ESPAÇO DE DISCUSSÃO 11: DIREITOS, INFÂNCIAS E JUVENTUDES

  

Artigo


JUVENTUDE E O DIREITO CONSTITUCIONAL A EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA NO ASSENTAMENTO CONCEIÇÃO ROSA NO MUNICÍPIO DE ITAPECURU MIRIM – MA[1]

Aldenir Gomes da Silva [2]

Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de analisar como o direito a educação foi sendo implementado no assentamento Conceição Rosa, município Itapecuru, no estado Maranhão à luz do arcabouço jurídico brasileiro, na interface com a luta social. Buscamos compreender a origem do processo histórico, levantar as legislações no que tange a temática. Investigamos o fosso existente entre o proposto pela legislação e os resultados das políticas efetivamente implantadas no que se refere a educação. Na perspectiva do materialismo histórico dialético utilizamos os instrumentos roda de conversa, entrevistas e observação. Os sujeitos da pesquisa foram jovens, alunos da escola, como também professores, diretoria e lideranças da comunidade. Nomes da área do direito e da educação foram imprescindíveis para o debate teórico, como Camargo (2008), Canotilho (2003), Caldart (2010), Bogo (2015), Freire (2005). Desta forma, foi possível analisar o amplo processo de luta e a bonita organização que o assentamento tem realizado. Ficou constatado que o direito constitucional a educação existente hoje no assentamento, é fruto de um longo processo de luta e resistência das famílias, mas a sua permanência é um desafio e uma luta cotidiana sobretudo da juventude.

Palavras chave: Direito, educação, juventude e movimento.

 

Abstract: This paper aims to analyze how the right to education was implemented in the Conceição Rosa settlement, Itapecuru municipality, in the state of Maranhão in the light of the Brazilian legal framework, in the interface with the social struggle. We seek to understand the origin of the historical process, to raise the laws regarding the subject matter. We investigate the gap between what is proposed by the legislation and the results of policies effectively implemented in education. In the perspective of dialectical historical materialism we use the instruments of conversation, interviews and observation. The research subjects were young, school students, as well as teachers, board and community leaders. Names of the area of law and education were essential for the theoretical debate, such as Camargo (2008), Canotilho (2003), Caldart (2010), Bogo (2015) and Freire (2005). In this way, it was possible to analyze the broad process of struggle and the beautiful organization that the settlement has carried out. It was verified that the constitutional right to education exists today in the settlement, it is the fruit of a long process of struggle and resistance of the families, but their permanence is a challenge and a daily struggle mainly of the youth.

Key words: Law, education, youth and movement.

INTRODUÇÃO

O direito fundamental de acesso à educação, tratado na Carta Marga de 1988, é questionado quanto a sua efetividade, considerando a realidade brasileira a despeito aos direitos fundamentais dos cidadãos. Praticamente em nível nacional vislumbramos dificuldades quanto ao acesso e permanência na educação, principalmente quando estreitamos este direito na educação básica e sobretudo nas áreas rurais.

É indiscutível a relevância social, política, cultural da educação em nossa sociedade ou em qualquer outra que tenha como parâmetro o desenvolvimento do sujeito em várias dimensões. A “instrução” se constitui uma ferramenta essencial e determinante para a capacitação do sujeito para o trabalho, para a vida e também para a formação da consciência cidadã. Tudo isso se faz ainda mais necessário diante do momento em que vivemos de um avançado estágio do capitalismo, pautado na revolução científico-tecnológica e na dita globalização, denota relevo ainda maior à educação. Porque é um espaço estratégico para qualquer sistema que almeje ter em mãos o controle social.

Podemos afirmar contundentemente que o nível de formação de uma população é condição sine qua non[3]  para que haja desenvolvimento, seja ele econômico e social, ou sustentável em qualquer nação, pois esta questão já se confirmou por uma série de elementos apresentados ao longo da história e descrita na pesquisa hora em análise. Parece cada vez mais evidente que a solução para inúmeros problemas enfrentados pela sociedade, como é o caso da violência, a alienação, o incipiente desenvolvimento econômico ou para as desigualdades sociais é a educação. Portanto, ela é ferramenta, é condição social e base de todos outros processos que desenvolvem uma sociedade.

Com respaldo no estudo de obras notáveis de Direito Constitucional, em estudos de Teoria dos Direitos Humanos, artigos científicos, periódicos no que tange ao direito à educação desenvolve-se o presente trabalho com foco no Assentamento Conceição Rosa, município de Itapecuru Mirim, estado Maranhão.

Fazemos um esforço para analisar como o direito constitucional a educação vendo sendo tratado no assentamento Conceição Rosa, tendo como referência o protagonismo da juventude frente a esta demanda e quais as reflexões destes processos envolvidos na vida dos sujeitos. Na medida em que faremos uma interface entre o direito e a luta social, os sujeitos como pessoas parte de um movimento social e os dilemas no mundo jurídico.  O assentamento Conceição Rosa, se constitui em um espaço onde os indivíduos constroem e reconstroem suas práticas, habilidades técnicas, sociais, políticas e culturais na perspectiva da transformação da realidade. É também um exercício de dialogar face ao modelo de educação que a escola busca trabalhar, dialogando com a luta, com o movimento social e com os diferentes atores deste universo que a vida em sociedade nos permite vivenciar cotidianamente.

Neste particular, trata-se de olhar sobre o assentamento Conceição Rosa, como fruto de um processo intenso de lutas e resistência e, o direito a educação como uma bandeira de luta permanente pelos trabalhadores do campo, trazendo a juventude como sujeitos parte e construtores deste processo.

A pesquisa tem a perspectiva de olhar o direito a educação como uma construção coletiva do conjunto do assentamento, com destaque para a juventude. Mais, precisamente a partir da seguinte pergunta: Como o direito constitucional a educação foi sendo implementado no assentamento Conceição Rosa? Olhando para os sujeitos envolvidos, analisando as Leis, fazendo relação com o movimento social e a luta pela terra e os reflexos na vida da juventude.

Motivado pelo fato de ser jovem, morar em área de reforma agrária, e partilhar de muitas destas angústias com outros jovens. O curso de direito do Pronera, a partir da Turma Elizabeth Teixeira muito contribuiu para a linha de pesquisa. Política, social e culturalmente a pesquisa tem uma relevância muito grande, pois os jovens pesquisados, a escola e o assentamento fazem parte de um processo de luta muito interessante e de uma riqueza inigualável que dialoga dialeticamente com nossa realidade.

Para chegar ao objetivo geral, buscamos primeiramente compreender a origem do processo histórico, a nível nacional, estadual e local, levantar as legislações em algumas esferas no que diz respeito à juventude e a política de educação, com enfoque no campo. Analisamos ainda, as formas e práticas organizativas de resistências da juventude frente às condições que são posto na realidade do assentamento. Investigamos o fosso existente entre o proposto pela legislação e os resultados das políticas efetivamente implantadas dentro do assentamento no que se refere a educação.

Quanto a metodologia, no que se refere ao processo de estudos e leituras para o embasamento teórico deste trabalho buscou-se dialogar com pesquisadores, e uma diversidade de autores do campo em análise. Foram pesquisadas bibliografias em livros, revistas, periódicos e sites que trabalham o tema abordado. É possível nomear alguns como Gentilli (2009), Pompeu (2005), Roseli Caldart (2005), Ademar Bogo (2000), Paulo Vicente (2012) e alguns outros que se dedicam a este enfoque do direito a educação sob diferentes visões. E é claro, utilizamos como base fundamental a Constituição Federal de 1988 e Leis e diretrizes, além do arcabouço jurídico internacional.

Ainda na metodologia, utilizaremos letras do alfabeto brasileiro para identificação dos entrevistados. Envolvendo dezessete entrevistados no total, sendo alguns que moravam no assentamento e cursavam o ensino médio na cidade no período da ocupação da terra, assentados que participaram de todo o processo de organização do assentamento, professores da atual escola do assentamento, professora. Ainda alunos do ensino fundamental que funciona atualmente no assentamento e alunos do ensino médio atual que também é ofertado no próprio assentamento. Todas as escolhas foram feitas a partir da dimensão da pesquisa, ou seja, envolvendo pessoas que tivesse participado de diversos espaços desde a ocupação até o atual momento em que vive o assentamento, na perspectiva de olhar para a grande diversidade do processo. As entrevistas foram realizadas através de rodas de conversa e realização de questionários. Os questionários tiveram como objetivo detectar como o direito a educação foi se implementando no assentamento e as lutas travadas olhando para as várias dimensões e aspectos relevantes da luta no diálogo permanente com o direito.

Fizemos uma breve análise da implementação do direito a educação no Brasil e abordamos a grande diversidade que se inscreve nos sentidos do ser jovem. Na perspectiva de apontar o que eles pensam, desejam, quais seus anseios, desafios, perspectiva de vida, no intuito de compreender como tem sido seu processo de inserção na luta, formação, organização tanto na escola como também fora dela, a partir de uma visão mais abrangente. Para além destas questões, é necessário contemplar as questões emblemáticas no processo de luta e resistência das famílias sem terra, trazendo ao debate o histórico das expropriações de terras no Maranhão com centralidade no assentamento. Contudo faz também a descrição do processo de criação do Projeto de Assentamento da ocupação e desocupação das famílias e os direitos conquistados, como é o caso da educação.

Daremos voz aos sujeitos, com maior ênfase a juventude do assentamento Conceição Rosa, como sujeitos inseridos e envolvidos em todo processo de luta e resistência nas demandas da coletividade. Trata-se de uma analise a partir dos depoimentos e das observações colhidas ao logo da pesquisa, olhando para o espaço, sujeitos e inúmeras questões estrutural e socialmente envolvidas.

Pelo exposto, percebemos que o direito a educação dialoga com processos mais amplos, é de uma complexidade grande que reverbera em vários campos da vida humana e se interliga a história e as lutas sociais, tendo em vista que no Maranhão, por exemplo, os conflitos agrários têm suas raízes históricas, que vão desde a ocupação francesa, até o período republicano e isso reflete no modelo de educação historicamente implementado. Vimos que, até hoje os governantes não estão comprometidos sequer para realizar a distribuição de terra por meio da política de reforma agrária, muito menos preocupados com a efetivação do direito a educação em sua plenitude. E tudo isso, reflete diretamente na vida da juventude por ser o público mais afetado. Mas, que ao longo da história criaram alternativas de luta e estratégias de resistência.

A Educação como direito fundamental: A dignidade humana construída a partir deste direito.

A dignidade da pessoa humana está diretamente ligada a educação e vice-versa, estas se entrelaçam, mas não se confundem, porque na verdade se complementam. É um princípio constitucional tão importante que está resguardado na nossa Carta Magna de 1988. Do princípio da dignidade humana deriva tantos outros e no caso de descaso com este princípio fere gravemente o ordenamento jurídico brasileiro e tantos outros pactos e convenções internacionais em que o Brasil é signatário e por estes tem o dever e a obrigação de cumprir, sob pena de receber recomendações e até mesmo exposições.

Para Dante (2016), pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana, além de ser um valor moral fundamental é um princípio jurídico constitucional e fundamento de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Isto porque ele deve ser observado na construção de normas, bem como na interpretação destas diante de cada caso concreto. Por estar intimamente ligada à pessoa entende-se que a dignidade da pessoa humana é o principal fundamento do direito ao mínimo para uma existência digna e dentro deste viés, encontra-se o direito à educação.

Impende observar que o direito à educação consiste também em aspecto necessário e fundamental ao pleno desenvolvimento da pessoa humana, conforme aponta o art. 205, da Constituição Federal, por conseguinte, é elemento necessário à consecução de outros direitos, tais quais: o exercício da cidadania e a capacitação para o trabalho. E bem destacou o texto constitucional de 1988. Elaborado a partir de um amplo debate e também num processo de participação da sociedade representada pelos constituintes.

Em verdade, muitos autores analisam a educação como direito da personalidade, já que consiste em uma condição básica para o desenvolvimento da personalidade do indivíduo, sendo, portanto, um direito fundamental (FREITAS; MOTTA, 2015, p. 52). Ademais, referidos autores corroboram afirmando claramente que:

O fato é, que, reconhecidos como direitos inatos ou não, os direitos da personalidade se constituem em direitos mínimos que visam assegurar e resguardar a dignidade da pessoa humana e como tais devem estar previstos e sancionados pelo ordenamento jurídico, não de forma estanque e limitada, mas levando-se em consideração o reconhecimento de um direito geral de personalidade, a que se remeteriam todos os outros tipos previstos ou não no sistema jurídico. (Idem, p. 54).

Para além do princípio da dignidade da pessoa humana existe outra questão fundante, relacionada com as condições mínimas de uma vida digna, que tomou conotação internacional, com um movimento no sentido da constitucionalização deste princípio, sobretudo após o advento da Segunda Guerra Mundial (1838 a 1945), quando muitas vidas foram ceifadas, muitos direitos retirados sem qualquer respeito à vida ou à dignidade destas pessoas. Logo, após este ocorrido alguns países normatizaram a dignidade da pessoa humana em suas Constituições, como é o caso da República Portugues, Espanha, Alemanha, Bélgica, Croácia, Bulgária, Rússia e alguns outros países. (PERES, 2004).

No dizer sempre expressivo de Camargo (2007), ele nos coloca que a dignidade da pessoa humana é tão importante que não pode ser considerada simplesmente como um princípio, mas sim um atributo que não deve se desvincular ou seja, é inerente à pessoa humana. E a educação como sendo um direito fundamental, deve ser analisado em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, para não cairmos em contradições.

No âmbito jurídico, Garcia (2002) fala que a conceituação a respeito dos direitos fundamentais infere que o direito à educação é fundamental por se tratar de um direito social diretamente ligado ao direito à vida. Ou seja, está em um nível de importância e necessidade altamente profundo. Este se apresenta como um dos cinco direitos fundamentais básicos previstos no art. 5º caput da Constituição Federal de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, […] (BRASIL, 1988).

Mister se faz necessário ressaltar que não podemos falar de dignidade humana, sem nos remeter a educação, uma vez que por intermédio da educação é que o indivíduo se desenvolve plenamente, formando sua dignidade humana, tornando-se, assim, um cidadão conhecedor dos seus direitos e deveres, já que, nos termos da Constituição Federal, capacita o homem para o exercício da cidadania. Tal afirmação ganha respaldo na medida em que a educação é tida como,

O processo pelo qual o homem passa de uma mentalidade sensitivamente comum para uma mentalidade consciente, ou seja, sair de uma concepção fragmentária, incoerente, passiva e simplista, para assumir uma concepção unitária, coerente articulada, intencional, ativa e cultivada. Educar é evoluir, capacitar à dignidade (ZENNI; FÉLIX, 2011, p. 169-192).

Desta forma, a educação, é tão importante que não pode, sob qualquer justificativa, ser negada a qualquer ser humano. O cognitivo do indivíduo se desenvolve justamente neste processo formativo e a escola tem um papel fundamental nesta evolução. Mesmo tendo clareza de que não compete exclusivamente à escola promover a educação, considerando que a mesma Constituição reafirma que é dever do estado, da família e de toda a sociedade. Mas, o estado com maior parcela de responsabilidade, pois é quem detém recursos e a tutela para promover as políticas públicas e sociais que visa e que assiste a população.

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988).

