ESPAÇO DE DISCUSSÃO 3: PENSAMENTO CRÍTICO E PESQUISA MILITANTE NA AMÉRICA LATINA

  

Artigo


 “Do lugar de onde venho a resistência não começa na ocupação, ela vem de antes”: As adolescentes e a interseccionalidade de gênero, sexualidade, raça e classe no contexto das ocupações[1].

From where I come, resistance does not start in the occupation, it comes from before“: Adolescents and the intersectionality of gender, sexuality, race and class in the context of occupation.

Renata Almeida D´Ávila[2]

Aldenora Conceição Macedo[3]

 Resumo: Este trabalho é fruto de uma pesquisa impulsionada pelo ciclo de ocupações de escolas protagonizado pelas/os estudantes brasileiras/os em todo o país no ano de 2016. No presente artigo, que adota uma perspectiva feminista, temos por objetivo analisar como as questões interseccionais das jovens que participaram das ocupações de escolas públicas do Distrito Federal em 2016 interferiram nas relações sociais entre elas estabelecidas, bem como se esses movimentos serviram de espaço de fomento para discussões envolvendo as questões da diferença e desigualdade. Do ponto de vista metodológico, na primeira parte da pesquisa adotamos a observação participante, por nos possibilitar o contato direto com o fenômeno social a ser investigado e a incorporação ao grupo estudado e, em um segundo momento, realizamos entrevistas individuais com a utilização de roteiro semiestruturado. De modo a contextualizar os acontecimentos, apresentamos um histórico das ocupações ocorridas no país a partir de 2015, em especial a do ano de 2016, denominada de “Primavera Secundarista”, relacionando-as com o cenário político vivenciado na América Latina. Na sequência, introduzimos nossas atrizes, sujeitos da pesquisa e, tendo como ponto de partida os diálogos com essas estudantes, concebemos algumas reflexões sobre como as questões de gênero, sexualidade, raça, classe e geração foram vivenciadas no cenário das ocupações. Ao final, foram efetuadas algumas considerações acerca da capacidade crítica e organizacional que a juventude possui, destacando a necessidade de as/os educadoras/es estarem atentos às demandas das/os estudantes, comuns a um país plural onde a educação invisibiliza as especificidades das juventudes, com suas diferentes vulnerabilidades e potencialidades.

Palavras-Chave: Ocupações de escolas. Feminismo. Juventude. Interseccionalidade de gênero, sexualidade, raça e classe.

Abstract: This paper is the result of a research impelled by the occupation of schools all over Brazil by students in the year of 2016. The work embraces a feminist point of view and it targets to analyse how the intersectional issues of the young female that took part in the occupations of state schools in Brasília affected the social relations between them and how the movement worked as a place to strength discussions about difference and inequality. In the methodological standpoint, in the first part of the work is adopted the observational research method as it allows direct contact with the social phenomenon to be investigated and, as well, the incorporation to the studied group. Individual semi-structured interviews were made in a following moment. To contextualize the events, we present a timeline of occupations that took place in Brazil since 2015, especially the one in 2016, known as “High School Spring”, relating it to the political settings in Latin America. After that, we introduce our actors, the research subjects, and having as a starting line the talks with these female students we conceived some reflections about gender, sexuality, race, class and origination issues observed during the occupations. Some considerations were made about the critical and organizational skills of the youth, highlighting the need of educators being careful about students demands that are usual in a plural country where education makes invisible the specificities of the youths with their own vulnerabilities and potentialities.

Keywords: School Occupations. Feminism. Youth. Intersectionality of gender, sexuality, race, and class.

1.                  Introdução

Este trabalho é decorrente de uma pesquisa impulsionada pelo ciclo de ocupações de escolas protagonizado pelas/os estudantes brasileiras/os, ocorrido a partir de 2015 (GOHN, 2017). No presente artigo, objetivamos investigar o protagonismo feminino tendo como foco as ocupações no Distrito Federal. Buscamos analisar como as questões interseccionais das jovens que participaram do movimento em suas escolas interferiram nas relações sociais entre elas estabelecidas, bem como se esses movimentos serviram de espaço de fomento para discussões envolvendo as questões da diferença e desigualdade existente entre as/os estudantes. Procuramos, ainda, ressaltar o aprendizado sociopolítico e cultural presente nas ocupações como alertas acerca da ausência de processos participativos na escolarização das/dos jovens no país.

Sob o aspecto metodológico, na primeira parte da pesquisa utilizamos a observação participante, por nos possibilitar o contato direto com o fenômeno social a ser investigado e a incorporação ao grupo estudado e, em um segundo momento, efetuamos entrevistas individuais fazendo uso de roteiros semiestruturados.

Em seguida, traçamos breve histórico das ocupações insurgidas contra a reforma do ensino médio e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 241/55)[4], impostas pelo governo ilegítimo de Michel Temer. Relacionamos essa jornada estudantil com as mobilizações registradas em todo o mundo a partir de 2011, iniciadas com a “Primavera Árabe”, e com o cenário político vivenciado na América Latina, onde o Brasil destaca-se por passar por um momento crítico de investidas antidemocráticas e autoritárias que comprometem, sobretudo, as políticas na área da educação.

Na sequência, apresentamos nossas atrizes, sujeitos da pesquisa, e as ideias e inquietações que as levaram a atuar nesses movimentos em busca de seus direitos de estudantes e cidadãs. Na tentativa de provocar uma reflexão acerca da complexa imbricação entre gênero, sexualidade, raça, classe e geração e, tendo como ponto de partida os diálogos com essas estudantes, adotamos como aporte teórico a definição de interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw (2002). Compreender as ocupações utilizando a lente da interseccionalidade tornou-se imperioso ante o evidente protagonismo das adolescentes – repletas de vivências particulares marcadas por suas especificidades – atuantes nesse fenômeno social.

Por fim, efetuamos algumas considerações acerca da capacidade crítica e organizacional demonstrada por essas jovens, destacando a necessidade de educadoras/es estarem atentos às diferentes demandas das/os estudantes, comuns a um país plural onde a educação invisibiliza as especificidades das juventudes, com suas distintas vulnerabilidades e potencialidades.

  1. Elas por elas: a perspectiva teórica metodológica

Uma vez que o objetivo primeiro do presente trabalho era ressaltar os sujeitos femininos que participaram das ocupações de escolas no Distrito Federal no ano de 2016, optamos por abraçar a abordagem qualitativa. Como ensina o professor Pedro Demo (2000, p.152), existem fenômenos que primam pela qualidade no contexto social, cuja captação exige mais que a simples mensuração de dados. Nesse sentido, a investigação aqui desenvolvida buscou valorizar os aspectos subjetivos, de maneira a compreender o significado do fenômeno, e não simplesmente descrevê-lo.

A pesquisa empírica foi concretizada partindo de um estudo exploratório onde visitamos algumas escolas ocupadas, participamos de momentos culturais ali realizados, colaboramos com materiais necessários para a permanência/resistência daquelas/es jovens (limpeza, alimentos etc.) e com momentos formativos (palestras e aulas), sem perder o foco educacional. Conforme apregoam Menga Lüdke e Marli André (1986, p. 22), essas oportunidades foram fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa, pois nelas fomos capazes de “estabelecer os contatos iniciais para a entrada em campo, de localizar informantes e as fontes de dados necessárias para o estudo”, permitindo-nos ter uma visão de abertura para a realidade tal qual como ela se apresentava, e não como imaginávamos que fosse.

A observação participante foi realizada pelas pesquisadoras entre o final de outubro e a primeira semana de novembro de 2016, nas seguintes unidades educacionais do Distrito Federal: Centro de Ensino Setor Oeste (CEMSO), Centro Educacional Gisno, no Instituto Federal (campus Asa Norte), na Universidade de Brasília (campus Darcy Ribeiro) e na Universidade Estadual de Goiás (campus Formosa – GO). Essa pesquisa exploratória possibilitou-nos o contato direto com o fenômeno social a ser investigado e a incorporação ao grupo estudado. Eva Lakatos e Marina Marconi (2002) esclarecem que a observação é uma técnica que tem por finalidade obter informações, adotando os sentidos para captar aspectos da realidade. Constitui-se em elemento de investigação científica utilizada na pesquisa de campo e ponto de partida para a investigação social.

Ao longo da observação, acompanhamos a rotina das/os estudantes e a dinâmica das ocupações, nas quais as tarefas internas eram divididas por comissões temáticas (alimentação, segurança, comunicação, limpeza). Na medida em que participamos das atividades desenvolvidas, verificamos o envolvimento das comunidades nas quais estavam inseridas as escolas ocupadas, não somente com o fornecimento de alimentos, material de limpeza e higiene, mas também com o preparo de refeições e com a doação de aulas e a realização de oficinas e rodas de conversa sobre os mais diversos temas.

Ao tempo em que presenciamos atos de solidariedade, vivenciamos também momentos de tensão, como o da desocupação do Centro Educacional Gisno. No dia 02 de novembro de 2016, a escola foi cercada pela Polícia Militar, que se valeu da decisão proferida pelo juiz Alex Costa de Oliveira no processo referente ao Centro de Ensino Asa Branca de Taguatinga – CEMAB, cuja aplicação foi estendida a todo o Distrito Federal. Na decisão, foi autorizada a utilização de métodos considerados de tortura, como isolamento físico e privação de sono, “como forma de auxiliar no convencimento à desocupação”[5] (BRASÍLIA, 2016).

Com a notícia da presença de policiais, as/os estudantes convocaram apoio pelas redes sociais. Um grupo de pessoas passou a noite em vigília em frente à escola, formando uma rede de proteção para evitar eventuais abusos policiais. Acompanhamos a movimentação até tarde da noite e retornamos na manhã seguinte, quando as/os estudantes deixaram o prédio realizando um ato pacífico de protesto.

Acompanhamos, ainda, audiências públicas na Comissão de Direitos Humanos do Senado, no dia 31 de outubro de 2016 e na Câmara Legislativa do Distrito Federal, em 1º de novembro de 2016, nas quais foram debatidas as violações de direitos humanos ocorridas durante o movimento. Por fim, realizamos conversas informais, em grupo e individualmente, que contemplaram tanto as meninas como os meninos, de modo a elaborar uma reflexão menos reducionista das relações de gênero.

Durante todo esse processo, ficou evidenciada a atuação das garotas, assim como as intersecções que as caracterizavam. Esse fato, por nós constatado empiricamente, já havia sido apontado por pesquisadoras/es que nos precederam, auxiliando-nos a direcionar nosso olhar para o público feminino. E foi dessa maneira que conhecemos as estudantes que participaram desta pesquisa, nove delas entrevistadas mais detidamente no ano de 2017, oriundas de três diferentes instituições públicas de ensino do Distrito Federal. Para o presente artigo sobre interseccionalidade feminina, discutimos interações de gênero, sexualidade, raça, classe e geração alicerçadas nos diálogos com três dessas jovens, que aqui serão chamadas de Jéssica, Ângela e Lélia[6],

As entrevistas foram realizadas adotando-se um roteiro semiestruturado, que apresentava questões básicas com o intuito de “provocar” as estudantes, deixando margem para novas formulações a partir das suas respostas. Nessa proposta, o sujeito participa ativamente da elaboração do conteúdo da pesquisa, “seguindo espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do foco principal” (TRIVIÑOS, 2008, p.140).

Ademais, foi preciso empreender levantamento de informações por meio de pesquisa documental (fontes secundárias) sobre as ocupações realizadas por estudantes no Brasil no ano de 2016, em especial no Distrito Federal. Recorremos a fontes diversificadas e dispersas, tais como jornais, revistas, notícias publicadas na internet e expedientes oficiais, bem como outros documentos, escritos ou não, ou seja, matérias-primas “recolhidas no momento em que o fato ou fenômeno ocorre, ou depois” (LAKATOS; MARCONI, 2002, p.62).

Por fim, é preciso ressaltar que esta pesquisa possui uma orientação explicitamente feminista, que parte de um posicionamento pessoal que compartilhamos, enquanto autoras e pesquisadoras, alinhando-nos às epistemologias feministas. Estas, na concepção de Clarissa Galvão (2002, p.01), apresentam por objetivo principal “analisar a influência do gênero nas concepções de conhecimento, em seus modos de produção e justificação, bem como na concepção de sujeito cognoscente”, ou seja, procuram compreender como as práticas hegemônicas de produção de conhecimento têm contribuído para a invisibilização das mulheres e outros grupos subordinados.

Além de ter sido realizado por mulheres, este trabalho tem como protagonistas as jovens estudantes que atuaram nas ocupações de escolas no Distrito Federal em 2016. Pretende-se, com isso, dar visibilidade às mulheres como sujeitos históricos, pois, assim como Joan Scott (1989), entendemos que estas participam dos grandes e pequenos eventos da história humana, apesar de nem sempre terem suas experiências evidenciadas ao longo desta.

Articulado a isso, optamos ainda por conferir preferência às autoras, procurando-se apresentar, sempre que possível, seus nomes completos quando referenciadas. Tal atitude já foi perfilhada por outras mulheres pesquisadoras, como Aldenora Macedo (2017, p. 12), que o fez por considerar que tal escolha ressalta “a identidade feminina comumente inviabilizada na norma acadêmica com a utilização do último sobrenome”.

  1. A “Primavera Secundarista” brasileira no cenário dos movimentos sociais da América Latina

Após a “Primavera Árabe”, iniciada na Tunísia, mobilizações sociais brotaram espontaneamente na Europa (Espanha, Grécia, Portugal) e nos Estados Unidos (Occupy Wall Street, NYC, em 2012), espalhando-se por contágio num mundo ligado pela internet sem fio e caracterizado pela difusão rápida, viral, de imagens e ideias (CASTELLS, 2013, p.12).

Em 2013, manifestantes marcharam nas principais cidades do Brasil, inicialmente contra o aumento da tarifa dos transportes e logo depois para reivindicar educação, saúde e criticar a realização da Copa do Mundo em 2014. Nesse período, o país viveu uma fase de efervescência com a volta de grandes mobilizações de rua, combinadas com novas formas de ações coletivas, principalmente com as ocupações de prédios e espaços públicos, os denominados “ocupas”, nas quais as/os manifestantes acampavam coletivamente por vários dias em defesa de uma causa, chamando a atenção da comunidade e governantes para determinado problema.

Destacamos, no ano de 2015, as manifestações protagonizadas pelas mulheres que ocorreram por grande parte da América Latina. Na Argentina surgiu a campanha #Niunamenos que levantou bandeira contra o feminicídio, após a morte da adolescente de 14 anos Chiara Páez, assassinada pelo seu namorado. Agregando a luta contra o feminicídio com a violência contra a mulher e a equidade de direitos trabalhistas, o movimento retomou antigas, mas ainda atuais bandeiras e trouxe grande repercussão nas redes sociais. Importantes marchas marcaram, especificamente, o dia 03 de junho de 2015, onde as mulheres tomaram as ruas da Argentina, Chile, Uruguai e México.

No final desse mesmo ano, milhares de mulheres saíram às ruas em São Paulo e em outros grandes centros urbanos do país, no que foi batizado de “Primavera das Mulheres”, em protesto ao Projeto de Lei nº 5.069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que dificultava o acesso ao aborto legal para vítimas de estupro. Além da Marcha das Vadias e da Marcha das Margaridas, foi realizada a “Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver” que reuniu mais de 50 mil pessoas em Brasília, reivindicando direito à vida, à humanidade, o direito a ter direitos e pelo reconhecimento e valorização das diferenças (GELEDÉS, 2015).

Os movimentos feministas, como os acima referenciados, estão em busca de uma “igualdade” com respeito às diferenças, sendo, portanto, de natureza contra hegemônica. As ocupações de escolas, nesse sentido, podem ser melhor compreendidas quando observadas a partir dessa conjuntura em que movimentos anticapitalistas e insurgências às desigualdades e injustiças estão paulatinamente ganhando fôlego.

No Brasil, as ocupações de escolas legitimaram a busca pela manutenção – e melhoramento – do regime democrático, duramente conquistado e ainda pouco concretizado. Conforme destacam Alvim e Rodrigues (2017, p.76), “coletivos, movimentos e protestos têm se tornado experiências cada vez mais ‘virais’ nos espaços escolares”, como forças combativas e criativas de resistências,

[…] que incessantemente propõem, de forma autônoma, a reorganização das relações sociais, não somente desafiando as normas instituídas, como também propondo novas formas de convívio, amor e de maquinação comum (ALVIM; RODRIGUES, 2017, p.76).

Entendemos que os movimentos sociais estão intrinsecamente interligados ao momento político, social e cultural, e possuem demandas e reivindicações de ordens distintas, como as que tivemos aqui no Brasil à época do processo contra a presidenta Dilma Rousseff, onde manifestantes simpatizantes do projeto neoliberal pediam sua saída, valendo-se do discurso do impeachment, enquanto os grupos progressistas defendiam sua permanência, utilizando a narrativa do golpe.

As ocupações de escolas ocorridas no país nos anos de 2015 e 2016 são aqui consideradas fenômenos situados em um ciclo específico de mobilização estudantil, com características que remetem aos movimentos sociais (GOHN, 2017). Assim como Maria da Glória Gohn e Breno Bringel (2014, p. 20), entendemos que “os movimentos transitam, fluem e acontecem em espaços não consolidados das estruturas e organizações sociais” e, como nos casos das ocupações, “estão questionando estas estruturas e propondo novas formas de organização à sociedade política”.

Esses movimentos relacionam-se com o cenário político vivenciado na América Latina, onde o Brasil destaca-se por passar por um momento crítico de investidas antidemocráticas e autoritárias que reverberam muito pontualmente na educação, ameaçando o futuro das/os nossas/os mais de 50 milhões de jovens[7].

Maria da Glória Gohn e Breno Bringel (2014) afirmam, ainda, que é esse aspecto fluído dos movimentos sociais que os tornam inovadores, o que nos remete muito pontualmente às ocupações de escolas, que não devem ser concebidas como

[…] uma ação coletiva unívoca, mas que assume feições e configurações específicas como em São Paulo diante do projeto do governo estadual de requalificação das escolas por nível de escolarização; em Goiás diante do projeto do governo estadual em terceirizar parte das escolas públicas por intermédio de contratos com organizações sociais tal como já implantado o modelo de gestão na saúde; ou outras (BALDINO, FREITAS, 2016, p.908).

O primeiro grande ciclo de ocupações de escolas no país ocorreu em São Paulo, no final de 2015, quando a Secretaria de Educação anunciou a implantação de um projeto de “reorganização escolar”, sob o argumento de separar as unidades de ensino pelos ciclos de educação (Ensino Infantil, Ensino Fundamental I e II e Ensino Médio). Como consequência, 93 escolas da rede estadual seriam fechadas, em 35 municípios, 25 delas na cidade de São Paulo, e mais de 300 mil estudantes seriam transferidos compulsoriamente para escolas que seriam definidas pelo governo (PEREIRA; OLIVEIRA, 2015)

O descaso do governo com estudantes, pais e mães e professoras/es gerou um forte sentimento de indignação; e “durante seis semanas, entre o fim de setembro e o início de novembro, estudantes foram às ruas em quase duas centenas de ocasiões para protestar contra a ‘reorganização’” em todo o Estado de São Paulo (CAMPOS et al., 2016-a, p.41). Como os protestos não se mostraram suficientes para abrir um diálogo com o governo Alckmin, que dava a reorganização como “irreversível” (CAMPOS et al., 2016-a, p.53), as/os estudantes apostaram na ocupação de escolas.

Essas ocupações de escolas em São Paulo no ano de 2015 foram protagonizadas por mulheres, que estavam no pelotão de frente de muitas manifestações, o que foi registrado nas redes sociais e em diversas matérias jornalísticas. O documentário “Lute como uma Menina”, disponível no YouTube, dirigido por Beatriz Alonso e Flávio Colombini (2016) traz os depoimentos de algumas dessas jovens, que demostraram alto nível de politização ao apresentar suas inquietações acerca da estrutura social e dos papéis de gênero na sociedade.

Decorridos mais de dois meses após o início das jornadas, com a queda do índice de popularidade de Geraldo Alckmin, o Governo do Estado de São Paulo anunciou a suspensão do projeto de “reorganização escolar”. Na avaliação de Campos, Medeiros e Ribeiro (2016-b), apesar da inegável vitória do movimento secundarista, o governador seguiu realizando a “reorganização” de forma velada, “fechando salas em vez de ciclos e escolas inteiras”.

No ano de 2016 a crise política dominou o cenário nacional, culminando no golpe jurídico-parlamentar-midiático que afastou a presidenta eleita Dilma Rousseff, sob a acusação de ter atrasado o repasse de recursos a bancos públicos (denominadas “pedaladas fiscais”). Pouco tempo após assumir o governo federal, Michel Temer editou a Medida Provisória 746/2016, estabelecendo uma reforma no ensino médio, sem que seus principais tópicos fossem debatidos com a população. As mudanças incluíam a ampliação da carga horária para 1400 horas/ano (turno integral), ao invés de 800 horas/ano (prejudicando estudantes/trabalhadoras/es), e a não obrigatoriedade do ensino da arte, da educação física, das ciências sociais e da filosofia (estas duas últimas condicionadas à inclusão na Base Nacional Comum Curricular).

Nesse ponto, qualquer semelhança com o modus operandi do governo do Estado de São Paulo quando do anúncio da “reorganização escolar” não é mera coincidência. Em comum, características pouco democráticas: a ausência de diálogo com a comunidade escolar e a imposição da proposta por ato normativo de iniciativa do Poder Executivo.

Campos, Medeiros e Ribeiro (2016-b, p.01) chamaram a atenção para o fato de que:

[…] já no primeiro semestre de 2016, as ocupações surgiram em diferentes estados como reação dos estudantes tanto contra consequências deletérias de cortes de gastos sobre a infraestrutura das escolas (como nos casos do Rio de Janeiro, do Ceará e do ciclo de ocupações pela merenda em São Paulo) quanto contra projetos específicos de privatização da educação pública (como no caso das OSs em Goiás e das PPPs em Mato Grosso).

A publicação da medida provisória do ensino médio, no entanto, foi o estopim que desencadeou uma nova onda de ocupações iniciada no Paraná, que teve mais de 800 escolas ocupadas (UBES, 2016). Foi desse Estado que emergiu a figura de uma jovem de 16 anos, que bem expressou os anseios e as preocupações da sua geração. Ana Júlia foi explicar aos deputados da Assembleia Legislativa do Estado o porquê das ocupações, iniciando sua fala com duas perguntas: “De quem é a escola? A quem a escola pertence?”. Ela mesma respondeu: “Acredito que todos aqui já saibam essa resposta. E é com a confiança de que vocês conhecem essa resposta que eu falo sobre a legitimidade desse movimento”. Afirmou que o movimento de ocupações de escolas estava sendo feito pelas/os estudantes e para as/os estudantes, em defesa da educação e da geração futura. Ao final, Ana Júlia constatou: “O movimento estudantil nos trouxe mais conhecimento de política e cidadania do que todo o tempo que tivemos sentados e enfileirados em aulas-padrão” (POLLO, 2016).

O vídeo com esse discurso de Ana Júlia viralizou nas redes sociais, transformando-a no símbolo da luta secundarista, que se estendeu para todo o país após a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/55, limitando os gastos públicos por vinte anos. Na pauta dos manifestantes, também foi incluída a rejeição ao Projeto de Lei 867/2015, de autoria do deputado Izalci Lucas Ferreira (PSDB), membro da bancada evangélica, referente ao programa “Escola Sem Partido”, que na prática proíbe discussões sobre política, ideologia e questões de gênero em sala de aula (UBES, 2016). Segundo a União Brasileira de Estudantes Secundaristas – Ubes (2016), no dia 28/10/2016, 1197 instituições de ensino estavam ocupadas em todas as regiões, o que dá a ideia da proporção que o movimento tomou, sendo chamado de “Primavera Secundarista”.

  1. Estudantes ocupadas: gênero, sexualidade, raça, classe e geração no contexto das ocupações

Do lugar de onde as adolescentes vêm somente elas podem falar. O lugar de fala, muito debatido na atualidade, tem para nós grande importância, uma vez que nos predispomos a buscar um entendimento não universal da adolescência, ao contrário, nosso foco foram as “estudantes ocupadas”[8], protagonistas do fenômeno social aqui pesquisado.

A maior parte das estudantes que participaram das ocupações das escolas públicas no Distrito Federal pertence às famílias da classe trabalhadora e são, em sua grande maioria, negras. Dessa maneira, para não incorrer no erro de “universalizar demandas de toda uma imensidão de especificidades que se sabem existentes” entre as mulheres (MACEDO, 2016, p.08), adotamos a questão da interseccionalidade como ponto de partida para este estudo, na tentativa de compreender algumas das características que contribuem para a opressão dessas estudantes.

Segundo Helena Hirata (2014), os debates acerca da interdependência das relações de poder, raça, sexo e classe tiveram raízes no feminismo negro desenvolvido nos Estados Unidos, a partir das críticas apresentadas ao feminismo feito por mulheres brancas, heterossexuais e de classe média. Apesar de essas discussões terem iniciado ainda na década de 1970, o termo “interseccionalidade” somente foi evidenciado nos idos de 1990, pela jurista Kimberlé W. Crenshaw, que propôs, numa reunião preparatória para a Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerância ocorrida na África do Sul, um protocolo para ser utilizado “na identificação de situações em que a discriminação de gênero é ampliada pela ou combinada com a discriminação racial, ou vice-versa” (CRENSHAW, 2002, p.174).

Kimberlé chegou à categorização desse termo ao desenvolver concepções já problematizadas anteriormente por feministas como Ângela Davis e Patrícia Hill Collins, atuantes nos movimentos feministas do final dos anos de 1970 conhecidos como Black Feminism. Em suas manifestações, feministas negras criticavam o viés excludente do feminismo sufragista que era majoritariamente branco, elitista e heteronormativo. À proporção que levantaram a bandeira do reconhecimento das diferenças como pressuposto para a busca por igualdade, as feministas negras deixaram como legado a demanda da interseccionalidade.

