangue de qualidade, com o menor risco de contaminações, em última análise a tutela à integridade física e da própria vida dos receptores do material coletado (saúde pública), e, de outro, a liberdade dos homossexuais de exercer a sua cidadania com a prática de ato de solidariedade e benevolência, afastando-se a violação à intimidade do determinado grupo e à sua dignidade humana. Por meio de uma análise detida dos votos dos Ministros do Tribunal Superior até o momento, pretende-se avaliar que aqueles que propugnam pela defesa da primeira das teses, adequada prestação do serviço de coleta do sangue, na defesa de que os homens na situação tipificada praticam sexo com risco acrescido bem como que, em função da denominada janela imunológica, não há como garantir a efetividade dos testes realizados em laboratório, o que impossibilita a total qualidade do material coletado, não é a melhor a ser adotada. Com efeito, a
normativa é clara e objetiva ao desigualar um grupo de pessoas por sua orientação sexual ao invés de tomar como base a idéia ontológica de conduta de risco puramente. Diz-se que a restrição, de cunho discriminatório (considera a orientação sexual, um grupo de risco e não a conduta de risco), não deve permanecer no mundo jurídico, até mesmo porque o período citado de 12 meses é excessivo (os estudos no processo indicam que a janela imunológica é de 10 a 12 dias, e, portanto, seria possível uma norma menos restritiva) e impede o desfrute de uma vida sexual normal (desnecessidade, subprincípio da proporcionalidade). A orientação sexual não deve ser critério para seleção de doadores por não constituir risco em si. Conclui-se, assim, que há inconstitucionalidade material nas normas impugnadas, a qual deve ser declarada a fim de se restaurar a dignidade da pessoa humana e atingir um dos objetivos fundamentais da República: constituir uma sociedade justa e solidária (artigo 3º, I da CF/88).

Artigo

 DOAÇÃO DE SANGUE POR “HOMENS QUE FAZEM SEXO COM HOMENS” (HSHS): Entre a proibição discriminatória para o suposto grupo de risco e a necessidade de proteção da saúde pública por meio da enumeração de condutas de risco, uma análise do julgamento proferido na ADI 5543 do Supremo Tribunal Federal.

 João Sérgio dos Santos Soares Pereira

Resumo: O presente estudo objetiva a análise do julgamento em andamento no Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5543, em que se discute a inaptidão temporária, por um período de 12 (doze) meses, após a prática sexual, de indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes. Demonstra-se, inicialmente, a adequação da jurisdição constitucional para o trato do tema, considerando a centralidade da Constituição e seus valores erigidos à norma jurídica de efetividade pelo Constituinte originário num Estado Democrático de Direito. É o Tribunal Constitucional Superior quem detém os meios para reconhecer a impossibilidade de discriminação de grupos estigmatizados e vulneráveis, dignos de ampla tutela, ainda que em controle abstrato de normas. O debate enseja a ponderação dos interesses em jogo, de um lado encontra-se a busca por uma adequada prestação de serviços, por meio da entrega de sangue de qualidade, com o menor risco de contaminações, em última análise a tutela à integridade física e da própria vida dos receptores do material coletado (saúde pública), e, de outro, a liberdade dos homossexuais de exercer a sua cidadania com a prática de ato de solidariedade e benevolência, afastando-se a violação à intimidade do determinado grupo e à sua dignidade humana. Por meio de uma análise detida dos votos dos Ministros do Tribunal Superior até o momento, pretende-se avaliar que aqueles que propugnam pela defesa da primeira das teses, adequada prestação do serviço de coleta do sangue, na defesa de que os homens na situação tipificada praticam sexo com risco acrescido bem como que, em função da denominada janela imunológica, não há como garantir a efetividade dos testes realizados em laboratório, o que impossibilita a total qualidade do material coletado, não é a melhor a ser adotada. Com efeito, a normativa é clara e objetiva ao desigualar um grupo de pessoas por sua orientação sexual ao invés de tomar como base a idéia ontológica de conduta de risco puramente. Diz-se que a restrição, de cunho discriminatório (considera a orientação sexual, um grupo de risco e não a conduta de risco), não deve permanecer no mundo jurídico, até mesmo porque o período citado de 12 meses é excessivo (os estudos no processo indicam que a janela imunológica é de 10 a 12 dias, e, portanto, seria possível uma norma menos restritiva) e impede o desfrute de uma vida sexual normal (desnecessidade, subprincípio da proporcionalidade). A orientação sexual não deve ser critério para seleção de doadores por não constituir risco em si. Conclui-se, assim, que há inconstitucionalidade material nas normas impugnadas, a qual deve ser declarada a fim de se restaurar a dignidade da pessoa humana e atingir um dos objetivos fundamentais da República: constituir uma sociedade justa e solidária (artigo 3º, I da CF/88).

Palavras-chave: Jurisdição constitucional – Doação de Sangue –Hipóteses discriminatórias – Impossibilidade – Dignidade da Pessoa Humana.

  • – Introdução

 A jurisdição constitucional no nosso país congrega, atualmente, grande parcela de harmonização e reconhecimento dos direitos fundamentais, considerando a estrutura de nossa Carta Magna de 1988.

Numa sociedade cada vez mais plural, multicultural, em que as diferenças entre ideologias e pessoas se faz mais presente a cada instante1, é necessário que se reconheça ao Direito a finalidade não apenas da instauração de uma ordem jurídica, mas de uma ordem jurídica justa, com bases nos valores humanos descritos nesta mesma Constituição axiológica.

Com base em tais premissas, bem como que é necessária a promoção da igualdade, solidariedade social e, igualmente, a segurança, de forma justa não discriminatória, propõe-se neste ensaio o estudo de caso, que se encontra em julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, em que tais valores entram em análise.1 Como assevera o Ministro Luís Roberto Barroso: “A sociedade contemporânea tem a marca da complexidade. Fenômenos positivos e negativos se entrelaçam, produzindo uma globalização a um tempo do bem e do mal.” (BARROSO, Luís Roberto. A Judicialização da Vida e o Papel do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 149).

Por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, meio adequado para a discussão, o que inicialmente se demostra neste estudo, considerando a centralidade da Constituição e seus valores erigidos à norma jurídica de efetividade pelo Constituinte originário num Estado Democrático de Direito, é que tem o Tribunal Constitucional meios para reconhecer a impossibilidade de discriminação de grupos estigmatizados e vulneráveis, dignos de ampla tutela.

Um dos legitimados ativos para a instauração do controle concentrado de constitucionalidade interpôs a referida Ação Direta (ADIN n. 5543), uma vez que, na prática, hospitais e bancos de coleta de sangue, públicos ou privados, estão proibidos de receber sangue dos homens que se declararem homossexuais nas entrevistas realizadas antes do procedimento de coleta, pelo período de 12 (doze) meses a partir da última relação sexual.

O debate é de grande importância para o meio jurídico. De um lado, encontra- se a busca por uma adequada prestação de serviços, por meio da entrega de sangue de qualidade, com o menor risco de contaminações, em última análise a tutela à integridade física e da própria vida dos receptores do material coletado (saúde pública), e, de outro, a liberdade dos homossexuais de exercer a sua cidadania com a prática de ato de solidariedade e benevolência, afastando-se a violação à intimidade do determinado grupo e à sua dignidade humana.