É consenso entre os intelectuais e pesquisadores do tema, que o desenvolvimento de um ser humano perpassa por todo um processo que carece necessariamente da educação, e esta educação carece necessariamente da escola O processo de desenvolvimento de um pais, seja no aspecto econômico, cultural, social, político, precisa necessariamente de uma educação de qualidade. E a possibilidade de uma sociedade harmônica, de uma cultura de paz e de bem estar social depende também que se tenha a educação como base central do processo de construção. E se este direito não sendo oferecido ou se tornando inacessível as pessoas, teremos grandes lacunas e sérios problemas na sociedade de modo em geral.  Por exemplo, estarão as pessoas mais vulneráveis as mazelas sociais e situações de manipulação.

 Uma breve análise histórica do direito a educação com ênfase na Constituição Federal de 1988.

Numa breve linha do tempo, vimos que o direito à educação, desde 1948 fora previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando da sua adoção pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU). Portanto, é sem dúvidas um direito humano e com respaldo normativo de grande relevância. Ao que parece o Estado Brasileiro despertou, mesmo tardiamente, para priorizar esse direito, despertar esse que só veio surgir a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), fruto de um longo processo de lutas e mobilização da sociedade organizada. Os legisladores, após a redemocratização, trataram da educação enquanto um direito social, com especificidade apenas ao ensino fundamental, deixando de fora a educação infantil e o ensino médio.

De acordo com arcabouço jurídico, são reconhecidas três gerações de direitos fundamentais, que se complementam entre si, não desconsidera os antecedentes, mas, convivendo em harmonia entre ambos. Quais sejam: os direitos individuais, os direitos sociais e os direitos de fraternidade. A primeira geração diz respeito aos direitos individuais e políticos, que são direitos de defesa, impondo limites à ação estatal. Já a segunda geração abrange os direitos sociais, econômicos e culturais, que exige do poder estatal uma ação positiva objetivando oferecer melhores condições de vida à pessoa humana e diminuir as desigualdades sociais que historicamente foram construídas. A terceira e última geração abrange os direitos difusos, são aqueles que rompem a individualidade do ser humano, são direitos de todos e para todos, ou pelo menos deveriam assim ser.

 Característica peculiar dos direitos de primeira geração é a imposição de defesa contra as possíveis ingerências e abusos do Estado. Podemos citar como exemplos, o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à liberdade de expressão, à participação política e religiosa, à inviolabilidade de domicílio, à liberdade de reunião, e assim por diante.

Por serem repressores do poder estatal, os direitos fundamentais de primeira geração são reconhecidos como direitos negativos, liberdades negativas ou direitos de defesa do indivíduo frente ao Estado. (ALEXANDRINO, PAULO, 2012. p. 102).

Compõe o rol dos direitos de segunda geração, que está dentro dos direitos sociais, o direito à educação, objeto especifico do presente estudo. Sua origem vem do latim educatio, educationis indica a ação de criar, de alimentar, de gerar um arcabouço cultural (TORRINHA, 1942, p. 278). A educação possibilita o pleno desenvolvimento da personalidade humana e é um requisito indispensável à construção da cidadania de todo ser humano. É através da educação que o indivíduo compreende o alcance de suas liberdades e também compreende suas limitações num contexto de buscar superá-las. A forma de exercício de seus direitos e a importância de seus deveres também se fazem imprescindíveis, permitindo a sua integração em uma democracia efetivamente participativa, e não meramente de retórica. A educação, além de passaporte para a cidadania, é considerada meio necessário à evolução de qualquer Estado de Direito, pois a qualificação para o mundo do trabalho e a capacidade crítica dos sujeitos é fundamental na sociedade. Principalmente no atual contexto das adversidades na esfera das políticas públicas brasileiras, pois,

Através dos direitos fundamentais de segunda geração, a proposta que se tem é de um equilíbrio real na relação Estado/cidadão. Fazendo com que, esse ente estatal, que possui o maior poder (econômico, político e jurídico) seja um sujeito, não apenas com direitos, mas com deveres que elevem o cidadão a um status em que possa viver com dignidade, não apenas pelos seus próprios meios, mas também pelos meios ofertados pelo Estado. Assim, dizem respeito aos direitos fundamentais de segunda geração a assistência social, saúde, educação, trabalho, lazer, etc. (BRANCO, 2012. P. 155).

A própria Declaração Universal dos Direitos do Homem, fala expressamente sobre a importância da educação. Em seu artigo 26, dispõe que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e o fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais dos sujeitos de maneira geral, sem qualquer distinção entre os povos ou classe social. (ONU, 2015).

Apesar do respaldo jurídico, podemos dizer que o Brasil experimentou tardiamente a aplicação do direito a educação, como prioridade absoluta. No seu processo histórico podemos identificar a aplicação de oito Constituições, isso contando com a Emenda Constitucional 69[4]. Os contextos econômicos, sociais e políticos do Brasil de cada época, desde a independência até os dias atuais, estão refletidos nas linhas mestras das cartas magnas brasileira. Todas elas foram instituídas a partir de um ideário e de interesses de cada época.  E em todas essas constituições o direito a educação pouco foi priorizado, e em algumas praticamente nada foi tratado, com exceção da mais avançada no tema que é a Constituição Federal de 1988, chamada de Constituição Cidadã e todas as conquistas foram obtidas através de muita luta da sociedade civil organizada.

O direito à educação é tão importante que não pode sob qualquer justificativa ser banido da Constituição Federal. Isso porque os direitos fundamentais tem status de cláusula pétrea, ou seja, não podem ser retirados sob qualquer fundamento. E a educação é um direito humano fundamental, reconhecido inclusive na Declaração Universal dos Direitos Humanos, assim, como também em várias outras Declarações, dentre as quais cabe citar o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, dos quais o Brasil é signatário.

A Constituição Federal de 1988 obteve avanços significativos. Martins (2012), esclarece que o legislador constituinte preocupou-se em assegurar o direito ao padrão mínimo de qualidade do ensino fundamental, sendo oportuno ressaltar que: Preconizou a educação como um direito de todos e dever do Estado e da família, e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade (artigo 205); Estabeleceu os princípios que deve nortear o ensino em todos os graus, nomeadamente o fundamental (artigo 206); Assumiu como dever o cumprimento das políticas públicas que assegurassem a efetivação, prioritariamente, do ensino fundamental em relação aos demais graus e erradicar o analfabetismo em todas as idades através de um ensino de qualidade mínima (artigo 208); Impôs, expressamente,  ao Poder Público a obrigatoriedade em oferecer o acesso ao ensino fundamental em caráter gratuito, consistindo em direito público subjetivo (artigo 208, §§ 1º, 2º e 3º); Estabeleceu que o ensino seria livre a iniciativa privada, abrangendo o ensino fundamental e atendendo o cumprimento de normas gerais (artigo 209); Preconizou que o ensino fundamental seria ministrado em língua portuguesa, assegurada as comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas, observando outras especificidades (artigo 2010); Estabeleceu que a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios organizariam em regime de colaboração seus sistemas de ensino, sendo que a União organizaria e financiaria o sistema federal de ensino e dos territórios e prestaria assistência técnica e financeiras aos demais (artigo 211); Estabeleceu que a União aplicaria, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultantes de impostos (artigo 212); Manteve, especialmente, para o ensino fundamental público a fonte adicional de financiamento criada desde a Constituição de 1967 (artigo 212, § 5º); Dispôs que os recursos públicos que seriam destinados as escolas públicas poderiam ser dirigidos às escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, cumprindo o regramento geral estabelecido (artigo 213); Direcionou as metas a serem alcançadas pela Lei que viesse a dispor sobre o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando a articulação e o desenvolvimento do ensino em seus diferentes níveis e integração das ações do poder público (artigo 213).

Como dito anteriormente, o Brasil possui um arcabouço jurídico amplo, inclusive com  o regramento jurídico infra constitucional, dentro os quais podemos citar a Lei nº 9394/96 – LDBN – Educação Especial; Lei nº 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – Educação Especial; Lei nº 10.436/02 – Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências; Decreto Nº 6.094/07 – Dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação; Decreto Nº 6.571/08 – Dispõe sobre o atendimento educacional especializado, a Lei nº 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBN. A Conquista do Direito a Educação com ênfase na educação do Campo

Frente ao desafio da buscar pelo direito a educação é colocado ainda a proposta de construir um modelo de educação que corresponda as especificidades do campo. Essa é uma proposta vinda dos movimentos sociais, sendo considerada um contraponto ao modelo tradicional adotado nos currículos escolares. Se trata de processos formativos que perpassam necessariamente por uma relação estreita entre vivencias, valores e saberes que vão sendo resgatados e redimensionadas numa estratégia política e social, assim, a educação no meio rural, passa a ser chamada de “educação do campo”, se difere não somente pela nomenclatura, mas pelo conjunto de características que a faz ser diferente.

A educação do Campo nasce a partir da organização e da luta dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, em busca de direitos que desde séculos lhes foram negados. A primeira discussão de Educação do Campo acontece no I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária, (I ENERA) em julho de 1997, com o desafio de pensar uma educação que levasse em conta o contexto do campo em termo de sua cultura especifica quanto à maneira de se relacionar com tempo, espaço e meio. Acontecem nesse período do corrente ano, várias reuniões com a finalidade de organizar a Primeira Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, que ocorreu de 27 a 30 de julho de 1998.

Após essa primeira conferência, a discussão sobre a Educação do Campo ganhou grandes proporções, pois, além dos debates promovidos pelos movimentos sociais, conseguiu sensibilizar alguns setores da sociedade, com avanços significativos na educação, entre os quais podemos citar: a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – Pronera, elaboração das diretrizes operacionais para educação básica nas escolas do campo, Procampo (Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo), entre outros.

     A Constituição Federal de 1988 diz que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família sendo promovida e incentivada pela sociedade garantida na constituição, no entanto, esta não é garantida para a maioria população, que são os trabalhadores e trabalhadoras, responsável pela a produção da riqueza do país. E segundo Lopes, 2011.

A não garantia da universalização da educação escolar no Brasil é uma questão a ser enfrentada ainda hoje. Essa histórica ausência do direito a uma educação de qualidade, laica e gratuita, tem se evidenciando no campo, ao longo dos tempos com bastante materialidade. Esta realidade excludente impulsionou os movimentos sociais desde a década de 90 a intensificarem a luta e pressão ao Estado pela garantia de uma política pública de educação do campo. (LOPES, 2011, p14).

Nesse sentido, conclui-se que a Educação do Campo é uma política pública construída a partir da luta dos trabalhadores e trabalhadoras que leva em conta a cultura, as especificidades, as necessidades, as realidades e os sonhos dos que vivem no e do campo e, sobretudo, um meio para se concretizar um projeto de sociedade desses trabalhadores e trabalhadoras. Mas, tendo a clareza de que embora sendo uma política pública o que está no papel não se efetiva na prática e que a pressão dos movimentos é que faz com que ela aconteça.

A educação tem sua história marcada pela disputa de hegemonia. Ela é um conjunto de relações sociais, que se constitui e é constituída nessas relações sociais cotidianas nos diferentes setores da sociedade e de maneira dialética. Dessa maneira, as diferentes concepções estão presentes no ensino médio, expondo seu caráter dual, existindo a predominância da concepção dominante (liberal), que propõe ao sistema educacional uma função utilitarista e regida pelos interesses de mercado.

O sistema educacional está vinculado aos interesses do capital, que ao longo dos anos vem passando por mudanças de acordo com as ocorridas no mercado de trabalho, como por exemplo, a super valorização da formação de mão de obra barata para servir o mercado capitalista. No ensino médio isso se evidencia com frequência pelo fato do mesmo ainda está construindo sua identidade, sendo articulado com os modelos econômicos.

O estudo dos parâmetros curriculares para ensino médio- PCNEM-, talvez principal instrumento de divulgação da Reforma, deixa clara a vinculação da reforma ao cenário presente nos diagnósticos dos organismos internacionais que, em última instância, naturalizam as mudanças no sistema do capital. (Caldart  2010, p74).

Em face as contradições existentes, que hora diz que todos tem direito a educação e o Estado tem a obrigação de ofertar, quando na prática ela não acontece é preciso que o Ensino Médio, como última etapa da educação básica, desenvolva princípios e objetivos, que contemplem as necessidades socioculturais, políticas e econômicas dos sujeitos que a constituem, reconhecendo-os não como cidadãos e trabalhadores de um futuro incerto, mas como sujeitos constituídos de direitos e deveres, que devem ter acesso ao conhecimento historicamente acumulado pela humanidade.

Conceito sociológico e político-cultural de juventude

Para entendermos sobre os conceitos e debater sobre a juventude, trazemos inicialmente a concepção e a leitura de um dos organismos internacionais mais importantes, para quem a definição de juventude, considera de forma preponderante o aspecto etário. Para a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura é “considerado jovem o ciclo que vai dos 15 aos 29 anos, cuja principal característica é a sua transitoriedade, razão pela qual está fadada a ser perdida com o passar dos anos” (UNESCO, 2004). Esta definição visa facilitar a realização de comparações internacionais, regionais, temporais, socioeconômica, e em muitos casos parte-se de uma definição predominantemente etária. Ou seja, está fechada e restrita aos aspectos formais que delimita a idade.

Há uma tentativa de reduzir juventude a uma simples categoria, em que a idade ou o comportamento é o fator preponderante. Ou até mesmo como uma definição universal, Eliza Guaraná (2009, p6) nos coloca que:

Entretanto, muitos trabalhos tratam juventude como categoria autoevidente ou auto-explicativa, utilizando idade e/ou comportamento como definições metodológicas. Essa concepção de juventude é retomada nos anos 90, tanto no campo acadêmico quanto pelas políticas sociais. Muitas dessas construções carregam um olhar em que juventude é passível de uma definição universalizante. Tais como: as definições da categoria a partir de elementos físicos/psicológicos, como faixa etária, mudanças físico-biológicas e/ou comportamentais; as definições substancializadas/adjetivadas da categoria; e as definições que associam juventude e jovem a determinados problemas sociológicos e/ou como agentes privilegiados de transformação social.

A autora chama a atenção para estas categorias de juventude, como também o período histórico em que o conceito de juventude é retomado. Considerando que existem uma relação direta entre o tempo histórico com o conceito construído e os elementos que são levados em consideração para esta definição conceitual.

Outros estudos na literatura sociológica são mobilizados, Bourdieu (1983) nos mostra que com frequência, duas perspectivas teóricas para lidar com o tema da juventude se fazem necessário: a primeira está relacionada a corrente geracional, enquanto a segunda, se refere a corrente classista. A primeira lida com o fenômeno a partir do determinante biológico, que seria a definição de um período cronológico da vida do indivíduo. Já a segunda questiona a unicidade do conceito de juventude e propõe o tratamento diferenciado deste fenômeno de acordo com a heterogeneidade das trajetórias individuais imposta pela estratificação social.

Já, de acordo com a Proposta de Emenda Constitucional – PEC da Juventude aprovada pelo Congresso Nacional Brasileiro em setembro de 2010, é jovem no Brasil todo o cidadão que compreende a idade entre 15 e 29 anos, sendo dividido em:

Jovem-Adolescente, Jovem-Jovem e Jovem-Adulto

É entendido como sendo uma pessoa moça, com idade entre 15 e 24 anos.

 Juventude… são as pessoas que estão entre os 15 e 24 anos de idade, inclusivo.” — Assembleia Geral das Nações Unidas.

Período na vida de uma pessoa entre a infância e a maioridade. Segundo o Banco Mundial, o termo juventude geralmente refere aqueles que estão entre as idades de 15 a 24 anos.” — Banco Mundial.

Pessoas entre os 20 e 25 anos de idade.” — Governo de Tasmânia. (PEREIRA, 2001, p2).