Os estudos sobre como se relacionam as diferentes formas de dominação, exploração e opressão foram desenvolvidos vinte anos depois, no início dos anos 1990, quando pesquisadoras inglesas, norte-americanas, canadenses e alemãs passaram a se debruçar sobre a temática. Ainda assim, antes da especificidade de coexistência de marcadores sociais ser nomeada, já existiam olhares atentos para tal realidade, como os das pesquisadoras Anna Julia Cooper e Maria Stewart que, na vanguarda, abordavam essa problemática lançando mão de termos como “interconectividade” e “identidades multiplicativas”.

Kimberlé Crenshaw (2002) focou seus estudos nas interações entre raça e gênero, mas sua definição de interseccionalidade contemplava outras variáveis sociais que poderiam contribuir para o aumento da subordinação das mulheres:

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas das mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW, 2002, p.177).

Nessa mesma linha de raciocínio, Lourdes Maria Bandeira e Tânia Mara C. Almeida (2015) explicam que, além dos eixos de desigualdades mais ‘usuais’ (raça, etnia, gênero e sexualidades), outras interações (condição religiosa, regional, geracional e profissional) podem estar presentes, “constituindo-se um complexo de relações de poder e não apenas um ‘somatório’ a verticalizar as desigualdades” (BANDEIRA; ALMEIDA, 2015, p.162). Registram, no entanto, que “algumas categorias manifestam-se de modo independente em certas circunstâncias” (CRENSHAW apud BANDEIRA; ALMEIDA, 2015, p.162).

De maneira a possibilitar um diálogo dessa teoria feminista com o que foi constatado ao longo da pesquisa empírica, recorremos às peculiaridades das “estudantes ocupadas”, personagens principais deste trabalho. As questões sobre gênero, sexualidade, raça, classe e geração aqui debatidas foram suscitadas pelas próprias estudantes, em suas falas, ideias, pensamentos e inquietações. A seguir, apresentamos as meninas que possibilitaram este diálogo entre a teoria e o campo.

  1. Jéssica é estudante negra, bissexual, atuante nas redes sociais, mora com sua família no Varjão – DF. Participou da ocupação do Centro Educacional Gisno, situada na Asa Norte, região central de Brasília.
  2. Ângela é estudante negra, heterossexual, reside com a mãe e as irmãs na Samambaia – DF, mesma cidade onde se localiza a escola que ocupou: o Centro de Ensino Médio – CEM 304.
  3. Lélis é estudante negra, lésbica e, assim como Ângela, mora em Samambaia – DF e atuou na ocupação do Centro de Ensino Médio – CEM 304.

Ângela, no momento da entrevista, já era aluna do ensino superior, tendo acessado a Universidade de Brasília por meio do Programa de Avaliação Seriada – PAS, que apresenta sistema de cotas para escolas públicas. Ao falar da nova realidade que vivencia na universidade, chamou atenção para a disparidade de classes sociais entre as/os alunas/os que vieram da rede pública e aquelas/es oriundos das escolas privadas. E demonstrou o incômodo que sentia quando pessoas que não possuíam origem humilde como a sua, ocupavam – de forma ilegítima, a seu ver – espaço dentro dos movimentos sociais:

Eu nem sei que consciência eu ia ter se tivesse entrado na UnB sem a ocupação. Porque a ocupação me fez enxergar tanta coisa […] Eu olho assim e eu fico: “qual a resistência de vida dele?”. Assim, de quem pega esse microfone e eu vejo o que a gente chama de “periférico de L2”[9], também, é algo que me dói muito, porque do lugar de onde eu venho, a resistência não começa quando a gente ocupa, ela começa antes. Por exemplo, minha mãe doméstica e eu ser a primeira filha a entrar na UnB. Essa resistência ela vem antes e quando você entra aqui e você vê que a maioria dos que estão aqui não tem isso e vestem uma camisa de movimento social e não sabem nem de onde que vem […] (Fala de Ângela, 2017)

A condição de periférica também foi lembrada por Jéssica, que ressaltou a dificuldade “da periferia e da comunidade terem voz”, ainda mais em se tratando de pessoas que não seguem a heteronormatividade. Esse discurso, a seguir reproduzido, articula-se com o pensamento de Spivak, rememorado por Karina Bidaseca (2010), no sentido de que o subalterno não pode falar não porque seja mudo, mas porque carece de espaço de enunciação. Dessa feita, falar corresponde a sair da posição de subalternidade.

[…] Então, já é complicado essa coisa da periferia e da comunidade terem voz… já é complicado elas saberem que podem falar, entendeu? Então esse debate foi essencial. LGBT principalmente, porque agora, muitas pessoas, abre aspas, elas “aceitam”, né? Esse problema do LGBT, então, as pessoas estão querendo falar e ter esse espaço e conversar sobre isso é importantíssimo (Fala de Jéssica, 2017).

A subordinação e a desigualdade em face da questão de gênero e da sexualidade entre estudantes foram percebidas na conversa com Jéssica, quando esta afirmou que, mesmo sendo maioria, as meninas manifestavam-se pouco nas assembleias. Já o colega “hétero, cis e branco” tinha que ser interpelado para oportunizar a fala às estudantes:

As pessoas que gostam mais de falar da coordenação e tal que gostam de falar sou eu, o Carlos, e o Ricardo. O Carlos é trans e o Ricardo é hétero, cis e branco. E ele gosta de estar falando e eu sempre estou falando: “Ricardo é o seguinte, as minas vão falar, nós somos a maioria aqui, e gente tem que falar”. Eu falo para as meninas para se “impor” porque no começo da ocupação chegavam falando, “Jéssica, porque a gente não faz isso, porque a gente não faz aquilo? E eu, “não gente, chega aqui, fala, vamos fazer isso, na assembleia todo mundo tem que dar uma ideia”. Depois que a gente começou a dar esse espaço para as meninas…as meninas têm essa coisa de, não, talvez se eu fale, não seja legal, já os meninos, meu Deus do céu, eles não pensam para falar […] (Fala de Jéssica, 2017).

Esse trecho revela, ainda, que persiste a concepção de que somente o espaço privado é destinado às mulheres, no sentido de que não devem expressar suas ideias publicamente. Os meninos, por sua vez, são estimulados a sair de casa, e sentem-se à vontade para falar em público, sem receio de serem avaliados ou criticados, na forma constatada por Jéssica: “eles nem pensam para falar”.

Lélis também demonstrou essa dificuldade de falar e ser ouvida, além do receio de “andar à noite”, pois o espaço público tanto não é destinado às mulheres que estas não devem andar “sozinhas na rua”, ainda que estejam acompanhadas por outras mulheres:

E tipo, eu sou uma mulher, eu estou inserida nessa realidade, eu tenho medo de andar a noite, entendeu? E tipo, principalmente por ser uma mulher negra vei, várias vezes eu fui silenciada. E eu escuto outras mulheres negras falando que foram silenciadas e eu fico tipo assim, vei. Somos mulheres negras, que somos silenciadas que temos medo de andar a noite. E vei, a gente sabe de todo o nosso potencial, que a gente tipo, infelizmente ainda não conseguimos mostrar (Fala de Lélis, 2017).

Como Simone de Beauvoir (1960) asseverou, ainda nos anos 1940, ao longo da adolescência, a menina despede-se do corpo infantil e, adquirindo corpo de mulher, faz-se “carne”. As dificuldades do “ser mulher” são vivenciadas desde muito cedo e o amadurecimento corporal traz consigo uma relação conflituosa com o corpo, pois da mulher é cobrada uma postura casta (os conhecidos preceitos “bela, recatada e do lar”), uma vez que o homem não deve ser instigado em seus instintos naturais. Para tanto, tem “a obrigação de se resguardar, respaldando e legitimando que os atos violentos ou as investidas sexuais são impulsionados pela anatomia de seu corpo pueril” (MACEDO, 2016, p. 86).

A questão geracional também foi objeto de análise neste trabalho, eis que verificamos que algumas reflexões apresentadas pelas jovens diziam respeito ao estágio da vida em que se encontravam.

Segundo Antônio Groppo (2000, p.60), o termo “adolescência” foi criado pela psicologia nos séculos XIX e XX, concebido como “estágio da vida do indivíduo em que ele define sua identidade particular”, tornando-se referência central das demais ciências humanas para a constituição do objeto “juventude”. A categoria “juventude”, por sua vez, refere-se à fase em que o indivíduo transita da infância à condição de adulto, e durante a qual se produzem importantes mudanças biológicas, psicológicas, sociais e culturais, que oscilam conforme as sociedades, as culturas, as etnias, as classes sociais e o gênero (UNESCO, 2004, p.23).

Groppo aponta a contradição que existe na concepção de juventude “como período de vigilância, disciplinarização e socialização do indivíduo entre sua infância e idade adulta”, por um lado, e, de outro, “como um direito humano reconhecido pela modernidade” (GROPPO, 2000, p.72). Registra, no entanto, que a realidade social mostra-se desigual, constituída “de estruturas de classe, de estratificações sociais, de diferenciações étnicas, de gênero, culturais etc” (GROPPO, 2000, p.73).

Nesse sentido, cabe trazer a preocupação que Ângela manifestava no ano de 2016, quando participava da ocupação, mas ainda não tinha certeza se daria continuidade aos estudos ao final do ensino médio, em face da necessidade de voltar a trabalhar para contribuir com a renda familiar. Esta era garantida apenas pelo salário da mãe, empregada doméstica. Ela expressou um dilema presente entre jovens das classes populares, que possuem sua “moratória social” reduzida ante a necessidade de entrar precocemente no mercado de trabalho e, muitas vezes, abandonar os estudos:

[…] E eu estava fazendo o PAS e elas estavam focadas no Enem, tínhamos os mesmos objetivos, a gente queria vir pra UnB. Elas mais do que eu, e eu na época eu estava meio assim ainda tentando me resolver, por conta de essa questão mais de trabalhar ou ir pra UnB, sempre é um empecilho pra gente que vem de lugares periféricos. Ou deixa de ter uma coisa ou deixa de ter outra, e se unir as duas coisas a gente acaba se prejudicando (Fala de Ângela, 2017).

Outra característica atribuída à juventude e que deve ser destacada no que se refere às ocupações é a rebeldia. Maria Juraci Maia Cavalcante (1987, p.17) explica que as revoltas estudantis nos anos 1960, em diferentes partes do mundo, criaram “uma expectativa em torno do potencial revolucionário da juventude e foi alimentada por filósofos respeitáveis como Jean Paul Sartre e Herbert Marcuse”.

As ocupações de 2016 resgataram, pelo mesmo naquele momento, essa capacidade da juventude de contestar a ordem estabelecida, utilizando a desobediência e a subversão para apresentar suas demandas. Regina Lúcia Pedroza (2012) nos diz que essa rebeldia é o ponto de partida para que denúncias possam ser realizadas e que deve ser utilizada sempre na necessidade de mudanças e para a superação de injustiças. Esse potencial revolucionário foi despertado em Jéssica durante a ocupação, no momento em que percebeu a força das/os estudantes unidas/os por uma mesma causa:

[…] Ali na ocupação a gente teve noção de poder. Porque a gente está tão acostumado a falarem: “não, porque jovem é inconsequente, porque jovem isso, jovem aquilo”. Só que a gente, todo mundo começou, chegava: “não, isso que você falou, isso é sério, isso que você está falando, isso é certo. A gente percebeu que a gente tem sim uma voz, sabe? A gente sozinho tem uma voz, a gente junto tem uma voz mais forte ainda (Fala de Jéssica, 2017).

Por causa das condições culturais e biológicas da adolescência, a juventude é o grupo social mais diretamente exposto aos dilemas da temporalidade (MELUCCI, 1997). Diante dessas peculiaridades, e das experimentações entendidas como inconsequentes nesse estágio da vida, a atitude de jovens no sentido de se afirmarem lésbicas ou bissexuais, ou mesmo questionando sua identidade de gênero, tende a ser encarada como modismo ou algo transitório, apenas uma confusão desse período de descobertas.

Segundo Dayrell (2003), a/o jovem é considerado um “vir a ser”, razão pela qual há uma tendência do adulto de negar o presente por ela/ele vivido como espaço válido de formação, assim como as questões existenciais por ela/ele expostas. Nesse sentido, a construção de uma identidade de gênero e sexualidade sadia e representativa para as mulheres é bastante dificultada. Ademais, o que se espera de uma adolescente, dentro da ideia binária dos papeis de gênero, é que ela mantenha interesse nos meninos e comporte-se de modo a “conquistar” um casamento, com o objetivo de constituir uma família na vida adulta.

Jéssica narrou também os preconceitos enfrentados na escola em razão do gênero e da raça, demonstrando a existência de relação entre essas duas estruturas de dominação: o machismo e o racismo, com o agravante de que essas práticas são comuns não somente entre os estudantes, mas entre os professores da sua escola. Aqui, a conversa mais uma vez foi permeada pela questão de classe:

A gente é acostumado a conviver com professores machistas, professores racistas e a gente não pode falar nada, porque a gente não tem essa liberdade, e já na ocupação, é o que eu falei, nós temos basicamente a mesma “qualidade”, e mesmo se não tivesse, às vezes vem um pessoal conversar com a gente e a gente fala no mesmo grau, entendeu? É questão de respeito, sabe? Você pode gostar ou não da opinião das mulheres, questão de respeito. Porque também não tem essa questão de quem sabe mais, quem sabe menos, cada um tem seu conhecimento. Então, nossa movimentação, é exatamente o que a gente falou. Nosso sarau foi “Se essa escola fosse minha”, a gente fez tudo o que a gente queria que tivesse nossa escola: debate sobre negritude, porque escola pública [é frequentada] por pessoas de baixa renda e, infelizmente, a maioria dos pobres são negros, são pretos, então a gente cria esse debate, entendeu? Sobre racismo. […] porque quando as pessoas te olham negra, as pessoas já te “auto intitulam” que você não vai dar certo, entendeu? (Fala de Jéssica, 2017).

Esse trecho evoca a afirmativa de Patrícia Hill Collins (2016, p.107) de que as mulheres negras e pobres, tais como Jéssica, “têm uma visão mais nítida da opressão em relação aos grupos que ocupam uma posição mais evasiva em relação ao poder masculino branco”. Ao contrário das mulheres brancas, elas não têm ilusão de que sua brancura “irá anular a condição de subordinação feminina” e, de modo diverso dos homens negros, “não podem jogar a carta duvidosa da masculinidade com o objetivo de neutralizar o estigma de ser negro” (COLLINS, 2016, p.107).

Nessa linha de raciocínio, Sueli Carneiro (2011) alerta que, para as mulheres negras, não basta apenas superar as desigualdades geradas pela história hegemônica masculina, mas também suplantar ideologias complementares desse sistema de opressão, como o racismo. Ângela, no trecho a seguir reproduzido, também expressou a correlação entre machismo e racismo, na medida em que, em rodas de conversa das quais participa, procura esclarecer para as/os colegas brancos o que é racismo e para os meninos o que é machismo:

[…] porque antigamente eu ficava falando sobre racismo essas coisas, eu sempre falei porque eu gosto, eu sempre falei sobre esses temas, sabe? Tanto que ajudo meus amigos, que querem entender o feminismo e para os meus amigos e amigas brancas, para entenderem o racismo, só que eu sempre achei, tipo, será que isso está fazendo alguma diferença? Para as pessoas que falam: “Aham, estou ouvindo”. E na ocupação eu percebi que eu tenho voz e que é importante o que eu falo. E o nosso público é uma esponja, sabe? Então muitas das coisas que as pessoas falam, de algum jeito a gente absorve. E agora, foi assim que eu descobri que vou fazer ciências sociais (Fala de Ângela, 2017)

Para além do marcador gênero, a interseccionalidade nos faz refletir acerca do fato de que uma adolescente branca não carrega o mesmo peso social que uma negra. E ser uma adolescente negra e heterossexual também não é equivalente a ser uma adolescente negra e lésbica. A mulher negra é tida como última na pirâmide da hierarquia social e se essa mulher ainda tiver como características qualquer outro dos marcadores sociais aqui citados, estará ainda mais sujeita a ser alvo de preconceitos e sofrer discriminações.

Como aponta Aldenora Macedo (2016, p. 9), as questões de raça e de classe possuem uma histórica interlocução e interdependência, pois “vivemos ainda as mazelas da escravidão deixadas no percurso histórico e esse passado não permite, ainda hoje, a total emancipação da negra brasileira”. Esse passado vem sendo reconstruído paulatinamente por meio de ações de negligência, invisibilização e até mesmo aniquilamento da juventude negra[10].

A insatisfação com a escola e com a forma como algumas disciplinas são ministradas também foram demonstradas por Jéssica, em especial história, na qual não se via representada, vez que os personagens principais são, em sua maioria, homens e brancos. O trecho a seguir articula-se com as reflexões trazidas pelas epistemologias feministas, no seu esforço de visibilizar a versão dos povos vencidos e oprimidos, de forma a resgatar o significado da riqueza da sua própria história e cultura (NARAYAN, 1997):

A minha escola normalmente é uma escola que nos impõe tudo, nos impõe, e explicam na verdade errado […], porque a gente é obrigado ouvir que Cabral descobriu o Brasil, coisas falsas […] ninguém fala da África, porque isso sim é a nossa história […] e as minas na história gente, cadê? Eu nunca vejo mina na história. A que eu vi, foi a que fez besteira. É complicado né gente? Eu como negra, quero me sentir representada como mulher e como negra. As pessoas têm uma visão pequena de Zumbi entendeu […] não dá nem uma página [..] nossa população, grande parte da nossa população é negra, e a gente não tem isso, entendeu, e a maioria são mulheres e a gente não vê as minas na história. Porque ninguém fala da Dandara? Tantas mulheres importantes. Porque ninguém fala da Frida? Tanta gente inútil que colocam no livro de história e pessoas importantes que fizeram a diferença, não tem […] (Fala de Jéssica, 2017).

Podemos afirmar que o diálogo mantido com as estudantes protagonistas desta pesquisa nos possibilitou refletir sobre como a articulação entre esses sistemas discriminatórios – gênero, sexualidade, raça, geração e classe – é compreendida no cotidiano dessas jovens. O estudo interseccional permite uma maior percepção acerca das diversas e simultâneas relações assimétricas de poder existentes na sociedade, em face dos mais variados marcadores sociais e não somente aqueles identificados na relação binária homem/mulher. Como afirma Aldenora Macedo (2016, p.05), não se trata de apagar a ideia de identidade, pois é apoiado nela que se fazem possíveis as lutas e as resistências. “Seria exatamente o contrário, trata-se de enxergar no outro suas diferenças, mas não as transformar em desigualdades”.

  1. 4. Reflexões finais

 “É na rebeldia e não na resignação que a adolescência se afirma diante das injustiças”.

(Paulo Freire)[11]

Apoiadas nas entrevistas realizadas com Jéssica, Ângela e Lélia, personagens das ocupações de escolas no Distrito Federal no ano de 2016, identificamos as diversas interpelações entre as mais variadas caraterísticas sociais: gênero, sexualidade, raça, classe e geração.

Os achados desta pesquisa superaram a expectativa inicial pois, apesar de imbuídas do objetivo de pesquisar o protagonismo feminino nas ocupações, não presumíamos que a imbricação de marcadores sociais fosse tão acentuada na experiência das estudantes. Percebemos as implicações que essas interações trazem para o cotidiano escolar das garotas com quem dialogamos e, certamente, para as estudantes como um todo. Afinal, existem muitas Jéssicas, Ângelas e Lélias em nossas escolas. Assim como Ana Júlia, elas estão ali ansiosas para falarem e serem ouvidas.

Nesse sentido, as ocupações propiciaram à comunidade escolar uma nova forma de compreender a própria escola. Ao estabelecerem relações provisórias de poder, circunscritas naquele tempo/espaço da ocupação, as jovens experienciaram a escola do modo que gostariam que ela fosse. A partir do momento em que deixaram, ainda que provisoriamente, suas rotinas e passaram a compartilhar suas vidas e seus anseios, de forma autêntica, possibilitaram a explicitação e o questionamento desses sistemas discriminatórios, normalmente omitidos.

Com efeito, o que se verifica cotidianamente nas escolas é o modelo hierárquico de pouco falar e muito se ouvir, a denominada educação bancária combatida por Paulo Freire, na qual contestar não é visto como capacidade crítica e sim rebeldia e ausência de adequação. Na regularidade do ensino formal, essas garotas perderam a riqueza advinda das suas especificidades. Ao seguir-se à risca um padrão ainda autoritário de educação, elas se tornam apenas números nos variados diários de classe. Todas essas especificidades que cada estudante leva todos os dias às aulas seguem sendo ocultadas pelo atual modelo educacional.

Registramos, por fim, que os marcadores sociais aqui identificados surgiram de maneira espontânea, sem qualquer direcionamento das pesquisadoras, tendo sido suficiente oportunizar a fala e oferecer a escuta.  As ocupações parecem ter possibilitado às estudantes uma atuação mais autônoma e menos regulada que aquela tida em sala de aula. Nesse sentido, permitiu uma discussão mais crítica e pessoal das realidades socioculturais vivenciadas pelas jovens, ante a incapacidade do sistema de ensino de levar para a sala de aula a vida fora dos muros da escola.

Nesse cenário em que a educação brasileira torna-se, mais uma vez, palco de disputas políticas, temos agravantes que se voltam diretamente para os temas aqui tratados. As questões de gênero e sexualidade, tão naturalmente pronunciadas pelas nossas atrizes, atualmente são taxadas, por alguns grupos, como doutrinamento e subversão quando trazidas para as práticas pedagógicas. Mesmo com a existência de legislações educacionais determinando o trato desses assuntos em sala, essa temática muitas vezes é esquecida. Atualmente, em tempos de “Escola sem Partido”, esses assuntos tendem a ser condenados, passíveis de vigilância por parte da sociedade e da comunidade escolar, que acreditam nas ideias tendenciosamente pulverizadas na mídia e nas redes sociais, no sentido de que não é a escola que deve tratar esses temas, e sim a família.

Dessa forma, concluímos que a ocupação das escolas deixou seu legado ao mostrar a capacidade crítica e organizacional que da juventude. Ademais, colocou em relevo ainda a necessidade de as/os educadoras/es atenderem demandas urgentes e comuns a um país plural como o Brasil, onde a educação, ao sufocar-se com conteúdos alheios à vida real, oculta as especificidades de milhares de jovens, todos os quais com suas vulnerabilidades e potencialidades

Referência

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BANDEIRA, Lourdes Maria; ALMEIDA, Tânia Mara. A dinâmica de desigualdades e interseccionalidades no trabalho de mulheres de limpeza pública urbana: o caso dos garis. In: Mediações, Londrina, v. 20, n. 2, julho/dez. 2015, p. 160-183.

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CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro. Zahar, 2013.

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COLLINS, Patrícia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. In: Revista Sociedade e Estado. V. 31. N. o1. Janeiro/abril 2016.

NOTA

  1. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativas ao gênero. In: Estudos feministas. Ano 10. UFSC, 2002.
  2. DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. In: Revista Brasileira de Educação. N. 24. Set/Out/Nov/Dez 2003, p. 40-52.
  3. GALVAO, Clarissa. Contribuições da epistemologia feminista para uma crítica da ciência moderna. In: Teoria e Metodologia das Ciências Soc 2002. Disponível em: <http://quecazzo.blogspot.com.br/2012/04/contribuicoes-da-epistemologia.html>. Acesso em: junho 2017.
  4. GELEDÉS. Carta das Mulheres Negras 2015. Disponível em: <http://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2015/11/Carta-das-Mulheres-Negras-2015.pdf >. Acesso em: junho 2017.
  5. GOHN, Maria da Glória; BRINGEL, B.M. (Orgs). Movimentos sociais na era glo 2 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014.
  6. GOHN, Maria da Glória. Manifestações e protestos no Brasil: correntes e contracorrentes na atualidade. São Paulo: Editora Cortez, 2017.
  7. GROPPO, Luís Antonio. Juventude: ensaios sobre sociologia e história das juventudes modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.
  8. HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça. Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. In: Tempo social. Vol.26, nº01. Revista de Sociologia da USP, 2014.
  9. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Técnicas de Pesquisa. São Paulo: Editora Atlas, 2002.
  10. LUTE COMO UMA MENINA. Direção de Flávio Colombi e Beatriz Alonso. Documentário, 1’16”: São Paulo: 2016. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=8OCUMGHm2oA>. Acesso em: maio 2017.
  11. MACEDO, Aldenora Conceição. Gênero, Raça e Feminicídio: Discutindo interseccionalidade em pesquisas estatísticas e para políticas públicas. IV Simpósio Gênero e Políticas Públicas. Disponível em: <http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/GT5_%20Aldenora%20Concei%C3%A7%C3%A3o%20de%20Macedo.pdf >. Acesso em: julho 2017.
  12. Ser e tornar-se: meninas e meninos nas socializações de gêneros da infância. Brasília: Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (Mestrado) da Universidade de Brasília, 2017.
  13. _____ Um currículo para a equidade de gênero: A educação na perspectiva dos direitos humanos. In. MACEDO, Aldenora et al. In: Direitos Humanos: Diversas Abordagens. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2016. Disponível em <https://dhdiversasabordagens.wordpress.com/tag/ddhh/>. Acesso em abril 2018.
  14. MELLUCI, Alberto. Juventude, tempo e movimentos sociais. Juventude e Contemporaneidade. Brasília: UNESCO, MEC, ANPEd, 2007. In: Coleção Educação para todos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=648-vol16juvcont-elet-pdf&category_slug=documentos-pdf&Itemid=30192>. Acesso em agosto 2017.
  15. NARAYAN, Uma. O projeto da epistemologia feminista: perspectivas de uma feminista não ocidental. In: Gênero, corpo e conhecimento. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1997.
  16. PEREIRA, Rafael. OLIVEIRA, João Victor Pavesi. Governo Alckmin faz manobra estatística em estudo que justifica fechamento de escola. In: Universo Online. São Paulo, 2015. Disponível em < http://portal.aprendiz.uol.com.br/2015/12/01/governo-alckmin-faz-manobra-estatistica-em-estudo-que-justifica-fechamento-de-escola/ >. Acesso em: junho 2017.
  17. PEDROZA, Regina Lúcia Sucupira. Escola, Adolescência e violência: Construções sociais. In. AMPARO, Deise Matos et al. Adolescência e Violência: Intervenções e estudos clínicos, psicossociais e educacionais. Brasília Liber livro e Editora Universidade de Brasília, 2012.
  18. POLLO, Luiza. Discurso de aluna secundarista na Assembleia Legislativa do PR viraliza, 2016. In: Estadão Jornal Digital, 2016. Disponível em <http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,discurso-de-aluna-secundarista-na-assembleia-legislativa-do-parana-viraliza,10000084969>. Acesso em: maio 2017.
  19. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Disponível em <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1840746/mod_resource/content/0/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf > Acesso em: agosto 2017.
  20. TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Editora Atlas, 2008.
  21. UNESCO (2004). Políticas públicas de/para/com juventudes. Brasília: UNESCO
  22. UNIÃO BRASILEIRA DOS ESTUDANTES. UBES divulga lista de escolas ocupadas e pautas das mobilizações. In: União Brasileira dos Estudantes Secundaristas. São Paulo, 2016. Disponível em: <http://ubes.org.br/2016/ubes-divulga-lista-de-escolas-ocupadas-e-pautas-das-mobilizacoes/> Acesso em: junho 2017.