Assim, pretende-se demonstrar, a partir de uma análise dos votos proferidos até o momento pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, que a melhor interpretação é aquela em que se reconhece a inconstitucionalidade material das normas infralegais que tratam do tema – mais propriamente o artigo 64, IV, da Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde e do artigo 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada -RDC nº 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA-, uma vez que o controle a que tais normas pretendem exercer deve ser realizado sobre o comportamento de risco e não um suposto grupo de risco.

A partir de tal constatação, certamente, estar-se-á promovendo a adequada interpretação às normas e afastando, em última ratio, o seu caráter discriminatório e estigmatizante.

  • – Do controle de constitucionalidade: cabimento e parâmetro para efeitos de tutela de direitos fundamentais

O controle de constitucionalidade é mecanismo utilizado para garantir a eficácia normativa e a supremacia da Constituição.2

A existência de uma Constituição rígida (aquela que possui um processo de alteração mais dificultoso e solene do que o processo legislativo de alteração das normas não constitucionais), como a brasileira3, e a atribuição de competência a determinado órgão para a solução das questões de constitucionalidade são requisitos importantes para a distinção da espécie e modelo de controle.

Dito controle, no Direito Brasileiro, dá-se em momentos e por Órgãos distintos, além de possuir sistemas e vias diversas.4

A fiscalização por via de ação é concentrada no Supremo Tribunal Federal ou nos Tribunais de Justiça (neste último caso, quando se refiram a atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual). Entretanto, a fiscalização por via de exceção é difusa, já que todos os órgãos do Judiciário, observado o disposto no artigo 97 da Constituição de 1988 (cláusula de reserva de plenário), são competentes para seu exercício.

Como assevera Marcelo Novelino: “(…) Qualquer juiz ou tribunal no exercício do controle difuso poderá reconhecer a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, enquanto não houver a declaração de constitucionalidade pelo STF com efeito vinculante”.5

Assim, pela leitura de nossa Carta Magna, principalmente do disposto no artigo 102, I, a, observa-se que o Poder Judiciário é o principal responsável pelo exercício do controle repressivo.

É por meio da chamada Jurisdição Constitucional, que o Supremo Tribunal Federal vem exercendo papel importante e necessário para a pacificação dos temas que lhe são apresentados. Afinal, a supremacia constitucional reclama a defesa permanente dos valores adotados pelo Poder Constituinte.6

Certamente, o papel do constitucionalismo mundial em um contexto de mudanças é fator preponderante de análise para o denominado ativismo judicial que advém da fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo.

As cortes constitucionais ou supremas cortes mundiais, em geral, começam a se destacar como protagonistas ético-políticas na implementação de políticas públicas, escolhas morais em temas controvertidos na sociedade e discussões as quais o Poder legitimado se omite, deliberadamente.

O movimento de ampliação de direitos sociais é datado. Luís Roberto Barroso destaca tal panorama, com maestria:

“O Estado constitucional de direito se consolida, na Europa continental, a partir do final da II Guerra Mundial. Até então, vigorava um modelo identificado, por vezes, como Estado legislativo de direito. Nele, a Constituição era compreendida, essencialmente, como um documento político, cujas normas não eram aplicáveis diretamente, ficando na dependência de desenvolvimento pelo legislador ou pelo administrador. Tampouco existia o controle de constitucionalidade das leis pelo Judiciário – ou, onde existia, era tímido e pouco relevante. Nesse ambiente, vigorava a centralidade da lei e a supremacia do parlamento. No Estado constitucional de Direito, a Constituição passa a valer como norma jurídica. A partir daí, ela não apenas disciplina o modo de produção das leis e atos normativos, como estabelece determinados limites para o seu conteúdo, além de impor deveres de atuação ao Estado. Nesse novo modelo, vigora a centralidade da Constituição e a supremacia judicial, como tal entendida a primazia de um tribunal constitucional ou suprema corte na interpretação final e vinculante das normas constitucionais.”7

Não há como negar que o exercício da Jurisdição é algo de extrema complexidade diante da vagueza e abertura de diversas normas constitucionais que podem levar a uma colisão de direitos fundamentais, e, nesse sentido, quem as interpreta e aplica acaba por participar do processo de criação, alargando-se o poder de decisão8.

O tema da dificuldade contramajoritária do Poder Judiciário9 é sempre alvo de discussões acadêmicas, consignando-se o ideário democrático.

Ana Paula de Barcellos, refletindo sobre a temática relativa a ampliação da jurisdição constitucional em diversas áreas do conhecimento, conclui que o respeito, a proteção e a promoção mais efetiva dos direitos fundamentais, sustentável e equitativa, porém, depende da atuação ordinária dos Poderes Executivo e Legislativo na rotina democrática do país, uma vez que são eles que melhor identificam as necessidades inerentes, concebem políticas focadas nos mais pobres, editam essas políticas, praticam os atos concretos para sua execução, monitoram os resultados para correção e revisão de tais políticas quando necessário.10

De qualquer forma, é crescente a denominada judicialização da vida11 no exercício do controle de constitucionalidade, impondo-se limites adequados para a proteção das regras equânimes do jogo político e os direitos fundamentais. Mas, consigne- se: não é o exercício da jurisdição e nem mesmo, por óbvio, a proteção aos direitos fundamentais que é o cerne do problema. Ao revés. É o exagero de tal exercício que pode ser entendido como antidemocrático. Não é esse o espaço adequado, porém, para examinar algumas respostas que a teoria constitucional e política vêm dando a questão, como, por exemplo, o constitucionalismo popular.

Pontue-se, no entanto, que o chamado minimalismo não é de todo viável para a proteção dos direitos fundamentais, mais propriamente quanto estamos tratando da comum inércia de outros órgãos na concretização de determinados direitos ou a ausência de proteção adequada a grupos vulneráveis. O que não se pode admitir é que também o Judiciário, quando provocado, fique igualmente inerte, hipótese constitucionalmente inadmissível pela expressa redação do artigo 5º, XXX da CRFB/88.

Nesse cenário de reconhecimento de legitimidade do Judiciário para a proteção dos valores constitucionais erigidos à Constituição da República de 1988, e, diante da possibilidade de colisão de tais valores, é necessário, de pronto, esclarecer quais são os atos infralegais passíveis de serem objeto do controle pela via concentrada, até mesmo porque o objetivo central deste trabalho é a análise da ADIN n. 5543 que, como referido, debate a proibição de doação de sangue por homens que, em hospitais e bancos de coleta, públicos ou privados, se declararem homossexuais nas entrevistas realizadas antes do procedimento e afirmem terem tido relação sexual nos últimos 12 (doze) meses com outros homens.12

O Supremo Tribunal Federal, na forma do artigo 102, I, a da Constituição Federal de 1988, dispõe de competência para processar e julgar, originariamente, ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual. Os atos normativos citados podem ser quaisquer daqueles citados no artigo 59 da Lex Legum.

O importante é considerar que a Lei ou ato normativo objeto de controle deve possuir densidade jurídica suficiente, ou seja, ser dotado de abstração, generalidade, autonomia e impessoalidade de modo a atuar no plano do direito positivo.