Dialogando com Coelho (2003), a juventude deve ser conceituada levando em consideração todos seus aspectos estruturantes, com foco no ator, protagonista do mundo atual que enfrentam as crescentes desigualdades sociais do país sem perder a sua diversidade de estilos e identidades.

Desta forma, ao analisar o cenário brasileiro Kehl (2004) diz que o prestígio da juventude é bem contemporâneo, surgido dos últimos “pulsares da história”. A autora constatava que o país, nos anos 1920, “era uma paisagem de velhos em que os moços não tinham função nem destino”, ou seja, viviam em um abismo e ao mesmo tempo numa fase complexa da história. “A época não suportava a mocidade”. Naqueles anos, homens e mulheres eram muito mais valorizados ao ingressarem na fase produtiva e conseguintemente reprodutiva de sua existência do que “quando ainda habitavam o limbo entre a infância e a vida adulta chamado de juventude ou, como se tornou hábito depois da década de 1950, de adolescência” (p. 90).

Portanto, fica esclarecido que a juventude é que um público diverso uma série de características difere estes sujeitos, seja pela idade, sexo, cor, cultura, gênero, enfim, são vários fatores que constroem o perfil e estes estão em constante mudanças. São característica e perfil que fazem destes sujeitos aspirarem transformação, pois a juventude deu gás a muitas revoluções e conduziram revoluções em todo o mundo.

A luta pela terra no Maranhão a luta por uma educação que dialogasse com a realidade do campo

 Sabemos que a luta pela terra não é um fator isolado das demais questões da história do Brasil e do Maranhão, da constituição social brasileira. É preciso considerar a colonização, o regime de escravidão, o latifúndio e a predominância da produção extrativista e agrícola voltada para a exportação que marcam profundamente esse processo histórico.

O modelo de desenvolvimento no campo brasileiro e em especial no Maranhão, foi tão excludente e escravista, e marca até hoje o modelo de educação adotado e implementado no Estado Brasileiro. Estas realidades refletem diretamente nas desigualdades regionais encontradas nos municípios maranhenses, como é o caso de Itapecuru Mirim.

O Maranhão é uma das maiores unidades da Nação Brasileira, tendo seu território com uma área superior a 300 mil km2, composto de vários biomas naturais, desde a Amazônia, Baixada, Lençóis, Cocais, Cerrado e Sertão. Com uma população com mais de 6 milhões e meio de habitantes (IBGE 2010). Num contexto de grande biodiversidade, diversidade étnica e grande herança cultural, que ainda hoje são preservadas. Mas é um Estado também com muitas contradições e as mazelas sociais também assolam os maranhenses.

É um Estado eminentemente rural, pois a sua população que vive no campo é de 4/5, IBGE (2010), o que coloca o Estado da federação brasileira com o maior índice de população camponesa. Esse fato pode ser observado também a luz do processo migratório de sertanejos nordestinos que chegaram no Maranhão por conta do processo de privatização da água e fuga das grandes secas e grandes cercas do latifúndio, muitos vindo dos estados do Ceará, Sergipe e Alagoas. Mas, é uma região também com grandes concentrações de terras, conforme pesquisa realizada em 2011.

É um Estado constituído com tradição histórica de produção agrícola[5] e num contexto muito particular de conflitualidade, começa a sofrer grandes e intensas transformações no seu processo produtivo desde a década de 1970, com a implementação de grandes projetos de expansão na área agropecuária e com a abertura para as grandes empresas a fim de fazerem a exploração dos recurso naturais e abrir caminhos. Modificações estas que, segundo Lopes et al (2006, p 5), se concretizam através de uma articulação entre o capital internacional, o Estado e as elites políticas locais. De acordo com a autora, desde este período, vem sendo implantados grandes projetos no estado, os quais se apresentam a partir de dois eixos – o industrial e o agronegócio.

O processo de luta pela terra no assentamento Conceição Rosa que antes era conhecido como fazenda Guaracy não se dissocia do restante do Maranhão e até mesmo do Brasil; todo este processo reflete diretamente na história do assentamento. Trata-se de um percurso histórico de luta que ganha conotação política e social, mais precisamente com a chegada no MST na região e começa a organizar as famílias para a ocupação do território.

O assentamento Conceição Rosa no município Itapecuru Mirim é a expressão do rompimento com o modelo de dominação que, conforme demonstrado, se colocou em marcha contra o modelo do capital e as formas de opressão no campo. Ficou evidenciado que a juventude teve uma tarefa muito importante, porque participou ativamente do processo de luta, desde o trabalho de base até a conquista das políticas públicas que existem hoje no assentamento, como é o caso, da educação.

O assentamento Conceição Rosa no município Itapecuru Mirim é a expressão do rompimento com o modelo de dominação que, conforme demonstrado, se colocou em marcha contra o modelo do capital e as formas de opressão no campo. Ficou evidenciado que a juventude teve uma tarefa muito importante, porque participou ativamente do processo de luta, desde o trabalho de base até a conquista das políticas públicas que existem hoje no assentamento, como é o caso, da educação.

A luta pelo direito a educação no assentamento Conceição Rosa se iniciou de maneira coletivamente organizada, desde o início da ocupação. Em 1997, quando organizou-se a estrutura do acampamento, um dos primeiros barracos planejados foi o da escola, como nos relata o entrevistado A, assentado de 55 anos:

Quando chegamos no dia da ocupação, na primeira assembleia já ficou decidido que o barraco da escola deveria ser construído ou então seria organizado outro espaço para que as crianças pudessem estudar e também alfabetizar as pessoas que não sabiam lê e escrever. Essa era uma das preocupações de todos nós.

A escola como uma primeira preocupação e a educação como uma bandeira de luta permanente estão presentes nas primeiras ocupações do movimento dos sem terra realizadas na década de 80. E o processo de formação das pessoas é entendido como sendo os diversos espaços que a luta propicia aos sujeitos, seja no trabalho de base, nas assembleias, nas místicas e assim por diante. Foi assim desde as primeiras ocupações que o Movimentos Sem Terra realizou no sul do Brasil.

Notemos que no assentamento Conceição Rosa a escola também era uma das primeiras preocupações. No entanto, apenas a alfabetização era a prioridade e possibilidade, através da solidariedade de classe, pois os professores eram voluntários, alcançando todas e todos sem qualquer distinção. Quanto aos demais níveis de ensino, ainda era uma questão a ser pensada e pautada posteriormente.

FOTO 01 – ASSENTAMENTO CONCEIÇÃO ROSA

Fonte: arquivo do autor – Entrada de acesso ao assentamento – Dezembro de 2017.

O acesso à educação é visto como uma política extremamente importante, sobretudo para os jovens, porque são os mais vulneráveis a sair do campo, deixar suas famílias para estudar na cidade, quando ela não é ofertada no lugar em que vive. Os assentados trazem em suas falas como uma preocupação desde a primeira ocupação, a partir desta necessidade procuram alternativas para ter acesso a este direito. É o que nos diz o assentado A, 55 anos:

Os jovens que participaram da ocupação na época, alguns não estudavam mais. E os que estudavam eram obrigados a estudar na cidade. Eles iam e voltavam todos os dias, ou ficavam na cidade e voltavam nos finais de semana. Como estudavam praticamente a noite e outros durante o dia tinham que fazer este caminho de 12 quilômetros. Ou era assim, ou não estudava.

Postos, em situações extremas, a juventude se desafiava a enfrentar os vários quilômetros que poderia lhes custar um futuro melhor ou incerto. Mas, ao mesmo tempo tinham clareza de seus direitos, pois ao questionar sobre as informações que eles tinham sobre este direito a educação, e se já haviam feito contato com as instancias do município e do Estado para a garantia da escola e da educação dentro do acampamento, o entrevistado A, continuou a nos informar que:

A gente sabia que tínhamos direito de ter a educação, tinha um número de alunos suficiente para funcionar as turmas, mas o município não tinha condições de garantir, porque diziam que não tinham professores e outros momentos porque a gente morava numa ocupação e não podia construir escola e muito menos oferecer uma educação dentro do acampamento. Era irregular e a lei não permitia.

Acrescenta ainda,

No início foi assim, cada um se virava para fazer o ensino fundamental e o ensino médio também, porque as crianças estudavam no acampamento com professores voluntários e na ciranda infantil organizada pelo próprio acampamento. Mas, os jovens e adolescentes tinham que sair para poder estudar. E eram obrigados a ir para cidade mais próxima, que era Itapecuru Mirim.

É sabido que a educação básica é direito social e fundamental, cujo valor é indiscutível, que envolve três etapas, a educação infantil, ensino fundamental e médio, o que está previsto na Constituição Federal, de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996. No entanto, essas etapas graduais não são seguidas e por vezes rompidas por conta de questões como o caso em estudo.

Na interface com o direito em si e com os textos constitucionais, discorre ainda sobre os valores cultuados pela sociedade que estão imersos, são valores positivados e, portanto, com eficácia normativa. Desta feita, a dignidade da pessoa humana suplanta o frio positivismo, onde barbáries e atrocidades eram cometidas em nome da lei, sendo surda, muda e cega aos anseios sociais, diferentemente da concepção atual de lei e, principalmente, de constituição. Assim, no assentamento Conceição Rosa, este direito a educação foi sendo negado com justificativa da Lei que os impedia, ou seja, é o Estado se revestindo de elementos para justificar sua incapacidade, até mesmo sua incompetência enquanto garantidor deste direito.

A luta social sempre foi uma estratégia importante para os movimentos sociais para a garantia de seus direitos, como também a organização de espaços que fazem um contraponto as imposições do Estado. Como no caso, não se resolvia a questão através dos diálogos estabelecidos com as instancias locais, a organização das famílias do assentamento continuaram insistindo na escola organizada pelos próprios acampados. A primeira escola do assentamento não foi necessariamente o barraco, como é de praxe nas ocupações, e sim o casarão que era a sede da fazenda. O espaço não era o adequado, mas foi sendo adaptado para receber a demanda. Vimos que como em outras tantas áreas de acampamento existe uma preocupação de transformar o espaço da fazenda em um ambiente diferente, em que as simbologias devem transformar aquele espaço. O casarão que antes representava um símbolo do poder e dominação do latifundiário, se transforma em um espaço educativo e também como contraponto ao modelo hegemônico e praticamente escravista:

Havia uma estrutura da fazenda, que por muitos anos foi usada como escola dentro do assentamento, após alguns anos conquistamos um espaço construído pelo município, a escola funcionava até a oitava série. O casarão representava um espaço de poder e dominação e não tinham qualquer possibilidade de acesso dos trabalhadores a aquele espaço. O prédio antigo, rustico e cheio de representatividade causava uma rejeição. Mas, foi sendo transformado até vim o novo prédio de alvenaria. (Entrevistada B, 50 anos, assentada).

O ambiente escolar também é um fator muito importante e que diz muito sobre o modelo de educação que se busca trabalhar. Segundo Caldart (2014) é preciso que haja uma exigência de trabalhar a vida na escola, construindo um ambiente educativo, a partir das matrizes e em consonância com o cotidiano dos educandos. Foi esse elemento que o assentamento foi construído no cotidiano da escola.

FOTO 02 – PRIMEIRA ESCOLA DO ASSENTAMENTO DE 1997

Fonte: arquivo do autor.

O movimento social, no caso o MST, cumpriu e cumpre um papel extremamente importante, porque além de lutar pela terra, mobilizava os sujeitos para processos formativos maiores, que propicia a elevação do nível de consciência política dos sujeitos e, a partir desta consciência possibilita o empoderamento para a luta em prol dos direitos sociais:

Sem dúvidas o movimento sem terra foi muito importante desde o início, porque ele nos dava base para debater vários temas, nos posicionar com firmeza nos espaços e lutar pelos nossos direitos. Participei de muitos espaços e cursos. E foi assim, que fomos criando a consciência de que precisávamos cada vez mais lutar pelos nosso objetivos. (Entrevistado D, 25 anos, filho de assentados).

A educação, como diz as linhas da Carta Magna de 1988, é direito de todo cidadão, mas que deve ser ofertada pelo Estado e com contribuição da família e da sociedade. Diante disso, vimos que o movimento social cumpre uma função muito importante, propiciando um espaço formativo de grande relevância e de cunho crítico, enquanto o Estado em grande parte se omite de sua responsabilidade.

Dos entrevistados, praticamente todos jovens acreditam e colocam a escola como uma grande contribuidora no processo de formação, tanto acadêmica, como também politicamente, dizem enfaticamente que embora não seja a escola ideal, tem feito um diferencial muito grande na vida dos alunos e da própria comunidade. Afirma, o entrevistado N, 28 anos:

O processo de educação adquirido na escola é muito importante pra nós, foi nela que aprendemos muito do que sabemos hoje, eu devo muito a todos os professores que me ensinaram, e as metodologias diferencias as vezes contribuíram bastante pra elevar meu nível de consciência e aprender mais do que estava nos livros, aprender a ver o mundo de outra maneira, criticamente e hoje poder ajudar meu assentamento, mas preciso avançar mais, fazer curso superior.

A escola sem dúvida é um espaço de formação de consciência, a educação pode transformar a realidade e está intimamente ligada a dignidade da pessoa humana. Esse entendimento é notável em algumas falas como é o caso do entrevistado O, da 8ª série do ensino fundamental, sobre qual a perspectiva de vida que ela almeja para seu futuro, ele nos responde:

Pretendo terminar o ensino fundamental, cursar o ensino médio aqui no assentamento e fazer uma faculdade, para me formar em advogado. Depois retorno para o assentamento e vou contribuir com as pessoas que precisam e não podem pagar um advogado.

Percebe-se, que os alunos que estudaram, os que já estudam e os que retomam a escola para contribuir de alguma, tem suas opiniões próprias, discernimento diante das questões postas, dialogam claramente sobre seus anseios, limites, perspectivas e têm muito claro o modelo de educação que desejam.

Podemos extrair dos diversos elementos apresentados de como a educação faz a diferença na vida de uma pessoa. E o quanto a dignidade da pessoa humana pode ser atingida nos diversos aspectos da vida e das subjetividades de cada ser. Os modelos adotados e os esforços empreendidos fazem com que este diferencial aconteça. Não podemos sob qualquer justificativa deixar para segundo plano a análise da cultura, da vida cotidiana, da luta social e das diversas relações constituídas dentro e foram da escola, como um processo formativo. Devemos abstrair de cada movimento a materialidade desta transformação que o ser humano é capaz de participar.

Considerações  Finais

Este trabalho é um pouco da sistematização de uma longa trajetória de luta e resistência por direitos, em especial o direito a educação, com recorte a partir do ano de 1997, compreendendo que tudo se iniciou antes mesmo deste período, fruto de outros processos que desencadearam na atual conjuntura. Os trabalhadores e trabalhadoras do assentamento Conceição Rosa, neste particular, buscam sua liberdade e autonomia enquanto cidadãos. Parte desse sonho foi realizado com a conquista da terra, mas somente a terra não era suficiente, sendo que as famílias compreendiam desde cedo que tinha que haver condições de sobrevivência e permanência no campo. Por isso, foi necessário lutar também por uma educação de qualidade e que formasse seus filhos, não somente para o mercado de trabalho, mas sim para a vida, pudessem estudar numa escola que dialogasse com a realidade do campo, no seu próprio assentamento, sem que os filhos precisassem sair para a cidade em busca de “uma vida melhor”. Uma escola que fosse construída nas bases da organização, nos princípios da pedagogia do Movimento.