  Sistematizando experiências de AJP em ocupações urbanas de Ribeirão Preto-SP: apontamentos teórico-metodológicos[12]

Systematising experiences of AJP (Popular Legal Consultancy) in urban occupations in Ribeirão Preto – SP: theoretical and methodological notes

Ana Cláudia Mauer dos Santos[13]

Fabiana Cristina Severi[14]

Resumo: este artigo busca explicitar o percurso lógico que tem sido feito e refeito para delimitar o objeto de pesquisa, diante da complexidade do real, e a fim de subsidiar a prática profissional e militante. Apresentaremos tanto os pressupostos desta investigação-ação quanto de seus próprios resultados, ou seja, do quadro atual de reflexões que está sendo consolidado no contexto de um processo permanente de sistematização de experiências. A centralidade desta análise científica é problematizar o papel advocacia popular em conflitos fundiários urbanos, partindo do pressuposto de que esta atuação tem em vistas superar as contradições da questão urbana brasileira, de modo a emancipar os sujeitos envolvidos. Trata-se de refletir sobre como a participação de juristas no mesmo lado das coletividades de ocupações urbanas pode facilitar a garantia de direitos e, mais que isso, seu protagonismo. Inicialmente, apresentamos o materialismo histórico-dialético, marco teórico que permeia as experiências de lutas populares e assessoria jurídica. Em seguida, anunciamos debates sobre a objetividade do discurso científico, bem como metodologias de pesquisa fundamentadas na crítica à ciência moderna e ao colonialismo. Por fim, introduzimos conceitos de experiência e de história em Walter Benjamin, sobre os quais faz-se uma análise em formato de considerações finais.

Palavras-chaves: sistematização de experiências; assessoria jurídica popular; ocupações urbanas; educação popular em direitos humanos; pesquisa militante.

Abstract: this article aims to explain the route that has been done and redone to delimit the research object, alongside the complexity of the real, and in order to subsidize professional and militant practice. We present this investigation-action main procedures as well as its own results, which is the current frame of considerations that are being consolidated in a permanent process of systematization of experiences. The centrality of scientific analysis is to problematize popular advocacy’s role in urban contexts, starting from the assumption that this vision seeks to overcome the contradictions of the Brazilian urban question, in order to emancipate people involved. It is a reflection on how the participation of jurists on the same side of urban occupations collectivities can facilitate the guarantee of rights and, moreover, their protagonism. Initially, we present historical-dialectical materialism, a theoretical framework that permeates experiences of popular struggles and legal consultancy. Then, we announce the discussion about the objectivity of scientific discourse, the debates about analysis to modern science and colonialism. Finally, we introduce concepts of experience and history in Walter Benjamin, on which we propose a review of all that came before, as final considerations.

Keywords: systematisation of experiences; popular legal consultancy; urban occupations; popular education in human rights; militant research.

 

Introdução

            O presente artigo tem por objetivo apresentar parte da revisão bibliográfica sobre os referenciais teórico-metodológicos para os quais temos nos aproximado e que têm se mostrado úteis para compreender a realidade em que esta pesquisa está inserida. Nesse sentido, trata-se da apresentação tanto dos pressupostos desta investigação-ação quanto de seus próprios resultados, ou seja, do quadro atual de reflexões que está sendo consolidado no contexto de um processo permanente de sistematização de experiências. Inserimos este esforço científico não apenas dentro de um campo epistemológico compromissado com as lutas populares, mas enquanto parte de um processo de transformação social.

Se a proposta de realizar uma sistematização de experiências advém de realidades concretas e situadas de organização das reflexões e ações para uma práxis revolucionária, a incorporação desta solução metodológica como aprendizado é decorrência de verdadeira necessidade prática material e específica de militância, neste caso, em assessoria jurídica popular a ocupações urbanas em Ribeirão Preto, cidade média do interior de São Paulo, brasileira e latino-americana. Nessa esteira, todos os aportes reflexivos, que ora buscamos consolidar e comunicar em formato científico-acadêmico, são resultado deste movimento dialético entre teoria e prática, a fim de interpretar os desafios reais enfrentados pela assessoria jurídica e responder a estas demandas de maneira mais qualificada e efetiva.

            Quando afirmamos tal preocupação, a centralidade de tal ação-refletida e, pois, desta análise científica, está em problematizar o papel advocacia popular em conflitos fundiários urbanos, partindo do pressuposto de que esta atuação tem em vistas superar as contradições da questão urbana brasileira, de modo a emancipar os sujeitos envolvidos. Em outras palavras, trata-se de pensar (testar e reformular pensamentos e ações) em como a participação de juristas no mesmo lado das coletividades de ocupações urbanas pode facilitar a garantia de direitos e, mais que isso, o seu protagonismo nesse processo.

Este artigo busca explicitar o percurso lógico que tem sido feito e refeito pela pesquisadora para delimitar o objeto de pesquisa, diante da complexidade do real, e a fim de subsidiar a prática profissional e militante. Inicialmente, tecemos considerações sobre o materialismo histórico-dialético, marco teórico que permeia – ou, ao menos, em muito influencia – as experiências de lutas populares e assessoria jurídica. Em seguida, reúno comentários sobre metodologias de pesquisa fundamentadas na crítica à ciência moderna e ao colonialismo; apresentando, também, alguns debates sobre a objetividade do discurso científico. Por fim, introduzo conceitos de experiência e de história em Walter Benjamin, sobre os quais faço uma análise de toda a discussão, em formato de considerações finais.

  1. Materialismo Histórico-Dialético e Método Científico

Na perspectiva teórico-filosófica materialista histórico-dialética, o conhecimento científico, isto é, a teoria é a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa (MARX, [1857], 2011, p. 54-55). O percurso do/a pesquisador/a é, a partir do contato imediato com o real, buscar compreendê-lo para além dessa relação imediata, o que significa ir além da aparência empírica, fenomênica. É identificar as mediações que se processam, e desvendar as relações subjacentes, a fim de compreender a real estrutura e dinâmica do fenômeno investigado, apreender a sua essência.

Ao produzir análises, viabilizadas pelo método, o sujeito está reproduzindo, no plano do pensamento, no plano ideal, a essência do objeto. De outro modo, toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação [a aparência] e a essência das coisas coincidissem imediatamente. Logo, a teorização é o esforço de transposição da aparência em busca da essência, de elevação do abstrato ao concreto, que, para Marx, é o único modo pelo o cérebro pensante se apropria do mundo (MARX, [1857], 2011, p.55).

Explica José Paulo Netto (2011) que, na abordagem marxista, o conhecimento não resulta de operações repentinas, de intuições geniais ou de inspirações iluminadas, mas é produzido mediante aproximações sucessivas à realidade, fruto de uma longa elaboração teórica amadurecida a cada aproximação ao objeto sobre o qual se faz uma reflexão. A teoria seria, desse modo, a própria possibilidade de o sujeito reproduzir, em forma de pensamento, no plano das ideias, a realidade material (NETTO, 2011).

Sendo uma modalidade de conhecimento dentre outras, como a arte ou a prática da vida cotidiana, a teoria se distingue por ser o conhecimento do objeto – sua estrutura e dinâmica – tal como ele é em si mesmo, na sua existência real e efetiva. Teoria é, assim, o movimento real do objeto transposto para o pensamento, para as ideias, para a mente do/a pesquisador/a – é o real reproduzido e interpretado no plano ideal. E esse movimento ao qual se refere Marx decorre de sua própria concepção sobre a natureza do ser, que, para ele, é um movimento, produzido por uma unidade de contrários (NETTO, p. 21).

Compreender o mundo como a transformação em seu contrário é uma posição presente já na filosofia grega, porém, Hegel inaugura pensar o movimento como autodinamizado pelas contradições imanentes do ser em um processo constante e permanente. Para Hegel, esse movimento é um movimento do espírito, isto é, criado pelo pensamento humano. Logo, em cada momento histórico, a cada geração, a história da humanidade estaria sendo conduzida pelo pensamento, sendo identificada, portanto, como a própria consciência humana (NETTO, 2011, p. 31; TRIVIÑOS, 1987, p. 53).

Como Hegel, para Marx, a realidade, o ser, é, e ao mesmo tempo, um ir sendo outra, isto é, é ela mesma a sua negação. O tensionamento entre os contrários, seus embates mútuos, são um movimento interno ao próprio ser, sendo sua natureza o movimento permanente e incessante resultante da luta entre contrários. O ser é unidade contraditória, o movimento dialético entre contrários, sendo a mudança a ele, portanto, algo absolutamente circunstancial (OSÓRIO, 2014, p. 15; TRIVIÑOS, 1987, p. 69-73).

Entretanto, para o pensamento marxista, o movimento de oposição de contrários não é um movimento homogêneo, que supera o estado anterior por uma acumulação de em etapas, evolutivamente. A negação é a luta de forças que tensionam pela permanência e outras que negam o existente, uma verdadeira guerra dos contrários. Assim sendo, as forças que negam o existente, se assim prevalecerem superando a realidade anterior, o fazem num movimento heterogêneo, em que predomina o salto, a ruptura (OSÓRIO, 2014, p. 16; TRIVIÑOS, 1987, p. 69-73).

Ademais, e de maneira oposta a Hegel, para Marx (1845), a consciência humana é fruto das representações ideias sobre a realidade objetiva, a qual é anterior à consciência: não é a consciência humana que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. São os seres humanos de carne e osso que produzem as ideias: no curso de suas atividades reais que se desenvolvem as repercussões ideológicas desse processo vital. As ideias, então, não são autônomas, desligadas dessa origem e fundamento que é a realidade, produzida pela atividade humana. Por conseguinte, a consciência é nada mais que as interpretações do comportamento material de homens e mulheres, do seu processo de vida real (MARX-ENGELS, [1845], 1998, p. 18-19 e 24-25).

Importa destacar que este processo de vida real humana, para Marx, é nada mais que a realização de suas atividades materiais, a qual ocorre na sua relação com a natureza e com outros seres humanos, com diversas instâncias sociais. De tal afirmativa, decorre que o ser humano é um ser em relação, o que leva a Marx e Engels (1845) afirmarem que o ser humano é um ser social. Assim, o mundo sensível, é a soma dessa atividade viva e física dos indivíduos que a compõem (MARX-ENGELS, [1845], 1998, p. 35 e 45).

Seres humanos e realidade material se confundem no mesmo processo dialético, traduzindo-se o seu movimento de ruptura e superação como processo histórico:

A revolução, e não a crítica, é a verdadeira força motriz da história, da religião, da filosofia e de qualquer outra teoria. Esta concepção mostra que o fim da história não se acaba resolvendo em “consciência de si”, como “espírito do espírito”, mas sim que em a cada estágio são dados um resultado material, uma soma de forças produtivas, uma relação com a natureza e entre os indivíduos, criados historicamente e transmitidos a cada geração por aquela que a precede, uma massa de forças produtivas, de capitais e de circunstâncias, que, por um lado, são bastante modificados pela nova geração, mas que, por outro lado, ditam a ela suas próprias condições de existência e lhe imprimem um determinado desenvolvimento, um caráter específico; por conseguinte, as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias (MARX-ENGELS, [1845-1846], 1998, p. 36).

No sentido do exposto acima, as condições materiais que se apresentam no presente foram produzidas pelo processo de vida real, de atividade produtiva das gerações anteriores. E a geração presente, determinada pelas forças produtivas desse passado, também produz a realidade, criando as circunstâncias com as quais viverão as gerações futuras. Os seres humanos, mutuamente determinados e determinantes da realidade material, são, por conseguinte, sujeitos históricos. A possibilidade de transformação da realidade, a partir da superação de suas contradições é uma faculdade inerente e única da condição humana (MARX-ENGELS, [1845], 1998, p. 22-23).

Subvertendo a dialética idealista hegeliana, Marx e Engels (1845) inauguram a dialética materialista e histórica. O pressuposto filosófico materialista parte de premissas reais, sem nunca abandoná-las: seres humanos concretos, de modo algum isolados e definidos de modo imaginário, envolvidos num processo de desenvolvimento real em determinadas condições, o qual é empiricamente visível:

Desde que se represente esse processo de atividade vital, a história deixa de ser uma coleção de fatos sem vida, tal como é para os empiristas, que são eles próprios também abstratos, ou a ação imaginária de sujeitos imaginários, tal como é para os idealistas. É aí que termina especulação, é na vida real que começa, portanto, a ciência real, positiva, a análise da atividade prática, do processo, do desenvolvimento prático dos homens (MARX-ENGELS, [1845] 1998, p. 20).

Sendo assim, a consciência humana, enquanto reprodução ideal desta realidade, é também um produto social. As representações do mundo sensível são linguagem, ou seja, a consciência real, prática, que existe para si mesmo e também para outros, que aparece pela necessidade dos intercâmbios, da apreensão do mundo real e das trocas entre homens e mulheres. Logo, para Marx e Engels (1845;1847), diferente de Hegel, a consciência humana é a linguagem da vida real, o próprio ser consciente (MARX-ENGELS, [1845], 1998, p. 46-47; MARX, [1847], 2009, p. 245 e 250).

Por conseguinte, as ideias, as representações do real, que são a consciência, podem ser transformadas pelos seres humanos na medida em que mudam as condições materiais: são os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos de seu pensamento (MARX-ENGELS, [1845] 1998, p. 20; MARX, [1847], 2009, p. 250).

As aproximações sucessivas ao objeto para a produção de teoria são, pois, uma busca por compreender as atividades materiais práticas no processo de vida real dos seres humanos, ou seja, que relações compreendem o fenômeno o qual se pretende conhecer, e que incidem na interação do(a) pesquisador(a) com o objeto investigado. Os fenômenos sensíveis são conformados por uma síntese de relações sociais que se entrelaçam e se expressam de diferentes maneiras. Como interpreta, Netto (2011), tais relações são fruto de uma cadeia de determinações que distinguem aquela específica sociedade, região, modo de produção, enfim, determinado fenômeno social de outros (NETTO, 2011).

A relação cotidianamente estabelecida com a realidade objetiva pelos seres humanos no seu desenvolvimento prático é uma relação imediata, isto é, é uma interação que simplifica a complexidade da teia de relações que conformam o próprio objeto de investigação e nossa interação com ele. Essa relação se dá por operações da linguagem, mediações realizadas nessa relação com o mundo real, pelas quais abstraímos o fenômeno de sua concretude, construindo uma representação ideal mais simples do que é complexidade do real (MARX, [1847], 2009; NETTO, 2011).

Pesquisar é tornar consciente tais mediações, identificar os traços pertinentes àquele objeto e, assim, conhecê-lo determinadamente. Quanto mais se determinar essas relações, mais é possível se aproximar da estrutura e dinâmica real do objeto. A análise teórico-científica é justamente o processo de identificar as relações que se interconectam, e estas são tão mais complexas na medida em que mais concretas são, encerrando em si mais determinações. Começa-se, então, pelo real e concreto apreendido pelo sujeito, que são os dados. Pelo processo de análise, um ou outro elemento é abstraído. Abstrações são representações ideais que buscam explicar essas interconexões, portanto, simplificações da complexidade de determinações do concreto, também chamadas de categorias.

Com o avanço da análise, à medida que se consegue explicar mais relações e interconexões, as categorias vão se tornando mais simples, remetendo a determinações menos complexas, processo pelo qual se chega aos conceitos: generalizações válidas para um conjunto mais amplo de determinações. As categorias, das quais derivam conceitos, são reais, são formas materiais de ser; formas de existência do ser social, à qual passamos apenas a dar nome no processo de aproximações sucessivas ao objeto. Não são, portanto, apriorísticos, estanques e imutáveis, mas são apreendidos a partir do contato com o real, num processo de abstração, desenvolvidos, pois, no próprio processo de pesquisa.

Sua utilidade é genuinamente histórica, sendo circunscrita àquelas circunstâncias materiais, e só subsistindo a partir da observação sistemática de um objeto específico, um fenômeno social particular. Não se trabalha, portanto, com definições, pois as categorias remetem a relações e não a uma identidade, a coisas em si. Trata-se da reprodução ideal do movimento real do objeto determinado sob investigação, compreendendo, assim, a dimensão dialética do ser (MARX, [1847], 2009, p. 126; NETTO, 2011, p. 34-35 e 42).

Com efeito, depois de alcançar as determinações mais simples, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com uma categoria mais complexa, mais concreta, mas desta vez não como uma representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de determinações e relações diversas (MARX, [1857], 2011, p. 54). E, segundo Netto (2011) esta viagem de volta que caracteriza, para Marx, o método adequado para a elaboração teórica (NETTO, 2011, p. 43):

O último método é manifestamente o método cientificamente exato. O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento (MARX, [1857], 2011, p.54).

O conhecimento teórico é, nessa medida, para Marx, o conhecimento do concreto, mas que não se oferece imediatamente ao pensamento: deve ser reproduzido por este e só a “viagem de modo inverso” permite esta reprodução, produzindo um conhecimento concreto, o concreto pensado. Segundo Netto (2011), abstração é a capacidade intelectiva que permite extrair da contextualidade determinada do objeto (de uma totalidade) um elemento, isolá-lo, e examiná-lo, retirando deste elemento suas determinações mais concretas, até atingir determinações as mais simples (NETTO, 2011, p. 44).

Atingir determinações mais simples é o próprio processo de abstração, o qual impõe, necessariamente, uma simplificação da totalidade da qual a abstração foi extraída. A complexidade está na concretude do real, assim sendo, o abstrato só se concretiza porquanto está saturado de muitas determinações, já que a realidade concreta é a síntese de muitas determinações, a unidade do diverso, a própria totalidade. Destarte, tanto mais se reproduzem idealmente as múltiplas determinações do objeto, tanto mais o pensamento reproduz a sua riqueza real, em sua estrutura e dinâmica, sua concreção.

Verifica-se o que seria, portanto, reproduzir idealmente a realidade tal como ela é em suas concretude e complexidade, a reprodução ideal do movimento real do fenômeno observado. Sintetiza Netto (2011) o método marxista de produção de teoria aquele que compreende o processo investigativo científico tanto como um processo de abstração quanto um processo de concretização, tendo em vista que a representação ideal elaborada consiga apreender efetivamente a estrutura e dinâmica do objeto, isto é, ser mais fiel possível ao seu movimento real (NETTO, 2011, p. 43-44).

Logo, a reprodução ideal dos processos sociais reais pela consciência humana, ou seja, a produção teórica de conhecimento, não é um reflexo mecânico, com o pensamento “espelhando a realidade tal como um espelho tem a imagem diante de si”, o que implicaria um papel passivo do sujeito. Pelo contrário, utilizando o método materialista histórico-dialético, o sujeito deve mobilizar um máximo de conhecimentos, criticá-los, revisá-los, devendo usar de imaginação e criatividade para apreender a essência do objeto. O papel do sujeito é, portanto, fundamental no processo de pesquisa (NETTO, 2011, p. 25).

A relação entre sujeito e objeto não é uma relação de externalidade, uma vez que o/a pesquisador/a faz parte do mundo, da sociedade. Portanto, as circunstâncias materiais concretas também o constituem enquanto sujeito particular, assim como este, em seu processo de vida real, desenvolve atividades que produzem essa realidade objetiva, construindo essa totalidade. A historicidade é constitutiva da relação sujeito/objeto, de tal forma que “o sujeito está dialeticamente implicado no objeto” (NETTO, 2011, p. 23).

Estando sujeito/objeto mutuamente implicados, é impossível sustentar a máxima positivista de objetividade do conhecimento científico baseado numa neutralidade do sujeito pesquisador em relação ao objeto. Merece destaque o fato de que a perspectiva marxista pressupõe a existência da verdade e sua busca pela ciência e, mais que isso, a impossibilidade de construção neutra do conhecimento teórico não exclui sua objetividade, pois sua instância de verificação, o seu fundamento de verdade, é a própria prática social e histórica (TRIVIÑOS, 1987, p. 63-64; NETTO, 2011, p. 23).

  1. A Crítica epistemológica feminista: objetividade científica e lugar de fala

Este esforço de autorreflexão é baseado numa posição de compromisso com o contexto da advocacia popular e da superação da questão urbana, um engajamento que se pretende sistemático, de modo a se evitar um ativismo espontâneo e ingênuo. Para tanto, de acordo com Guerreiro Ramos (1958), é necessário partir de uma crítica radical sobre os fundamentos da ciência e da produção científica, para pensar a realidade nacional (brasileira e latino-americana) sem apenas reproduzir como mera cópia os postulados estrangeiros, de modo a romper com a “servidão intelectual” (RAMOS, [1958], 1996).

Conforme defende o autor, o conhecimento produzido por esta investigação busca contribuir para a promoção histórica de uma coletividade, no sentido de que a experiência específica que subsidia nossas análises não apenas está inserida e determinada por uma totalidade, mas se dirige a esta comunidade mais ampla. Para Guerreiro Ramos (1958), não é possível sermos intelectuais desintegrados da totalidade do mundo, nossa existência supõe um a priori histórico social, não sendo possível neutralizar o efeito condicionador do pesquisador sobre a atividade científica (RAMOS, [1958], 1996).

A consciência ingênua, para o autor, seria, justamente, não perceber a implicação recíproca do ser humano e do mundo e, assim, supor a existência de uma ciência livre de condicionamentos. Nas suas palavras, vivemos necessariamente a visão de mundo de nossa época e de nossa nação, sejamos conscientes ou não disso. Há, de todo modo, o que o autor denomina de engajamento vital a partir do qual as coisas adquirem sentido para nós e, destarte, apenas assim as coisas podem adquirir algum sentido, ou seja, condição da possibilidade de conhecimento (RAMOS, [1958], 1996, p. 107-108).

Ainda conforme Ramos (1958), uma vez que o ser humano está implicado em sua realidade social, todo fazer humano também implica uma “interpretação” das coisas que manipula, como todo teorizar é extensão do fazer ao nível da representação. Por isso, entende como ilegítimo distanciar em dois extremos teoria e prática. O ser humano teoriza a partir de sua ocupação, de sua prática, sendo a reflexão o que torna explícita e exprime, de modo elaborado, a virtualidade implícita no agir humano. A ideia de implicação do ser humano no mundo é, para ele, pressuposto da totalidade (RAMOS, [1958], p. 108).

Diante disso, Guerreiro Ramos (1958) defende uma produção de conhecimentos sociológicos que incorporem ao trabalho teórico a perspectiva existencial do pesquisador. Tal exigência se faz especialmente importante para os países subdesenvolvidos, para os quais as teorias advindas dos países centrais não refletem a prática social particular. Para o autor, esta preocupação se faz mais sensível na medida em que o projeto de uma região atrasada não afeta, não configura o destino de um europeu ou de um norte-americano. Mas configura normalmente o destino dos naturais desta região (RAMOS, 1958, p. 110)

Tendo em vista superar este limite, Ramos (1958) defende um esforço de redução sociológica, qual seja proceder à assimilação do conhecimento produzido em outros países de maneira adequada, um processo de “desideologização” do paradigma hegemônico, de modo a adotar, em caráter sistemático, o ponto de vista universal da comunidade humana. Sua preocupação é com as demandas por uma articulação interna e ordenação teórica própria dos países periféricos:

Nos países periféricos, é a adoção sistemática de um ponto de vista universal orientado para o futuro que possibilita a redução sociológica. É o imperativo de acelerar, de modo historicamente positivo, a transformação de contextos subdesenvolvidos que impõe ao cientista de países periféricos a exigência de assimilar não mecanicamente o patrimônio científico estrangeiro (RAMOS, [1958], 1996, p. 110).

Enquanto países periféricos permanecerem com o pensamento e práticas voltadas para fora, referidos a um centro dominante que lhes é exterior, não apresentarão a condição que os habilitaria à prática da redução sociológica. Assim, se quiserem obter capacidade autodeterminativa, é necessário fundar a sociedade sobre critérios próprios, algo, para o autor, ainda por fazer. Daí as potencialidades que Ramos (1958) vislumbra na assunção pelo intelectual de uma postura de engajamento (RAMOS, [1958], 1996, p. 110-111).