Em relação às Portarias, Resoluções e Regulamentos (atos denominados de secundários13), consigne-se que o importante, igualmente, é observar que a ação direta é cabível quando não se tratar de inconstitucionalidade indireta. Assim, diz-se que: “Existe inconstitucionalidade indireta, também dita reflexa, quando o ato viola, em primeiro lugar, a norma a que está subordinada, e apenas indireta e reflexamente a Constituição. (…) quando, para se chegar à conclusão de afronta à Constituição, não é preciso passar pelo questionamento da compatibilidade do ato impugnado com norma infraconstitucional, há inconstitucionalidade direta, também chamada de frontal.”14

Outrossim, lembra José Joaquim Gomes Canotilho que somente os atos normativos do Poder Público desafiam a propositura de ação direta de inconstitucionalidade.15

No caso, os atos normativos do Poder Público em questão são dotados de generalidade e abstração. Possuem densidade normativa suficientes para serem objeto de controle de constitucionalidade, uma vez que passíveis de verificação de compatibilidade com a Constituição da República, diretamente, sem necessidade de apreciar normas infraconstitucionais interpostas. Cabível a ação em comento, portanto.16

  • – Análise da ADIN n. 5543 no Supremo Tribunal Federal: debate necessário à efetivação de direitos

Considerando o cabimento da ação que hora pretendemos comentar, vamos contextualizar o objeto da discussão: a Portaria do Ministério da Saúde e a Resolução da ANVISA.

Com efeito, por observação do teor da redação do artigo 64, IV, da Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde e do artigo 25, XXX, “d”, da Resolução da Diretoria Colegiada -RDC nº 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA17, percebe-se que o Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar sobre questão de alta densidade valorativa e polêmica.

Na prática, os hospitais e bancos de coleta de sangue, públicos ou privados, estão proibidos de receber sangue dos homens que se declararem homossexuais nas entrevistas realizadas antes do procedimento de coleta, pelo período de 12 (doze) meses a partir da última relação sexual. Assim, nesse contexto, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ajuizou a ação de controle abstrato na referida Corte Superior18, com pedido de liminar, a fim de ser reconhecida a inconstitucionalidade de tais atos infralegais.

Dentre os fundamentos do pedido, alega o Partido que tais normas impedem que os homossexuais doem sangue, ato de benemerência e solidariedade, o que denota tratamento discriminatório por parte do Poder Público em função da orientação sexual.

Neste sentido, sustenta a ofensa a dignidade de tal grupo de pessoas, que já é estigmatizada pelo meio social, além de violação ao direito fundamental à igualdade, ao princípio da vedação da discriminação, em sentido amplo, e ao princípio da proporcionalidade.

Na petição inicial da ação ora mencionada, o requerente expõe o contexto histórico e social que deu origem a vedação. Ressalta, no entanto, que, no momento atual de evolução médica e tecnológica, tal contexto está superado.19

O Relator da Ação Direta em questão, Ministro Edson Fachin, determinou que fosse adotado o rito abreviado previsto no artigo 12 da Lei 9.868/99, considerando a relevância da matéria, o que permite o julgamento de mérito direto pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, sem prévia análise do pedido liminar.20

Após a manifestação das autoridades envolvidas, Advocacia-Geral da União, Procuradoria Geral da República, bem como diversas entidades, organizações sociais e culturais que ingressaram nos autos na qualidade de amicus curiae21, o processo foi levado a julgamento em outubro de 2017, sem conclusão definitiva, uma vez que foi pedida a vista dos autos na sessão pelo Ministro Gilmar Mendes.

Até o momento da realização deste trabalho, em junho de 2018, o resultado parcial do julgamento é no sentido da existência de 4 votos pela procedência do pedido inicial (Ministros Edson Fachin, Relator, Roberto Barroso, Luiz Fux, Rosa Weber). O Ministro Alexandre de Moraes abriu a divergência e votou pela parcial procedência do pedido inicial. O Ministro Ricardo Levandowski havia acompanhado a divergência, mas, após, retirou o seu voto, aguardando a vista do Ministro Gilmar Mendes, primeiramente.22 A questão principal que se põe é se as normas infralegais promovidas pelo

Ministério da Saúde e pela ANVISA padecem do vício da inconstitucionalidade material ao vedar a doação de sangue por um grupo de pessoas, no caso, os homossexuais.

A chamada inconstitucionalidade material se refere ao conteúdo do ato normativo. Assevera Ingo Sarlet, Marinoni e Daniel Matidiero que: “(..) Há inconstitucionalidade material quando a lei não está em consonância com a disciplina, valores e propósitos da Constituição”.23

Certamente, há de ser respeitada a vontade legislativa, porém, o que é vedado ao Legislador é o excesso ou o ficar aquém dos limites da Carta Magna. As discussões sobre tal limite são grandes, pois, abre-se espaço para se sustentar que o ato normativo deve se pautar pela regra da proporcionalidade, inviabilizando o excesso ao limite do necessário para a tutela dos fins almejados pela norma constitucional.24

Clèmerson Merlin Clève nos faz observar a inconstitucionalidade material, sob os aspectos do desvio ou excesso do Poder Legislativo e da ofensa ao Princípio da Razoabilidade/Proporcionalidade. 25

A discussão do tema que estamos a tratar (doação de sangue por determinado grupo considerado como de risco) envolve, sob o prisma da análise da constitucionalidade (ou não) material dos atos infraconstitucionais, diretamente, o Princípio da Razoabilidade e a chamada “Ponderação de Interesses”.

Daniel Sarmento, no ano 2000, lançou no Brasil, obra de referência sobre o assunto da Ponderação, asseverando, com maestria que:

“O pluralismo de idéias existentes na sociedade projeta-se na Constituição, que acolhe, através dos seus princípios, valores e interesses dos mais diversos matizes. Tais princípios, como temos visto no decorrer deste estudo, entram às vezes em tensão na solução de casos concretos. (..) Assim, a ponderação de interesses consiste justamente no método utilizado para a resolução destes conflitos constitucionais.”26

 Irrefutável que, na hipótese em estudo, o critério da ponderação de interesses e o princípio da proporcionalidade são necessários para a solução do caso.

Com efeito, a fim de busca um ponto de equilíbrio entre os interesses tuteláveis, devemos considerar as três dimensões do princípio da proporcionalidade: a) adequação ou idoneidade (tal subprincípio demanda que as medidas estatais possam contribuir para a persecução de finalidades legítimas); b) necessidade (impõe que, dentre diversas medidas possíveis que promovam com a mesma intensidade uma determinada finalidade, o Estado opte sempre pela menos gravosa); c) proporcionalidade em sentido estrito (análise comparativa entre os custos e benefícios da medida examinada, realizada sob a perspectiva o sistema constitucional de valores).