Falar dos processos de luta pela garantia do direito a educação nos instigou a fazer uma breve análise sobre a conformação histórica da questão agrária no país e no estado Maranhão, são questões mais profundas do que poderíamos imaginar. O processo teve como uma das mais importantes características o conflito entre grandes fazendeiros, de um lado, e famílias camponesas, de outro. Demarca-se no processo o papel que o Judiciário tem assumido na mediação dos conflitos estabelecidos. Sob a retórica da igualdade de direitos entre as partes mediadas, adota uma postura ideológica de imparcialidade e neutralidade, sem dar-se conta de que os conflitos têm raízes diversas, com realidades diferentes, portanto a justiça justa é aquela que considera esse grande leque de possibilidades. E no assentamento Conceição Rosa essas dimensões se apresentam claramente refletindo no desafio da luta pela terra e consequentemente pelo direito a políticas sociais, como é o caso da educação.

Portanto, foi possível perceber também ao longo da pesquisa que o tema do direito à educação mesmo sendo interdisciplinar, ainda é novo na seara jurídica e que por vezes se distancia do mundo do direito, mas, que vem sendo discutido e estudado sistematicamente pela área das ciências pedagógica e outras, e, sobretudo tornando-se um tema fortalecido no campo das ciências jurídicas, apesar da carência de literatura educacional e jurídica. Contudo, é oportuno o estudo deste tema à luz do Direito Educacional, até porque direito à educação e o Direito Educacional são expressões que se equivalem. Não pode haver qualquer desvinculação destes campos, uma vez que o compromisso de pensar a sociedade faz parte das tarefas e preocupações de educadores/as, juristas e do conjunto da sociedade.

Assim, constatou-se que a juventude do assentamento Conceição Rosa é reflexo deste processo excludente, seletista, com lado e posição política bem estabelecido. Em que as garantias constitucionais na sua grande maioria são esquecidos por parte dos órgão que deveria ofertar e assegurar tal direito. Que mesmo excluídos das políticas públicas para a garantia da vida digna, que estão versados na Carta Magna de 1988, se organizam no movimento social para que através da luta e da resistência alcancem os direitos sociais básicos. E quando estes não se efetivam, acarretam problemas com sequelas irreparáveis, como é o caso dos jovens que deixaram de estudar e hoje não conseguem entrar no mercado de trabalho ou ter um emprego digno por falta da formação acadêmica.

Assim, é solidificada a educação como condição necessária e essencial para a existência digna da pessoa, isso se comprova no estudo do assentamento Conceição Rosa, porque atinge diretamente o subjetivo dos sujeitos, atinge sua autoestima, e, sobretudo o avanço social de um povo. E a ação pelo respeito à Constituição Federal garante essa importância para traçar um caminho na busca de igualdade e justiça para que a educação seja propiciada com qualidade de forma gratuita. É necessário uma educação em todos os níveis, qualificada, crítica, humanizada e transformadora para contribuir para no avanço social de uma nação. Nesta nação os jovens têm um papel muito importante para propiciar esta transformação.

Referências   

BOURDIEU. Pierre, A juventude é apenas uma palavra. In: Questões de sociologia. São Paulo: Marco Zero, 1983.

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CASTRO, Eliza Guaraná. Juventude Rural no Brasil: Processo de Exclusão e formação de um ator político. Rio de Janeiro, 2009.

CAMARGO, Marcelo Novelino in CAMARGO, Marcelo Novelino. org. Leituras Complementares de Direito Constitucional: Direitos humanos e direitos fundamentais. Juspodivm: Salvador, 2008.

CALDART, Roseli Salet. Por uma educação do campo: traços de uma identidade em construção. In: Por uma educação do campo. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 148-214.

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GARCIA, Emerson. O direito à educação e suas perspectivas de efetividade. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br>. Acesso em: 10 fev. 2018.

ZENNI, Alessandro Severino Váller; FÉLIX, Diogo Valério. Educação para construção de dignidade: tarefa eminente do direito. Revista Jurídica Cesumar – Mestrado, Maringá-PR, vol.11, n. 1, p. 169-192, jan./jun. 2011. Disponível em: <http://periodicos.unicesumar.edu.br>. Acesso em: 06 de março de 2018.

LOPES, Josefa Batista et al. Transformações contemporâneas e sistema de controle social nas relações campo e cidade: trabalho, luta social e prática do Serviço Social no Maranhão. Projeto de pesquisa. São Luis. 2006.

MENDES, Gilmar Ferreira, Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7ºed. Editora Saraiva. São Paulo-SP. 2012.

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PERES, Pedro Pereira dos Santos. O direito à educação e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/5633/o-direito-a-educacao-e-o-principio constitucional-da-dignidade-da-pessoa-humana>. Acesso em: 30 março de 2018.

PAULO, Vicente, ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 8º ed. Editora Método. São Paulo-SP. 2012.

PEREIRA, Josete Mara Stahelin. Os jovens no Brasil. Brasília, 2001.



A INVISIBILIZAÇÃO DO SUJEITO DE DIREITO MENINA NA LEI MARIA DA PENHA PELO PODER JUDICIÁRIO[6]

 

INVISIBILIZATION OF THE SUBJECT OF GIRL LAW IN MARIA DA PENHA LAW BY JUDICIARY

 Anna Caroline Reis de Almeida[7]

Natasha Karenina de Sousa Rego[8]

 

Resumo: Atualmente, a violência doméstica e familiar contra a mulher representa um grave problema em todo o país e tem suas bases no sistema patriarcal e na desigualdade de gênero. Nesse contexto, a violência contra crianças e adolescentes do sexo feminino constitui-se uma de suas modalidades, também pautada no gênero, porém com diversos outros alicerces que a particularizam. O Estado possui o papel constitucional de garantir a dignidade e o respeito aos direitos fundamentais destas personagens, porém, o Poder Judiciário e o Sistema de Justiça tem contribuído para reforçar a invizibilização e silenciamento das meninas enquanto destinatárias de direito da legislação de proteção da mulher em situação de violência. O presente artigo discute alguns posicionamentos e atuações do Poder Judiciário e o Sistema de Justiça no que concerne à temática e de que maneira tal postura contribui reforçar a violência de gênero contra as meninas.

Palavras-Chave: Violência; Infância; Adolescente, Gênero; Feminino; Estado, Judiciário.

Abstract: Domestic and family violence against women today is a serious problem throughout the country and is based on the patriarchal system and gender inequality. In this context, violence against female children and adolescents constitutes one of its modalities, also based on the genre, but with several other foundations that specialize it. State has the constitutional rule of guarantee the dignity and respect for the fundamental rights of these characters, but the Judiciary and the Justice System have contributed to making invisible and silencing of motions of girls as recipients of the law of the protection of women in situations of violence. The present article discusses some positions and actions of the Judiciary and the Justice System regarding the issue and how this position contributes to reinforce gender violence against girls.

Keywords: Violence; Childhood; Teenager; Gender; Female, State, Judiciary.

 

 

1- Introdução

 A violência de gênero constitui-se um dos grandes problemas da sociedade brasileira e está atrelada a inúmeros aspectos, de caráter político, econômico, social, cultural, etc. Diante disso, faz-se necessário um debate amplo e profundo sobre as causas e consequências deste fenômeno, as estruturas que permitem essa violência, bem como os sujeitos afetados por ela.

Nesse contexto, há um segmento social que sofre a violência de gênero de uma maneira diferenciada, qual seja, as crianças e adolescentes do sexo feminino. Além das questões já comumente estudadas sobre a temática, a violência de gênero contra meninas requer uma análise aprofundada que considere as peculiaridades destas vítimas, bem como a maneira como esta violência se estrutura e onde esta se localiza no contexto do patriarcado e da família.

Ademais, faz-se necessário também analisar de que maneira o Estado, sobretudo o Poder Judiciário, se coloca diante desta modalidade de violência e como localiza as crianças e adolescentes do sexo feminino ante à legislação de proteção da mulher vitimada pela violência doméstica, mormente a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha).

Assim, o presente trabalho se propôs a abordar os meandros relacionados as crianças e adolescentes do sexo feminino vitimadas pela violência de gênero, sobretudo a violência doméstica e familiar, bem como o posicionamento do Poder Judiciário brasileiro diante desta problemática.

Para tal, foram utilizadas jurisprudências de diversos tribunais brasileiros, a fim de analisar de que maneira estes se posicionam no que concerne à violência doméstica e familiar contra a mulher.

A partir da análise deste material, foi possível observar que a postura do Poder Judiciário e demais instituições que desempenham funções essenciais à justiça tem sido a de promover o silenciamento e a invisibilização destas demandas, dificultando o enquadramento desta modalidade de violência como violência doméstica e familiar contra a mulher, contribuindo para uma intensa e sistemática violação de direitos humanos destas meninas.

Assim, a presente temática configura-se deveras relevante para desvelar mais uma das facetas da violência de gênero, com o fito de dar visibilidade para esta forma de opressão, bem como para as vítimas e suas peculiaridades, a fim de buscar alternativas que realmente combatam tal problema e sobretudo, garantam o respeito aos direitos fundamentais das meninas vitimadas pela violência doméstica.

 

2- Gênero, infância e juventude: categorias relevantes para o estudo da violência doméstica e familiar contra a mulher

A categoria gênero sempre esteve colocado nos debates relacionados à violência contra a mulher como um elemento determinante para o agravamento deste fenômeno, visto que grande parte das mulheres afetadas pela violência o são por questões relativas à desigualdade de gênero e suas implicações.

O conceito de gênero nos permite compreender que a construção cultural dos atributos que definem os papeis masculino e feminino vão além do sexo biológico, pois constituem-se de construções socioculturais inscritas em um determinado momento histórico (SCOTT, 1995).

Assim, as diferenças entre os gêneros masculino e feminino constituem-se um fenômeno eminentemente relacional. A problemática reside na conversão das diferenças em desigualdades, o que se materializa por meio da dominação e da opressão de gênero (SAFFIOTI, 2004).

Nesse contexto, a violência doméstica e familiar contra mulheres é uma das nuances da violência de gênero. É importante ressaltar que cabem muitas vítimas no termo “mulheres”, visto que tal termo possui um espectro amplo, abrangendo toda a universalidade feminina, em toda a sua complexidade. Segundo Heleieth Saffioti, a violência de gênero:

é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais, de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca, tendo este necessidade de fazer uso da violência. (SAFFIOTI,2002, p. 1- 2).

Desta forma, tem-se que um segmento específico da totalidade de mulheres, qual seja, as crianças e adolescentes do sexo feminino, demandam uma atenção peculiar no que diz respeito à análise da violência doméstica, tendo em vista suas peculiaridades e especificidades.

A violência doméstica e familiar contra a mulher adulta e inserida num relacionamento estável, na maioria das vezes, é perpetrada por seu companheiro, no contexto de uma relação conjugal. Por outro lado, a violência contra meninas, em sua maioria, está albergada numa pretensa autoridade exercida pelo pai ou outro familiar que exerça este papel, amparada e legitimada pelo patriarcado.

O patriarcado contribuiu de maneira incisiva para o estabelecimento de papeis rígidos de gênero, atribuindo à figura masculina o provimento financeiro da família e o protagonismo no espaço público, e à figura feminina o cuidado do lar, da prole e o pertencimento ao espaço privado, bem como para a naturalização das desigualdades de gênero e a legitimidade no emprego da força física e da coerção como mecanismos para a manutenção das desigualdades de gênero (SAFFIOTI, 2004).

Questões como o trabalho doméstico, castigos físicos denominados “corretivos”, abusos sexuais, restrição do acesso à educação formal e violência psicológica, sofridas por meninas em razão de sua condição feminina não são albergadas, na prática, pela Lei Maria da Penha, tornando estas vítimas ainda mais vulneráveis a tais violências.

Desta forma, é de fundamental importância desvelar essa violência e suas bases, diferenciando-as da violência doméstica e familiar contra a mulher adulta, a fim de identificar suas especificidades e peculiaridades, o que propiciaria, além do aprofundamento sobre a temática, a criação de instrumentos para preveni-la e combatê-la.

3- O processo de invisibilização e silenciamento do sujeito “criança e adolescente no sexo feminino”

Os sujeitos são deveras complexos e ocupam lugares diversificados no contexto social, a depender da conjunção de inúmeros fatores e variáveis. Os papeis assumidos por tais personagens se modificam a depender da conjuntura social, política, cultural, econômica e assumem diversas posições nesse cenário.

Contudo, a posição destes sujeitos e os discursos que os constituem  não se dão aleatoriamente no contexto social, o que demanda uma análise profunda sobre tal fenômeno, a fim de situá-los e, sobretudo, avaliar os motivos pelos quais estas são as posições ocupadas.

A marginalização de indivíduos e grupos sociais específicos, além de incidir fortemente no campo material, com a extrema carência de elementos básicos para a sobrevivência digna, também atinge o campo dos discursos e das significações, o que contribui decisivamente para a forma como estes serão vistos (ou não vistos) e as leituras feitas sobre suas demandas.

Nesse contexto, é de fundamental importância o estudo acerca das inúmeras formas de silenciamento e invisibilização de determinados sujeitos e os processos pelos quais tal objetivo é alcançado. Assim ocorrem os processos em que sujeitos são invisibilizados e transformados em indigentes:

(…) a indigenciação decorre através das práticas discursivas de opacidade do sujeito que não interessam- se em apreendê-lo em definitivo, mas deixá-lo em “suspenso”, no limítrofe entre existência e inexistência, entre corpo-discurso que exorta-nos a não sê-lo e espectro do cotidiano, ser imperceptível – aqui, uma espécie de equilíbrio de interesses entre dizê-lo e não dizê-lo, entre clarificá-lo e obscurecê-lo (SILVA, 2015,p.124).

No que concerne à violência doméstica e familiar contra as mulheres, a invisibilização do sujeito ‘criança e adolescente do sexo feminino’ é algo recorrente e se dá de diversas maneiras e em diferentes âmbitos e o próprio fenômeno constitui, em si mesmo, uma violência. Marilena Chauí, em seus escritos, assim caracteriza a violência:

a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior (…). A ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência. (CHAUÍ, 1985, p. 35)

A sociedade contribui para a ocorrência deste fenômeno quando banaliza a violência contra as meninas, travestindo-a de ‘formação’ necessária destas vítimas enquanto mulheres, mas que, na verdade, se trata de um processo de domesticação pautada na desigualdade de gênero e marcada pela posse e imposição de papeis sociais de submissão.

A família, que deveria atuar como lugar de proteção da criança e adolescente do sexo feminino, naturaliza práticas de dominação oriundas da desigualdade de gênero, legitimando esta violência e a travestindo de legitimidade. Nestes casos, os episódios de violência doméstica também são vistos como práticas educativas e, por conseguinte, são naturalizadas e incentivadas, tornando a família um espaço contraditório, em que coexistem as ideias de violência e proteção.

Neste âmbito o discurso da proteção é utilizado como justificativa para a reprodução da violência doméstica contra meninas, sob a justificativa do caráter corretivo de tais opressões e a necessidade do suposto ‘disciplinamento’, em nome da formação de suas personalidades. Pierre Bourdieu, em seu livro intitulado “A dominação masculina” disserta sobre o assunto:

É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem. (BOURDIEU, 2012, p. 103)

Corroborando a ideia supracitada, acrescenta Marlise Vinagre Silva:

Situações inscritas em relações de poder contraditórias, que perpassam as várias frações de classe, se manifestam em instâncias consideradas pela ideologia dominante como espaços de não-poder, de expressão apenas de relações interpessoais marcadas eminentemente pela afetividade e pela privatização. Dentre esses espaços, a família é um lócus privilegiado, onde se inscrevem relações contraditórias travejadas pelo autoritarismo e pelas afetividades. Neste cenário têm lugar situações de conflito, fundadas em relações de micropoder de natureza antagônica manifestada de forma mais ou menos explícita. (SILVA, 1992, p. 47-8)

Assim, os espaços familiares são uma dimensão do espaço social, em que se reproduzem opressões de gênero contra meninas. A família legitima o uso da força física como método educativo e faz com que as crianças e adolescentes vejam a violência como algo natural, apropriado para seu processo educativo e para as demais relações sociais em que se inserem.