Situado em seu próprio contexto histórico, Guerreiro Ramos almeja a superação da posição subordinada do Brasil no contexto mundial, diante de um processo de expansão capitalista que restringiu seu desenvolvimento produtivo e intelectual como foi possível nos países centrais. Marcado por uma perspectiva marxista de historicidade dos sujeitos, situados diante uma totalidade estruturante, bem como pela ideologia do desenvolvimento, ele acredita ser possível construirmos uma nação soberana, assim como um conhecimento autônomo, na medida em que reconheçamos o necessário engajamento vital que permite qualquer forma de teorização, e busquemos superar as visões eurocêntricas ao criar teorias sociais a partir de nossas próprias experiências, recolocando o discurso universalizante.

Nesse âmbito, entretanto, há uma ampla diversidade de experiências ainda subalternizadas diante dos imperativos de objetividade, totalidade e universalidade do conhecimento, mesmo dentro do campo prático e reflexivo direcionado à emancipação. Reflexionando sobre a produção e validação da ciência – e frisa-se, sem fundamentar-se numa relativização do real e na impossibilidade da verdade –, há contribuições recentes que colocam em dúvida a objetividade para além da crítica aos processos de dominação, especialmente do campo das teorias críticas feministas e estudos da subalternidade.

Linda Martín Alcoff, em “Uma epistemologia para uma nova revolução” (2016), por exemplo, afirma a necessidade de oferecer uma análise nova e revolucionária para a teoria social crítica, projeto ainda incompleto, do qual Marx, apesar de o ter feito em relação à economia política, não ofereceu uma crítica radical da legitimação do conhecimento. O direcionamento a uma visão positivista, ao autoritarismo patriarcal e ao capitalismo burocrático a que o marxismo teria se voltado ao longo do século XX estaria, para a autora, ligado a este esquecimento (ALCOFF, 2016).

São circunstâncias políticas de atribuição e distribuição de autoridade, de modo que certos lugares, processos e metodologias são valorizados enquanto outros são desprezados, espelhando a produção de teoria a própria produção de desigualdades sociais. Por isso, o problema epistemológico é central, e cientificismo, positivismo, autoridade masculina, elitismo e eurocentrismo devem ser desembaraçados do processo pelo qual um conhecimento libertador é desenvolvido (ALCOFF, 2016, p. 130).

Assim, não basta situar no centro tão somente as condições objetivas da opressão, mas a sistemática desautorização da perspectiva interpretativa dos oprimidos do Sul Global, a qual inibe encontros dialógicos e coalizões epistêmicas críticas mediante novas soluções podem se desenvolver. Além de estratégias para bloquear assimilação acrítica e evitar a repetição de um imperialismo epistemológico ocidental, é urgente normatizar sobre a epistemologia, redefinindo marcos para alcançar a verdade. Haveria, portanto, um excesso de epistemologias críticas e escassez de epistemologias reconstrutivas, sendo necessário empreender o que ela chama de “projeto decolonial e reconstrutivista”: a luta política é, em última instância, travado no plano da verdade (ALCOFF, ANO, p. 132).

Donna Haraway (1987) também alerta para a importância de ir além da denúncia de uma ciência enviesada, sendo necessário insistir, também, numa explicação melhor do mundo, não sendo suficiente apenas mostrar a contingência histórica radical e os modos de construção de tudo. A partir do que Sandra Harding (1986) denomina de “projeto de um ciência sucessora”, Haraway retoma a ideia de que é preciso desmascarar as doutrinas da objetividade, na medida em que elas continuam a silenciar subjetividades e atuações históricas coletivas, versões corporificadas da verdade (HARAWAY, [1987], 1995, p. 15).

Em “Saberes Localizados”, a autora oferece questões e postulados interessantes para concebermos uma epistemologia crítica inserida numa política de posicionamentos engajados e responsáveis com processos de libertação. Para ela, o conhecimento que se pretende universal é aquele que afirma pertencer a todos os lugares e, portanto, a nenhum efetivamente. Tal perspectiva guardaria uma pretensão de estar livre de interpretações, de representação, portanto, descompromissado com a própria realidade (HARAWAY, 1987).

Estas imagens visionárias buscam transcender todas as demais, visões de cima que dizem por toda a humanidade as quais elas próprias produzem saberes subjugados, isso porque este olhar inscreve miticamente todos os corpos, marcando-os em contraposição a si mesmo, categoria não marcada que alega ter o poder de ver sem ser vista, de representar escapando à representação. Desse modo, para ela, não precisamos de uma doutrina da objetividade que prometa a transcendência, uma narrativa que perca o rastro das mediações, especialmente isentando de responsabilizações (HARAWAY, 1987).

A fantasia de imortalidade e onipotência latente nos discursos de objetividade científica são, para Haraway (1987), releituras de ordenações hierárquicas e positivistas a respeito do que pode ter validade como conhecimento. A autora propõe uma divisão dos sentidos, uma confusão entre voz e visão, mais que ideias claras e distintas, o que chamaríamos de racional. Conhecer racionalmente, então, trata-se mais da junção de visões parciais e de vozes vacilantes numa posição coletiva de sujeito que promete uma visão de meios de corporificação finita e continuada, de viver dentro de limites e contradições, isto é, visões desde algum lugar (HARAWAY, 1987, p. 34).

Logo, o conhecimento racional é um processo de interpretação crítica contínua, uma conversa sensível e honesta, que desnuda o poder. Ao invés de encerrar o mundo dentro de uma única visão que pretende ser total sem ser possível efetivamente sê-lo, a ciência é concebida não como um fechamento, mas como possibilidades em construção, do que é contestável e contestado. Não se trata de furtar-se à compreensão das múltiplas e complexas relações sociais que estruturam a dominação e a exploração, mas de uma responsabilização sobre o olhar, uma prestação de contas sobre a própria condição situacional, histórica, de uma interpretação do e no mundo (HARAWAY, 1987).

Estou argumentando a favor de políticas e epistemologias de alocação, posicionamento e situação nas quais parcialidade e não universalidade é a condição de ser ouvido nas propostas a fazer de conhecimento racional. São propostas a respeito da vida das pessoas; a visão desde um corpo, sempre um corpo complexo, contraditório, estruturante e estruturado, versus a visão de cima, de lugar nenhum, do simplismo (HARAWAY, 1987, p. 30).

Construir saberes localizados é, desse modo, afirmar suas próprias determinações históricas, situar a particularidade dentro da totalidade, o que pressupõe e requer um olhar sobre o “outro”, sobre o mundo, o objeto do conhecimento, também como um ator e agente, não como uma tela em branco, um terreno a ser desbravado, um recurso à serviço da apropriação humana, isto é, uma relação que não se erija em um ser, onipotente e onisciente, em oposição a um outro, escravo da autoridade do conhecimento “objetivo”:

Explicações de um mundo “real”, assim, não dependem da lógica da “descoberta”, mas de uma relação social de “conversa” carregada de poder. O mundo nem fala por si mesmo, nem desaparece em favor de um senhor decodificador (HARAWAY, 1987, p. 37).

A objetividade feminista abre espaço, então, para as surpresas e ironias no coração de toda produção de conhecimento, tão logo não nos projetamos mais como um ser no comando do resto do mundo. A objetividade não diz respeito, para a autora, a um desengajamento, pelo contrário, reclamar a corporificação, as esperanças de parcialidade, objetividade e conhecimentos localizados é o que ela compreende como fazer ciência, como produzir conhecimento racional, intentado a partir do estabelecimento de conversas não inocentes, e de nossas próprias visões corporificadas, potencializando interpretações e codificações, as múltiplas e diversas aproximações ao real (HARAWAY, 1987, p. 38).

Assim, podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver, permitindo uma construção mais honesta do conhecimento, uma vez que situado, ou seja, localizável seus postulados, torna-se responsável, capaz de prestar contas (HARAWAY, 1987, p. 22). Nessa esteira, Djamila Ribeiro (2017), a partir de uma revisão de literatura sobre o debate sobre o “lugar de fala”, que tem se popularizado nos últimos anos no Brasil, especialmente via redes sociais, explica que reclamar o lugar de fala é, também, permitir que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social, consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição de lugares de grupos subalternizados (RIBEIRO, 2017, p. 64).

Não se visa, portanto, de modo algum, restringir a troca de ideias, encerrando e impondo uma visão única. Não se trata, tampouco, de relativizar a verdade, mas é um chamado à reflexão, ao desvelamento de processos históricos que colocam determinados grupos em posições subalternas. Situar o lugar de fala é, segundo a autora, explicitar honestamente as visões de mundo, isto é, uma localização social. Não interessa a realização de um tal movimento epistêmico, sustentando a fala na voz de ninguém, quem sempre teve voz, e nunca precisou reivindicar a sua humanidade (RIBEIRO, 2017, p. 90).

De acordo com Collins (1997), rebatendo uma crítica de que situar a localização da fala refere-se tão somente à experiência de indivíduos, a autora defende que uma teoria do ponto de vista refere-se a experiências historicamente compartilhadas e baseadas em grupos com certo grau de continuidade ao longo do tempo, de tal sorte que as realidades de grupo transcendem as experiências individuais. O debate seria, portanto, estrutural, porque se trata de entender como o lugar social opera oportunidades (COLLINS, 1997).

Ribeiro (2017) retoma a crítica do “feminist standpoint”, para a qual também vêm contribuindo e disputando autoras negras e periféricas, diante da necessidade de se enfrentar a universalização da categoria mulher, sendo imprescindível trabalhar outras intersecções como raça, orientação sexual, identidade de gênero, entre outras. Para Lélia González (1984), basear as análises no capitalismo patriarcal não é suficiente para responder às situações de mulheres negras e indígenas da América Latina, devendo incluir a opressão racial (GONZÁLEZ, 1984).

Não apenas mulheres, mas mulheres negras vêm produzindo insurgências contra o modelo dominante e promovendo disputas de narrativas, de modo a criticar o privilégio epistêmico decorrente do privilégio social, cuja hierarquização legitimou como superior a explicação epistemológica eurocêntrica, conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento válido, estruturando-o como dominante e, assim, inviabilizando outras experiências de conhecimento (RIBEIRO, 2017, p. 25).

Falarmos de lugar de fala é, para Giovana Xavier (2017), nos atentarmos para as histórias que não são contadas, sendo pauta do feminismo negro restituir humanidades negadas (XAVIER, 2017). Nesse aspecto, segundo Patricia Hill Collins (2016), evidenciar o lugar de fala é também que estes segmentos sociais tomem para si a tarefa de se autodefinirem, valorizando a consciência de seu próprio ponto de vista. Retirar-se do lugar de outro objetificado é, para Collins (2016), uma importante forma de resistir à desumanização essencial aos sistemas de dominação (COLLINS, 2016).

Dessa forma, o ato dos sujeitos subalternos e de reivindicar a fala, de falar a partir de seu lugar de fala e reclamar que os demais também o façam é um ato de quebra de um sistema vigente que inviabiliza tais narrativas. Conforme Alcoff (2016), para descolonizarmos o conhecimento, precisamos nos ater à identidade social, não apenas a fim de evidenciar sua criação pelo próprio projeto de colonização, que criou tais identidades, assim como para mostrar que há identidades historicamente silenciadas e desautorizadas e outras são fortalecidas no campo epistêmico (ALCOFF, 2016).

Assim, além de refutar a neutralidade epistemológica, para uma mudança social, faz-se necessário reconhecer outros saberes, sendo, para tanto, da maior importância entendê-los como localizados, evidenciando esta realidade histórica de modo a romper com o silêncio. Pensar lugares de fala é desestabilizar, criar fissuras e tensionamentos, fazer emergir contra-discursos, discursos contra hegemônicos, não apenas porque visam quebrar a norma, mas porque partem de outros referenciais e geografias, porque reivindicam outras possibilidades de resistência e reexistência (RIBEIRO, 2017).

            Diante do exposto, acreditamos que as discussões ora apresentadas são úteis não apenas pelos apontamentos críticos em relação à assimilação de teorias sem considerar o contexto material em que foram produzidas e das relações de poder que elas evocam, mas também, e, sobretudo, pela defesa da produção de conhecimentos via engajamento político sem medo de se assumir parcial, além de responsável por não incorrer em silenciamentos.

  1. Em busca da práxis: pelo conhecimento para além da dicotomia sujeito/objeto

Além da crítica ao processo de produção de conhecimento, e todas as implicações políticas de sua enunciação e validação pelo paradigma científico hegemônico, para que caminhemos em direção a uma atuação que contribua para transformações reais e efetivas na sociedade, faz-se presente, de acordo com Bringel e Versiani (2016), a necessidade de construir metodologias de investigação e ação social capazes de orientar e produzir uma atuação responsável e ética (BRINGEL; VERSIANI, 2016).

É bem verdade que, ao menos nos casos apresentados acima, as análises ora apresentadas sobre o debate teórico-epistêmico são desenvolvidas a partir de experiências militantes. Todavia, estas aparecem como conclusões deste processo, sendo interessante, outrossim, resgatar os processos que as engendraram, isto é, os percursos metodológicos que foram sendo desenhados, as experiências de articulação entre teoria e prática, como se deram as interrelações entre coletividades organizadas, intelectualidade e espaços de produção de conhecimento (BRINGEL; VERSIANI, 2016).

A partir deste esforço, é possível (re)pensar os contornos e possibilidades de se realizar, hoje, pesquisas militantes, entendidas pelos autores como um espaço amplo de produção de conhecimento orientado para a ação transformadora, que articula ativamente pesquisadores e movimentos sociais. Dentre as características que apontam para compreendermos atividades de pesquisa militante, estão:

1) a valorização da dimensão da experiência e da prática social; 2) a importância da participação dos setores populares no processo de produção de conhecimento; 3) a conexão das perspectivas de produção de saber com concepções de mundo mais amplas; 4) a necessidade de uma retroalimentação contínua entre as atividades de investigação e de pesquisa e as ações, o que representa a elevação da qualidade e do conteúdo tanto da teoria quanto da prática dos grupos sociais em processo de constante formação (BRINGEL; VERSIANI, 2016).

 Nesse espectro, há uma ampla diversidade de experiências que combinam a mobilização social e a construção de saberes científicos, engendradas nos processos de resistência e enfretamento popular a regimes autoritários e opressões estruturais do modo de produção capitalista. Em termos de aproximação aos espaços científico-acadêmicos, os contornos de tais experiências vão se delineando especialmente a partir da segunda metade do século XX (BRANDÃO; STRECK, 2006; BRINGEL; VERSIANI, 2016).

Se esta é uma realidade nos países periféricos do sul global, na América Latina, entre os anos 1970 e 1980, foram pioneiras as experiências de Orlando Fals-Borda e Paulo Freire, expressões deste momento histórico e que inauguram uma tradição latino-americana deste tipo de prática reflexiva orientada para a transformação social, cunhada por estes autores como pesquisa participante (BRANDÃO; STRECK, 2006).

Para Paulo Freire (1967), a transformação social é um processo de libertação dos sujeitos, de libertação da condição de opressão. A libertação é possível a partir do processo de conscientização dos oprimidos sobre sua condição de opressão, uma condição histórica, construída em sociedade, não natural. A conscientização é fundamentalmente em relação, é um processo de troca com o mundo e a sociedade histórica, pois somente através da ação e reflexão humanas, numa relação dialética, há a construção de uma consciência dos sujeitos sobre sua historicidade, capaz de produzir uma ação-refletida que transforme a realidade (FREIRE, 1967; 1970).

Desse modo, um processo de produção de conhecimentos para a libertação, isto é, que promova a transformação social, depende de um processo de conhecer que crie solidariedades, um processo eminentemente educativo, em que não há uma relação hierarquizada entre sujeito e objeto que conhece, mas a troca, de forma mais horizontal, por haver uma valorização dos saberes e experiências dos envolvidos. Conhecer o mundo, para Freire (1988), é transformá-lo, num processo permanente de busca, do ser mais, um processo de conscientização do ser humano sobre sua condição (FREIRE, 1988).

De acordo com Orlando Fals-Borda (1978), é possível construir um conhecimento sociológico tendo em vistas a libertação, desde que vinculadas ao engajamento do pesquisador junto às classes subalternas, um conhecimento produzido através da práxis social. Para o autor, a produção de conhecimentos a partir da práxis imbrica o pessoal e o político, o objeto e o sujeito, de tal modo a permitir o exame de sua trajetória, sua posição no mundo, diante de múltiplas determinações (FALS-BORDA, 1978).

Trata-se de um conhecimento, por ser vinculado a uma prática histórica específica, também associado aos contextos locais e regionais, aos saberes populares daquelas experiências particulares. Nesse âmbito, o método desenvolvido para a construção coletiva do conhecimento é tão situado historicamente quanto os sujeitos que o desenvolvem, como recursos confeccionados durante o processo de compreensão da realidade, a partir de suas condições específicas (FALS-BORDA, et. al., 1972).

Nessa esteira, podemos compreender o presente esforço científico como parte de um processo de sistematização de experiências, conforme o entendimento de Oscar Jara Holliday (2006a), educador popular e sociólogo peruano-costarriquenho, para quem o ato de sistematizar é o processo de objetivar criticamente o que foi vivenciado, para, então, ser capaz de, com uma nova consciência, transformar a realidade. É o compromisso de compreender o vivenciado, extrair seus ensinamentos, melhorar nossas práticas e contribuir para o enriquecimento da teoria, e comunicar o aprendizado (JARA, 2006a).

Baseado numa concepção materialista histórico-dialética, Jara (2006a) concebe a sistematização de experiências como o próprio compromisso com o processo de estarmos constantemente refletindo nosso fazer, buscando compreender as determinações que conformam a realidade, a fim de transformá-la. Logo, cada caso específico de luta, cada iniciativa de educação popular, organização popular ou promoção social, são processos particulares que fazem parte de uma prática social e histórica mais geral, igualmente dinâmica, complexa e contraditória (JARA, 2006a, p. 21).

Assim, nossas experiências particulares reais são o próprio processo histórico em movimento e, portanto, guardam as contradições sociais históricas passíveis de serem superadas. A partir da dedicação à compreensão de nossas práticas e das dinâmicas sociais daquele caso específico, contribuímos para a transformação estrutural da realidade, uma vez que a ação refletida, mais consciente e politizada, é capaz de surtir efeitos concretos da mudança que almejamos (JARA, 2006a).

A sistematização é mais que a disponibilização de momentos para o planejamento, execução e avaliação institucionais, ou da preocupação com o registro da experiência. É uma ordenação e reconstrução que permite descobrir/explicitar a lógica do que foi vivido, os fatores que intervieram nesse processo, como se relacionam entre si e por que o fizeram desse modo. Implica, portanto, a objetivação ordenada da experiência, para obtermos conclusões que sirvam para melhorar a prática, fazendo-a mais coerente (JARA, 2006a).

As avaliações constantes permitem superar os vazios, reafirmar os pontos fortes, insistir nos fatores cujo comportamento demonstrou que são sinérgicos e para não repetir o que muitas vezes foi fator de debilidade ou desgaste na perseguição dos objetivos daquele trabalho (JARA, 2006a, p. 31).  Em sendo um processo permanente e cumulativo de criação de conhecimentos a partir de nossa própria experiência de intervenção num contexto particular, compreende-se, ademais, como um primeiro nível de teorização, situando-se no difícil e pouco transitado caminho intermediário entre a descrição de uma experiência e a reflexão teórica (JARA, 2006a, p. 45).

Isso porque tal processo requer a busca de conhecimentos teóricos, e a própria reflexão teórica a partir da prática permite a teorização dessa experiência, contribuindo para a construção do conhecimento sobre a realidade social. Assim, a sistematização de experiências, ao mesmo tempo contribui ao enfrentamento dos desafios concretos de uma demanda específica, permite contribuir para a construção de uma teoria de base popular, fundamentada nos processos históricos vivenciados (JARA, 2006a, p. 36).

Nesse aspecto, é importante ressaltar que, para Jara (2006b), as experiências são processos individuais e coletivos, que não podem ser entendidas como simples ações, fatos pontuais, pois são sócio-históricos, dinâmicos e complexos. Estão, por definição, sempre em movimento, intervindo a todo tempo os mais diversos elementos, o que o autor exemplifica como condições do contexto (condicionantes econômicas, sociais, políticas locais, nacionais e mundiais), e situações particulares (geográfica, institucional, pessoal). Ademais, são as experiências carregadas de subjetividade, uma vez que são constituídas não apenas por meras ações, mas por percepções (sensações, emoções, interpretações).

            Nas suas palavras, em uma experiência não há somente fatos e coisas que passam, mas há também pessoas que sentem, vivem e fazem coisas. Sendo assim, as experiências são marcadas pelas características dos sujeitos, mulheres e homens que as vivem, as quais são pessoas com expectativas, sonhos, temores, esperanças, ilusões, ideias e intuições. Mais que isso, além de impregnarmos com nossa marca tais atividades, estes processos também nos impactam, condicionam, exigem-nos, nos fazem ser (JARA, 2006b, p. 228).

Os resultados das ações que se realizam, ou não se realizam em relação ao que era esperado e como fomos lidando com novos elementos, produzem, por sua vez, também, reações em outras pessoas, grupos, provocam novas situações. Jara (2006b) salienta que nossa intervenção no mundo gera reações em cadeia, produzindo novas realidades que inexistiam antes de nossa ação. Não só a história não é predeterminada como estamos sendo à medida em que fazemos história, sendo necessário, pois, alerta o autor, nos assumir como sujeitos criadores e transformadores da história, e não objetos passivos e resignados, arrastados pelos acontecimentos (JARA, 2006b, p. 229).

Jara (2006b) faz tais colocações com a finalidade de afirmar as experiências sempre como experiências vitais, carregadas de uma enorme riqueza, ao mesmo tempo inéditas e irrepetíveis, devendo ser aproveitadas precisamente por sua particularidade. Aí reside o valor e a necessidade de compreendermos as experiências, em extrair seus ensinamentos e, daí, a importância de serem compartilhados. Outra decorrência é o fato de que todas as pessoas, sujeitos das experiências, podem realizar a sistematização e, mais ainda, ninguém pode desempenhar esta tarefa por nós (JARA, 2006b, p. 232).

Depois que o registro foi feito e reconstruído, o mais importante, o decisivo, para Jara (2006b), é saber o que fazer com isso. Pôr em ordem conhecimentos desordenados e percepções dispersas que temos permite que nos apropriemos delas, compreendamos o vivenciado e, se quisermos tirar lições de tais processos, é fundamental proceder à sua comunicação, estabelecendo uma troca de aprendizagens que nos permita avançar qualitativamente também para uma aproximação da prática em relação à teoria.

O autor insiste, neste ponto, de que a sistematização não é um esforço individual, isolado e fechado, mas se realiza de forma coletiva, isto é, seu suporte principal para possibilitar transformações é que tais aprendizagens individuais estejam sempre abertas ao diálogo: o comunicativo não é um elemento separado da sistematização, ao menos em nossa proposta, é um elemento indispensável. Nos vemos obrigados a expor nossas ideias de forma compreensível às outras pessoas, impondo a nós uma constante autorreflexão, além de provocarmos outras pessoas que se impliquem sobre si (JARA, 2006b, 236).

Para Jara (2006b), sistematizar é muito mais que um método, supõe uma postura epistemológica, social, política e cultural (JARA, 2006b, 230), não sendo algo que possa ser feito de maneira espontânea, tratando-se de um processo intencionado e consciente, que implica uma ordem, um rigor, uma metodologia que permita reconstruir a experiência e descobrir essas aprendizagens através de um exercício teórico e de interpretação crítica.

Se as maneiras de fazê-lo podem ser as mais variadas, e dependerão de uma construção a partir de cada experiência específica, atendendo a suas especificidades e demandas concretas, à atividade criativa dos sujeitos envolvidos, de acordo com Jara (2006b), há, entretanto, condições para a sistematização, quais sejam: 1) ter interesse e disposição para aprender com a experiência (desapegar da falsa ideia de que já se sabe tudo, estar aberto a descobrir o novo); 2) ter sensibilidade para deixar falar a experiência por si mesma (não forçar as interpretações com nossas expectativas pré-concebidas); 3) ter habilidade para fazer análises e sínteses (saber decompor e organizar os distintos aspectos daquela complexidade) (JARA, 2006b, p. 237-238).

Jara (2006b) conclui que este processo de sistematização de experiências não é algo natural, para o qual os nossos sistemas educativos não nos ensinam. Trata-se de uma habilidade que podemos ir desenvolvendo, a qual é a própria capacidade de teorização, isto é, de nossa percepção, produção de análises, sínteses, nossa capacidade de sermos narradores, e não meros repetidores. A sistematização de experiências é, portanto, uma formulação epistemológica e metodológica, a qual, para o autor, deve ser uma prioridade nos processos de intervenção e organização social, tendo em vistas um trabalho coerente, em direção a uma práxis revolucionária (JARA, 2006b).

  1. Crítica ao Mito do Progresso e Resgate da Experiência

A experiência (Erfahrung) no contexto da modernidade, em Walter Benjamin, encontra-se empobrecida, marcada eminentemente pela vivência (Erlebnis), ou seja, pela relação imediata às sucessivas urgências da vida, qual seja esta necessidade de atendermos aos violentos estímulos do tempo do agora (Jeztzeit). Para o autor, toda a nossa energia e atenção estariam sendo consumidas no esforço de aparar os choques na multidão, roubando-nos o tempo necessário para atribuir sentido ao que nos acontece, e assim, gerar um aprendizado (BENJAMIN [1933], 2012).