Assim, na hipótese, o que se está em debate é, de um lado, a busca por uma adequada prestação de serviços, por meio da entrega de sangue de qualidade, com o menor risco de contaminações, em última análise a tutela à integridade física e da própria vida dos receptores do material coletado (saúde pública), e, de outro, como já asseverado, a liberdade dos homossexuais de exercer a sua cidadania com a prática de ato de solidariedade e benevolência, afastando-se a violação à intimidade do determinado grupo, e, afinal, à sua dignidade humana.27

Aqueles que propugnam pela defesa da primeira das teses, adequada prestação do serviço de coleta do sangue, asseveram que os homens na situação tipificada praticam sexo com risco acrescido e o entendimento da comunidade científica predominante é no sentido de que, em função da denominada janela imunológica, não há como garantir a efetividade dos testes realizados em laboratório, o que impossibilita a total qualidade do material coletado.

No Plenário do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Edson Fachin, relator da ação, já proferiu o seu voto pela procedência da ação. A sua decisão, de quarenta páginas, afirma a importância do sangue para o ser humano e relembra a violência física, psicológica e moral a que diariamente se encontra submetida a população LGBTQ em nosso país.28

Com efeito, não há como desconsiderar que os atos em questão acabam por discriminar o grupo por sua orientação sexual, sem considerar outros fatores, pois não é por ser gay ou não que devem ter o tratamento desigual. Há aqueles que possuem parceiros fixos, usam preservativo, sequer podem ser considerados na categoria disciplinada nos atos impugnados, ou seja, aqueles que praticam conduta de risco.

Divergindo do Relator, o Ministro Alexandre de Moraes julgou parcialmente procedente os pedidos iniciais para entender inconstitucional o artigo 64, IV da Portaria 158/16 do Ministério da Saúde, e promover uma declaração de nulidade, com redução de texto, quanto ao artigo 25, XXX da Resolução ANVISA, e uma interpretação conforme em relação a alínea “d” deste mesmo artigo 25.29 Entendeu que é possível a doação por homens que fizeram sexo com outros homens (HSHS), desde que o sangue colhido nesses casos somente seja utilizado após o teste imunológico, a ser realizado depois da janela sorológica definida pelas autoridades de saúde.

Lembrou esse último Ministro que a matéria de coleta e transfusão de sangue é tratada pelo artigo 199, § 4º da CF/88 e regulamentada pela Lei n. 10.205/0130. Esta última Lei, também regulamentada pelo Decreto n. 3990/01. Afirma, ainda, que, na verdade, as Portarias, Resoluções da ANVISA e do Ministério da Saúde, ao longo do tempo, ao revés, limitaram o caráter discriminatório dado à questão, e que tal análise é imprescindível.

O referido Ministro, citando o Boletim Epidemiológico, afirmou que o grupo HSHS (Homens que fazem Sexo com Homens) são, tecnicamente, mais suscetíveis de transmitir o vírus HIV, e, portanto, não haveria discriminação pela orientação sexual, devendo ser considerado o trinômio já citado em que também os receptores do sangue e profissionais envolvidos devem ser protegidos. Em que pese entender pela não discriminação, promoveu a interpretação conforme já citada uma vez que seria mais razoável em seu ver, a partir do artigo 199, § 4º da CF/88 e artigo 3º, I, 14, II, 16 da Lei 10.205/01 e o entendimento discutido na ação da chamada janela imunológica.

Neste ponto, embora a proficiência do voto proferido, não se mostra cabível tal interpretação conforme, uma vez que tal método de solução pressupõe dispositivo legal aberto, ambíguo ou plurissignificativo31, o que não é o caso. Ao revés. A normativa é clara e objetiva ao desigualar um grupo de pessoas por sua orientação sexual ao invés de tomar como base a idéia ontológica de conduta de risco puramente. Tal fato foi lembrado pelo Ministro Marco Aurélio logo após o voto prolatado pelo Ministro Alexandre de Moraes.32

Sob este prisma, como expôs o Ministro Fachin, de fato, não há como negar:

“O fato de um homem praticar sexo com outro homem não o coloca necessária e obrigatoriamente em risco. Pense-se, por exemplo, em relações estáveis, duradouras e protegidas contra doenças sexualmente transmissíveis. Não ha em tal exemplo, em princípio, maior risco do que a doação de sangue de um heterossexual nas mesmas condições de relação. No entanto, apenas àquele é vedada a doação de sangue. Há, assim, uma restrição à autonomia privada dessas pessoas, pois se impede que elas exerçam plenamente suas escolhas de vida, com quem se relacionar, com que frequência, ainda que de maneira sexualmente segura e saudável. Da mesma forma, há também, em certa medida, um refreamento de sua autonomia pública, pois esse grupo de pessoas tem sua possibilidade de participação extremamente diminuída na execução de uma política pública de saúde relevante de sua comunidade – o auxílio àqueles que necessitam, por qualquer razão, de transfusão de sangue.”33

Tais argumentos foram seguidos pelos Ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber, em sua integralidade, por considerarem que a precaução tomada pelos atos infralegais não são proporcionais (em sentido estrito), razoáveis e justificáveis. As medidas restritivas podem ser tomadas, mas é necessário o filtro da proporcionalidade, como já apontamos anteriormente.

No caso, entendeu-se que a restrição, de cunho discriminatório (considera a orientação sexual, um grupo de risco e não a conduta de risco), não deve permanecer no mundo jurídico, até mesmo porque o período citado de 12 meses é excessivo (os estudos no processo indicam que a janela imunológica é de 10 a 12 dias, e, portanto, seria possível uma norma menos restritiva) e impede o desfrute de uma vida sexual normal (desnecessidade, subprincípio da proporcionalidade). Citam, inclusive, outros países do mundo em que há tal proibição como a Espanha e o México.34

Ressalte-se, mais, que, anteriormente a edição das normas impugnadas, existia a Portaria MS n. 1.353, de 14/06/201135 que dispunha que a orientação sexual não deve ser critério para seleção de doadores por não constituir risco em si. No mínimo contraditório que o mesmo órgão discipline a matéria de forma diversa quando não houve grandes mudanças temporais, da bioética e medicina.

Ademais, diga-se mais: as hipóteses do artigo 64 da própria Portaria n. 158/201636 já abarcam, por si só, as situações de promiscuidade que se pretende evitar (são mais abrangentes), tornando, também sob esse prisma, desproporcional a discriminação.

Certamente, a decisão pela procedência dos pedidos iniciais se impõe e congrega um dos maiores postulados normativos de nossa Constituição: a dignidade da pessoa humana e o princípio da não discriminação por razões de sexo ou quaisquer outros estigmatizantes, o qual inclusive teve grande importância em um dos julgamentos mais emblemáticos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal: o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo37.