O Dossiê – Violência de Gênero contra meninas (2005) aduz que, embora estas sejam elemento de análise das áreas sociais, jurídicas ou da saúde, sua presença aí ainda é pouco explorada por dois fatores principais: de um lado, pelo fato do enfoque centrado na realidade da mulher adulta dificultar a percepção das especificidades que demarcam o universo das mais jovens; de outro lado, em razão da juventude ser examinada como se fosse assexuada.

Ademais, além do recorte de gênero, é de fundamental importância que o debate em torno desta temática seja holístico, com a compreensão das interseccionalidades entre classe, gênero, raça e geração e a articulação dessas dimensões nas relações sociais, o que propiciaria a análise de seus pontos de confluência e peculiaridades.

 

4- As crianças e adolescentes do sexo feminino como sujeito de direito: a Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e Adolescente) e a Lei 11340/06 (Lei Maria da Penha)

A Lei Maria da Penha (Lei 11340/06) representou um grande avanço no que diz respeito a violência doméstica e familiar contra a mulher, visto que exige do Estado uma postura mais ativa no combate a esta modalidade de violência, buscando meios para evitar novos episódios, além de prever a necessidade de abordar a temática em diversos âmbitos, tais como escolas, mídia, a fim de evitar a perpetuação da violência em razão do gênero.

Uma das facetas da violência doméstica e familiar consiste nas agressões perpetradas contra crianças e adolescentes do sexo feminino motivadas, essencialmente, pelo gênero. Estas meninas, em diversas ocasiões, estão imersas na estrutura familiar patriarcal, submetidas à autoridade paterna ou de quem assume papel similar, submetida a inúmeras violações de direitos em razão de sua condição feminina e silenciadas pela sociedade e pelo Estado, que naturalizam ou invisibilizam tais violências, sob a justificativa da função corretiva ou educativa destas medidas. Em seu artigo 2º, a Lei Maria da Penha prevê que:

Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Conforme este dispositivo legal, o elemento idade não pode obstar o reconhecimento da condição de mulher, devendo a criança e adolescente do sexo feminino ter seus direitos fundamentais garantidos por meio desta legislação.

Nesse cenário, torna-se necessário fazer, além do recorte de gênero, uma análise a partir do viés etário, por meio do olhar atento para a violência perpetrada contra as crianças e adolescentes do sexo feminino, unindo as categorias gênero, infância e juventude e respeitando as especificidades e particularidades deste fenômeno. A doutrina defende:

 

A pertinência de aplicar o enfoque de gênero à análise do sujeito público meninas é tida como inquestionável, visto o impacto da definição de papéis que, iniciada na infância, fundamenta a construção das identidades masculina ou feminina e alimenta as concepções culturais acerca do que devem ser e fazer homens e mulheres. O conceito de gênero enquanto variável sócio-cultural ao se interligar com outras como classe social, raça/etnia, idade ou crença religiosa, mostra-se igualmente relevante para examinar percepções e comportamentos. Serve, também, para identificar como se estabelecem redes de relações sociais e políticas por e entre os gêneros. Enfim, o gênero como categoria de análise permite dimensionar como os valores atribuídos a atividades, a competências e às relações de gênero são transferidos para o espaço público e interagem com condicionantes sociais, culturais, políticos e econômicos (NEGRÃO; PRÁ, 2005, p.?)

 

Assim, faz-se necessário destacar que no âmbito familiar o patriarcado se manifesta de forma hostil e incisiva, afetando fortemente as crianças e adolescentes do sexo feminino. Fatos como o abuso físico, sexual, incesto, prostituição infantil e sobrecarga do trabalho doméstico assumem uma conotação diferenciada quando tem meninas como vítimas.

Apesar da existência de legislações próprias relativas à proteção da criança, da adolescente e da pessoa idosa; a Lei Maria da Penha respalda a sua proteção diante de um aspecto específico, qual seja, sua situação de vulnerabilidade em razão do gênero, no âmbito doméstico, garantindo medidas que atendam tais especificidades.

Por outro lado, o Estatuto da Criança e Adolescente constitui-se como uma legislação protetiva, que visa a garantia dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, baseando-se na doutrina da proteção integral e da primazia absoluta. Seu artigo 3º prevê o disposto a seguir:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (grifo nosso)

Assim, tem-se que a legislação supracitada não faz distinção de gênero no que diz respeito à proteção e garantia de direitos fundamentais, bastando, para tal, o cumprimento dos requisitos presentes em seu art. 2º, qual seja, ser pessoa com idade até 18 (dezoito) e, excepcionalmente, até os 21 (vinte e um) anos de idade.

 Contudo, a Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), apesar de buscar garantir a proteção integral da infância e juventude, não faz o recorte de gênero necessário ao combate à violência especificamente sofrida por crianças e adolescentes do sexo feminino, o que o torna um instrumento limitado para lidar com a temática, fazendo-se necessário, portanto, a utilização de legislação complementar.

Nesta mesma senda, a Lei Maria da Penha também não prevê mecanismos que contemplem as peculiaridades da violência de gênero contra meninas pois, apesar de, teoricamente, albergar a violência contra a mulher, na prática, foca essencialmente nos fenômenos relacionados às relações íntimas de afeto (casamento, namoro, união estável) e secundariza as demais relações decorrentes do patriarcado, marcadas pelo autoritarismo e domínio sobre os corpos juvenis femininos no espaço intrafamiliar, o que as insere numa espécie de limbo legislativo.

A título exemplificativo, as infantes e jovens do sexo feminino, na prática, não são integralmente vistas como sujeito de direitos perante a Lei 11340/06, pois as agressões sofridas por elas não são encaradas como violência doméstica passível de aplicação das medidas de proteção previstas na Lei Maria da Penha, tais como afastamento do agressor do lar, proibição de contato com a vítima e de frequentação de determinados lugares, etc. Ademais, as ameaças, violência psicológica e moral, sequer são vistas como violência.

O Estado também é um dos agentes de reprodução desta violência quando invisibiliza tais demandas ou não formula políticas públicas que realmente enfrentem a questão:

Assim, entre as violações mais frequentes dos direitos de meninas a uma vida sem abusos e agressões, tem como realizadores a própria institucionalidade do estado, cuja políticas públicas perdem-se pela fragmentação, falta de qualidade e desarticulação. O desconhecimento de normas (e o seu não cumprimento), a não oferta de recursos disponíveis por conta de concepções pessoais de caráter religioso e/ou ideológico e o despreparo dos agentes públicos para a garantia das políticas e serviços, acabam por estabelecer rupturas numa possível rede (NEGRÃO, 2004, p.?).

Desta forma, a despeito das referidas legislações protetivas, faz-se necessária a especificação de medidas políticas e jurídicas concretas no que concerne a estas jovens, para retirá-las do manto de legitimação da violência à qual estão submetidas. Conforme o artigo 13, da Lei 11340/06:

Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei.

Portanto, apesar das ponderações supracitadas, é imperioso ressaltar que não há empecilhos para a incidência concomitante de normas protetivas como os Estatutos do Idoso, da Criança e Adolescente e da Lei Maria da Penha, que possuem caráter complementar, mas que não devem tirar o protagonismo desta no que concerne à proteção do sujeito mulher, em quaisquer de suas nuances.

 

5 – O Sistema de Justiça e a invisibilização das meninas na Lei Maria da Penha: análise de algumas decisões judiciais sobre o tema

O Sistema de Justiça, incluindo aí Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e demais instituições afins, constrói categorias jurídicas, formula conceitos, reconhece (ou não) a existência de sujeitos de direitos, seja por meio de suas construções doutrinárias e jurisprudenciais, atuações, medidas judiciais e administrativas, cotidiano forense, formulando essas construções conforme os valores e as práticas que o circundam.

Nesse contexto, o Poder Judiciário, sendo um dos vetores importantes do Estado, contribui decisivamente para a elaboração do sujeito de direito ‘criança e adolescente do sexo feminino’, já que lida cotidianamente com suas demandas e se propõe a atuar como um garantidor do cumprimento da legislação referente ao tema. Tal formulação passa necessariamente pela visão desta instituição sobre questões como gênero, infância, violência e como estes elementos se conectam.

O trabalho em epígrafe buscou analisar alguns dos mecanismos de formulação da figura “criança e adolescente do sexo feminino” pelo Poder Judiciário, se tais personagens podem ser vitimadas pela violência de gênero, sobretudo a praticada no âmbito doméstico e familiar, e quais os reflexos desta visão para a afirmação ou violação dos direitos humanos deste grupo.

A seguir, estão alguns destes posicionamentos, que serão analisados a partir do viés da interseccionalidade, buscando compreender sobretudo de que maneira o sujeito ‘criança e adolescente do sexo feminino’ e suas demandas são abordadas e em que medida tais interpretações contribuem para fomentar esta invisibilização e silenciamento destas personagens.

Atualmente, um dos debates mais relevantes, que expressam a visão do Poder Judiciário e demais instituições do sistema de justiça acerca desta temática, diz respeito à questão da competência para julgar e processar as ações referentes a violência doméstica e familiar praticadas contra criança e adolescente do sexo feminino.

Assim, o trabalho em epígrafe optou por analisar jurisprudências de diversos tribunais brasileiros sobre a questão da competência dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher ou das varas da infância e juventude para processar e julgar os processos que envolvam violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes do sexo feminino e qual o impacto dessas decisões sobre a violência de gênero contra essas meninas.

Os tribunais brasileiros divergem sobre a temática supracitada e, mesmo entre turmas do mesmo tribunal há mudanças no entendimento, tornando a matéria deveras controversa. Há entendimentos no sentido de que a competência para processar e julgar os casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes do sexo feminino pertence ao Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Segundo este posicionamento,a condição de ‘mulher’ se sobrepõe ao de  criança e adolescente e, a Lei 11340/06 possui um caráter de maior proteção nestes casos específicos.

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. LEI 11.340/06. ESTUPRO DE VULNERÁVEL PRATICADO PELO PAI CONTRA FILHA MENOR DE 12 ANOS. VIOLÊNCIA SEXUAL OCORRIDA NO ÂMBITO DE RELAÇÃO FAMILIAR. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA VERIFICADA. SUJEITO PASSIVO MULHER. A alegada violência sexual ocorreu, indubitavelmente, no âmbito da relação familiar entre o acusado e a vítima que é sua filha e que tinha 7 anos de idade na data do fato delituoso. Caracterizado o requisito legal da violência baseada no gênero. Conflito que conheço e nego provimento para declarar competente o Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Duque de Caxias. (TJ-RJ – CJ: 00171203720128190000 RJ 0017120-37.2012.8.19.0000, Relator: DES. PAULO SERGIO RANGEL DO NASCIMENTO, Data de Julgamento: 03/07/2012, TERCEIRA CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 16/10/2012 11:19)

CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO – LESÕES CORPORAIS CONTRA ADOLESCENTE MULHER NO ÂMBITO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR – APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA – CONDIÇÃO QUE SE SOBREPÕE AO SIMPLES FATO DE SER CRIANÇA PARA FINS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA – CARÁTER DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL NÃO SÓ DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES, MAS TAMBÉM DA MULHER – LEI MARIA DA PENHA POSSUI UM CARÁTER MAIS ENÉRGICO DE PROTEÇÃO TOTAL – OBJETIVO PROGRAMÁTICO CONSTITUCIONAL QUE MAIS SE ALCANÇA NESTA LEI DO QUE PELO ECA – DECLARAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. Não se visualiza um conflito tamanho que determine que o Juizado de Proteção à Criança e ao adolescente seja preponderante. Isso porque a condição da mulher ainda adolescente tem, na Lei “Maria da Penha”, um diferencial maior, cujas sanções e proteção mostram que o objetivo axiológico da norma encontra um amparo de ponderação, seja porque a própria Carta Magna observa sobre a proteção, também, da família, além, claro, das crianças e adolescentes, seja porque a Lei n.o 11.340/2006 encontrou um comando de sanção mais severo em nome daquela proteção. (TJ-PA – CJ: 201430108585 PA, Relator: LEONAM GONDIM DA CRUZ JUNIOR, Data de Julgamento: 30/07/2014, TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: 31/07/2014)

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA SEXUAL PRATICADA CONTRA A PRÓPRIA FILHA NO ÂMBITO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. ENTENDIMENTO DIVERGENTE ENTRE O JUIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DA COMARCA DE DUQUE DE CAXIAS E DA 3a VARA CRIMINAL DA MESMA COMARCA. 1. Acusado que costumava constranger sua própria filha de apenas 07 (sete) anos de idade à prática de ato libidinoso diverso de conjunção carnal, aproveitando-se da ausência da mãe da vítima, que saía para trabalhar. 2. A Lei Maria da Penha tem por objetivo prevenir, punir e erradicar a secular violência, física e moral, praticada pelo homem contra a mulher. A violência baseada no gênero ocorre quando um ato é dirigido contra a mulher porque é mulher. 3. Na hipótese dos autos, não restou nenhuma dúvida de que o agente se aproveitou da relação de intimidade com sua filha para praticar a conduta imputada. Ademais, o sexo feminino da criança se mostrou como uma das condições primordiais que levaram o acusado a cometer a atrocidade descrita na denúncia, sobretudo porque seu outro filho, de sexo masculino, jamais sofrera violência sexual. CONFLITO JULGADO IMPROCEDENTE, PARA SE DECLARAR COMPETENTE O JUIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DE DUQUE DE CAXIAS. (grifou-se)

Conforme é possível inferir a partir dos julgados analisados, que se posicionam a favor do processamento destas ações nos juizados de violência doméstica, o elemento gênero é uma categoria relevante nas decisões proferidas e prevalece sobre as demais para fins de fixação da competência.

Outrossim, algumas manifestações buscam os fatos que diferenciam esta violência daquela sofrida por crianças e adolescentes do sexo masculino, como uma forma de demarcar a aplicação da Lei Maria da Penha e das medidas protetivas.

CONFLITO DE JURISDIÇÃO. JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. SEXTA VARA CRIMINAL. VÍTIMA ADOLESCENTE. INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONFIGURADA. COMPETÊNCIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. Incidência da Lei no 11.340/2006. Não é necessário que exista relação conjugal para incidência da Lei Maria da Penha. Basta que haja alguma espécie de violência doméstica ou familiar para ser ofertada à vítima, mulher, a proteção mais ampla estabelecida pela legislação especial. Na espécie, houve, em tese, agressão direcionada especificamente à vítima realizada por seu genitor. Não há óbice para incidência da Lei no 11.343/2006. Competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar. O fato de a ofendida ser menor de idade ao tempo dos fatos não desnatura a situação fática que permeou e deu azo ao conflito de caráter de violência doméstica. Desta forma, evidente que deve ser a ofendida amparada pela incidência da Lei no 11.340/2006, bem como a instrução do feito deve ocorrer no juizado pertinente para tanto. Tem-se, por um lado, a competência da 6a Vara Criminal para julgamento dos crimes praticados contra criança e adolescente e, por outro, a competência do Juizado Especial de Violência Doméstica para os casos envolvendo violência de gênero. Na espécie, percebe-se que o cerne do conflito é, supostamente, a configuração de situação de violência doméstica, devendo, portanto, ser instruído e apreciado o feito no juizado atinente a esses… conflitos Parecer do Ministério Público pela procedência do conflito. CONFLITO PROCEDENTE. (TJ-RS – CJ: 70065847873 RS, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Data de Julgamento: 20/08/2015, Terceira Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 27/08/2015) (grifou-se)

Há ainda alguns entendimentos que dialogam com a violência oriunda do ambiente familiar, mas que não estão relacionadas com relações conjugais ou afins, destacando que tais relações não se configuram como o elemento mais relevante para a aplicação da Lei Maria da Penha, posto que é possível a existência de violência doméstica decorrente de abuso de autoridade, desigualdade de gênero na relação entre integrantes de um núcleo familiar ou ainda a opressão decorrente das relações domésticas de trabalho.