Na modernidade, estaríamos privados da faculdade humana de intercambiar experiências, da capacidade de narrar. Os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e o avanço da técnica reverberam como mecanização e reificação do frágil e minúsculo corpo humano, negando aos sujeitos seu potencial criativo e apartando-os da própria história. O empobrecimento da experiência ameaça, desse modo, a própria transmissão de aprendizados, isto é, da sabedoria adquirida por meio da elaboração dos traumas, conferindo sentido e valor aos acontecimentos (BENJAMIN [1936], 2012).

Como explica Caroline Mitrovich (2011), a atrofia da experiência residiria na incapacidade do ser humano moderno de mergulhar no individuado para elevá-lo ao coletivo, de incorporar à tradição. Esta incapacidade é a condição para permanecer na mera vivência dos fatos cotidianos, sem desencadear um processo de elaboração e comunicação do vivido. A experiência une o passado ao presente, une o individual ao coletivo, ou seja, permite sonhar projetos coletivos de sociedade (MITROVICH, 2011).

A fim de resgatar a experiência, para o autor, seria necessário, então, interromper a temporalidade presente (BENJAMIN [1933], 2012). A partir de suas leitura de Baudelaire, Benjamin incorpora a temporalidade da poesia baudelariana, e a ideia de perda e destruição da tradição como a possibilidade mesma da experiência moderna. As ruínas correspondem às de hoje, porque a morte não habita apenas o passado, mas corroi o que está se formando agora. Descrever esse caráter transitório e destrutível permite congelar este momento, e fazê-lo eterno. A experiência pode nascer do reconhecimento lúcido das perdas, das ausências, da ruína, da morte, do movimento dialético entre destruição e reconstrução. Trata-se de reconhecer a experiência como algo irrecuperável, mas possível de recriação, a partir de operações de memória (MITROVICH, 2011, p. 86).

Em momentos de perigo, reminiscências desses mortos podem ressurgir e nos alertar da nossa condição permanente rumo à destruição. Entretanto, podemos, também, ativamente recorrer ao cenário desolador do nosso presente, colocando-o no centro da reflexão, trazendo à tona as ruínas, as derrotas, as perdas, a ausência, o sofrimento e a morte, que foram negados na trajetória do progresso triunfante. Requer-se um esforço de volta ao que foi esquecido, recalcado, uma rememoração (Eingedenken) do passado, pela qual estabelecemos um elo afetivo com a história deixada de lado, a história dos vencidos.

A partir das correspondências, as imagens dialéticas, as denominadas alegorias, podemos olhar para o mundo e interpretá-lo criativamente, estabelecendo uma conexão com o passado, buscando nossas referências, acionando nossas próprias experiências. Nossa capacidade narrativa pode ser restaurada, e, assim, ser possível não somente elaborar, mas transmitir o vivenciado, transformando-o em experiência, na medida em que nos recorremos ao estabelecimento de tais correspondências entre o passado e o presente, oferecendo, assim, a possibilidade de os apelos dos mortos do passado serem ouvidos e encontrarem no presente a sua redenção (BENJAMIN [1936]; [1940], 2012).

As contribuições de Benjamin também são relevantes ao conceituar a história opondo-se frontalmente ao que ele denomina de mito do progresso. Para o autor, a história não é uma sequência evolutiva de fatos concatenados, mas uma incessante repetição da barbárie. Assim, se assistimos, hoje, no Brasil do século XXI, um passado que parecia distante voltar com toda força, é, conforme Benjamin, precisamos nos atentar para a tradição dos oprimidos, a qual nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é, em realidade, a regra (BENJAMIN, [1940], 2012, p. 13).

Para o autor, se acontecimentos terríveis que parecem reafirmar um passado de violências ainda nos causa espanto assistirmos, é porque estamos presos a uma concepção de história insustentável. Uma vez que não percamos de vista o mito do progresso, só então será possível assumirmos uma posição mais favorável na luta contra o fascismo, e provocarmos o verdadeiro estado de exceção, rompendo o ciclo histórico de tragédia. Enquanto continuarmos nos projetando ao futuro, crendo que em etapas sucessivas chegaremos às mudanças almejadas, nos deixamos levar pela tempestade do progresso e contribuímos para os destroços da barbárie a ele inerente (BENJAMIN, 2012, p.14).

Sendo a história um movimento permanente, como nos deter no presente para mudar nosso futuro? É preciso atentar para o movimento contraditório da história, tendo em vista que a dimensão negativa da história dos vencedores é a história dos vencidos. Sendo a história a marcha triunfal dos vencedores sobre os vencidos, em cada momento, os detentores do poder são herdeiros de todos aqueles que antes foram vencedores: aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos, integram o cortejo triunfal que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que mordem o pó (op. cit., p. 12).

Para Benjamin (1940), aqueles que se identificam com os vencidos e desejam desviar o curso da locomotiva desenfreada da história rumo à eterna catástrofe, devem afastar-se dessa transmissão da tradição dos vencedores. Sua missão é escovar a história a contrapelo, e lembrar os vencidos da história, pois sua queda é o poder dos vencedores, sua presença é identificada na conformação do presente. Rememorando os mortos do passado, cria-se um elo com a história dos oprimidos, é um processo de religar, hoje, os sujeitos oprimidos à sua própria história (BENJAMIN, [1940], 2012, p. 13).

Estabelecido esse elo com o passado, é possível libertar o presente para uma nova forma de vida, para uma outra existência que não a condição de opressão. O processo de conhecer o mundo e suas múltiplas relações é um processo de se entender determinado pelo passado, e determinante do seu futuro. Assim, a luta pelos vencidos da história é uma luta pela não repetição do passado, e não pela salvação das gerações futuras. Estas herdarão as mudanças de um presente que se reconhece no seu passado e, assim, permite a sua redenção, isto é, impedindo que a história continue sendo contada como uma sequência de fatos, como um amontoado de ruínas (BENJAMIN, [1940], p. 13-14).

A tarefa do materialista histórico é escovar a história a contrapelo e, através do estabelecimento de correspondências, oferecendo, assim, a possibilidade de os apelos dos mortos do passado serem ouvidos e encontrarem no presente a sua redenção. A transformação social, ou revolução, para Benjamin, portanto, pouco tem a ver com a salvação das gerações futuras, sobre as quais nada sabemos e nem poderíamos, mas com a salvação dos mortos do passado, interrompendo a eterna repetição da barbárie, criando um novo desfecho para a história (BENJAMIN, [1940], 2012).

Considerações Finais

Esta investigação tem origem, fundamento e orientação na atividade de assessoria jurídica popular a assentamentos urbanos informais (loteamento clandestino) localizados no Município de Ribeirão Preto – SP, as quais preferem serem chamadas de Comunidade João Pessoa, Comunidade Nazaré Paulista e Favela da Família. Compartilhamos, aqui, via artigo, parte das reflexões desta atuação, seja enquanto extensionista e estagiária do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular de Ribeirão Preto (NAJURP-FDRP/USP), seja enquanto militante da Frente Resistência Urbana das Brigadas Populares.

Os desafios e exigências destes espaços de construção coletiva e da advocacia popular nos colocaram diante da necessidade de recorrer a correntes filosóficas e experiências metodológicas que nos auxiliassem, ou seja, que permitissem uma melhor interpretação da realidade e, assim, uma ação refletida para enfrenta-la, contribuindo não apenas para defesas judiciais mais técnicas e bem fundamentadas nos marcos legais, mas também para facilitar processos de conscientização e uma organização social mais autonôma tanto das moradoras e moradores das ocupações quanto desta assessora e dos coletivos políticos da qual fez parte.

Se o campo da assessoria jurídica popular tem lastro em experiências históricas de lutas de advogados e advogadas e estudantes de direito em conjunto com o povo, o embasamento teórico e metodológico de tais práticas foi forjado também neste processo. Destacam-se, nesse sentido, as contribuições do materialismo histórico-dialético, no sentido de traduzir em termos científicos a condição de historicidade da realidade e dos sujeitos, sendo estes mutuamente determinados e incidentes. A totalidade social, em sua abstração, é conformada pelas infinitas particularidades, pelas múltiplas determinações que a concretizam, quais sejam as próprias experiências complexas das pessoas.

Assim sendo, não é possível pensarmos a realidade social sem pensarmos os próprios sujeitos históricos, sujeito e objeto de conhecimento de misturam e confundem. As iniciativas de pesquisa militante reivindicam esta possibilidade de apreender a complexidade das realidades, a partir de objetivos investigativos que compreendam os limites e as possibilidades das situações vivenciadas pelas pessoas em sua atividade material da vida cotidiana. Por isso a radicalidade do pressuposto de se produzir conhecimento coletivamente, em diálogo permanente, e a partir da condição subalterna.

Tal compromisso não impõe que tão somente aqueles que vivem determinada realidade de opressão possam se engajar e mesmo teorizar sobre a experiência. Contudo, faz-se necessário evidenciar quais os pontos de partida são tomados, qual o lugar de fala, a situacionalidade estrutural histórica de quem enuncia o conhecimento, a fim de não reproduzir mais silenciamentos e violências que encerrem as vozes subalternas nesta condição. Trata-se, portanto, de reconhecer que ao se produzir conhecimento, estamos produzindo narrativas sobre experiências localizadas e, para uma transformação social, é imprescindível retomar humanidades negadas.

Nesse sentido, acreditamos ser de enorme potencial a ideia da retomada da capacidade de narrar, a responsabilidade sobre o resgate da experiência na modernidade, em que o progresso atualiza a ruína e impede a elaboração da vida, de modo a ser possível sonhar sonhos coletivos. A história, enquanto eterna repetição da barbárie, não se caracteriza por uma tendência natural de superação das contradições, em que o momento atual supere a etapa anterior até chegarmos à nossa utopia. Cuidando para não incorrer no mito do progresso, a tarefa histórica para aqueles que buscam mudanças estruturais para a libertação não é o compromisso com a luta e o projeto de vitória, mas com a dor e sofrimento dos vencidos da história, uma práxis educativa popular que busque resgatar a possibilidade da experiência, da narração e, assim, a redenção dos vencidos do passado.

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  Desobediência civil: a afirmação da soberania popular em tempos de crise de representação política[15]

Civil disobedience: the affirmation of popular sovereignty in times of crisis of political representation

 Alana Souza Barreto Sena[16]

 

 

Resumo: O descompasso entre representantes e representados e a participação cada vez mais diminuta dos detentores da soberania, praticamente reduz às eleições o poder do elemento povo e os outorga um título passivo frente aos espaços de real deliberação. O presente estudo revela que os caminhos democráticos formais, no cenário político contemporâneo, têm intensificado, principalmente no âmbito legislativo, a ofensa de direitos fundamentais, e, consequentemente, a desaprovação da sociedade. Nesse sentido, o presente estudo analisa a desobediência civil como mecanismo de resistência frente a esse cenário de déficit democrático. A pesquisa se desenvolve através da análise qualitativa de fontes bibliográficas e documentais, ou seja, voltada ao aprofundamento e compreensão acerca do papel da desobediência civil no Estado brasileiro. Para tanto, apoia-se no método fenomenológico, como recusa ao positivismo, ao reconhecer os pesquisadores como sujeitos históricos, em constante interação com o tema da pesquisa. Assim, autoriza a compreensão de que a desobediência é um instrumento de direito válido e legítimo em face de atos contrários aos anseios coletivos e individuais, levando em consideração o motivo e contexto da infringência de determinada disposição legal, com o fim de salvaguardar direitos e verificar a legitimidade de uma norma contrária aos interesses soberanos do povo.

Palavras-Chave: Ciência política; Democracia representativa; Direito; Legalidade; Poder popular.

Abstract: The mismatch between representatives and represented and the ever smaller participation of the holders of sovereignty virtually reduces the power of the people element to the elections and grants them a passive title in front of the spaces of real deliberation. The present study reveals that the formal democratic paths, in the contemporary political scenario, have intensified, mainly in the legislative sphere, the offense of fundamental rights, and, consequently, the disapproval of society. In this sense, the present study analyzes civil disobedience as a mechanism of resistance against this scenario of democratic deficit. The research develops through the qualitative analysis of bibliographical and documentary sources, that is, aimed at deepening and understanding about the role of civil disobedience in the Brazilian State. To do so, it relies on the phenomenological method as a refusal of positivism, recognizing researchers as historical subjects, in constant interaction with the research theme. Thus, it authorizes the understanding that disobedience is a valid and legitimate instrument of law in the face of acts contrary to collective and individual desires, taking into account the motive and context of the violation of a certain legal provision, in order to safeguard rights and verify the legitimacy of a norm contrary to the sovereign interests of the people.

Keywords: Political science; Participatory democracy; Right; Legality; Popular power.

1.                  1. O povo

Ao tratar dos elementos constitutivos do Estado, a ciência política elenca o povo ao lado de território e poder. Esse elemento humano pode ser visto sobre três diferentes aspectos: demográfico, jurídico e cultural, nesta, será oportunizado o tratamento acerca das suas dimensões política e jurídica.

Politicamente, o conceito de povo revela forte carga histórica, sobretudo advinda das etapas organizacionais do Estado, desde o absolutismo até a Revolução Francesa, aquela parcela de pessoas se colocou enquanto objeto e, posteriormente, com a democracia, como sujeito. Isso revela forte carga de conquistas daqueles que passaram a participar da atividade governante através do sufrágio que elegeria a representação junto às instâncias deliberativas estatais. Nesse sentido:

Teve início esse princípio com o Estado liberal, constitucional e representativo. A história que vai do sufrágio restrito ao sufrágio universal é a própria história da implantação do princípio democrático e da formação política do conceito de povo. Embora restrito, o sufrágio inaugura a participação dos governados, sua presença oficial no poder mediante o sistema representativo, elegendo representantes que intervirão na elaboração das leis e que exprimirão pela primeira vez na sociedade moderna uma vontade política nova e distinta da vontade dos reis absolutos (Bonavides, 2000, online).

Cumpre ressaltar que a conversão histórica da posição política exercida pelo povo é marcada pela implementação do sistema representativo, no qual impera o aspecto delegado e deveras limitado de concorrência para a emposse do poder público.

Superado o destaque acerca desse conceito político, faz-se necessário à abordagem conceituar juridicamente o povo, o qual vincula as pessoas a partir do ordenamento jurídico que as rege, ou seja, trata-se da parcela de indivíduos sob uma ordem jurídica a qual os dão direitos e impõe deveres.

Com amparo nesses conceitos, torna-se melhor compreensível o delineamento acerca da soberania popular, este, fundamental para o desenvolvimento do presente estudo. Nesse sentido, oportuna é a abordagem acerca da soberania popular enquanto corolário dos conceitos de povo outrora aduzidos, para além de mero elemento do Estado, o poder soberano do povo tem força principiológica constitucionalmente fixada no artigo 1º da Carta Magna o qual assevera que, do povo, deriva todo o poder.

Essa previsão encontra na doutrina melhor entendimento prático, em razão do Brasil adotar a democracia semidireta, tal qual explica Dirley (2014, p. 421) que “quando a Constituição afirma que o povo exerce o seu poder por meio de representantes eleitos, ela explicita a Democracia representativa; contudo, quando indica que o povo exerce o seu poder diretamente, ela exprime a Democracia direta”.

Além do sufrágio universal pelo qual é exercida indiretamente, a soberania popular encontra caminho também no plebiscito, referendo e nas possibilidades de iniciativa popular. Enquanto o plebiscito consulta previamente, o referendo tem caráter posterior e de ratificação de medida já aprovada ou adotada. A iniciativa popular, por sua vez, representa a possibilidade de conexão entre o legislativo e o povo, contendo para isso algumas condições de aceitabilidade, as quais conduzem ao entendimento de que estas prerrogativas caracterizam um exercício semidireto da soberania.

Assim, importa dizer que a soberania popular, apesar de imanar da Carta Maior em uma premissa ampla, não encontra a mesma projeção no plano fático, já que nas suas especificidades poucas são as formas de eco da voz popular frente à hierarquia de composição do Estado, afinal, encontrou-se no modelo representativo uma organização baseada na eleição dos representantes do povo para ocupação dessas instâncias governantes.

Em que se pese essa afirmação, não por si só castradora do exercício da soberania popular, mas, somada a fatores como a crise de representação política – analisada aqui em momento oportuno – resultam na negação do elemento povo enquanto “sujeito e destinatário na concretude do sistema” (Bonavides, 2008, p. 11).

Entoada tal problemática, percebe-se intensificação desta pela força legítima dos atos estatais, alguns vinculantes e facilmente vigorados sem o crivo do elemento humano constitutivo do Estado, afinal, a este somente é reservado o poder decisório periodicamente, para que confie sua voz a algum representante. Nesse Sentido, como refletir o dissenso frente à atividade legiferante que fere os anseios coletivos? Ou até mesmo que subverta a voz de uma minoria expressiva vencida pela maioria nas eleições?

Dentre inúmeras questões, mostra-se delicada a análise entre coletividade, minorias, presunção de legalidade dos atos estatais e do próprio senso de representação por parte dos representantes, nesse sentido, buscar-se-á a partir de então entender onde se apresentam as fraquezas da representação política no atual contexto brasileiro, partindo de teorias já existentes que referenciam a análise do modelo de democracia vigente.

2.                  2. A linha tênue da democracia representativa

A democracia teve sua origem na pólis grega e sobre a qual bem aborda González (2009, p. 182) quando pontua que “acima dos grupos, das famílias, das facções e dos assuntos privados, a vida do cidadão grego era definida de um modo original e íntimo por seu envolvimento nas atividades políticas”.

Nesse sentido, esta é compreendida como modelo ecoante e legitimador dos interesses coletivos, como observado que “desde os alvores da antiguidade greco-romana, a democracia parece compartilhar com aquelas ninfas mitológicas um encanto semelhante e igualmente fatídico” (Gonzalez, 2009, p. 179). Não distante da metáfora, os difíceis momentos enfrentados dentro dos espaços democráticos contemporâneos, sobretudo no modelo representativo, revelam um afastamento tão expressivo dos seus preceitos basilares que acaba por lhe aproximar de um horizonte, por vezes, mitológico.

Com isso, faz-se mister ventilar alguns aspectos que atenuam em demasia a ligação entre conceito e prática representativa-democrática. Outrora foi citado que os eleitos ali estão a fim de representar o povo nas instâncias deliberativas, entretanto, se vê que o valor da representação se concentra principalmente no voto – ou seja, ocupa-se o determinado cargo para representar o voto de uma maioria – sem haver a posteriori uma preocupação para um governo que verse sobre os valores do povo.

Entender tal aspecto perpassa pela análise da transfiguração do povo, o qual passa a assumir o valor do seu voto e tem descaracterizada a sua subjetividade, bem como seus anseios diante do seio político no qual está inserido. Isso significa ratificar o que Miguel (2009, p. 163) chama de “modelo vigente de representação política, fortemente ancorado no pressuposto do sujeito uno (um homem, um voto)”.

Ademais, é imperiosa a constatação de que o exercício do princípio da soberania popular é bastante mediado. Ensejado pelo aspecto delegado do poder de decisão, a representação estabelece uma posição de terceirização do fazer político dado o afastamento entre o representado do espaço de tomada de decisões. O soar diplomático do termo “democracia representativa” não deve cortinar o fato de que há um contrassenso entre “um governo do povo no qual o povo não está presente no processo de tomada de decisões” (Miguel, 209, p. 164).

Michels (1914, apud MIGUEL, 2009, p. 164-5) defende outros pontos complementares, quais sejam:

São ao menos três problemas fundamentais, estreitamente ligados entre si: (1) a separação entre governantes e governados, isto é, o fato de que as decisões políticas são tomadas por um pequeno grupo e não pela massa dos que serão submetidas a elas; (2) a formação de uma elite política distanciada da massa da população como consequência da especialização funcional acima mencionada. O “princípio da rotação”, crucial nas democracias da Antiguidade – governar e ser governado alternadamente-, não se aplica, uma vez que o grupo governante tende a exercer permanentemente o poder; e (3) a ruptura do vínculo entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes, o que se deve tanto ao fato de que os governantes tendem a possuir características sociais distintas dos governados quanto a mecanismos intrínsecos à diferenciação funcional, que agem mesmo na ausência da desigualdade na origem social […]

De outro modo, igualmente interessante, Bobbio (2010, p. 27) alude ao segundo problema elencado quando levanta a questão de que o corpo eleitoral primeiramente passa pela direção dos partidos políticos, para, somente depois, lançar as candidaturas e, consequentemente ser aberto ao sufrágio. Logo, infere-se que o processo eleitoral não se dá de forma direta, mas têm influência pré-determinada pela mediação indireta da máquina eleitoreira.

Esses problemas fundamentais configuram a verticalização da democracia, um aspecto comum contemporâneo que cria entraves à efetivação dos seus princípios horizontais de estreitamento entre agente e destinatário. Ainda nesse sentido, oportuna é a transcrição:

Ao invés de estender a deliberação política democrática ao limite, o direito restringe e qualifica seus espaços e mecanismos. […] A aparente virtude da democracia moderna seria a liberdade irrestrita de deliberação sobre assuntos. De fato, ela é conseguida na medida dos mecanismos de apuração da vontade da maioria. Ocorre, no entanto, que, balizada pelo direito, a ação política é ampla, livre e voluntariosa justamente num espaço que é previamente construído estatalmente (Mascaro, 2013, p. 87).

Com relação a esta questão aludida, agora sobre a ótica jurídica, constata-se que o direito também reafirma a delimitação projetiva da ação política do povo, visto que esse, sob o sistema capitalista, reflete uma liberdade jurídica e política dentro de um espaço que não transforma a exploração em construção social, ao contrário, reproduz a lógica de interesse do capital e acaba por ferir direitos fundamentais e reduzir princípios e normas programáticas à simples disposições legais, como acontece com a soberania popular.

Distante do esgotamento da discussão e sem intenção de propor uma democracia estritamente direta nesta pesquisa, a relevância deste debate recai, sobretudo, na necessidade de pontuar o caminho aberto encontrado pelo sistema representativo para subverter a missão de concretizar os interesses soberanos do povo. Após o processo eleitoral, com as posses e cargos ocupados, o horizonte pelo quão se balizam as decisões, é reduzido ao daqueles que lá estão, e isso, inegavelmente, representa a principal questão configuradora da crise de representação política. Haja vista, por razões já expostas, a convergência de interesses entre representantes e representados não é regra.

3.                  3. A crise representativa no Brasil

Afirmar que há um panorama de crise na atual conjuntura política brasileira requer o apontamento de algumas questões. Já introduzidos os pontos atenuantes da ideia de governo para o povo dentro do modelo democrático representativo, hão de ser observados os parâmetros que caracterizam no plano fático – amparado na doutrina – essa crise de representação política.

Para isso, faz-se mister retomar ao que corrobora Mascaro (2013) ao descortinar os pressupostos que sustentam os ataques aos direitos fundamentais e à soberania popular. Sublinhe-se que a democracia do Estado capitalista baliza muitas das questões outrora aduzidas. Perceber o capitalismo como o sol e as estruturas jurídica e política como satélites, é servir-se de uma metáfora para explicar os reflexos advindos desse sistema econômico sobre o qual o Brasil é regido.

Os argumentos trazidos à baila permitem correlações face às importantes mudanças sofridas recentemente pelo país. É evidente o enfoque dos Poderes Legislativo e Executivo em intervir nas questões orçamentárias frágeis em detrimento de particularidades sociais afetas ao setor público. Não é escopo desta pesquisa a análise de cada medida ofensiva à soberania popular e aos direitos fundamentais, mas impende destacar sistematicamente quais aspectos concretizam essa desconformidade entre representantes e representados.

Já supramencionada, as fragilidades orçamentárias emergiram como a principal justificativa para o estabelecimento de tetos, redução e limitação em matérias de cunho social. O Brasil, figurado por sua expressiva desigualdade, ainda baliza suas decisões equalizadoras desequilibrando outro setor – já desnivelado – do país. Isso significa que há uma ordem prioritária de precarização, a economia em favor do capital deve emergir, ainda que para isso, torne o povo mais marginal.

A crise econômica do capitalismo como um fenômeno de impacto nessa conjuntura, demonstra que passar por cima da vontade popular em favor do interesse político dos grandes especuladores faz regredir o conceito de democracia que ainda resta, em vista da discrepância entre esse e o plano prático. Esse fator explica o aumento de investimentos da iniciativa privada em campanhas eleitorais, como forma de disputa desses espaços para articulação dos interesses econômicos em detrimento, muitas vezes, da garantia de direitos sociais. Como exemplificado pela flexibilização dos direitos trabalhistas e os horizontes de expectativa pela previdência privada, seja pela emergência com a qual o Governo propagandeia a famigerada reforma ou pela redução dos recursos destinados à seguridade social.

Logo, há de se perceber que “a possiblidade de involução democrática é uma constante natural dos sistemas políticos assentados sobre as formas sociais capitalistas” (Mascaro, 2013, p. 89). Fato esse que torna cristalina a existência de uma correlação de forças entre o Estado e os setores favorecidos, sobretudo os econômicos, em detrimento da parcela que , apesar de ser titular de um poder soberano, na prática, exerce atividade de caráter passivo e secundarizado após o advento das eleições, o que viabiliza a aprovação de diversas medidas não consoantes com o voz do povo.

4.                  4. A soberania popular coberta pela fumaça da legalidade

O princípio da legalidade é tido como regulador das democracias constitucionais contemporâneas, se configurando enquanto parâmetro para os atos estatais. Estruturalmente, é possível interseccionar a crise da lei e a crise da política representativa. Ainda assim, a visão de que as prerrogativas do Estado, apenas por perpassarem pelos caminhos da lei, irão se projetar de forma justa é um ledo engano capaz de minar a capacidade organizativa do povo.

O descontentamento frente às leis e atos administrativos adormece no berço da legalidade, falsamente amparada no pressuposto de justiça. Nesta esteira, a insurgência encontra barreira nos conceitos jurídicos e normas que, em letra, intentam para a confiança no Estado.