Neste ponto, cabe mencionar as palavras de Daniel Sarmento por sua preocupação em contextualizar os problemas na concretização do postulado da dignidade, no direito brasileiro:

“No que concerne à positivação jurídica, a dignidade da pessoa humana está consagrada com destaque na Constituição de 1988, no art. 1º, inciso III, que a invoca como “fundamento da República”, sendo também citada em outros preceitos mais específicos (arts. 170; 226, § 6º; 227; 230). O Brasil, ademais, ratificou e incorporou ao ordenamento jurídico quase todos os tratados internacionais de direitos humanos que contêm referências à dignidade. (..) De todo modo, na esfera social, as pessoas são e sempre foram percebidas no Brasil como seres situados, inseridos numa teia de relações sociais constitutivas da sua identidade. Todavia, esse enraizamento nunca funcionou como um elemento emancipatório, que propiciasse proteção mais igual aos direitos e necessidades das pessoas vulneráveis. Trata-se exatamente do contrário: um enraizamento de feições pré-modernas, em que o status jurídico da pessoa se relaciona, na prática, a elementos como classe social, cor, profissão, relações familiares e de amizade do indivíduo. A questão, portanto, acaba se reconduzindo ao mais crônico dos problemas nacionais: a desigualdade. (..) Houve, sem dúvida, avanços nessa área desde o advento da Constituição de 1988, mas os nossos padrões de desigualdade continuam perversos e inaceitáveis. (..) Essa desigualdade tem um forte componente econômico, mas também se deixa permear por outros critérios de diferenciação para a eleição de suas vítimas. Além dos pobres, ela também estigmatiza outros grupos vulneráveis, como os negros, os indígenas, as mulheres, os homossexuais, os presos e as pessoas com deficiência, cada um do seu modo. Tais padrões desigualitários não são o produto contingente de alguma crise social ou econômica passageira. Eles não se devem ao insucesso desse ou daquele governo. O problema é crônico e está profundamente enraizado em nossa história e cultura. Nossa desigualdade tem direta relação com o passado escravocrata, com o desenvolvimento tardio e incompleto da noção de cidadania e com a nossa enorme dificuldade em superar uma compreensão pré- moderna, hierárquica e estamental das relações sociais, em que direitos e deveres são concebidos não em bases universalistas, mas a partir da posição ocupada por cada indivíduo na estrutura social. (..) Enfim, o principal déficit de efetividade da dignidade da pessoa humana no Brasil deriva não de uma razão puramente jurídica ou mesmo econômica. A sua origem está em uma cultura muito enraizada, que não concebe todas as pessoas como igualmente dignas. Neste cenário, a dignidade humana periga, paradoxalmente, converter- se no seu inverso: um veículo adicional para reprodução e reforço do status quo de hierarquias e assimetrias, que consagra privilégios para uns à custa do tratamento indigno dispensado a outros.(..)”38.

Confere-se ao Poder Judiciário a atribuição de fazer valer a garantia ao pleno exercício das liberdades civis e democráticas erigidas como valores preponderantes, reduzindo as desigualdades para garantir o mínimo existencial desse grupo de pessoas.

  • – Conclusão

A nossa Carta Magna de 1988 tem como alicerce um rol de direitos fundamentais que ao Estado e, igualmente, à toda sociedade, competem a sua realização.

Nesse sentido, a ordem jurídica primou pela igualdade de gênero e respeito, afastando, sob qualquer prisma, a disparidade de tratamento e tutela dada aos grupos sociais que, de alguma maneira, não se enquadram no modelo de sociedade tradicionalmente reconhecida e regulada.

Não obstante o Poder Judiciário tenha desempenhado papel essencial para o reconhecimento do direito de grupos estigmatizados e mais vulneráveis, no plano fático- social ainda é grande a discriminação e o preconceito, o que acarreta, dia após dia, afronta à dignidade destas pessoas.

É de extrema importância que todos nós obremos para que seja realizada a necessária inclusão social a todos aqueles que se encontram excluídos do cerne social, e, certamente, não é por meio de proibição como a que ora se analisou que encontraremos tal desiderato.

Considerando o exposto, conclui-se que há inconstitucionalidade material nas normas impugnadas, a qual deve ser declarada a fim de se restaurar a dignidade da pessoa humana e atingir um dos objetivos fundamentais da República: constituir uma sociedade solidária (artigo 3º, I da CF/88). Não se pode presumir que são os homossexuais os únicos portadores do HIV. Os tempos mudaram. E, assim, o papel da Legislação é, na medida do possível, espelhar a realidade. O controle deve ser sobre o comportamento de risco e não um suposto grupo de risco.

Notas de Rodapé:

[1] Como assevera o Ministro Luís Roberto Barroso: “A sociedade contemporânea tem a marca da complexidade. Fenômenos positivos e negativos se entrelaçam, produzindo uma globalização a um tempo do bem e do mal.” (BARROSO, Luís Roberto. A Judicialização da Vida e o Papel do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 149).

[2] Como explicita Clèmerson Merlin Clève: “A compreensão da Constituição como Lei Fundamental implica não apenas o reconhecimento de sua supremacia na ordem jurídica, mas, igualmente, a existência de mecanismos suficientes para garantir juridicamente (eis um ponto importante), apontada qualidade. A supremacia, diga-se logo, não exige apenas a compatibilidade formal do direito infraconstitucional com os comandos maiores definidores do modo de produção das normas jurídicas, mas também a observância de sua dimensão material. (CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 25-26).

[3] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. Os autores salientam que alguns doutrinadores afirmam que a Constituição da República de 1988 é super-rígida, considerando as chamadas “cláusulas pétreas” nela insculpidas. Asseveram: “A Constituição Federal de 1988, além de ser dotada de rigidez, possui ainda um núcleo intangível. Por essa razão, é possível defini-la como super-rígida (nem todos autores adotam esta categoria, e os que não o fazem qualificam a nossa Constituição como rígida). O núcleo imutável da Constituição é composto pelas chamadas “cláusulas pétreas”, as quais estão fixadas em seu art.60, § 4º. (…). Como será esclarecido mais adiante (…), essas cláusulas não são propriamente imutáveis. O que não pode haver é o atingimento do “núcleo essencial” dos Princípios nela veiculados. (..)”. (p. 56- 59).

[4] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. O autor, de forma didática, aponta que o controle pode se dar em momento prévio/preventivo ou posterior/repressivo, diante das três funções de Poder (Legislativo, Executivo e Judiciário), bem como que há espécies de inconstitucionalidade diversas, tais quais, a nomodinâmica e a nomoestática, conforme p. 293 e 299-313 de sua obra. Não obstante ser de importância a classificação, considerando os objetivos propostos neste artigo, a análise se aterá ao controle concentrado de constitucionalidade de atos infralegais promovido pelo Judiciário abstratamente, de forma principal, a posteriori `a edição da norma jurídica.

[5] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Método, 2010. p.228.

[6] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991. O autor menciona em sua obra uma “vontade de constituição”, e assevera que, sem ela, a sociedade não consegue realizar, satisfatoriamente, os valores constitucionais.

[7] BARROSO, Luís Roberto. A Judicialização da Vida e o Papel do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 43.