Por outro lado, há tribunais que possuem entendimento diverso, ou seja, defendem que tais casos devem ser processados nas varas da infância e juventude por entenderem não se tratar de competência dos juizados de violência doméstica contra a mulher.

A partir da análise dos julgados presentes no presente trabalho, é elemento comum entre eles a inexistência da análise do recorte de gênero na atribuição da competência, ou seja, a condição de mulher da vítima não é considerada como um elemento relevante para a configuração de violência.

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME SEXUAL PRATICADO CONTRA MENOR DO SEXO FEMININO DENTRO DE SUA RESIDÊNCIA. INCIDÊNCIA DA LEI N.o 11.343/2006. IMPOSSIBILIDADE. VIOLÊNCIA RELACIONADA À CONDIÇÃO DE MENOR DA OFENDIDA. APLICAÇÃO DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. 1. A Lei Maria da Penha se destina exclusivamente às mulheres, em grande parte submissas aos homens no âmbito familiar. 2. Dessa forma, ficam excluídas de seu alcance as crianças e adolescentes do sexo feminino, já protegidas pela legislação específica. 3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 4a Vara Criminal da Comarca de Imperatriz. (TJ-MA – CJ: 0127652012 MA 0000064-11.2012.8.10.0042, Relator: JOSÉ BERNARDO SILVA RODRIGUES, Data de Julgamento: 28/06/2012, SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 10/07/2012)

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. ESTUPRO E ESTUPRO DE VULNERÁVEL. COMPETÊNCIA DA VARA CRIMINAL. Tratando-se de violência sexual praticada contra menor de idade, refoge a competência estabelecida pela Lei 11.340 e compete à vara criminal comum processar e julgar o feito. Conflito procedente. (TJ-GO – CC: 01124050820158090137, Relator: DES. IVO FAVARO, Data de Julgamento: 03/05/2017, SECAO CRIMINAL, Data de Publicação: DJ 2267 de 15/05/2017)

Tais análises, em sua maioria, estão descoladas da discussão acerca das questões sociológicas envolvidas na violência doméstica contra meninas, pois apresentam uma perspectiva apenas legalista, que não explica o fenômeno para além dos marcos jurídicos postos.

 Assim, no exercício de sua função, este Poder está sujeito a produzir e reproduzir as opressões, dentre elas, a invisibilização das demandas relacionadas às crianças e adolescentes do sexo feminino, contribuindo de maneira incisiva para perpetuar as constantes violações de direitos humanos vivenciadas por este segmento. Assim:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER E VARA CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA DO GÊNERO (LEI Nº 11.340/06). Tratando-se de violência sexual praticada contra menor, sobrinha do suposto agressor, refoge da competência estabelecida pela Lei nº 11.340/2006, por não caracterizar violência de gênero e sim pela vulnerabilidade da vítima sobre sua menoridade absoluta à época da prática sexual. Constatado que ausentes os pressupostos subsumidos na Lei Maria da Penha, compete à Vara Criminal Comum processar e julgar o feito. CONFLITO CONHECIDO E JULGADO PROCEDENTE PARA DECLARAR A COMPETÊNCIA DO JUIZ DE DIREITO DA 1ª VARA CRIMINAL DA COMARCA DE RIO VERDE-GO, ORA SUSCITADO. (TJ-GO – CC: 04740656120148090137, Relator: DES. AVELIRDES ALMEIDA PINHEIRO DE LEMOS, Data de Julgamento: 06/07/2016, SECAO CRIMINAL, Data de Publicação: DJ 2076 de 27/07/2016)

CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO – ESTUPRO DE VULNERÁVEL PERPETRADO POR ASCENDENTE CONTRA VÍTIMA DO SEXO FEMININO – COMPETÊNCIA DA VARA CRIMINAL COM ATRIBUIÇÃO ESPECÍFICA – CRIMES SEXUAIS CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES – RESOLUÇÃO N. 20/2013/TP – CONFLITO IMPROCEDENTE. Considerando a relevância do bem jurídico tutelado pela norma de proteção aos menores e adolescentes, que assegura a tramitação processual em caráter prioritário, e considerando ainda que a 14ª Vara Criminal – Especializada no Combate de Crimes Contra a Dignidade Sexual e Contra a Vida perpetrados contra Idosos, Adolescentes e Crianças – possui melhores condições em termos de aparelhamento e material humano frente às Varas de Violência Doméstica e da Família Contra a Mulher da Capital, evidentemente deve prevalecer para o processo e julgamento dos crimes de estupro de vulnerável perpetrados por avô em detrimento da neta do sexo feminino, relativizando-se o disposto no art. 2º, § 1º, da Resolução n.º 20/2013-TP. Conflito improcedente. (CJ 17289/2016, DES. JUVENAL PEREIRA DA SILVA, TURMA DE CÂMARAS CRIMINAIS REUNIDAS, Julgado em 07/04/2016, Publicado no DJE 15/04/2016)

Entretanto, entre estes entendimentos, o último merece especial destaque, sobretudo pelos aspectos políticos que agrega. Tal questão poderia ser vista, a priori, a partir do elemento de caráter puramente técnico, referente à legislação processual, qual seja, a competência em razão da matéria, contudo, representa mais um dos mecanismos de invisibilização destas vítimas e demonstra a incapacidade do Poder Judiciário de reconhecer sujeitos de direito carentes de proteção jurídica.

Contudo, a despeito das inúmeras decisões que invisibilizam as questões já aventadas, é relevante ressalvar que o posicionamento do Poder Judiciário vem se modificando no sentido de identificar a configuração de violência doméstica e familiar e a devida aplicação da Lei Maria da Penha nesses casos, abrindo precedente para a modificação deste entendimento violador dos direitos fundamentais das meninas vitimadas pela violência doméstica.

 

6 – Considerações Finais

 

A violência de gênero, sobretudo a violência doméstica e familiar é um fenômeno que ocorre com as mulheres em todo o país e, de uma maneira diferenciada, com crianças e adolescentes do sexo feminino.

A violência doméstica e familiar contra estas vítimas tem sofrido um contínuo processo de naturalização, banalização e legitimação, pois vem sendo historicamente vista como parte do processo de formação destas jovens, em que os adultos exercem sua autoridade como abuso de poder para ‘educar’ meninas, oprimindo-as por sua condição feminina e utilizando-se dos castigos físicos, violência moral e psicológica.

Nesse contexto, o Estado, sobretudo, o Poder Judiciário e o Sistema de Justiça, assumem um papel fundamental na perpetuação da desigualdade de gênero, quando, por meio de seu entendimento, contribuem para invisibilizar a violência sofrida por meninas.

Conforme diversas jurisprudências coletadas, observou-se que a violência doméstica contra as meninas, sobretudo aquelas sofridas fora das relações conjugais, foi invisibilizada no que diz respeito à sua natureza, no sentido de que eram vistas não como um ato decorrente de uma opressão de gênero, mas apenas como algo pertencente ao seu processo educacional.

Insta salientar que tal entendimento não é unânime no Poder Judiciário, visto que já existem posicionamentos que buscam analisar a questão a partir da ótica defendida neste trabalho, preconizando inclusive a aplicação da Lei Maria da Penha

Ademais, é importante salientar que a Lei 1130/06 e a Lei 8069/90, embora sejam diplomas normativos com graus de incidência distintos, podem e devem ser aplicadas em conjunto. O Estatuto visa à proteção integral da criança e adolescente, em ambiente familiar ou não, enquanto, a Lei Maria da Penha se aplica às relações domésticas e em situações onde resta caracterizada a violência de gênero.

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TOQUE DE RECOLHER PARA O PÚBLICO INFANTO-JUVENIL NO BRASIL[9]

CURFEW FOR THE INFANT-YOUTH PUBLIC IN BRAZIL

 

Mylena Devezas Souza[10]

Angélica Kely de Abreu[11]

Resumo: A presente pesquisa pretende abordar o instituto do toque de recolher para crianças e adolescentes implementado em diversas cidades brasileiras a partir do ano de 2005 visando a redução do envolvimento de crianças e adolescentes na criminalidade, bem como sua convivência em locais de festas e de venda de bebidas alcoólicas. Tal medida gerou grandes controvérsias, principalmente por terem sido instituídas através de leis municipais e portarias dos Juízos de Vara de Infância e Adolescência. Através da análise das portarias e leis municipais pretende-se abordar como funciona o instituto e sua implementação no país, bem como a sua relação com o Direito.

Palavras Chave: Toque de recolher; Crianças e Adolescentes; Brasil; Direito de ir e vir.

Abstract:The present research intends to approach the institute of the Touch of Recolher for children and adolescents implemented in several Brazilian cities from the year of 2005 aiming at reducing the involvement of children and adolescents in crime, as well as their coexistence in parties and alcoholic places. This measure generated great controversy, mainly because they were instituted through municipal laws and ordinances of the Judgment of the Childhood and Adolescence Court. It is intended to address how the institute works, to later analyze its implementation in the country, as well as its relationship with law, through ordinances and municipal laws.

Key Words: Curfew; Children and Adolescents; Brazil; Right to come and go.

  1. Introdução

 A partir de 2005, se verificou em diversas cidades brasileiras a adoção de portarias judiciais e leis municipais editadas com o objetivo de vedar a permanência das populações infanto-juvenis em determinados locais e horários. Estas medidas, conhecidas como “toque de recolher” ou “toque de acolher” a depender da cidade em que vigoram, estabelecem os horários e locais atingidos pela proibição, a faixa etária destinatária e a sanção aplicável aos que as desrespeitarem.

O tema é bastante polêmico e inspira controvérsias nos campos judicial e administrativo, havendo quem defenda e quem se oponha a existência de fundamentos que embasem a adoção da medida. Para aqueles que defendem a sua legalidade, o “toque” é encarado como meio de proteção, cuja finalidade é evitar que o público infanto-juvenil frequente locais inapropriados à preservação de sua saúde, segurança e desenvolvimento psicossocial. De outro lado, os opositores da medida consideram-na violadora de direitos fundamentais do público atingido, tutelados pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e sustentam não ser ela o caminho apropriado para evitar casos de violência envolvendo crianças e adolescentes.

O objetivo principal da pesquisa é compreender, de modo genérico, o conceito e finalidade do “toque de recolher”, as razões do seu surgimento e os fundamentos utilizados para dar suporte à sua aplicação em diversos municípios brasileiros. Em seguida, busca-se estudar a manutenção temporal do “toque” nas cidades em que foi adotado, promovendo um levantamento sobre a vigência da medida nos municípios em que houve a sua implantação.

Por fim, pretende-se analisar a compatibilidade do “toque de recolher” com o Direito. Para tanto, foram consultados os posicionamentos de diversos órgãos componentes do sistema de justiça, dentre os quais se destaca o Ministério Público, como representante dos direitos da população, os Juizados especializados em matéria de infância, juventude e adolescência, bem como os Conselhos Tutelares e órgãos e entidades dedicados à defesa das crianças e adolescentes.

  1. Toque de Recolher para crianças e adolescentes

 

O “toque de recolher” para crianças e adolescentes é uma medida que proíbe a população infanto-juvenil de permanecer em determinados locais em determinados horários. Inexiste uniformidade terminológica quanto ao instituto, cujo nome encontra variações de acordo com o local onde é adotado, nem quanto às regras que o compõem.

Qualquer que seja a terminologia ou as especificidades normativas que apresenta, o ponto central e invariável do “toque de recolher” cinge-se à proteção de crianças e adolescentes em situação de risco, como as mais propensas a se envolverem em atos de violência ou consumo de álcool e entorpecentes.  Assim, a despeito das diferenças, o instituto tem uma finalidade comum e invariável, onde quer que seja implementado.

A fiscalização do cumprimento da medida pelas crianças e adolescentes, bem como o recolhimento daqueles que se encontram nas ruas em horários inapropriados, conforme definição da medida é realizada pelo Conselho Tutelar, Polícia Militar e pela Polícia Civil. Entretanto, a fiscalização não é realizada diariamente em todas as cidades com a medida implementada, tendo em vista que algumas cidades, como São Estevão na Bahia[12] o toque de recolher é suspenso em períodos de festas tradicionais como São João, Natal e Ano Novo. Além disso, em fins de semana, feriados e vésperas de feriado há uma tolerância de uma hora nos horários estabelecidos.

É possível ainda que crianças e adolescentes permaneçam nas ruas mesmo após o horário estabelecido pelo toque de recolher se na regulamentação da medida houver a previsão da carteirinha de identificação, pela qual os pais autorizam que aquele adolescente permaneça nas ruas desacompanhados após o horário determinado. Em São Estevão na Bahia a “carteira de acesso[13]” poderia ser solicitada pelos pais para os menores, de modo que estes estariam isentos da medida. Em Patos de Minas em Minas Gerais a circulação de menores após o horário do toque de recolher também era permitida, desde que os pais comparecessem ao juizado para autorizar o filho a ter uma carteira de identificação[14].

Embora seja difícil encontrar municípios em que a medida esteja em vigor atualmente, os fundamentos legais para a sua implementação eram os artigos 70 a 73, 148 e 153 do ECA.  Autores refratários a essa interpretação defendiam que o ECA não poderia ser utilizado como base para a adoção do toque de recolher posto que este diploma normativo revogou o antigo Código de Menores, que a admitia.  É essa a ideia defendida por Anselmo:

O toque de recolher, no seu conteúdo, remete ao Código de Menores de 1979 (editado durante a Ditadura Militar, e revogado pelo art. 267 da Lei 8.069/1990), que consagrou a Doutrina da Situação Irregular, que não considerava a criança e o adolescente como pessoas de direitos, consagrando um sistema de atendimento assistencialista e paternalista, em que o “juiz de menores” podia, de forma arbitrária, dispor dos direitos e garantias das crianças e dos adolescentes: (ANSELMO, 2010, não paginado)

Há quem acuse de injusto o “toque de recolher” por limitar a liberdade de jovens que, a despeito de se encontrarem fora de suas residências no período noturno, não cometiam atos infracionais nem se encontravam em situação de risco potencial, a exemplo de jovens que trabalhavam para auxiliar na complementação da renda familiar ou apenas pretendiam se divertir com amigos.

Demais disso, não há tipificação legal que considere criminosos os hábitos noturnos, ainda que de crianças e adolescentes.  A ideia de que durante esse período os jovens podem estar mais expostos ao consumo de drogas, à prostituição e à violência não poderia ser considerada como totalmente verdadeira, vez que as crianças e os adolescentes podem ser expostos e submetidos a situações de risco a qualquer hora do dia, e não apenas à noite.

  1. O Toque de Recolher no Brasil

 A primeira cidade a ter o toque de recolher infanto-juvenil implantado foi Fernandópolis, em São Paulo, porém, posteriormente, outras cidades aderiram à medida e em todas as regiões do Brasil podiam ser encontradas cidades que possuíram tais medidas.  No entanto, o “toque de recolher” perdeu força em virtude das fortes reações que enfrentou e, por isso, não foi possível localizar município em que esteja vigorando atualmente.