Os critérios formais através dos quais o Direito se apresenta ao povo, acabam facilitando a subversão ao princípio da soberania popular, já que além de burocratizar e restringir a construção da ordem sobre a qual pretende-se viver em sociedade, ainda cria-se uma ideia finalística de que o ordenamento jurídico tem, a partir dessa base, um compromisso com seus subordinados.

Neste diapasão, valer-se do pensamento de Mascaro (2013, p. 81) oportuniza melhor deslinde da questão:

Juridicamente, a burocracia estatal compreende as instituições de governo e administração, a partir dos termos de suas investiduras e competências. Mas, socialmente, a burocracia se exprime como organismo vivo, ágil, contraditório. Em sua dinâmica, há descompassos entre os contornos jurídicos da burocracia e sua materialização social. O concreto não corresponde ao jurídico e, além disso, a burocracia, na sua organicidade, se ao mesmo tempo está imbricada nas relações gerais, apresenta-se tanto em conflito com a própria sociedade quanto em conflito interno.

A forma com a qual o supracitado desmonta a estrutura do Estado, demonstra que este se utiliza da burocracia, bem como de prerrogativas exclusivas para justificar determinados atos. Assim, exsurge clara e insofismável que tamanha complexidade organizativa mostra-se estranha quando confrontada com a organização da própria sociedade, de modo a implicar na falta de intervenção desses indivíduos regidos pelo fato de haver um distanciamento entre os a circunscrição na qual estão inseridos os representantes e naquela onde se encontram os representados.

Ainda nesse ínterim, impende destacar que a “subordinação abstrata dos direitos subjetivos sob o direito objetivo, sendo que a legitimidade deles se esgota, no final de tudo, na legalidade de uma dominação politica, interpretada em termos de um positivismo do direito” (Habermas, 1997, P. 121-22) complementa os fatores outrora aduzidos, demonstrando o monopólio da legitimidade de atuação é envolta pela dominação política.

Este conflito com a sociedade favorece o espaço para caracterização de um espaço “onde a invocação do povo é apenas metáfora em uma retórica ideológica, erra-se de alvo na busca do problema da legitimidade ou encobre-se esse problema” (Muller, 2000, p. 42).

Logo, sobreleva notar que a estrutura do Estado, apoiada no principio da legalidade, reflete para os administrados e legislados, uma posição extremamente desfavorável dada a correlação de forças do governo e os próprios limites encontrados na burocracia e na fumaça da lei com as quais são revertidos os atos advindos do setor público. Encontrados esses entraves, o exercício da soberania popular através da garantia da não aprovação de determinada medida legislativa contrária aos anseios populares, por exemplo, adormece no berço do simbolismo.

Após um processo sancionador, ancorado no conforto e conveniência dos detentores do poder perante as instâncias deliberativas, traz-se a lume uma busca por medidas capazes de intentar contra a chancela de leis estranhas aos anseios do povo e, também, contra a verticalização sobre a qual pura e simplesmente são impostas as decisões lá tomadas. A partir dessa questão, considerando os sinais de perda da projeção prática do exercício da soberania popular, serão traçadas considerações acerca da desobediência civil.

5.                  5.  Desobediência civil: um horizonte de defesa do projeto político-social popularmente soberano

Ora, face às considerações até aqui aduzidas, é inconteste o fato de que os anseios coletivos e/ou individuais que configuram o interesse público nem sempre encontram livre caminho de concretude nos espaços deliberativos, sobretudo nas instâncias representadas pelos poderes, com destaque ao Legislativo e Executivo.

Por essa razão, a crise de representação política se configura pela tomada de decisões contrárias ao projeto político-social legitimado pelas urnas e por outras formas de manifestações populares, exemplificadas pelas atividades comumente exercidas pelos movimentos sociais, bem como os massivos atos que ocuparam as ruas. Sobretudo a partir de 2013 e propagado pelos últimos cinco anos, a ida às ruas demonstrou ser um dos principais mecanismos adotados pelo do povo em expressão aos anseios que precisam assumir a baliza das deliberações estatais.

Entretanto, este objetivo, por vezes, encontra-se incapacitado pelas razões já expostas, seja por desinteresse dos próprios representantes em atender o interesse público ou pela projeção prática insuficiente da voz popular frente às burocracias e prerrogativas que sustentam a máquina estatal, tal como se apresenta nos dias de hoje.

Com relação à compensação a que alude esta problemática, a afirmação da soberania popular emerge enquanto questão fundamental para a salvaguarda de direitos feridos pela crise de representação política, na qual é pungente o descompasso entre os agentes e os figurados destinatários, para os quais se governa e se legisla.

A palavra supra, “figurados”, se aplica em destaque à forma como o elemento humano constitutivo do Estado se apresenta na conjuntura abordada, não significando concordância com o reducionismo do povo à mero destinatário do fazer político. Ao contrário, o presente estudo corrobora com o “modelo de comunidade que denomina ‘comunidade de princípios’, na qual seus membros, atuando como agentes morais, aceitam que são governados por princípios comuns e não por regras forjadas em um compromisso político” (Binenbojm, 2008, p. 54), ancorado na capacidade moral dos indivíduos enquanto livres e iguais, dotados de razão pública, logo, aptos para atuarem também como agentes do fazer político.

A viabilização dessa conversão de mero destinatário à sujeito pode-se dar tanto pela aproximação e quebra dos entraves supra citados como também através da desobediência civil, esta cabível neste estágio de crise em que os anseios populares não ecoam no Congresso Nacional, tampouco no Poder Executivo e, estes, acabam subvertendo os princípios da proporcionalidade e razoabilidade no exercício da prerrogativa de arbitrariedade. Ou seja, baseados em questões alheias, chancelam leis e medidas subvertentes à soberania popular.

Para Dworkin (2002, p. 339), frente à força vinculante de premissas duvidosas, é injusto punir quem as desobedeça. O autor destaca a importância do debate para maior clareza acerca da validade de determinadas normas que possam causar dissídio social. Releva ainda a importância de manifestação dos indivíduos dissidentes para enriquecimento da sociedade e do próprio direito, contribuindo para criar a melhor decisão judicial possível, e, por interpretação analógica pessoal, também contribui para maior participação e formação de um ordenamento justo.

Também nesse sentido, Monreal (1988, p. 93) concorda que “têm os cidadãos a alternativa de desobedecer à disposição decretada, que vulnera princípios éticos e políticos”. Quando o Direito se vale da sua função ordenatória mas não assegura a liberdade e o agir individual concatenado com o interesse coletivo de forma equilibrada, este acaba por figurar o que Eros Roberto Grau (1988, p. 36 apud GARCIA, 2004, p. 95) chama de Direito não-legítimo, ou ilegítimo, o qual deixa de ser instrumento de organização social e “passa a cumprir a função de organizar e justificar o exercício do poder por um determinado grupo”.

Essa referida organização de um determinado grupo para o exercício do poder pode ser identificada como desobediência civil, sendo que esta, segundo Costa (2000, p. 36), “resultava dos direitos essenciais do cidadão sobre o Estado, que a empregaria sempre que o governo extrapolasse suas prerrogativas ou não correspondesse às expectativas geradas”.

Ponderando que mesmo nos sistemas de governo democrático admitem-se prática de corrupção, decisões injustas e autoritárias, ausência de partidos representativos das minorias, nada mais oportuno os indivíduos utilizarem-se da Desobediência Civil como o único instrumento adequado para participar da vida social, bem como o canal competente para moralizar o processo político (Wolkmer, 1990, p. 34).

Assim como no escopo doutrinário supratranscrito, Antonio Carlos Wolkmer (1990) enfoca sua abordagem nas situações que provocam a desobediência civil nos sistemas de governo democrático. Ao tratar da legalidade do ato, exemplifica situações não penalizáveis pelo ordenamento mas que configuram rompimento de algum preceito legal. Dentro as quais, o ato de matar alguém encontra ressalva no direito penal se ocorrer em sede de legítima defesa.

Ao debater a legalidade do ato de desobediência aproveitam-se os fundamentos da tolerância à dissidência em relação a alguma lei ou medida que se mostre extremamente desproporcional ao interesse atendido. Dworkin (2002, p. 318) pontua de forma acertada que disposições legais podem ser duvidosas. Nesse sentido, resta demonstrado que o levantamento de contrariedade à elas não merece sanção, em vista da possibilidade de revisão e declaração de inconstitucionalidade de uma lei que para o legislador era compatível, por exemplo.

Por fim, cumpre ressaltar que esses fundamentos perpassam também pela proporcionalidade e razoabilidade. A desobediência civil causaria dano maior do que aquele ocorrido em decorrência do cumprimento de uma disposição legal injusta e desigual? Dworkin (2002, p. 325) observa um fator que se encaixa perfeitamente nesse questionamento. Se identificadas questões que suscitam dúvida quanto à validade de uma lei, tolerar estas, abre precedente para que, com o tempo, essa lei obedecida se torne menos equitativa e justa, e a liberdade dos cidadãos diminua. Ou seja, não manifestar dissidência abre precedentes para a intensificação de injustiças e acaba por outorgar um título passivo ao povo, recaindo sobre este todo o ônus das decisões, que no contexto da crise representativa, forem desfavoráveis aos seus anseios.

6.                  6.  Conclusões

O presente estudo visou confrontar as razões que configuram a crise no modelo de democracia representativa vigente no Brasil. Identificou-se para tanto, que a representação estabelece uma posição de terceirização do fazer político dado o afastamento entre o representado do espaço de tomada de decisões e que esse fator, somado ao favorecimento da economia em detrimento do interesse público, materializam a referida crise através da chancela, por parte dos Poderes, de leis e medidas contrárias aos anseios do elemento humano constitutivo do Estado, o povo.

Por consequência, o exercício da soberania popular resta prejudicada, carecendo de meios que a recobrem frente à força vinculante das disposições vigoradas com o crivo dos representantes eleitos. Para isso buscou, através da desobediência civil, demonstrar um meio de afirmação da soberania popular.

Em suma, há de se perceber que a desobediência civil possui amparo fixado na doutrina, bem como, nos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, os quais possibilitam, por analogia, utilizar o critério do menor dano ao bem jurídico.

Assim, à vista do exposto, resta induvidoso que a desobediência civil é um mecanismo cabível e configura afirmativamente o exercício da soberania popular de forma direta, sem mediações, como forma de resistência frente aos excessos arbitrários do Estado, os quais devem ser insurgidos a fim de que não se propaguem e, assim, passe a versar sobre o ordenamento a realização dos direitos soberanos do povo.

7.                  Referências

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 Teoria Crítica do Direito e arte: a arte como ferramenta de manifestação do pensamento crítico

Critical Theory of Law and art: art as a tool for the manifestation of critical thinking

Carlos Eduardo do Nascimento[17]

 Resumo: A Criticidade, como face visível da crise paradigmática do positivismo jurídico, surge como resposta aos problemas oriundos da ilimitada cegueira da esfera social defronte à Teoria Tradicional do Direito, buscando, como principais objetivos, a emancipação do direito e a transformação social. Destarte, o direito desenvolve a Teoria Crítica, onde adiciona a perspectiva social à análise jurídica, consolidando uma resposta eficiente e prática à busca de tais objetivos insurgentes. A arte, por sua vez, consolida-se como uma expressão que representa e reproduz os pensamentos e a realidade mundana-existencial. Esta reprodução, porém, pode possuir um apelo crítico intenso que, ao ser manifestado, pode ser adotado como profunda reflexão para a sociedade, por diversos estudos e variadas ciências – incluindo a jurídica. Analisando o caráter reflexivo que rodeia a arte, é inequívoca a disponibilidade que se dá ao direito, interdisciplinarmente, de releituras e reconhecimentos eficientes do campo social, possibilitando que seja compreendido de forma plena, ampla, enérgica e reflexiva. Nesta relação é que o presente trabalho busca demonstrar como ao direito cabe, através de uma forma interdisciplinar adequada, interpretar as artes como denúncias metafóricas da realidade social, ao ponto de que se possa compreender de forma mais aprofundada o pensamento crítico social e jurídico.

Palavras-Chave: Direito; Arte; Pensamento crítico; Criticidade.

Abstract: Criticity, as a visible face of the paradigmatic crisis of legal positivism, emerges as a response to the problems arising from the unlimited blindness of the social sphere in front of the Traditional Theory of Law, seeking, as main objectives, the emancipation of law and transformation of the society. Hence, law develops the Critical Theory, adding the social perspective to the legal analysis, consolidating an efficient and practical response to the search for the insurgent objectives. Art, in turn, is consolidated as an expression that represents and reproduces the thoughts and mundane-existential reality. This reproduction, however, can possess an intense critical appeal that, when manifested, can be adopted as a profound reflection by the society, by various studies and by varied sciences – including legal science. Analyzing the reflective character that surrounds the art, it is unequivocal the availability that is given to the law, interdisciplinarily, of re-readings and efficient recognitions of the social field, allowing that it is understood in a fully, broad, energetic and reflexive way. In this relation is that the present work seeks to demonstrate how does the law, through an appropriate interdisciplinary form, interpret the arts as metaphorical denunciations of social reality, to the point that is possible to understand in a more profound way the social and legal critical thinking.

Keywords: Law; Art; Critic Thought; Criticism.

  1. Introdução.

São tempos tortuosos para o Direito. A ciência que sempre foi um espaço de luta e conquistas sociais, passa a trazer, a cada renovação teórica, vícios derivados dessas mudanças e renovações. A discussão é atual, mas descendente de séculos de desenvolvimento teórico. Na perspectiva originária do Direito moderno, quando o poder de interpretação e articulação das leis passa das mãos de um monarca absolutista para as de um Estado consolidado, nasce o positivismo exegético, que apresenta problemas referentes a um univocismo semântico e estritamente legalista. Para superar tais disfunções findadas em crises paradigmáticas, vem a proposta de um normativismo positivista.

Por mais que o positivismo de Kelsen parecesse tratar eficientemente todos os vícios do “ser” com os paradigmas do “dever ser coercitivo”, em um dado momento, esta teoria também entra em conflito com as requisições sociais. Com os graves conflitos vivenciados internacionalmente pela sociedade no final da primeira metade do século XX, surge a necessidade do Direito se desenvolver e adequar às necessidades de seu tempo. Nesta perspectiva, surge uma criticidade inerente à prática do Direito em conformidade com as necessidades e requisições sociais, trazendo como ideia basilar a quebra da mera concepção formalista e tecnicista que consolidou o favorecimento elitista e privilegiado em fatores de desigualdade para pequenas parcelas da sociedade para conceber a emancipação do Direito e a consequente transformação social. Este panorama origina, portanto, a Teoria Crítica do Direito, que buscaria tais requisições insurgentes.

Em contrapartida, em outro viés teórico de outra atribuição que não a jurídica, há o desenvolvimento da teoria artística, trazendo manifestações cada vez mais complexas e reflexivas em perspectivas, muitas vezes, oblíquas. Em conformidade a esta obliquidade da arte em face à realidade social, é pacífico e unânime o reconhecimento da manifestação artística como disseminadora de pensamento crítico. Seja em uma poética bem estruturada, que denuncia penumbras sociais de origens estatais ou meramente oriundas da razão cínica humana em hostilizar as relações democráticas, ou seja em uma melodia que reproduza ironias que metaforizam as problemáticas sociais, a arte sempre está a denunciar a realidade. De acordo com o filósofo Umberto Eco (1993, p. 39) “o artista não pode se abstrair, como pura vontade criativa, do contexto social em que vive”.

É nesta encruzilhada, portanto, que se insere o presente ensaio: o viés crítico da arte – demonstrado através da compreensão dos filósofos Leon Tolstói e Umberto Eco – reproduzindo e assimilando a crítica social e o pensamento jurídico crítico consolidado como teoria, elegendo-se, para tal, a compreensão de Luiz Fernando Coelho e Antonio Carlos Wolkmer, complementando-se com os estudos interdisciplinares de Lênio Streck e Maria Pantoja Santos.

  1. Considerações acerca do pensamento crítico artístico.

A arte compõe-se na gama da esfera social de forma essencial para a solidificação da cultura. Para Williams (2008, p. 13 apud CRISTELLI, 2013, p. 35), ao tratar de cultura, deve-se compreender esta como um “sistema de significações mediante o qual necessariamente uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada”. Para tanto, a arte, na qualidade de manifestação, mostra-se de vital importância para a sociedade, visto que comunica as vivências e realidade social que, por sua vez, constituem a cultura. Para compreender, porém, de forma plena as possibilidades relativas às manifestações artísticas, uma conceituação adequada sobre arte faz-se necessária.

A arte é a atividade humana que consiste em um homem comunicar conscientemente a outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que vivenciou, e os outros serem contaminados por esses sentimentos e também os experimentar. (TOLSTÓI, Leon, 2016, n.p.).

Tolstói adota a “contaminação” como o critério para arte. A rigor, já pode-se constatar que a contaminação, por si só, pressupõe compartilhamento, e compartilhamento à ótica contaminante pressupõe absorção e interpretação – no que se trata à arte. Para Tolstói (2016, n.p.) “a boa arte é a que comunica aos outros a vivência pelo artistas dos sentimentos do bem, de forma que eles sejam contaminados pelo mesmo sentimento”.

O bem é eterno, o objetivo mais alto de nossa vida. Não importa como o entendamos, nossa vida não é senão um esforço em direção ao bem. (…) O bem é aquilo que ninguém pode definir, mas que define tudo o mais. (TOLSTÓI, Leon, 2016, n.p.).

Portanto, a Arte, na compreensão do autor citado, não cria e nem produz beleza, mas busca o bem. Por mais que Tolstói manifeste pensamentos – inicialmente – maniqueístas de dura rigidez, sua interpretação sobre a arte é imprescindível para ensaios que dialoguem a respeito de uma temática tão ampla. De prontidão, possibilita-se observar que, para Tolstói, por mais que a arte direcione o intérprete para o caminho do bem, o bem em pauta é aquele que o autor da obra artística define e o consumidor da obra interpreta, e isto, por si só, pressupõe em subjetividade. A oração citada acima “Não importa como o entendamos [o bem]” destaca tal compreensão. Consolidando o pensamento de Tolstói, e acrescentando uma interpretação mais contemporânea e prática:

É possível que, diante de uma obra de arte, eu compreenda os valores que ela comunica e que, ainda assim, não os aceite. Nesse caso, posso discutir uma obra de arte no plano político e moral e posso rejeitá-la, contestá-la justamente porque é uma obra de arte. Isso significa que a Arte não é o absoluto, mas uma forma de atividade que estabelece uma relação dialética com outras atividades, outros interesses, outros valores. Diante dela, na medida em que reconheço a obra como válida, posso operar minhas escolhas, eleger meus mestres. A tarefa do crítico pode ser também e especialmente esta: um convite a escolher e a discernir. Cada um de nós, lendo uma obra literária, ainda que professe os critérios técnico-estruturais aqui expostos, pode e deve encontrar uma relação emocional e intelectual, descobrir uma visão do mundo e do homem. É justo que existam pessoas com a sensibilidade mais apurada que nos comuniquem as suas experiências de leitura para que possam se tornar nossas também. (ECO, Umberto, 2016, p. 272).

Umberto Eco então clareia a compreensão do âmago artístico: a Arte não é o absoluto. A arte representa a realidade e os “valores” do autor, sim, mas de forma que faça com que aquele que a interprete também possa questionar, para originar uma reflexão propícia para a sua subjetividade. Isto é nada mais do que pensamento crítico, em sua plenitude.

Alguns exemplos de reflexão social crítica obtidas através da arte podem ser eleitos para demonstrações de sua funcionalidade. Um que cabe destacar é o experimento de Marisa Naspolini e Miriam Pillar Grossi, que proporcionaram uma experiência de artes cênicas a escolas de Santa Catarina, onde buscaram discutir questões referentes à gênero, levantando, inclusive, a questão da violência. Para as professoras, a arte pode tratar sobre temáticas de gênero ao passo de abrir “possibilidade de uma apreensão e discussão destas temáticas por vias mais sensoriais” (NASPOLINI, Marisa; GROSSI, Miriam, 2017, p.88).

(…) foi consensual o reconhecimento da importância de uma prática artística que possibilitasse um trabalho psicofísico, resultando em grande interação e integração no coletivo, além de um mergulho autobiográfico que gerou uma percepção encarnada da alteridade. Ao partir de si, cada integrante pôde colocar-se com maior propriedade no lugar do outro e refletir com maior profundidade sobre a experiência vivida na escola, de forma mais consciente, complexa e integrada. (NASPOLINI, Marisa; GROSSI, Miriam, 2017, p.90).

Como observa-se com o estudo realizado pelas professoras, a arte capacita o indivíduo (intérprete) para um entendimento do mundo por vias mais sensoriais, desenvolvendo um senso de empatia e compreendendo a realidade alheia à sua própria de forma mais plena e menos cínica. A arte, então, seguindo os ensinamentos dos autores citados, não é o absoluto, não é o belo e não é o útil, mas a mensagem reflexiva, através de vias mais sensoriais, da realidade do autor que virá a contaminar o intérprete.

  1. Teoria Crítica do Direito.

“Os poderosos controlam as vidas dos sem poder. É assim que o mundo funciona. É injusto e desleal”.

O trecho citado trata de uma passagem do filme Capitão Fantástico, de Matt Ross (2016), onde é descrito por Ben – personagem interpretado pelo ator Viggo Mortensen. O trecho por si só demonstra grande valor quando a discussão trata de pensamento crítico, e quando este pensamento específico é o jurídico, é ainda mais valoroso e relevante.

A sociedade do século XX (especialmente da primeira metade), com a consolidação de vias positivistas que se desenvolveram através de uma normatividade estruturada que respondia aos vícios da exegese, apresentava dificuldades e desigualdades avassaladoras. Tais dificuldades, porém, não eram estudos de interesse ou competência do Direito, pois, para o positivismo jurídico, só o positivo é real.

A partir da cosmovisão apresentada pelo positivismo – basilarmente uma expressão epistemológica e historicista do empirismo –, cristaliza-se a noção comum do direito identificado pelo chamado direito positivo, primeiro repelindo a ideia de uma ordem normativa de caráter metafísico – só o positivo é real – para então excluir como não jurídicas as regras sociais de conduta que não se revistam dos caracteres formais do direito oficialmente considerado. Segundo o ponto de vista positivista, o direito fica, portanto, definido como conjunto das normas postas pelo Estado, ou ao menos as que por ele são reconhecidas como válidas (…) (COELHO, Luiz Fernando, 2003, p. 197).

De acordo com Luiz Fernando Coelho (2003, p. 407), o modelo positivista se sintetiza em “três pressupostos ideológicos básicos, nos quais radica toda a concepção dogmática do direito, na condição de fundamentais, o da unicidade, o da estatalidade e o da racionalidade”. Esses fundamentos formariam, então, um tripé ideológico em que se apoia um quarto princípio, o da legitimidade. O Direito, como regulador das relações sociais e proporcionador de paradigmas de um “dever ser coercitivo” na esfera teórica e prática, não apenas deixava de responder a tais demandas, mas em alguns sentidos, as fortalecia em nome da legitimidade daqueles que dotavam o poder. Com as promessas da modernidade sendo distorcidas para estabilizar certas classes/elites em condições desiguais na sociedade, o direito passa a ser instrumento de dominação e preservação desta desigualdade maquinada em determinados contextos.

(…) o direito é um fato social, um mecanismo de dominação, um fator da ação social, um instrumento contra-hegemônico, um aparelho ideológico do Estado ou um subsistema do sistema social, entre outras definições, dependendo do contexto em que está inserido, do momento histórico que o envolve e dos agentes que dele fazem parte. (SCREMIN, Mayra de Souza, 2004, p. 149).

O Direito passa então a servir de instrumento para manter os “poderosos” controlando a vida dos “sem poder”. Vezes de forma indireta, por omissão, por manter a “obediência cega” como única plataforma de entendimento do direito legislado, mas não abria possibilidades que não da própria formalidade, já desigual, ou de outras esferas – tão desiguais quanto – para transformar a sociedade. O mero Direito Positivo não mais respondia às demandas sociais e uma criticidade insurgia dentre seus flancos na busca por medidas autolegitimadoras.

Na medida em que a sociedade moderna se cristalizava em suas estruturas jurídico-políticas, essa ordem-objeto, pela sua força autolegitimadora, catalizava o labor técnico da ciência e da filosofia do direito como um fim em si, além e acima da ordem social concreta, cumprindo um papel ideológico de preservação e reprodução dessa mesma ordem. (COELHO, Luiz Fernando, 2003, p. 1).

A mera cientificidade não mais abarcava condições de prover as demandas sociais, fazendo nascer um pensamento crítico em sua atuação e formulação teórica.

A importância da discussão sobre o “pensamento jurídico crítico” é plenamente justificada, porquanto o modelo de cientificidade que sustenta o discurso jurídico liberal-individualista e a cultura normativista tecno-formal está em processo de profundo esgotamento. (WOLKMER, Antonio Carlos, 2015, p. 21).

Neste contexto é que surge o Pensamento Jurídico Crítico, como um avanço da mero “mero modelo de cientificidade”. Nas palavras de Antonio Carlos Wolkmer, o Pensamento Jurídico Crítico, portanto, pretende:

repensar, dessacralizar e romper com a dogmática lógico-formal imperante numa época ou num determinado momento da cultura jurídica de um país, propiciando as condições e os pressupostos necessários para o amplo processo estratégico/pedagógico de ‘esclarecimento’, ‘autoconsciência’, ‘emancipação’ e ‘transformação’ da realidade social. (WOLKMER, Antonio Carlos, 2015, p. 21)

Portanto, nas palavras de Coelho (2003, p. 13) “fica assim definido o contexto da teoria crítica do direito como a união dialetizada entre a teoria e a experiência, na realização do direito como espaço de luta e conquista com vistas à autonomia dos indivíduos e à emancipação das sociedades”.