[8] É interessante perceber que Kelsen, positivista normativista, parte da norma jurídica dada para chegar à própria norma jurídica apresentada, abandonando-se os valores. Aquele que aplica o direito exerce a interpretação autêntica do mesmo criativamente, num universo possível de vários sentidos que podem advir de tal interpretação. Marcus Flávio Horta Caldeira, em artigo jurídico sobre o positivismo, capta, no entanto, a inadequação do modelo por diversos fatos, como a certa indeterminação do sistema normativo, a existência de várias interpretações possíveis para a mesma situação, desde que se enquadrem dentro da chamada moldura Kelseniana (quadro-moldura), ainda que denotem intepretações equivocadas. (CALDEIRA, Marcus Flávio Horta, A insuficiência do positivismo, os entimemas jurídicos e a incerteza do pós-positivismo, Temas de Jurisdição Constitucional e Cidadania, organização Ciarlini, Álvaro Luís, IDP, 202, v.1, p.46). Consigne-se que em setembro de 1945, no entanto, Gustav Radbruch fez circular texto denominado “Cinco minutos de Filosofia do Direito”, de sua autoria, em que atribui ao positivismo jurídico as responsabilidades pelos desmandos cometidos pelos nazistas. No entanto, tal afirmação não é correta. Por todos e por uma análise detalhada sobre o tema que escapa, objetivamente, ao objetivo deste trabalho, vide Marcello Ciotola e Eduardo Valory que se propõem a demonstrar o equívoco de se associar o positivismo jurídico desenvolvido por Kelsen ao pensamento nacional-socialista: CIOTOLA, Marcello e VALORY, Eduardo. Kelsen no debate das ideias. Revista Juris Poiesis, volume 19, número 21 (2016), p. 66-103. Disponível em: . Acesso em 13 jun. 2018.

[9] Tal expressão foi cunhada em obra clássica da teoria constitucional norte-americana: BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch: the Supreme Court at the Bar of Politics, lembrada por SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 35.

[10] BARCELLOS, Ana Paula de. Direitos fundamentais e direito à justificativa: Devido procedimento na elaboração normativa. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017. P. 20. Considerando tal cenário, a autora, então, propõe a necessidade de criação de um direito constitucional difuso a um Devido Procedimento na Elaboração Normativo ou DPEN. Em suas palavras: “Em resumo, o devido procedimento na elaboração normativa gera deveres de natureza procedimental que exigem a apresentação pública de uma justificativa contendo razões e informações acerca das proposições normativas”. (idem, p. 21). É uma proposta de, reconhecendo os limites e possibilidades do Poder Judiciário, revalorizar a política. Humberto Ávila, no mesmo âmbito de idéias, defende que é no Poder Legislativo que, numa sociedade complexa e plural, deve ser realizado o debate quanto às concepções do mundo e de seus valores (ÁVILA, Humberto, Neoconstitucionalismo: entre a “Ciência do Direito” e o “Direito da Ciência”, Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 17, janeiro/fevereiro/março, 2009, p. 18. Disponível em: . Acesso em 19 jun.2018).

[11] A expressão foi cunhada pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso que chegou a escrever uma obra em que compila julgados da Suprema Corte que denotam o papel denominado iluminista que por vezes há de ser tomado pelo Poder Judiciário na defesa dos direitos fundamentais. Em sua obra Judicialização da Vida, o referido Ministro traz considerações sobre este papel em artigo prévio de sua autoria, nos seguintes termos: “(..) Além do papel representativo, (..), supremas cortes desempenham, ocasionalmente, um papel iluminista. (..) Historicamente, portanto, o Iluminismo é uma idéia associada à razão humanista, a direitos inalienáveis da condição humana, à tolerância, ao conhecimento científico, à separação entre Estado e religião e ao avanço da história rumo à emancipação intelectual, social e moral das pessoas. É nesse sentido que o termo é empregado neste tópico: o de uma razão humanista que conduz o processo civilizatório e empurra a história na direção do progresso social e da libertação de mulheres e homens (..) Com a limitação do poder e a democratização do Estado e da sociedade, procurou-se abrigar a vontade majoritária e a razão iluminista dentro de um mesmo documento, que é a Constituição. O poder dominante, como regra geral, emana da vontade majoritária e das instituições através das quais ela se manifesta, que são o Legislativo e o Executivo. Vez por outra, no entanto, é preciso acender luzes na escuridão, submeter a vontade à razão. Nesses momentos raros, mas decisivos, as cortes constitucionais podem precisar ser os agentes da história. (..)” (BARROSO, Luís Roberto. Contramajoritário, representativo e iluminista: os papéis das Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais nas democracias contemporâneas in A Judicialização da Vida e o papel do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2018, pp. 165-167).

[12] Pontue-se que o presente trabalho trata mais especificamente da Ação Direta de Inconstitucionalidade genérica, objeto e parâmetro de controle. Porém, não devemos olvidar que a via concentrada também congrega outras importantes ações como a ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade), art.102, I, a CF/88; ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), artigo 102, § 1º da CF/88 e Lei 9882/99; ADO (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão), artigo 103, § 2º da CF/88 e Lei 12.063/09; IF ou RI (Representação Interventiva- ADI interventiva), artigo 36, III c/c artigo 34, VII da CF/88 e Lei 12.562/11. No âmbito estadual ainda temos a RI (Representação por Inconstitucionalidade), artigo 125, § 2º da CF/88.

[13] É possível distinguir os atos normativos em primários ou secundários. Segundo a doutrina clássica, entende-se os primeiros como os que inovam na ordem jurídica e possuem autonomia, enquanto os segundos se referem àqueles que se prestam apenas a regulamentar o ato primário e são diretamente a ele vinculados. Vejamos a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello que faz tal distinção, de forma mais objetiva, quanto ao Regulamento: “No Brasil, entre a lei e o regulamento não existe diferença apenas quanto à origem. Não é tão só o fato de uma provir do Legislativo e outro do Executivo o que os aparta. Também não é apenas a posição de supremacia da lei sobre o regulamento o que os discrimina. Esta característica faz com que o regulamento não possa contrariar a lei e firma seu caráter subordinado em relação a ela, mas não basta para esgotar a disseptação entre ambos no Direito brasileiro. Há outro ponto diferencial e que possui relevo máximo e consiste em que – conforme averbação precisa do Prof. O.A. Bandeira de Mello – só a lei inova em caráter inicial na ordem jurídica. A distinção deles segundo matéria, diz o citado mestre, “está em que a lei inova originalmente na ordem jurídica, enquanto o regulamento não a altera (…). É fonte primária do Direito, ao passo que o regulamento é fonte secundária, inferior. (…) O Texto Constitucional brasileiro, em seu artigo 5º, II, expressamente estatui que: Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Note-se que o preceptivo não diz “decreto”, “regulamento”, “portaria”, “resolução” ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados. (..)” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 352).

[14] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2017. p. 1006.

[15] Nestestermos, assinala o autor: “O controle abstrato de constitucionalidade somente pode ter como objeto de impugnação atos normativos emanados do Poder Público. Isto significa, ante a necessária estatalidade dos atos suscetíveis de fiscalização in abstrato, que a ação direta de inconstitucionalidade só pode ser ajuizada em face de órgãos ou instituições de natureza pública.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998 apud CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. Op. cit., p. 183). Sob este ponto, igualmente, o Excelso Pretório possui voto de importância que merece citação: BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1372, Pleno, Relator Ministro Celso de Mello, DJU 17.11.1995.

[16] Nesse sentido, inclusive, promoveu a Procuradoria Geral da República em seu parecer na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5543, objeto da discussão, asseverando que: “(…) As disposições questionadas (..) caracterizam-se como atos normativos com esses traços, porquanto possuem alta densidade normativa e podem ser cotejadas diretamente com os preceitos dos arts. 1o, III, 3o, IV, e 5o, caput, da Constituição da República, sem necessidade de apreciar normas infraconstitucionais interpostas.” Disponível em: . Acesso em 19 jun.2018.