Apesar da medida se reproduzir em diversas cidades, não há padrão unificado quanto as regulamentações do toque de recolher, como as determinações de horário ou faixa etária, sendo as regras específicas de cada portaria ou lei, que institui o toque de recolher nas cidades ou comarcas. A pesquisa deixou, portanto, de adentrar quanto aos detalhes de horários e faixa etária estabelecidos pelas medidas implementadas, focando apenas nas cidades em que a medida foi aplicada no Brasil.

Não se localizou levantamento prévio quanto às cidades com implementação de tal medida, de modo que o levantamento foi realizado nesta pesquisa, por meio de busca nos meios de comunicação quanto aos nomes das cidades que estavam adotando o toque de recolher. Assim, foram localizadas cerca de quarenta e uma cidades cujo toque de recolher foi implementado, por legislação municipal ou por portaria judicial.

Ao separar os números pelas regiões verificou-se que o nordeste foi a região com mais cidades que possuíram o toque de recolher, sendo ao todo dezessete cidades,  destas nove estavam na Bahia, sendo este portanto o estado brasileiro que teve mais cidades utilizando a medida protetiva A segunda região em que mais encontramos a aplicação de tal instituto foi o sudeste. Em São Paulo, o primeiro estado a ter a medida decretada no Brasil, foram encontradas cinco cidades com a medida implementada.  Já em Minas Gerais, haviam sete cidades, sendo este o segundo estado onde mais podemos encontrar cidades com tais medidas em todo o Brasil.

No centro-oeste existem dez cidades que possuíram o toque de recolher. Sendo sua maioria no Mato Grosso do Sul, sete cidades, e apenas três em Goiás. Enquanto que no sul foram identificadas apenas quatro cidades que possuíram o toque de recolher, sendo três delas em Santa Catarina e uma no Paraná. Por fim, o Norte é o que menos possui cidades que se utilizaram do toque de recolher, apenas uma em Roraima.

De acordo com as noticias encontradas nos meios de comunicação, foi possível obter o nome das cidades que aplicaram a medida, entretanto há poucas informações se a medida permanece em vigor nos dias atuais. Nomeando as cidades temos no estado de São Paulo: Fernandópolis, Ilha Solteira, Cajuru, Itapura, e Mirassol. Já na Bahia são as cidades de: Santo Estevão; Ipecaetá; Antonio Cardoso; Itiruçu; Dias d’Ávila; Feira de Santana; Maracás; Planaltino; e Itapicuru.

Em Goiás apenas as cidades de Mozarlândia, Itajá e Itaberaí adotoram o toque de recolher. No Maranhão foi a cidade de Imperatriz. No Paraná foi a cidade de Paranavaí. Em Roraima foi a cidade de Guajará Mirim, e no Ceará foi a cidade de Tauá. Em Santa Catarina três cidades adotaram o instituto: Camboriú, Tubarão e Massaranduba. Já no Piauí a cidade de Teresina adotou o toque de recolher, sendo a cidade mais populosa a adotar tal medida.

No estado da Paraíba: Sapé; Taperoa; Livramento; Assunção; e Bayeux. No estado de Minas Gerais: Patos de Minas; Pompéu; Arcos; Monte Sião; Ponte Nova; Muriaé; e Itajuba. No estado de Mato Grosso do Sul: Jateí; Nova Andradrina; Fátima do Sul; Vicentina; Itaporã; Distrito de Culturama; e Ivinhema.

Ao fazer a separação por regiões, é possível encontrar os seguintes números:

  • Sul – 4 cidades
  • Sudeste – 12 cidades
  • Centro-oeste – 10 cidades
  • Norte – 1 cidade
  • Nordeste – 17 cidades

Nos estados do Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Tocantins, Pará, Amapá, Rondônia, Acre, Amazonas, Mato Grosso, Espírito Santo, Rio de Janeiro, e Rio Grande do Sul não foram encontrados relatos ou reportagens de implementação do toque de recolher para crianças e adolescentes. Percebe-se que a maior concentração da medida foi no nordeste, sudeste, e centro-oeste.

A cidade de Fernandópolis foi a primeira cidade brasileira a implementar tal medida, que permaneceu em vigor por aproxidamente nove anos, até ser revogada por decisão do Supremo Tribunal Federal. A cidade com maior população que implementou tal medida foi Teresina no Piauí.

Em pesquisa atualizada não foi possível encontrar cidades em que o toque de recolher permanece em vigor, tendo sido revogado ou suspendo na maior das cidades anteriormente implementados, quanto ao ano de 2018 foram encontrados apenas duas  notícias quanto à projetos no estado do Ceará[15] e na cidade de Joinville[16].

 

  1. Formas de implementação do Toque de Recolher

 

A implementação do Toque de Recolher para crianças e adolescentes pelo Brasil foi realizada através de portarias judiciais e por leis municipais. Uma das portarias judiciais utilizada para tal fim foi a de Fernandópolis, que dispõe:

PORTARIA 8/2009

O Juiz de Direito da 1.ª Vara Criminal e Anexo da Infância e da Juventude da Comarca de Fernandópolis, no uso de suas atribuições constitucionais e legais:

  1. Considerando as disposições dos arts. 70 a 73, 148, 149 e 153 do Estatuto da Criança e do Adolescente;
  2. Considerando a decisão prolatada nos autos do inquérito judicial 231/2009, instaurado pela Portaria 7/2009;

Resolve:

Fica proibida a entrada e permanência de crianças e adolescentes (pessoas com menos de 18 anos), desacompanhados dos pais ou responsáveis [ascendentes e colaterais até 3.º grau (tio e sobrinho)], após as 23 horas, em qualquer dia da semana, em estabelecimentos comerciais denominados bares, lanchonetes e similares (como pizzarias, churrascarias), ou outros que comercializem bebidas alcoólicas, principalmente (mas não somente), aqueles localizados ao longo da Avenida Expedicionários Brasileiros e seu entorno, ressaltando-se, em qualquer caso, a proibição leal e expressa de fornecimento de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos, em qualquer situação;

Fica proibida a entrada e permanência de crianças e adolescentes (pessoas com menos de 18 anos), desacompanhados dos pais ou responsáveis [ascendentes e colaterais até 3.º grau (tio e sobrinho)], em estabelecimentos conhecidos como boates ou danceterias, cujo funcionamento se dê no período noturno ou nas madrugadas, e onde se comercializam bebidas alcoólicas (ressalvados, aqui, os eventos como matinês ou outros, onde não há oferecimento de bebidas alcoólicas, permitindo-se a frequência de menores, desde que com prévio alvará);

Determina-se ao Conselho Tutelar e aos Voluntários da Vara da Infância e da Juventude o cumprimento dos termos desta Portaria, lavrando-se, para tanto, o respectivo auto de infração, nos termos do art. 194 do ECA, pela ocorrência da infração prevista no art. 258 do ECA, conforme modelo (sugestão) anexo.

Por fim, determina-se o encaminhamento de cópia desta portaria para o Presidente da OAB local, entidade que sempre acompanha os passos da Vara da Infância e da Juventude da comarca, e, nos termos do art. 153 do ECA, de todos os atos deste procedimento, público e transparente, ciência ao Ministério Público.”

A implementação do toque de recolher por meio de portaria judicial trouxe diversos questionamentos quanto a sua legitimidade. Os integrantes do Poder Judiciário possuem certo poder de legislar, permitido pela legislação brasileira. Assim, a portaria judicial quanto ao toque de recolher encontra-se dentro desta hipótese, neste caso previsto pelo artigo 149 da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) que enumera hipóteses nas quais o juiz pode disciplinar situações envolvendo crianças e adolescentes, seja por meio de portaria ou alvará.

O magistrado se utiliza destes instrumentos para limitar o direito de ir e vir sob o viés de se proteger a saúde física e psíquica dos menores. Entretanto, tal artigo acima mencionado não prevê exatamente a hipótese referente ao toque de recolher. Há quem defenda que por não estar expressamente previsto nas hipóteses do artigo 149 do ECA, a portaria seria ilegal por ausência de previsão.

O direito de ir e vir é um direito fundamental, previsto constitucionalmente, de modo que sua restrição precisa ser prevista legalmente, sob pena de ser ilegal. Considera-se que o ECA não permitiria tal proibição, ainda que realizada visando a proteção dos menores. Se a medida fosse aplicada nos tempos de vigência do antigo Código de Menores, que foi revogado pelo ECA, seria legal mas o mesmo não ocorre atualmente com o ECA em vigor.

A implementação do toque de recolher por meio de portaria judicial seria um abuso do poder por parte dos magistrados, que estariam puxando para si atribuições dos Poderes Legislativo e Executivo. Albino e Paladino, por exemplo, defendem que a elaboração de portarias com a medida do toque de recolher seriam práticas arbitrárias, violando o rol taxativo do artigo 149 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Vê-se, dessa forma, que as portarias judiciais que implementam o “toque de recolher” são práticas arbitrárias, que caminham em direção oposta à traçada pela Lei n. 8.069/1990. Contrariam, dessa forma, o rol taxativo, e não meramente exemplificativo, previsto no art. 149, incs. I e II, do ECA, donde se infere que a competência para a expedição de Portarias e Alvarás em nada se confunde com competência legislativa, de modo que a faculdade do magistrado para disciplinar e autorizar as situações previstas nas alíneas dos incisos I e II, do referido artigo, restringe-se à aplicação das normas estatutárias à situação em concreto. (ALBINO; PALADINO, não datado, p. 11)

O mesmo entendimento é defendido por Anselmo, que vê na instituição do toque de recolher mais do que uma inconstitucionalidade, ao restringir o direito constitucionalmente garantido de locomoção, mas também uma ilegalidade, por não ter suporte no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Além da inconstitucionalidade, a medida não encontra amparo na legislação infraconstitucional. Embora a Lei n. 8.069/1990, no seu art. 16, I, preveja a possibilidade de limites legais ao exercício do direito de liberdade e o art. 74 regulamente as diversões e espetáculos públicos, o poder regulamentar do juiz da Infância e da Juventude é restrito às hipóteses do art. 149, sendo proibido a edição de portarias ou alvarás de caráter geral. Fazendo uma leitura atenta do art. 149 da Lei n. 8.069/1990, não há restrição da permanência de criança e adolescente em bares e locais públicos de livre circulação. Desta forma, não pode o juiz, por portaria, restringir à criança e ao adolescente o acesso a estes locais por falta de previsão legal. Portaria não é lei, e, desta forma, não pode restringir a liberdade do indivíduo.  (ANSELMO, 2010, não paginado)

Outro destaque realizado por Albino e Paladino diz respeito à atribuição de novas tarefas para a Polícia Militar, que se torna uma das responsáveis pela vigilância e recolhimento dos jovens nas ruas, ainda que em conjunto com a polícia civil e outras entidades de proteção à criança e adolescente. Ora, não cabe ao Poder Judiciário atribuir funções à Polícia Militar, caso contrário ocorreria o exercício de poder que cabe ao Legislativo e não ao Judiciário.

Ademais, o magistrado, ao instituir o “toque de recolher”, mobiliza e confere nova atribuição às polícias – a de recolher as crianças e os adolescentes que estejam desacompanhados em locais públicos após o horário pré-designado, o que se afigura inadmissível. Não pode o Poder Judiciário regular, por meio de portaria, as atribuições da Polícia Militar, sob pena de importar em exercício legislativo indevido, haja vista que, de acordo com o texto constitucional, é competência privativa da União legislar sobre as normas gerais de organização, convocação e mobilização das polícias militares (art. 22, inc. XXI, CRFB/88). Igualmente ilegal seria conferir tal missão à Polícia Judiciária, que, segundo dispõe o art. 144, § 4º, CRFB/88, é incumbida da “apuração de infrações penais”. (ALBINO, p 18)

A corrente favorável à implementação da medida por meio de portaria judicial defende que a mesma é legalizada pelo princípio da prevenção previsto no ECA, por meio do qual deve-se zelar pelo desenvolvimento saudável das crianças e dos adolescentes, evitando que os mesmos se envolvem ou se exponham em situações de risco. Esse objetivo é validado pela previsão de hipóteses de limites ao direito de ir e vir dos menores para evitar essa exposição.

O artigo 149 do ECA, portanto, apesar de não ter a previsão expressa quanto a situação do toque de recolher, poderia ser interpretado levando em conta os princípios expostos pelo próprio Eca. Assim, a fundamentação do toque de recolher pode ser realizada por meio do próprio ECA. É importante que o magistrado não deixe de ouvir a comunidade e os órgãos de proteção ao menor.

A implementação desta medida em outras cidades foi realizada por meio de legislação municipal, como em Massaranduba em Santa Catarina, que instituiu a Lei nº 1.178/2010:

LEI Nº 1178/2010

AUTORIZA O CONSELHO TUTELAR, POLICIA MILITAR E POLICIA  CIVIL A REALIZAREM O “TOQUE DE PROTEGER”, PARA MENORES DE 16 (DEZESSEIS) ANOS, NA FORMA QUE ESPECIFICA.

MÁRIO FERNANDO REINKE, Prefeito do Município de Massaranduba (SC) faz saber a todos os habitantes deste Município, que a Câmara de Vereadores aprovou e ele sanciona a seguinte LEI:

Art.1°. Fica o Conselho Tutelar, Policia Militar e Policia Civil do Município de Massaranduba autorizado a realizar o “toque de proteger” para menores de 16 (dezesseis) anos de idade, no âmbito territorial do Município de Massaranduba.

Parágrafo único. O “toque de proteger” será realizado quando o menor de 16 (Dezesseis) anos estiver em locais indevidos ou ingerindo bebidas alcoólicas ou próximo de quem as esteja consumindo, desacompanhado dos pais, obedecidos os horários a seguir estipulados.

  1. a) Crianças menores de 13 anos, desacompanhadas dos pais poderão permanecer nas ruas até as 20h30min.;
  2. b) Adolescentes com idade entre 13 e 15 anos, desacompanhadas dos pais, poderão permanecer nas ruas até as 22 horas;

Art. 2º. O toque de proteger será realizado, obedecido aos horários das alíneas do artigo anterior, perdurando até as 6h (seis horas) do dia subsequente.

Art. 3º. Os Conselheiros Tutelares, a Policia Militar ou Policia Civil, ao encontrarem o menor de idade nos  horários locais e situações estabelecidos nesta lei deverão encaminhá-lo a sede do Conselho Tutelar, onde aguardará a presença dos pais ou responsáveis legais, para a liberação.

  • 1º. Na primeira autuação, o Conselheiro Tutelar deverá aplicar notificação por escrito para os pais ou responsáveis pelo menor de idade.
  • 2º. Havendo reincidência, o Conselheiro Tutelar aplicará nova notificação e encaminhará representação ao Ministério Público.

Art. 4º. As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta de verbas próprias, consignadas no orçamento anual da Secretaria Municipal da Assistência Social, da Criança e do Adolescente, suplementadas se necessário.

 Art. 5º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Massaranduba 01 de junho de 2010

Entretanto a implementação do toque de recolher por meio de legislação municipal também não seria viável, pois continuaria a ocorrer a violação do direito constitucional de ir e vir de todo cidadão, conforme defendem Albino e Paladino:

Leis municipais, da mesma forma, não podem estabelecer a referida medida. E isso porque são materialmente inconstitucionais, porquanto a restrição imposta pela legislação colide frontalmente com o art. 5º, inc. II, da CRFB/88, que prevê que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e, ainda, com o inciso XV, donde se infere a garantia à liberdade de locomoção do cidadão. Decorre, assim, da conjunção dos incisos supramencionados, que nenhuma lei ordinária, sob eiva de inconstitucionalidade, poderá restringir o direito de locomoção das pessoas, exceto naqueles casos já ditados pela Carta Constitucional. (ALBINO; PALADINO, não datado, p. 11)

Anselmo concorda com a defesa de Albino e Paladino e reforça que não poderia lei municipal ou portaria judicial determinar a restrição do direito de ir e vir das crianças e dos adolescentes, sob pena de ocorrer o abuso de poder.