  1. Direito com a arte na perspectiva crítica.

Ao embarcar as potências e possibilidades manifestadas pela arte no plano real-existencial, como mecanismo proporcionador de uma empatia englobante, transmitindo, consequentemente, o pensamento crítico, é que entra capacitação de estudos interdisciplinares.

Wolkmer, em sua obra “Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico” alude quanto às tendências inovadoras que rondam a Teoria Crítica do Direito. Para o autor, há uma necessidade emergencial que estas tendências sejam revestidas por uma redefinição racional e um novo fundamento epistêmico – tanto nas ciências humanas quanto no mundo do Direito.

(…) a linearidade histórico-social do pensamento jurídico-filosófico contemporâneo é marcada, nas últimas décadas, por múltiplas tendências inovadoras, compartilhadas por ideias, autores e escolas, e que acaba reforçando a convicção da profunda crise dos valores, a necessária redefinição da racionalidade que sustenta o saber oficial dominante de tradição iluminista, a obrigatoriedade de se buscar um outro fundamento epistêmico e, por derradeiro, a inegável significação de que se reveste, presentemente, a emergência do pensamento crítico (teórico-prático) nas ciências humanas e no mundo do Direito. (WOLKMER, Antonio Carlos, 2015, p. 269).

De acordo com o autor citado, há uma necessidade emergencial de que o pensamento crítico (teórico-prático) se envolva e seja absorvido pelas (e nas) ciências humanas e jurídicas (mundo do Direito). Ora, havendo a necessidade de uma visão e pensamento crítico para o Direito e para as ciências sociais, deve haver sempre uma fonte para constatação desta criticidade envolta à realidade. Uma criticidade que possa mostrar pensamentos profundos, insurgentes, reais e reflexiva. Para tal atribuição, a arte é mais do que capacitada.

Ao constatar a arte como uma “expressão” que transmite os sentimentos ou perspectiva do “homem” sobre o mundo e sobre a realidade na qual está imerso, a “contaminação” do intérprete é nada mais do que a interpretação e absorção da visão de mundo que está sendo transmitida. Isso, ao ser analisada em perspectiva crítica, é a perfeita “fonte” para a transmissão do pensamento crítico ao Direito e às ciências sociais. Há, ainda, uma expansão com relação à operacionalidade da arte em esfera social e individual. Nas palavras de Streck (2010, p. 228) “olhando a operacionalidade, a realidade não nos toca; as ficções, sim”. Há, claramente, uma divergência referencial com relação à afirmação de Streck à proposta do presente trabalho, pois este se refere à literatura, e, ainda, tratando das ficções desta, não especificamente à arte de forma genérica. Mas há também de se aproximar esta conceituação da arte, pois a literatura nada mais é do que uma manifestação artística de imenso teor acadêmico, social e sentimental. Portanto, ao contatar a literatura como arte, alude-se que esta(s) serve(m) claramente como uma espécie de ferramenta que opera com maior funcionalidade na divulgação de pensamento crítico social e acadêmico/jurídico, fazendo com que o intérprete se deixe “tocar” pela arte, diferentemente de como é na realidade prática.

Já assimilada, portanto, a concepção de literatura em âmbito artístico, cabe, novamente, fazer uma alusão direta à literatura como manifestação artística e como se relacionaria, portanto, com o direito:

A relação entre Direito e Literatura se instaura no percurso metodológico e da pesquisa acadêmico-cientifica como possibilidade de abertura a novos horizontes, que permitam reflexão critica acerca de fenômenos sociais e jurídicos que se interpenetram. (SANTOS, Silvana, 2012, p. 33).

A arte (literatura) teria, então, como proposta, a ideia de revelação e disseminação de ideias e perspectivas, que abrem a possibilidade de proporcionar reflexões críticas, demonstrando fenômenos sociais e jurídicos – inclusive quando um está invisível para o outro – à fim de questioná-los e compreendê-los.

A obra de arte está se tornando cada vez mais, de Joyce à musica serial, da pintura informal aos filmes de Antonioni, uma obra aberta, ambígua, que tende a sugerir não um mundo de valores ordenado e unívoco, mas uma rosa de significados, um “campo” de possibilidades, e que, para obtê-lo, exige cada vez mais uma intervenção ativa, uma escolha operativa por parte do leitor ou espectador. (ECO, Umberto, 2016, p. 271).

Novamente fazendo alusão à operacionalidade que Lênio Streck se refere e tomando com base a teoria artística contemporânea de Umberto Eco, constata-se a visão crítica que a arte proporciona, abrindo um “campo” de possibilidades que deve ser intervencionado através de escolhas operativas e críticas do espectador/leitor/intérprete.

Certos momentos, a arte pode manifestar a crítica de forma mais indireta, como é o exemplo da obra “Santa Ceia” de Marcos Zapata, exposto na Catedral de Santo Domingo. A obra apresenta em substituição ao pão – clássica alegoria ao “corpo” na tradição judaico-cristã – um “Cuy assado” (porquinho da índia), que se trata de uma iguaria servida em Cuzco. Há também a substituição do vinho – alegoria ao “sangue” – por garrafas de “chicha”, que se trata de uma bebida derivada do milho, também tradicional de Cuzco. E, para completar a obra, há, em substituição à Judas, o rosto de Francisco Pizarro – colonizador do Peru. O senso crítico da obra paira em torno do descolonialismo, que busca(va) a destruição da cultura clássica peruana pelo modelo eurocêntrico – pensamento ainda muito predominante na Teoria Crítica.

Destaca-se, também – obviamente – a literatura. A literatura, de acordo com Afrânio Coutinho (1978, p. 9-10) “é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do artista e retransmitida através da língua para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma corpo e nova realidade”. Na condição de transfiguração do real e como expressão, conforme já aludido anteriormente na conceituação de arte, a literatura pode facilmente manifestar críticas direcionadas e oriundas da sociedade. Obras clássicas como Os Miseráveis de Victor Hugo que trata um embate direto contra os ideais exegéticos de um univocismo semântico, Frankenstein de Mary Shelley que busca conscientização às diferenças e metaforiza o “monstro” tomado pela humanidade como “o diferente” – o que é, por si só, uma severa crítica à forma como a humanidade tem dialogado e conformado a modernidade –, Fausto de Johann Wolfgang von Goethe que demonstra a fácil cadência humana em se deixar desvirtuar pela influência do coletivo, ou obras mais voltadas para a realidade brasileira/latino-americana, como O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna que demonstra intensa crítica ao formalismo positivista, A Escrava Isaura de Bernardo Guimarães que trava uma dura luta à cultura escravista, dentre outras, demonstram grande valor em perspectiva criticista, seja em esfera social e/ou jurídica.

Como corrente literária, restam, também, histórias em quadrinhos que, por si próprias, merecem destaque no presente tema, seja tanto por seu aprofundamento dinâmico em temáticas diversas quanto por sua qualidade didática. Obras contemporâneas que demonstram tal relação de forma substancial e podem ser tomadas como exemplo excepcional são A Diferença Invisível de Mademoiselle Caroline e Julie Dachez que trata sobre o espectro autista, Não era você que eu esperava de Fabien Toulmé que trata sobre a trissomia do 21 (síndrome de down), Pílulas Azuis de Frederik Peeters que trata sobre a imunodeficiência humana (Aids), Desconstruindo Una de Una que trata sobre a discriminação e violência de gênero, Angola Janga de Marcelo D’Salete que trata sobre o colonialismo eurocêntrico e racismo, dentre outras. Há, evidentemente, uma infinidade de obras a serem citadas para demonstrarem reflexões tão profundas quanto as citadas – seja na literatura ou na corrente das histórias em quadrinhos –, mas as obras eleitas se destacam para o atual trabalho pelo fato de demonstrarem de forma singular a proposta das professoras Naspolini e Grossi. Isso constata-se ao assimilar o quanto as obras buscam, em seu âmago, uma conscientização social de seus “espectadores”, através de metodologias, por natureza, mais sensoriais e empáticas.

Sem dúvidas há um acervo artístico infinito quando se trata de manifestação de pensamento crítico, e, evidentemente, o presente trabalho não poderá tratar de todos, mas há, também, um movimento que merece particular destaque, assim como os já citados, para os fins propostos. Isto se dá, pois abrem inúmeras possibilidades de escolhas, intervenções, operacionalidades, “contaminação” e manifestação de pensamento crítico, sendo este o movimento musical do Rap (Hip-Hop). O movimento, basicamente, de acordo com Andressa Massoni e Frederico Augusto Garcia (2005, p. 1) “originou-se no Bronx por volta da década de 70, conflitos políticos ocorridos na década de 60, como, por exemplo, as leis segregacionistas e a discriminação do negro, propiciou a manifestação e o protesto da população marginalizada através da música, da rima, da dança e da arte”. Há, ainda, o contexto no qual o movimento se insere para que sua interpretação possa ser feita adequadamente:

Analisamos o rap no contexto da Poesia Oral por entendermos que ele expressa a realidade vivida na periferia e nas favelas da cidade, ou seja, utiliza um contexto coletivo e suas manifestações são “mais comuns do que pessoais”. (MASSONI, Andressa; FERNANDES, Frederico Augusto Garcia, 2005, p. 2).

Por isso, o rap não pode ser analisado sem considerar o contexto no qual está inserido, “isto é, da pessoa que as (o) interpreta, do ato de interpretar e, sobretudo, da situação de vida e de convivência, em função das quais foram elaboradas e são executadas.  (CANDIDO, 2002, p. 43 apud MASSONI, Andressa; FERNANDES, Frederico Augusto Garcia, 2005, p. 2).

Algumas letras de músicas brasileiras de Hip-Hop demonstram claramente essa relação e representação da realidade na qual se referem os autores – seja como viventes ou meros espectadores. Dois exemplos bastante práticos e contemporâneos que se encontram “em alta” nas redes de comunicação são “Rap News” de Mc Sid e “O Rap é Preto” de Fabio Brazza.

Serviço público é regido na incompetência

O país laico é mais religião do que ciência

E ter uma bancada evangélica racista e homofóbica

É sinal dessa democracia em decadência (SID, 2017).

Salário é mixaria, se aposentar é utopia

Mas chegar na velhice já é lucro pra quem vive na periferia

Eu preferia tomar um 7 a 1 todo dia

Do que ver esses 171 roubando nossa aposentadoria (BRAZZA, Fabio, 2017).

Os trechos citados demonstram com clareza tanto a criticidade do movimento quanto a necessidade de se inserir minimamente na realidade na qual o autor está exposto para compreender o sentido da mensagem. Portanto, voltando à base interdisciplinar da discussão, em consonância com os entendimentos supracitados, Luiz Fernando Coelho assevera:

(…) o objetivo almejado pela teoria crítica do direito é uma visão realista a partir da sociedade, e não o inverso. Trata-se de um novo realismo, não o do senso comum, acomodado com as coisas dadas, mas um realismo crítico, propondo-se ao repensar e à rediscussão da função social do direito e dos juristas, dentro do espírito de renovação que sempre animou as faculdades de direito. (COELHO, Luiz Fernando, 2003, p. 336).

Portanto, há de se determinar em consonância com os exemplos citados de manifestações artísticas, que a Teoria Crítica do Direito tem por objetivo trazer uma visão mais realista de caráter crítico ao intérprete, quebrando o clássico senso comum disseminado pelas mídias e portais de comunicação ou relações e ações sociais, propriamente ditas. Para tal, é importante uma fonte reflexiva e empática, para que o intérprete possa ter uma visão mais sensitiva de determinados casos. Nesta perspectiva que se possibilita à arte a serventia instrumentalizada de conexão com a reprodução e compartilhamento do pensamento jurídico crítico, pois, afinal, como trazido por Umberto Eco (2016, p. 272) “a arte é uma forma de atividade que estabelece uma relação dialética com outras atividades, outros interesses e outros valores”. As expressões artísticas trabalham em conformidade com as expressões do Direito. A Teoria Crítica do Direito pode usar a arte para seu desenvolvimento e esclarecimento de determinadas nebulosidades na esfera social, e a arte usa o pensamento crítico para se moldar e tomar forma.

  1. Conclusão.

À guisa de conclusão, cabe, inicialmente, esclarecer e constatar que a arte, em seu âmago teórico, pode com êxito se relacionar e reproduzir o Direito assim como, principalmente, a manifestação do pensamento crítico. A Teoria Crítica do Direito é demonstrada, talvez, com até maior clareza e intensidade na arte do que em outras formas de compartilhamento de conhecimentos e informações.

O estudo das professoras Marisa Naspolini e Miriam Pillar Grossi, citado no presente trabalho, demonstram com clareza excepcional esta manifestação e absorção de informação concisa, demonstrando, além de outras coisas, como a arte proporciona um senso de empatia ao intérprete. Desenvolver um senso de empatia adequado, por sua vez, é essencial para a convivência social e, principalmente, para desenvolver um pensamento crítico com relação à sociedade em si – neste termo, encaixa-se, também, o Direito no marco da criticidade.

O Direito nada mais é do que uma expressão de um paradigma coercitivo de “dever ser”. Com o advento da Teoria Crítica, surge a ideia de o “dever ser” se relacionar e/ou observar o “ser”, sem se abster de realidades alheias à mera positivada. Neste contexto que se constata com eficácia, conforme demonstrado no decorrer do presente trabalho, que a Arte e o Direito, enquanto paradigmas de expressões variadas, podem se relacionar, observar e complementar. Conforme alude Fernando Pessoa (1966, p. 30) “O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, o fim da arte superior é libertar”.

De tal forma, consolida-se a arte como mecanismo de reflexão e disseminação de pensamento crítico, e não simples apreciação momentânea. E, assim como a arte se relaciona com o direito e com seu pensamento crítico, o direito também se relaciona com esta, contendo uma interdisciplinaridade singular, que conduz a reflexão e o fenômeno compreensivo para um campo totalmente novo, onde as possibilidades de exploração e renovação são de uma variedade excepcional.

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TOULMÉ, Fabien. Não era você que eu esperava. Tradução Fernando Scheibe. São Paulo: Nemo. 244 p.



Pensamento jurídico crítico latino americano e práxis de libertação: Reflexões desde o pensamento de Ignacio Ellacuría[18].

(Latin American legal critical thinking and libertation’s praxis: Reflexions since Ignacio Ellacuría’s thinking).

 Ivone Fernandes Morcilo Lixa[19]

 

 

Resumo: O trabalho tem como objetivo investigar e discutir as contribuições do pensamento de Ignacio Ellacuría na construção da perspectiva crítica decolonial do direito latino americano contemporâneo. Trata-se de uma inicial investigação dividida em dois momentos: o primeiro trata de descrever e analisar as categorias filosóficas que fundamentam o conceito ellacuriano de realidade histórica e no segundo relacionar e discutir tal conceito como possibilidade de pressuposto do pensamento jurídico crítico latino americano decolonial. Ellacuría, filósofo, teólogo e pensador político assassinado em 1989 por membros do exército salvadorenho, tem sua perspectiva teórica desde os excluídos, o mesmo horizonte desde o qual foi elaborada a Filosofia da Libertação Latino Americana que não passou despercebida pelo pensamento jurídico crítico definido nas últimas décadas do século XX. Em tempos de desconstruções pós-modernas, aprofundamento das desigualdades sociais e grandes tragédias humanas, de um lado, e aprofundamento da crítica e de resistências decoloniais de outro, sobretudo no campo jurídico, é atual e necessário resgatar Ignacio Ellacuría, pensador militante para quem o saber, e consequentemente o agir, é politicamente situado e comprometido desde a necessária utopia de libertação.

Palavras-chave: Filosofia da Libertação – Crítica Jurídica – Decoloniedade.

Abstract: This work has as objective investigate and discuss the contributions of Ignacio Ellacuría’s thinking in the construction of the critical colonial perspective of contemporary Latin American law. It is an initial investigation divided into two moments: the first is to describe and analyze the philosophical categories that underlie the Ellacurian concept of historical reality and in the second to relate and discuss such concept as a possibility of the presupposition of decolonial Latin American critical legal thinking. Ellacuría, a philosopher, theologian and political thinker assassinated in 1989 by members of the Salvadoran army, has his theoretical perspective from the excluded, the same horizon from which the Philosophy of Latin American Libertation was elaborated wich didn’t go unnoticed by the critical juridical thinking defined in the last decades of the twentieth century. In times of postmodern deconstruction, deepening of social inequalities and great human tragedies, in one side, and deepening of criticism and decolonial resistance on the other, especially in the legal field, it is current and necessary to rescue Ignacio Ellacuría, a militant thinker for whom knowing, and consequently, acting, is politically situated and committed since the necessary utopia of libertation.

Keywords: Philosophy of Libertation – Legal Critic – Decolonization.

  1. Ignácio Ellacuria (1930-1989)[20]: o intelectual militante.

Na madrugada do dia 16 de novembro de 1989 um grupo de soldados do exército salvadorenhos invadiram a residência dos jesuítas da Universidad Centroamericana (UCA) de San Salvador e executaram seis jesuítas: Ignácio Ellacuria, Segundo Montes, Ignácio Martín-Baró, Amando López, Juan Rámon Moreno e Joaquín López. Para não restarem testemunhas foram também mortas sem piedade cozinheira da residência Elba Ramos e sua filha Celina, que se abrigavam na residência protegendo-se da guerra que estava sendo travada nas ruas da capital salvadorenha. Seguramente a execução fazia parte de um plano do governo local, na época chefiada por Alfredo Cristiani, que pretendia culpar a guerrilha pelas mortes e assim levantar a opinião pública internacional contra os guerrilheiros. Entretanto, o plano foi frustrado porque foi apurado que a ordem de execução partiu de oficiais do exército, mas, nunca os culpados foram levados a julgamento.

O assassinato de Ellacuría, assim como sua vida, possui um sentido muito claro: como grande filósofo e discípulo próximo do destacado pensador espanhol Xavier Zurubi (1898-1983), discípulo de Ortega y Gasset e Martin Heidegger, pensou a filosofia a serviço da causa dos “pobres da terra” elaborando elementos para a compreensão da realidade histórica como via de libertação. Como teólogo, soube articular a mensagem do cristianismo de salvação com a luta pela libertação na América Latina, reconhecendo que a dominação, exploração e empobrecimento do povo tinha, e ainda tem, como causa a injustas estruturas e instituições econômicas sustentadas politicamente por grupos das elites que se revezam no poder assumindo diferentes discursos legitimidores.

Ellacuría, ao assumir a tarefa de repensar a universidade, da qual era reitor, como instituição à serviço da libertação, e sua firme esperança pacificadora de reconciliação política, bem como sua morte sacrifical, que poderia ter sido evitada porque sabia que dos riscos de seu sacerdócio e militância intelectual, são condições intimamente relacionadas. Sua opção de vida pela paz, seu pensamento a serviço das maiorias oprimidas e clareza política permanece sendo fonte inspiradora a nos lembrar que em duros tempos de intolerância e riscos políticos o intelectual não pode permanecer paralisado. Ao contrário, são tempos de ação e de aprofundar a reflexão. Tempos de buscar fontes que sirvam de inspiração para enfrentar o difícil desafio de transformação e recriação humanizadora desde e para uma realidade libertadora e pacificadora (LUCIA, 2014, pgs. 3-4).

O horizonte ético e político de Ellacuría, a existencialidade histórica concreta e sua opção militante por uma filosofia da práxis são fatores desde os quais se situa o núcleo de seu pensamento, uma vez que para o pensador espanhol a filosofia possui uma dupla função: em primeiro momento apreender a realidade e em um segundo transformá-la. Dialogando com Hegel e Marx define sua matriz teórica em Xavier Zubiri, filósofo estudioso do campo da metafísica do conhecimento, para quem a realidade o objeto central da filosofia é a unidade da realidade que é uma estrutura resultante de uma dinamicidade estrutural e estruturante do mundo real (ELLACURÍA, 1999).

Desde a concepção de que a filosofia é a maior expressão da liberdade por ter como tarefa o desenvolvimento da criticidade através da qual o ser humano se liberta de ilusões, temores, senso comum e da própria tradição institucionalizada, Ellacuría demonstra que a reflexão crítica coloca a nu as relações de dominação mantidas sob práticas e ideologias de legitimação e, portanto, o conhecimento deve possuir uma função libertadora no presente histórico. Demonstra nosso pensador que ao longo da história, desde os pré-socráticos até os modernos, pensar a realidade sempre teve como propósito a liberdade e a libertação. E em assim sendo, a função da crítica está vocacionada em tornar clara a ideologia dominante e as estruturas de poder que sustenta e legitima (SENET, 2012).

As categorias centrais de seu pensamento são definidas na obra Filosofía de la Realidad Histórica de Ignacio Ellacuría (1999), trabalho inacabado e publicado após sua morte, na qual são definidos os elementos centrais de seu pensamento tais como o objeto da filosofia, o de materialidade histórica e a realidade formal da história, dentre outros. Na obra Ellacuría define realidade histórica como algo de amplo alcance metafísico, como uma realidade radical, na qual se radicalizam todas as demais realidades (TAMAYO e ALVARENGA, 2014, p.21).

Realidade história, objeto último da filosofia na concepção ellacuriana, não se trata tão simplesmente daquilo que acontece na história ou mesmo a narrativa desde o presente de uma sequência de fatos, mas a totalidade dinâmica, estrutural e dialética da realidade, uma totalidade processual que engloba todas as realidades (material, biológica, social, política, etc) que se expressa de maneira unitária e qualitativa no humano existencial.

Portanto, trata-se de uma concepção em que a realidade histórica, as condições materiais da existência humana, é um sistema sobre o qual é necessário refletir enquanto realidade particular em relação a todas demais. Diferentemente de pensadores como Ortega y Gasset, para Ellacuría a realidade radical não é uma subjetividade tampouco sua tradução como filosofia da vida, mas realidade mediada pela práxis histórica, e desde tal conceito, nosso pensador afasta-se do idealismo conferindo ao ser humano e sua condição uma posição metafisicamente relevante uma vez que considera a práxis histórico-social na qual vislumbra-se novas possibilidades do ser e ao realizá-las confere a realidade maior riqueza.

No pensamento ellacuriano construído desde as bases filosóficas, teológicas e política-institucionais, o “oprimido” e “empobrecido” possui lugar privilegiado e esta opção é declarada quando assume seu trabalho na Universidad Centroamericana “José Simeón Cañas” – UCA (San Salvador):

…la UCA trabaja desde la luz y en la luz que las mayorías oprimidas del mundo derraman sobre todo él para enceguecer a unos, pero para iluminar a otros….donde nos debemos situar como universitários para encontrar la verdad histórica (ELLACURÍA, 1999, pgs. 298-299).

Ellacuría sustenta que a finalidade não somente da filosofia, mas do saber e prática acadêmica está situada desde os oprimidos, única opção legítima para os intelectuais e universidades, sendo desde este horizonte e “lugar” que é definida a possibilidade de acessar a uma realidade verdadeira de acordo com as possibilidades a serem abertas e conhecidas pela práxis histórica.

Seguramente por esta razão Ellacuría vê na filosofia latino-americana, marcada pela herança história de dominação e opressão, a possibilidade de luta pela emancipação, uma vez que representa um instrumento de reflexão e tomada de consciência do papel transformador do ser humano. E é neste sentido que se define a criticidade ellacuriana enquanto conquista do sujeito que lhe permite um posicionar-se diante de seu contexto histórico que se define desde dos processos sócio-políticos e econômicos e suas instituições.

No entender de Alejandro Rosillo Martinez (2008), por diversas razões a concepção de história e de conhecimento de Ellacuría é questionadora da tradição e da filosofia tradicional que é linear e elabora por um sujeito cognoscente individual e individualista e a crítica a esta percepção dominadora e colonialista não passa despercebida por Ellacuría uma vez que faz duras críticas à modernidade por constituir um modelo civilizatório dominador que constrói a pobreza. No entender ellacuriano a modernidade conduziu a formação de uma civilização que divide os seres humanos entre ricos e pobres, por ser um processo construído desde a necessidade de acumulação.

A “opção preferencial pelos pobres”, traço marcante da filosofia e teologia da libertação, constitui mais que uma concepção cristã, mas sobretudo epistemológica e política presente no pensamento crítico latino-americano elaborado desde a década de 70 e que no campo do direito não passa despercebida. A filosofia e teologia da libertação admitem a possibilidade de (re)descobrimento do Outro ocultado pelas estruturas sociais, econômicas e políticas. Portanto, introduziram, na América Latina em particular, uma forma de pensar e agir politicamente “ouvindo” e “dando voz” ao povo e a aos oprimidos, assumindo, assim, o saber como forma de luta política.

Voltando o olhar ao pensamento jurídico crítico latino-americano, elaborado desde as mesmas bases históricas e pressupostos políticos de Ignacio Ellacuría, a convergência de eventos sociais que reclamam uma explicação e posicionamento teórico em fins do século XX, no campo de Direito o tempo passa a ser o de ampliação e radicalização da democracia, não apenas em relação ao Estado com o surgimento do que se convencionou chamar de constitucionalismo latino americano, mas com a convivência de novas forças sociais e políticas plurais, levando o Estado e o Direito, tradicionais centros articuladores e representativos de poder, a reconhecer e ceder espaço a novas formas de libertação, até então marginais e periféricas.   E assim vai se descortinando o decolonial que passa a significar uma nova resistência epistemológica alternativa às alternativas críticas tradicionais que aponta para novas “constelações” de sentido no que diz respeito tanto à compreensão do Direito como a possibilidade de ser concebido como instrumento de transformação emancipadora e democrática (MEDICI, 2016).