[17] A Portaria n. 158/2016 do Ministério da Saúde, no artigo impugnado, possui a seguinte redação: “Art.64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo: (…) IV – homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou parceiras sexuais destes”. Disponível em: . Acesso em 19 jun. 2018. Por sua vez, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n. 34/2014 da Agência Nacional da Vigilância Sanitária – ANVISA, igualmente no artigo, inciso e alínea impugnado, dispõe: “Art. 25. O serviço de hemoterapia deve cumprir os parâmetros para seleção de doadores estabelecidos pelo Ministério da Saúde, em legislação vigente, visando tanto à proteção do doador quanto a do receptor, bem como para a qualidade dos produtos, baseados nos seguintes requisitos: (…) XXX – os contatos sexuais que envolvam riscos de contrair infecções transmissíveis pelo sangue devem ser avaliados e os candidatos nestas condições devem ser considerados inaptos temporariamente por um período de 12 (doze) meses após a prática sexual de risco, incluindo-se: (…) d) indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e /ou as parceiras sexuais destes”. Disponível em: . Acesso em 19 jun. 2018.

[18] BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5543. Op cit. Relator Ministro Edson Fachin. Movimentação disponível em . Acesso em 19 jun. 2018.

[19] Explicita o autor da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5543, PSB, que o vírus HIV, causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), manifestou-se, pela primeira vez, nos anos de 1977 e 1978, nos Estados Unidos, Haiti e África Central, alcançando o Brasil na década de 1980, o que fez com que se passasse a proibir as doações sanguíneas por certos grupos sociais, incluindo os homossexuais. Narra a petição inicial tal contexto, nos seguintes termos: “A década de 1980 foi marcada por uma das epidemias mais devastadoras da história da humanidade. (…) Tamanho era o desconhecimento a respeito da AIDS que a imprensa americana batizou a moléstia de GRID – Gay-Related Immunodeficiency (Imunodeficiência Gay), por acreditar que a doença seria uma disfunção especial dos homossexuais. (…) O cenário nadécada de 1980 era de enorme preocupação e as nações começaram a reagir com medidas governamentais rápidas e gerais para impedir novos contágios. Ao se desvendar que uma das formas de transmissão do HIV era através de transfusões de sangue, o controle dos procedimentos hemoterápicos passou a ser uma das principais preocupações dos Estados na luta contra a AIDS. (…) Assim, em virtude do temor e desconhecimento científico acerca do AIDS, passou-se a proibir as doações sanguíneas advindas de certos grupos sociais, dentre os quais se inseriam os homens homossexuais. E foi seguindo esse contexto mundial que o Ministério da Saúde do Brasil editou a Portaria n° 1366, no ano de 1993, proibindo pela primeira vez que homens homossexuais doassem sangue no país. (…). A partir dos anos 2000, o debate sobre o fim da proibição de doação de sangue por homossexuaistornou-se muito presente em todo o mundo, especialmente em função do controle da AIDS, dos avanços tecnológicos e medicinais, além da estabilização das relações homossexuais. Com efeito, a medicina evoluiu bastante nas últimas décadas, a epidemia de AIDS foi controlada e o tratamento da imunodeficiência encontra-se em estágio bastante avançado. (…)”. Disponível em: . Acesso em: 19 jun. 2018.

[20] Em decisão proferida em 08 de junho de 2016, asseverou o Ministro Edson Fachin, já antevendo, de certo modo, o seu posicionamento sobre o assunto ora em debate: “(..) Anoto, desde logo e por oportuno, que aqui se está diante de regulamentação que toca direto ao núcleo mais íntimo do que se pode considerar a dignidade da pessoa humana, fundamento maior de nossa República e do Estado Constitucional que ela vivifica. Não me afigura correto ou salutar que se coadune com um modo de agir que evidencie constante apequenar desse princípio maior, tolhendo parcela da população de sua intrínseca humanidade ao negar-lhe a possibilidade de exercício de empatia e da alteridade como elementos constitutivos da própria personalidade. (..) Muito sangue tem sido derramado em nosso país em nome de preconceitos que não se sustentam, a impor a célere e definitiva análise da questão por esta Suprema Corte.” Disponível em: <www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=309695587&tipoApp=.pdf>. Acesso em 19 jun. 2018.

[21] Como preleciona BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 179: “(..) amicus curiae, modalidade diferenciada de intervenção de terceiros. Trata-se da possibilidade de terceiro intervir no processo por iniciativa própria, por provocação de uma das partes ou, até mesmo, por determinação do magistrado com vistas a fornecer elementos que permitam o proferimento de uma decisão que leve em consideração interesses dispersos na sociedade civil e no próprio Estado. Interesses que, de alguma forma, serão afetados pelo que vier a ser decidido no processo em que se dá a intervenção”.

[22] Resultado disponível em: . Atualmente o processo encontra-se com o Ministro Gilmar Mendes, considerando o pedido de vista. Acesso em 13 jun. 2018.

[23] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2017. p. 981.

[24] Sobre esse tema e o Princípio da Proporcionalidade, diversos são os estudos. Cite-se, a título exemplificativo, pela importância: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais; BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. p. 218-246; ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios; DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, p. 132- 232; BARCELLOS, Ana Paula. Os Imperativos da proporcionalidade e da razoabilidade: um panorama da discussão atual e da jurisprudência do STF. in: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica, p. 167-206.

[25] O Autor expõe em sua obra tais possibilidades nos seguintes termos: “Havendo incompatibilidade entre o conteúdo da norma e o da Constituição, manifestar-se-á a inconstitucionalidade material. Pode ocorrer, também inconstitucionalidade material quando a norma, embora disciplinando matéria deixada pelo Constituinte à liberdade de conformação do legislador, tenha sido editada não para realizar os concretos fins constitucionais, mas sim para prosseguir outros, diferentes ou mesmo de sinal contrário àqueles, ou, tendo sido editada para realizar finalidades apontadas na Constituição, ofende a normativa constitucional por fazê-lo de modo inapropriado, desnecessário, desproporcional ou, em síntese, de modo não razoável. Trata-se, no primeiro caso, da hipótese do desvio ou excesso do poder legislativo, e, no segundo, de manifesta ofensa ao princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade dos atos do Poder Público, e aqui, do Poder Legislativo. Em muitos casos a teoria do excesso de poder e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade podem cobrir o mesmo campo teórico, oferecendo, portanto, soluções semelhantes (senão idênticas) quando da aferição da legitimidade de determinados atos normativos do Poder Público.” (CLÉVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. Op. Cit. p. 45-48).

[26] SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 99-106. O Autor traça ensinamentos para a realização da ponderação: “(..) a primeira tarefa que se impõe ao intérprete, diante de uma possível ponderação, é a de proceder a interpretação dos cânones envolvidos, (…) delinear a topografia do conflito (…) No campo dos direitos fundamentais, esta demarcação corresponde à identificação dos “limites imanentes” de cada direito. (..) Vencida a etapa referida, (…) o intérprete terá de compara o peso genérico que a ordem constitucional confere em tese, a cada um dos interesses envolvidos (..) Na verdade, o peso genérico é apenas indiciário do peso específico que cada princípio vai assumir na resolução do caso concreto. Este só pode ser aquilatado em face do problema a ser solucionado. (..) as restrições aos interesses em disputa devem ser arbitradas mediante o emprego do princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.”