Conforme inteligência do art. 3º da Lei n. 8.069/1990, a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, não podendo lei federal, estadual, municipal, ou portaria, restringir direitos que não possam ser limitados aos adultos. Diante das garantias constitucionais e legais da cidadania, é ilegal e abusivo impor toque de recolher a qualquer pessoa.  Dessa forma, não pode lei municipal, ou juiz, proibir a liberdade de crianças e adolescentes nas ruas, ferindo o direito de liberdade. Nenhuma autoridade, legislativa, executiva ou judiciária pode apreender criança ou adolescente que descumpra o toque de recolher, sob pena de incorrer em abuso de poder, e responder pelo art. 230 da Lei n. 8.069/1990. (ANSELMO, 2010, não paginado)

O Poder Legislativo municipal não tem a capacidade de legislar a temática de proteção das crianças e dos adolescentes, já que tal poder é devido à União, aos Estados e ao Distrito Federal de forma concorrente, como dispõe o artigo 24, XV da Constituição Federal. A implementação do toque de recolher por meio de legislação municipal incorreria portanto em duas inconstitucionalidades: a violação ao direito de ir e vir; e a afronta à competência legislativa quanto ao direito da criança e do adolescente.

Destaca-se que a defesa pela ilegalidade e inconstitucionalidade de tais medidas não significa que ocorre a defesa de que as crianças e adolescentes devem permanecer em situação de abandono, ou serem expostos para situações de risco. Pelo contrário, defende-se que é necessário buscar medidas legalmente válidas para a superação da situação de vulnerabilidade social e de risco enfrentadas pelos menores.

Há que ser salientado, contudo, que não se está defendendo, aqui, o posicionamento de que a criança e o adolescente poderão permanecer em situação de abandono nas ruas em qualquer horário – dia ou noite. Entretanto, para as situações não só de risco real, mas de vulnerabilidade social, diagnósticos devem ser feitos pelos Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente, assim como pelas Secretarias de Assistência Social, devendo os governantes municipais implementar, posteriormente, políticas sociais básicas, políticas sociais assistenciais em caráter supletivo e programas de proteção especial, primordialmente nas áreas da saúde, da educação e da cultura, em cumprimento às disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual prevê diversas medidas de proteção (a crianças, adolescentes e seus pais ou responsáveis), não sendo necessários recursos outros, como, por exemplo, o “toque de recolher”. (ALBINO; PALADINO, não datado, p. 13)

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina declarou a inconstitucionalidade das leis municipais de Tubarão (Lei n. 3.379/2009) e Massaranduba no julgamento dos processos 2010.014498-7 e 2010.060882-1 por violação ao direito de locomoção e invasão de competência privativa do governador do estado.

O próprio Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), principal órgão nacional do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, em sai 175ª Assembleia Ordinária aprovou um parecer contrário ao Toque de Recolher, alegando que tal medida violava os 5 e 227 da CRFB, bem como os artigos 4 e 16 do ECA. O parecer menciona ainda que os artigos 145 e 149 do ECA não poderiam ser utilizados como justificativa para a implementação da medida por portaria judicial, bem como que tal medida viola a Doutrina de Proteção Integral, elencando no parecer outros argumentos para a não utilização da medida pelos municípios.

O Fórum Colegiado Nacional dos Conselheiros Tutelares também publicou uma nota contrária à implementação do Toque de Recolher, defendendo que tal medida seria preconceituosa ao considerar o adolescente como um perigo social. Na nota defendem ainda que a população, o poder publico e os pais precisam atuar em conjunto precisam debater sobre a proteção da criança e do adolescente de acordo com os princípios do ECA.

Outros conselhos tutelares também se manifestaram contra a medida, assim como nem todos os juízes das Varas de Infância e Juventude defendem a implementação do toque de recolher. O juiz titular do Juizado da Infância e da Juventude em Fortaleza, Darival Beserra Primo[17], por exemplo, se manifestou publicamente contra a implementação da medida, defendendo que cabe aos pais disciplinarem os filhos e que a determinação do toque de recolher por meio de portaria judicial seria um retrocesso ao revogado Código de Menores.

O Conselho Nacional de Justiça em julho de 2009[18] definiu liminarmente pela validade da regulamentação exercida pelas portarias que instituem o toque de recolher, porém, posteriormente no mesmo ano em setembro decidiu pela suspensão da portaria[19] em Pato de Minas – MG na decisão do Procedimento de Controle Administrativo – PCA – nº 200910000023514, sustentando a ilegalidade da portaria.

O HC nº 207720 / SP (2011/0119686-3) autuado em 30/05/2011 foi julgado pela Segunda Turma do STJ que, por unanimidade, concedeu a ordem do Habeas Corpus nos termos do voto relator, declarando a ilegalidade da portaria da Vara da Infância e Juventude da cidade de Cajuru em São Paulo que determinou a implementação do Toque de Recolher. A emenda da decisão assim dispõe:

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. HABEAS CORPUS. TOQUE DE RECOLHER. SUPERVENIÊNCIA DO JULGAMENTO DO MÉRITO. SUPERAÇÃO DA SÚMULA 691/STF. NORMA DE CARÁTER GENÉRICO E ABSTRATO. ILEGALIDADE. ORDEM CONCEDIDA.

  1. Trata-se de Habeas Corpus Coletivo “em favor das crianças e adolescentes domiciliados ou que se encontrem em caráter transitório dentro dos limites da Comarca de Cajuru-SP” contra decisão liminar em idêntico remédio proferida pela Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
  2. Narra-se que a Juíza da Vara de Infância e Juventude de Cajuru editou a Portaria 01/2011, que criaria um “toque de recolher”, correspondente à determinação de recolhimento, nas ruas, de crianças e adolescentes desacompanhados dos pais ou responsáveis: a) após as 23 horas, b) em locais próximos a prostíbulos e pontos de vendas de drogas e c) na companhia de adultos que estejam consumindo bebidas alcoólicas. A mencionada portaria também determina o recolhimento dos menores que, mesmo acompanhados de seus pais ou responsáveis, sejam flagrados consumindo álcool ou estejam na presença de adultos que estejam usando entorpecentes.
  3. O primeiro HC, impetrado no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, teve sua liminar indeferida e, posteriormente, foi rejeitado pelo mérito.
  4. Preliminarmente, “o óbice da Súmula 691 do STF resta superado se

comprovada a superveniência de julgamento do mérito do habeas corpus originário e o acórdão proferido contiver fundamentação que, em contraposição ao exposto na impetração, faz suficientemente as vezes de ato coator (…)” (HC 144.104/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 2.8.2010; cfr. Ainda HC 68.706/MS, Sexta Turma, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe 17.8.2009 e HC 103.742/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 7.12.2009).

  1. No mérito, o exame dos consideranda da Portaria 01/2011 revela

preocupação genérica, expressa a partir do “número de denúncias formais e informais sobre situações de risco de crianças e adolescentes pela cidade, especificamente daqueles que permanecem nas ruas durante a noite e madrugada, expostos, entre outros, ao oferecimento de drogas ilícitas, prostituição, vandalismos e à própria influência deletéria de pessoas voltadas à prática de crimes”.

  1. A despeito das legítimas preocupações da autoridade coatora com as contribuições necessárias do Poder Judiciário para a garantia de dignidade, de proteção integral e de direitos fundamentais da criança e do adolescente, é preciso delimitar o poder normativo da autoridade judiciária estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em cotejo com a competência do Poder Legislativo sobre a matéria.
  2. A portaria em questão ultrapassou os limites dos poderes normativos previstos no art. 149 do ECA. “Ela contém normas de caráter geral e abstrato, a vigorar por prazo indeterminado, a respeito de condutas a serem observadas por pais, pelos menores, acompanhados ou não, e por terceiros, sob cominação de penalidades nela estabelecidas” (REsp 1046350/RJ, Primeira Turma, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 24.9.2009).
  3. Habeas Corpus concedido para declarar a ilegalidade da Portaria 01/2011 da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Cajuru.

O HC nº 251225 / MS (2012/0168240-4) autuado em 13/08/2012 foi julgado pela Primeira Turma do STJ que, por unanimidade, concedeu a ordem do Habeas Corpus para declarar a ilegalidade da portaria implementada pela Vara Única da comarca de Itaporã no Mato Grosso do Sul.  A ementa assim determina:

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. HABEAS CORPUS . PORTARIA EDITADA POR JUÍZO DA COMARCA. RESTRIÇÃO DO DIREITO DE PERMANÊNCIA E LOCOMOÇÃO DE MENORES DESACOMPANHADOS DOS PAIS OU RESPONSÁVEL LEGAL EM RUAS E LOGRADOUROS PÚBLICOS. NORMA DE CARÁTER GENÉRICO, ABSTRATA E SEM FUNDAMENTAÇÃO. ART. 149 DO ECA. ILEGALIDADE. ORDEM CONCEDIDA.

  1. O entendimento firmado em ambas Turmas que compõem a Primeira Seção desta Corte Superior é no sentido de que “é preciso delimitar o poder normativo da autoridade judiciária estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em cotejo com a competência do Poder Legislativo sobre a matéria” (HC 207.720/SP, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, DJ de 23/2/12).
  2. “Nos termos do art. 149 do ECA (Lei n. 8.069/1990), a autoridade

judiciária pode disciplinar, por portaria, a entrada e permanência de

criança ou adolescente desacompanhados dos pais ou responsáveis nos locais e eventos discriminados no inciso I, devendo essas medidas ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral, ex vi do § 2º” (REsp 1.292.143/SP, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, Primeira Turma, DJe de 21/6/12).

  1. Na caso em exame, a Portaria 17/04-DF que instituiu horário máximo de permanência de menores desacompanhados dos pais ou responsável legal nas ruas da Comarca de Itaporã/MS é de caráter geral, abstrata e sem nenhuma fundamentação de sua necessidade, razão pela qual não deve subsistir, por ofensa ao art. 149 do ECA.
  2. Ordem concedida para declarar a ilegalidade da Portaria 017/2004-DF, de 5/5/04, editada pelo Juízo da Única Vara da Comarca de Itaporã/MS.

Verifica-se, portanto, que apesar da medida ter sido implementada em diversas cidades brasileiras, ocorreram diversos questionamentos quanto a sua legalidade, de modo que foi houve a suspensão da medida protetiva pelos Tribunais de Justiça estaduais, bem como pelo próprio Superior Tribunal de Justiça.

  1. Resultados e Conclusões

Ao ler a Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), podemos ver que seu artigo 15, dispõe que “A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. Assim, a medida que visa a restrição do direito de locomoção dos jovens vai de encontro ao disposto no ECA.

Como elaborado no tópico anterior, a implementação da medida do toque de recolher para crianças e adolescentes não pode ser realizada por meio de portaria judicial ou por lei municipal, já que em ambos os casos há violação à Constituição Federal. De modo que caberia ao poder estadual eventual legislação com medida protetiva para a infância e a juventude. Todavia, tal projeto deveria ter em consideração o direito de ir e vir a fim de não se elaborar medida protetiva inconstitucional.

Não foi possível obter resultados referentes a real eficácia da diminuição de casos de violência envolvendo crianças e adolescentes, devido à ausência de dados e estudos oficiais quanto aos números de delitos envolvendo crianças e adolescentes. Entretanto as conclusões preliminares da pesquisa demonstram que a simples implementação do toque de recolher para crianças e adolescentes nas cidades não foi suficiente para o combate à violência e ao tráfico, que permaneceu ativo apesar de mascarado em alguns casos.

 Demais disso, a adoção da medida em diversos municípios brasileiros revela, também, o exercício desmedido de atividade administrativa por parte do Poder Judiciário. Por fim, concluiu-se ainda que em boa parte das cidades onde a medida foi aplicada a sua durabilidade não foi longa, tendo sido revogada na maior parte dos casos. A cidade em que o toque de recolher vigorou por mais tempo foi a cidade de Fernandópolis/SP que teve a medida em vigor por nove anos.

 

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NOTAS:

[1] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 11-  Direitos, infâncias e juventudes do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2]Formado em Licenciatura em Educação do Campo – UFMA. Membro do Setor de Direitos Humanos do MST. Estudante de Direito – UEFS.

[3]“Sine qua non” é uma locução com que se qualifica uma cláusula ou condição sem a qual não se conseguirá atingir o objetivo planejado, sem a qual determinado fato não acontece.

[4]Sobre esta existem controvérsias se de fato pode ser considerada como uma Constituição, mas a maioria dos juristas acreditam que sim.

[5]O estado do Maranhão apesar de se caracterizar essencialmente como um estado agrícola, não se dedica exclusivamente a este tipo de produção. Desde sempre houve outros tipos de produção na região. Mesmo no século XVIII este estado congregou importantes iniciativas industriais, chegando a ter produção voltada à demanda internacional, a exemplo do episódio da Guerra da Secessão (1861 – 1865), nos Estados Unidos. Por conta desta guerra interna, este país deixou de fornecer algodão para as indústrias inglesas, tendo o complexo algodoeiro maranhense cumprido este papel, cumprindo importante papel neste setor produtivo. (LOPES, 2006)

[6] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 11-  Direitos, infâncias e juventudes do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[7] Servidora do Poder Judiciário, lotada em Codó/MA. Bacharel em Direito pela UFPI (2010) e mestranda em sociologia pela UFPI, militante do Movimento de Mulheres em Luta (MML).

[8] Professora, assessora técnica, mestre e bacharel em Direito, militante do Movimento Negro Unificado (MNU).

[9] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 11-  Direitos, infâncias e juventudes do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[10]Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense.

[11]Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense, bolsita CAPES.

[12]RAMOS; Wanderley, 2009, não paginado.

[13]             ____________. Juiz decreta toque de recolher para menores no interior da Bahia. Publicado em 15/06/2009. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/06/15/ult5772u4323.jhtm

[14]_____________. Toque de Recolher para menores de 16 anos volta a valer a partir de hoje. Publicado em 11/11/2009. Disponível em: https://www.patoshoje.com.br/noticia/toque-de-recolher-para-menores-de-16-anos-volta-a-valer-a-partir-de-hoje-3930.html

[15]Projeto de lei quer “toque de recolher” como solução à crise de segurança no Ceará. Publicado em 22/02/2018. Disponível em: http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/segurancapublica/projeto-quer-toque-de-recolher-como-solucao-a-crise-de-seguranca-no-ceara/

[16]Projeto de lei em Joinville quer evitar que menores de 14 anos circulem sozinhos entre 23h e 5h. Publicado em 23/02/2018. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/projeto-de-lei-em-joinville-quer-evitar-que-menores-de-14-anos-circulem-sozinhos-entre-23h-e-5h.ghtml

[17]Disponível em: http://www.tjce.jus.br/noticias/juiz-da-infancia-e-contrario-ao-toque-de-recolher/

[18]PARAGUASSÚ, Lisandra. Decisão do CNJ mantém toque de recolher para menores. Publicado em 10/07/2009. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,decisao-do-cnj-mantem-toque-de-recolher-para-menores,400959

[19]Disponível em: http://www.crianca.mppr.mp.br/2009/09/11068,37/