[27] Neste ponto, há interessante estudo publicado na Revista da Emerj sobre o tema em que seu autor conclui pela inexistência de inconstitucionalidade nos atos infralegais ora questionados, embora não seja essa a orientação por mim seguida neste trabalho: “(..)apesar da Resolução, nos termos em que se encontra redigida, aproximar a noção de comportamento sexual à próprio orientação sexual, o que gera desconforto e protestos, não há que se falar em mácula à Carta Magna, uma vez que em conflito dois princípios fundamentais, foi, apenas, o direito à vida – como não poderia deixar de ser- privilegiado, em detrimento ao direito à intimidade (dignidade da pessoa), mitigando-se a aplicação deste último.” BAISEREDO, André Moreira. Vedação à Doação de Sangue por Homens: Constitucional ou Inconstitucional?. Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, n. 79, v. 20, Maio/Agosto de 2017. p.377-397.

[28] Algumas palavras do Ministro Fachin merecem transcrição: “a exclusão a priori de quaisquer grupos de pessoas da possibilidade de praticar tal ato – a doação de sangue – deve ser vista com atenção redobrada, devendo sempre ser dotada de ampla, racional e aprofundada justificativa (razoes publicas enfim). Aqui se esta, pois, diante de regulamentação que toca direto ao núcleo mais íntimo do que se pode considerar a dignidade da pessoa humana, fundamento maior de nossa Republica e do Estado Constitucional que ela vivifica (art. 1o, III CRFB). Não se pode coadunar, portanto, com um modo de agir que evidencie um amiudar desse princípio maior, tolhendo parcela da população de sua intrínseca humanidade ao negar-lhe, injustificadamente, a possibilidade de exercício de empatia e da alteridade como elementos constitutivos da própria personalidade e de pertencimento ao gênero humano. Dessa forma, o desate da questão posta perante esta Corte deve passar necessariamente pelo conteúdo da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, CRFB), pelos direitos da personalidade a luz da Constituição, pela fundação que subjaz aos direitos fundamentais de liberdade e igualdade (art. 5o, caput, CRFB), bem como pela clausula material de abertura prevista no § 2o do art. 5o de nossa Constituição. (…) O estabelecimento de grupos– e não de condutas – de risco incorre em discriminação, pois lança mão de uma interpretação consequencialista desmedida que concebe especialmente que homens homossexuais ou bissexuais são, apenas em razão da orientação sexual que vivenciam, possíveis vetores de transmissão de variadas enfermidades, como a AIDS. O resultado de tal raciocínio seria, então, o seguinte: se tais pessoas vierem a ser doadores de sangue devem sofrer uma restrição quase proibitiva do exercício de sua sexualidade para garantir a segurança dos bancos de sangue e de eventuais receptores. (…) Os dispositivos impugnados, no entanto, partem da concepção de que a exposição a um suposto maior contagio de enfermidades e algo inerente a homens que se relacionam sexualmente com outros homens e, por consequência, igualmente inerente as eventuais parceiras destes. Não é. Nao pode o Direito incorrer em uma interpretação utilitarista, recaindo em um cálculo de custo e benefício que desdiferencia o Direito para as esferas da Política e da Economia. Não cabe, pois, valer-se da violação de direitos fundamentais de grupos minoritários para maximizar os interesses de uma maioria, valendo-se, para tanto, de preconceito e discriminação. (..)”. Disponível em: . Acesso em 19 jun. 2018.

[29] O voto do Ministro Alexandre de Moraes ainda não foi disponibilizado na data de edição deste trabalho, mas o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5543 está disponível na internet: . Acesso em 19 jun. 2018.

[30] O artigo 3º desta Lei indica o trinômio básico, segundo o Ministro, para a Política Nacional de Coleta, Processamento e Transfusão de Sangue e seus derivados: proteção do doador; do receptor, dos profissionais envolvidos. Assim, para o Ministro, o objeto da ação foi diminuído, pois deveria incluir a Lei n. 10.205/01 e seu Decreto regulamentador no pedido, o que daria mais possibilidade de aplicação da interpretação conforme que o mesmo desenvolveu em seu voto.

[31] “A técnica da interpretação conforme a Constituição visa prestigiar a presunção juris tantum de constitucionalidade dos atos normativos do poder público. Assim, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, sendo possível mais de uma interpretação do ato impugnado (por tratar-se de norma polissêmica ou plurissignificativa), deve-se adotar aquela que possibilita ajustá-lo à Constituição.” (COSTA JUNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Podivm, 2008. P. 360).

[32] O vídeo do julgamento está disponível na internet: . Acesso em 19 jun. 2018.

[33] Disponível em: < https://www.jota.info/wp-content/uploads/2017/10/ADI-5543-1.pdf>. Acesso em 19 jun. 2018.

[34] Como já dito, o vídeo está disponível na internet: . Acesso em 19 jun. 2018.

[35] “Art. 1º Aprovar, na forma do Anexo a esta Portaria, o Regulamento Técnico de Procedimentos Hemoterápicos. (..) § 5º A orientação sexual (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) não deve ser usada como critério para seleção de doadores de sangue, por não constituir risco em si própria.” Disponível em: <www.saude.mt.gov.br/arquivo/2260>. Acesso em 20 jun. 2018.

[36] “Artigo 64: Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo: (..) II – que tenha feito sexo com um ou mais parceiros ocasionais ou desconhecidos ou seus respectivos parceiros sexuais (..)”. Disponível em: . Acesso em 19 jun. 2018.

[37] Não se pretende, no presente artigo, debater quanto a legitimidade da decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4277, de relatoria do Ministro Ayres Britto que reconheceu as uniões homoafetivas. Há fundamentos para ambos os lados, tais quais aquelas que entendem ser tal decisão pertencente à categoria de sentença de revisão constitucional, “porquanto para além de modificar o conteúdo das normas infraconstitucionais objeto de controle na ADI (normas do Código Civil), modificou o conteúdo da própria norma constitucional (parâmetro de controle). Consubstanciou, dessarte, um nítido veículo de mudança informal da Constituição.”(FERNANDES, André Dias. Modulação de efeitos e decisões manipulativas no controle de constitucionalidade brasileiro: possibilidades, limites e parâmetros. Salvador: jus podivm, 2018, pp. 147-148). Nesta ótica, não seria possível extrair da Constituição, expressa ou implicitamente, direitos subjetivos de tais grupos de pessoas, até porque os debates da constituinte de 1988 evidenciaram que a matéria foi discutida, mas a Assembleia acabou rejeitando a possibilidade de tal equiparação da união estável às uniões homoafetivas. Não obstante o fundamento, a decisão do Supremo Tribunal Federal foi unânime pelo citado reconhecimento

[38] SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologias. 2ª ed., Belo Horizonte: Fórum, 2016, pp. 57-67.

Palavras Chaves

Jurisdição constitucional – Doação de Sangue –Hipóteses discriminatórias – Impossibilidade - Dignidade da Pessoa Humana.