  1. Crítica jurídica e práxis desde a emergência do decolonial.

As últimas décadas do século XX, tanto a nível local como global, foram marcadas por uma simultaneidade de processos e temporalidades, que em conjunto, desafiam os saberes e práticas herdadas da modernidade. Ao que parece seus tradicionais objetos se movem de forma acelerada em um “terreno movediço”, em não raras vezes tornando-se incompreensíveis, imperceptíveis e limitados. O reconhecimento, neste início de milênio, de que se unem, se cruzam e se dissociam processos de uma nova realidade caótica e complexa na qual novos caminhos se originam, é um desafio disponível para se repensar uma nova consciência política a partir da qual seja possível reconstruir conceitos que aliem novas formas de desenvolvimento e de poder.

Soluções teóricas capazes de fornecer elementos para serem demarcados novos espaços cotidianos de relações intersubjetivas democráticas. A partir desta perspectiva é que se pode “retornar ao futuro”, um tempo novo para uma existência social resignificada que aponta para uma específica perspectiva do imaginário e representações coletivas efetivamente solidárias (QUIJANO, 2001, p. 5).

A entrada para o século XXI é marcada por um aprofundamento da crise estatal, cujas múltiplas faces coloca, no entender de István Mészáros (2015, p. 15) questões difíceis de serem respondidas, tais como: por que as soluções tradicionais do Estado não conseguem produzir os resultados esperados? No entender de Mészáros as possíveis respostas implicam em superar um grande desafio: a crítica radical dos termos de referência fundamentais do Estado, salientando que a crítica apenas é possível se trouxer consigo uma alternativa historicamente sustentável.

Na tentativa de visualizar a partir da “margem” do discurso dominante sobre democracia, há que se reconhecer que sempre existiram diversas práticas contra hegemônicas negligenciadas e colonizadas pela lógica autoritária e dominadora do Estado discriminatório. No entender de Boaventura de Sousa Santos (2016, p. 18) os Movimentos Sociais, parte do discurso marginalizado, tem sido fundamental para renovar a agenda política e ampliar o campo político, uma vez que:

…a democracia não se reduz ao procedimento, às igualdades formais, e aos direitos cívicos e políticos, tanto simbólicas como materiais, da democracia às classes populares que mais poderiam beneficiar-se delas: daí a necessidade de conceber a democracia como uma nova gramática social que rompa com o autoritarismo, o patrimonialismo, o monolitismo cultural, o não reconhecimento da diferença; tal gramática social implica um enorme investimento nos direitos econômicos, sociais e culturais. (2016, p.18)

Indo   em direção a renovação do poder político-jurídico, simbolizado pelo Estado, impõem-se uma nova fisionomia. Enquanto criação simultaneamente geográfica, econômica, cultural, social e política, o Estado forma-se e “transforma-se segundo o jogo de forças sociais internas e externas, modificando-se de tempos em tempos   ou   continuamente” (IANNI, 1994,p.67), portanto,  dinâmico   e   com permanentes ressignificações, e sobretudo, delinear uma trajetória distinta da que foi idealizada pela Modernidade.

Desde seu início o projeto da Modernidade, em suas múltiplas faces – jurídica, política, ideológica, epistemológica, cultural, etc. -, foi produzido e reproduzido como relato coerente impedindo a visibilização de suas falácias e incoerências. Para pensadores críticos latino americanos como  Enrique Dussel, o paradigma eurocêntrico, o “espírito da Europa”, como verdade absoluta que se determina ou se realiza por si mesma e sem débitos, foi imposto não apenas internamente, mas no “mundo intelectual” de sua periferia, se desenvolve na segunda metade do século XVI e é a expressão de um necessário processo de simplificação racionalizada do mundo da vida e seus subsistemas (econômico, político, cultural, religioso, etc) cujo efeito é tornar “manejável” o sistema mundo.

Este processo civilizatório racionalizador da vida política, econômica e cotidiana, de acordo com o horizonte adotado, pode ser compreendido a partir de dois modelos: um primeiro que afirma a Modernidade como fenômeno exclusivamente europeu que teria se expandido para áreas com culturas “atrasadas” e fenômeno que necessariamente precisa ser terminado; um segundo, a partir da periferia negada, que recupera o irrecuperável da Modernidade e descobre o esgotamento do sistema mundo e pressupõe a libertação das vítimas oprimidas e/ou excluídas deste modelo.

Emancipação desde o horizonte decolonial significa reconhecer uma outra cartografia e outra forma de entender o mundo geográfico tradicionalmente distorcido e mitológico desde o século XV (projeção Mercator) que coloca a Europa no centro do hemisfério e desloca para o Sul o “resto” do mundo. Como diria o pintor e arquiteto uruguaio Joaquín Torres Garcia, nada nos obriga a aceitar e manter o Norte como norte, “no debe haber norte, para nosostros, sino por oposició en a nuestro Sur. Por eso ahora ponemos el mapa al revés, y entoces ya tenemos justa idea de nuestra posición, y no como quieren en el resto del mundo”.

Esta “geografia da dominação” tem traçado e estruturado o pensamento ocidental que, no entender recente de Boaventura de Sousa Santos é um pensamento abissal constituído como sistema de distinções visíveis e invisíveis, dentro do qual os invisíveis fundamentam os visíveis.  As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha” (2010, p. 32). O “outro lado” da linha é o colonial inexistente absoluto e o que é produzido é negado e irrelevante. Conclui Boaventura que além desta distinção fundamentar todos os conflitos modernos é o que distingue as sociedades metropolitanas das coloniais.

Se de um lado o momento atual é de anacronismos e inibições herdadas da colonização cultural, também é tempo em que se “deflagra novas condições para uns e outros, indivíduos, grupos, classes, movimentos, nações, nacionalidades, culturas, civilizações. Cria outras possibilidades de ser, agir, pensar, imaginar”(IANNI, 1994, p.73). Neste leque de possibilidades Milton Santos propõe a conscientização e riqueza da nação passiva.

Para Milton Santos (2000, p. 154 e segs.) a atual globalização impôs formas brutais de dominação que, para sua superação, é urgente a necessidade de rever ideias e palavras, como é o caso do termo “nação”. Para o referido autor, um país deve ser visto e compreendido em uma estrutural situação de movimento, na qual cada elemento está intimamente relacionado com os demais. Assim poderiam ser consideradas dentro de uma nação duas nações: uma nação ativa e uma nação passiva.

A chamada nação ativa, isto é, aquela que comparece eficazmente na contabilidade nacional  e  na  contabilidade internacional,  tem  seu  modelo conduzido pelas burguesias internacionais, tem seu modelo conduzido pelas burguesias internacionais e burguesias nacionais associadas. (….)A chamada nação ativa alimenta sua ação com a prevalência de um sistema ideológico que  define  as  idéias  de  prosperidade  e  de  riqueza  e,  paralelamente,  a produção da conformidade. A “nação ativa” aparece como fluida, veloz, externamente  articulada,  internamente  desarticulada,  entrópica.(SANTOS,2000, p. 56)

Este movimento, como desdobramento da dinâmica dos centros de poder, não é próprio, alerta Milton Santos. É uma dinâmica imposta e sem finalidade. É uma “cega agitação, um projeto equivocado, um dinamismo do diabo”.(2000, p. 156) Dinâmica valorizada quando se considera desenvolvimento como restrito ao campo econômico, ou seja, quando são associados crescimento econômico e desenvolvimento como simultâneos e interdependentes.

A entrada na cena política e jurídica dos movimentos sociais é a “volta do sujeito negado”, do empobrecido categoria central para Ellacuría, o retorno daqueles e para aqueles tradicionalmente desprovidos de “linguagem jurídica ” e invisibilizados.

Em que pese o esforço do pensamento jurídico crítico brasileiro e sua incansável luta pela democratização, resta em aberto um espaço jurídico que não pôde ser preenchido. É possível pensar uma alternativa às práticas alternativas e reinventar a crítica desde as experiências descolonizadoras brasileiras. Desde uma crítica à razão proléptica do direito moderno que, além de contrair o presente reconhecendo como única fonte compreensiva o direito estatal, reduz o espaço de mediação jurídica ao Estado, é possível ampliar espaços presentes emergentes.

Trata-se, portanto, de um retorno ao sujeito histórico, que denuncia os limites epistemológicos e metafísicos da teoria de direito elaborada na modernidade, sobretudo o paradigma positivista constitui a base de legitimação as práticas de do saber jurídico hegemônico. A perspectiva teórica do pensamento jurídico crítico e decolonial situa-se desde as bases da filosofia e teologia de libertação latino-americana que permite pensar as práticas jurídicas desde a emancipação, e desde esse marco teórico e contexto, o pensamento de Ignácio Ellacuría é importante referencial, por tratar-se de um posicionamento que rompe com o dogma da neutralidade intelectual e política, e, sobretudo, com a necessidade de assumirem os juristas seu papel e responsabilidade ética.

Adotando a sugestão de Boaventura de Sousa Santos no que chama de sociologia das emergências que é a prática de ampliar o presente reconhecendo o que foi subtraído pela sociologia das ausências, politicamente através de uma práxis libertadora, trata-se de ampliar os espaços de possibilidades de compreensão do direito para além do Estado, identificando agentes, práticas e saberes com tendências de futuro sobre as quais é possível ampliar as expectativas de esperança de superação do presente opressor.

Portanto, trata-se de uma ampliação sobre as potencialidades e capacidades ainda não reconhecidas e necessariamente movendo-se no campo das experiências sociais que desde as práticas do “reconhecimento”, “transferência de poder” e “mediação jurídica” são legítimos espaços de luta por dignidade humana, tal qual pensado por Ellacuría.

Indo nesta direção, é possível se falar em reconhecer o mundo social como   mundo   de   possibilidade   compreensiva   e, portanto, fonte   de   uma   nova racionalidade jurídica. Trata-se   de   adotar   uma   perspectiva   pluralista   que reconheça múltiplos e novos espaços de fontes normativas, apesar de na maioria das vezes, como lembra Antonio Carlos Wolkmer (2015, p. 155) ser informal e difusa.

Nesta perspectiva, é possível ampliar o espaço jurídico para além do estatal articulando saberes, práticas e ações coletivas inovadora até então pouco reconhecida. As múltiplas experiências das práticas pluralistas, buscam capacitar operadores do direito e refletir acerca da atuação jurídica dos sujeitos coletivos enquanto expressão dos movimentos   sociais, para   tanto   identificando   espaços   políticos   nos   quais   se desenvolvem novas práticas sociais que anunciam direitos, mesmo os que estão além do formal legal, além de buscar sistematizar informações obtidas das práticas sociais com vistas a criar novas categorias jurídicas.

Em síntese, significa assumir práticas pluralistas cujo espaço de investigação é inesgotável para o Direito. Identificar os elementos comuns nas traduções das múltiplas realidades – a jurídica e a coletivamente criada – para encontrar o comum, o ponto inicial para a tradução é uma tarefa que não cabe numa teoria hermenêutica que por sua natureza é universal.

Entretanto, há que se tomar em conta que a expansão do Direito e do Estado para a vida social que tem definindo um ativismo ilegítimo, acaba por transferir para o judiciário um poder extremamente amplo, cujo exercício é problemático tanto pela impossibilidade operacional do Judiciário em atender a imensa gama de demandas como pelo despreparo técnico de juízes.

Se de um lado, o Judiciário ao assumir esferas políticas que ultrapassam seus limites compreende democracia como a garantia de direitos individuais e coletivos que permitem condições materiais básicas de vida, e, portanto, de efetivo exercício de cidadania; por outro, a democracia também demanda o respeito a um amplo espaço de decisão política, incluindo os Movimentos Sociais como legítimos representantes da luta pela concretização e efetivação de Direitos Fundamentais.

Contra a tendência de “judicialização” da vida e da política surge a “repolitização” do direito, uma contra tendência às consequências desfuncionais do Direito e do Estado. O Estado Democrático de Direito no Brasil colocou em cena os Movimentos Sociais que na luta ou procura pela efetivação de demandas sentem-se impotentes e ficam ao desalento ao se confrontarem com um sistema judiciário composto por “autoridades” de linguagem incompreensível e presença arrogante.

Tal “repolitização” necessita ter como ponto de partida a elevação da participação popular na política criando mecanismos para resolução de conflitos de forma a estabelecer no Estado um poder popular e pluralista cuja prática destina-se a resgatar grupos que se encontram em situação de subjugação ou exclusão sem que consiga, por si mesmos, atender suas necessidades. Dessa maneira, simultaneamente, se enriquece a democracia com mecanismos participativos direitos, resgatando o “constitucionalismo primeiro” que está mais além do convencional e dominante. Trata-se de reconhecer as novas realidades constituintes cotidianas cujos atores, como sujeitos históricos, são os que dinamizam, desde a estrutura social, política e econômica, carregam em si a potencialidade transformadora vão reconfigurando a ordem jurídica.

  1. Conclusões.

 É no sentido de aproximar o pensamento de Ignacio Ellacuría, particularmente sua categoria de realidade histórica, da criticidade jurídica latino-americana que o presente estudo foi construído. Trata-se de estudo embrionário elaborado desde o objetivo de abrir e ampliar o saber jurídico crítico para as contribuições ellacurianas buscando-se introduzir especificamente na filosofia jurídica elementos que permitam uma reflexão elaborada desde o Outro e para o Outro tradicionalmente ocultado, negado e silenciado.

A pesquisa vem sendo desenvolvida desde uma metodologia dialética crítica na medida em que busca identificar e discutir categorias teóricas desde a compreensão do Direito e seus fundamentos legitimadores enquanto movimento ­praxístico-histórico e cultural, compreendendo o fenômeno jurídico latino-americano desde a Modernidade eurocêntrica e colonizadora. No estudo estão sendo trabalhadas categorias como “realidade histórica”, “epistemologia”, “crítica à modernidade”, “de(s)colonização”, “libertação”, “filosofia jurídica” e “pluralismo jurídico” desde autores que privilegiam uma perspectiva crítica e libertadora latino-americana tais como Antonio Carlos Wolkmer, Jesus António de La Torre Rangel, Aníbal Quijano, Enrique Dussel, David Sánchez Rúbio, Alejandro Rosillo Martinez, dentre outros, e destacadamente o próprio Ignacio Ellacuría.

Sem dúvida a historização do direito e do pensamento jurídico latino-americano permite visibilizar a realidade negadora e, desde uma perspectiva ellacuriana, assume relevância a utopia militante enquanto ação que potencializa a relação emancipação libertadora e realidade histórica. Ou seja, permite dar-se conta que sem a constatação efetiva da realidade, fonte de produção e reprodução de vida humana (SALAMANCA, 2006) do Direito enquanto instrumento inovador e revolucionário para os povos latino-americanos, não há possibilidade de um horizonte político e jurídico que aponte para a esperança. A esperança que mucho tiene que ver con el presente, porque lo que se pretende es sacarnos de él, sacarnos de la tierra de la esclavitud, a través de éxodo histórico, como processo de la liberación conducente de la tierra prometida (ELLACURÍA, 1999, p. 351).

1.                  Referências.

­­­­­­­­­­­­­ELLACURIA, Ignacio. Escritos universitários. San Salvador. UCA Editores, 1999.

­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­___________________. El objeto de la filosofia em Filosofia de la Realidad Histórica, UCA Editores, San Salvador, 1999.

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WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico – fundamento de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2015.



  Pluralismo Jurídico, Constitucionalismo Andino e Estado Plurinacional: luta política e resistência indígena na América Latina[21]

Legal Pluralism, Andean Constitutionalism and National Plural State: political struggle and indigenous resistance in Latin America

Ana Paula Alves Barreto Capestrano[22]

  

Resumo: Após a conquista das Américas, realizada principalmente por espanhóis e portugueses, a América Latina passou por séculos de expropriação, exploração e aculturação das populações indígenas originário campesinas. Nas últimas décadas, entretanto, frente à crise do Estado neoliberal e à redemocratização da América Latina, os movimentos indígenas passaram por grandes transformações, redescobrindo seu papel na formação do Estado. Esse movimento emancipador e decolonial que reafirma e fortalece a pluralidade e as especificidades das nações originárias levou ao reconhecimento da Plurinacionalidade nas constituições da Bolívia (2008) e do Equador (2009), numa demonstração de força e resistência das populações indígenas na manutenção e perpetuação de sua diversidade e da cosmovisão das diferentes nações.

Palavras-Chave: Pluralismo jurídico; Constituição; Plurinacionalidade; Resistência indígena.

Abstract: After the conquest of Americas, carried out mainly by spanish and portuguese, Latin America went through centuries of expropriation, exploitation and acculturation of native indigenous peasant populations. However, in the last decades faced with the crisis of  neoliberal State and with the redemocratization of Latin America, the indigenous movements have endured enormous transformation, rediscovering their role in the State formation. This emancipatory and decolonial movement that reaffirms and strengthens the plurality and particularities of the original nations led to the recognition of Plurinationality in the constitutions of Bolivia (2008) and Ecuador (2009), in a demonstration of strength and resistance of the indigenous populations in the maintenance and perpetuation of its diversity and the worldview of the different nations.

Keywords: Legal Pluralism; Constitution; Plurinationality; Indigenous resistance.

1.                  1. Introdução

O processo de colonização[23] realizado na América Latina teve um padrão bastante marcante, caracterizando-se principalmente pela exploração voraz de territórios e populações, resultando no genocídio dos povos originários, na aculturação dessas populações e na inferiorização e submissão/escravização das populações restantes, menosprezando e enfraquecendo sua cultura e costumes além da destruição impiedosa do meio ambiente.

A partir das ocupações, as metrópoles colonizadoras – como parte do projeto de domínio e homogeneização – impuseram sua cultura e seus saberes suprimindo e “inviabilizando a dinâmica espontânea e consuetudinária de um pluralismo comunitário indígena” (Wolkmer, 1998, p.76). Durante séculos, o projeto da modernidade na América Latina se deu nos pilares da apropriação e da violência, onde o colonizador enxergava a terra e os povos colonizados como coisas, ou seja, como produtos a serem comercializados a fim de gerar riquezas para a metrópole (Wolkmer; Kyrillos, 2015, p.2).

 Mesmo após a independência o viés colonizador permaneceu, especialmente fomentado por políticas de governos e de mercado neoliberais, que buscam o desenvolvimento e crescimento econômico à custa da exploração e empobrecimento das nações periféricas, seja esgotando seus recursos naturais, seja explorando mão-de-obra precária e barata ou mesmo escravizada.

Face a resistência dos povos originários campesinos e do fortalecimento dos movimentos sociais que os representavam – que adquirem a percepção de que o objetivo de suas lutas deveria ser, de certa forma, menos individualista e focado apenas em suas demandas particulares, para se tornar muito mais amplo e inclusivo, abraçando as reinvindicações de todos, superando a colonialidade – a América Latina, em seu processo de redemocratização, passa a perceber a importância do compromisso democrático com a diversidade social, cultural e jurídica e a autonomia dos povos que a compõem.

Nesse contexto, a luta dos povos originários em busca do reconhecimento de suas diferentes nações, culturas e práticas sociais, identificando novos saberes até então subestimados em razão da prevalência secular de toda uma cultura colonizadora onde apenas o pensamento eurocêntrico possuía valor acadêmico e reconhecimento institucional (Ferrazzo; Lixa, 2017, p. 2631), ganha força e se modifica.

Por outro lado, como destaca Aníbal Quijano (2005):

Se o conceito de modernidade refere-se única ou fundamentalmente às ideias de novidade, do avançado, do racional-científico, laico, secular, que são as ideias e experiências normalmente associadas a esse conceito, não cabe dúvida de que é necessário admitir que é um fenômeno possível em todas as culturas e em todas as épocas históricas. Com todas as suas respectivas particularidades e diferenças, todas as chamadas altas culturas (China, Índia, Egito, Grécia, Maia-Asteca, Tauantinsuio) anteriores ao atual sistema-mundo, mostram inequivocamente os sinais dessa modernidade, incluído o racional científico, a secularização do pensamento, etc.

A partir desse paradigma nasce a pretensão de ver reconhecido no plano das constituições andinas o Estado Plurinacional, presente na cosmovisão indígena e na sociedade fática, porém desconsiderado no plano legal que despreza a concepção de um direito plural que se desprenda da eurocentralidade.

Diante desse cenário esse artigo pretende analisar o papel decisivo da atuação dos movimentos indígenas campesinos no curso histórico que levou ao reconhecimento da plurinacionalidade, sob o prisma da emancipação da colonialidade dessas populações e o fortalecimento dos movimentos sociais frente às pressões do neoliberalismo; entendendo a cosmovisão indígena no que tange ao pluralismo jurídico e a importância do reconhecimento dessas diferentes nações no plano constitucional dos Estados do Equador (2008) e da Bolívia (2009).

Para tal, adotou-se a abordagem dedutiva a partir de revisão bibliográfica baseada na análise de obras e artigos científico-jurídicos relacionados a essa temática, partindo das teorias críticas que têm se desenvolvido concomitantemente às práticas sociais insurgentes na América Latina, objetivando inicialmente identificar alguns conceitos elementares para a compreensão desse novo constitucionalismo – especialmente os conceitos de pluralismo jurídico e plurinacionalidade.

2.                  2. Os conceitos diante dos contextos

Antes de adentrar à gênese do tema, faz-se indispensável a delimitação de alguns conceitos e diferenciações. O primeiro ponto a ser trabalhado, portanto, encontra-se no conceito de pluralismo jurídico e, em seguida, é pertinente esclarecer o significado de plurinacionalidade no contexto das constituições andinas.

Ao pesquisar a maneira como se deu a dinâmica de conquista, colonização e exploração tanto das terras latino-americanas quanto de seus habitantes, é possível verificar que, ainda que o processo de civilização tenha se desenvolvido baseado na “violência contra o homem no processo produtivo e exclusão total do autóctone no aspecto antropológico” (Pires, 1998, p. 55-56) a partir do qual a metrópole objetivava impor um Direito único, homogêneo, padronizado nos moldes luso-hispânicos, não houve como impedir uma certa adequação ou modificação frente à diversidade cultural e jurídica pré-existente à chegada dos colonizadores ao continente americano.

Nesse contexto e utilizando as palavras de Wolkmer (1997, p. 157) é possível definir pluralismo jurídico como uma “formulação teórica e doutrinária” que “designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos sociais com particularidade própria”, coexistindo diversas fontes do direito para além da legislação estatal, onde os diferentes grupos estruturam e regulam suas próprias jurisdicidades. Ainda que subjugados, essa sempre foi uma realidade dos povos originários latino-americanos, em especial das populações andinas, que resistiram à colonização e mantiveram vivos seu modo de vida, sua cultura e, dentro do possível, suas instituições.

Examinando a obra de John Griffiths, Wolkmer (1997, p.185) destaca a crítica feita em relação à dificuldade que algumas formulações pluralistas apresentam de romper com a ideologia do centralismo jurídico, que “concebe o Direito como ordem exclusiva e unificada numa hierarquia de proposições normativas”. Nesse ponto faz-se importante diferenciar o pluralismo legal, quando o Estado eventualmente reconhece e incorpora no seu ordenamento determinadas manifestações plurais da sociedade, porém com o objetivo de manter o monopólio da produção normativa, deslegitimando toda e qualquer prática pluralista de origem não estatal; daquele pluralismo realmente autêntico, que possui uma matriz horizontal, de produção normativa não hierárquica, fruto das relações existentes entre os diferentes campos e atores sociais (Wolkmer, 1997, p.185).

Tendo em mente que uma constituição não é apenas norma positivada que visa a organização do estado em um sistema legislativo hierarquizado, mas também é fruto das “correlações de forças e lutas sociais em um dado momento histórico do desenvolvimento da sociedade” (Wolkmer, 2011), expressando e materializando o contrato social firmado entre toda a sociedade numa relação de textos e contextos, as constituições andinas estabelecem um marco no constitucionalismo moderno, ao romperem com o paradigma jurídico dominante de matriz europeia.

Essa ruptura se dá na medida em que tais constituições, ainda que sob a perspectiva colonizadora do direito europeu, iniciam ao final do séc. XX um processo onde passam a estabelecer as primeiras noções de nações multiculturais, reconhecendo a existência da pluralidade étnica e cultural proveniente dos povos originários, garantindo e efetivando direitos fundamentais e seguem até a atualidade quando se observa o processo de refundação do Estado ao deixar para trás os séculos de opressão e invisibilidade das culturas originário campesinas e buscar o reconhecimento da ancestralidade do conhecimento, do domínio dos territórios, do modo de vida e das cosmovisões das populações indígenas originárias e afrodescendentes (Farjado apud Freire; Silva, 2017, p. 178), através do reconhecimento da Plurinacionalidade e de todas as suas implicações.

Nesse sentido era a proposta para a redação do artigo 1º da Constituição da Bolívia, no projeto elaborado pela organização Pacto de Unidad[24], que enfatizava a existência de nações anteriores à colonização e à criação do estado Boliviano e pleiteavam, portanto, o reconhecimento do Estado Unitário Plurinacional Comunitário, do qual fariam parte todas as diferentes comunidades originárias, com direito ao autogoverno e ao desenvolvimento de suas instituições e justiça próprias[25] (Tudela, 2017, p. 2966).

Nessa proposta estava clara a ideia de que, na concepção dos povos originários, um Estado Plurinacional é aquele onde os diferentes povos que vivem no território compõem nações diversas e que, a partir de sua diversidade, pretendem fazer parte de um mesmo Estado que seja solidário, cooperativo, intercultural, que reconheça, respeite e se adeque às diferenças, não exigindo que as pessoas apenas sirvam aos interesses do Estado, mas sim que o bem viver de todos os cidadãos seja o objetivo da existência do Estado. Um Estado que supere a colonialidade e que seja em verdade uma alternativa ao estado moderno neoliberal, capitalista, segregador, retornando às suas origens e retomando o conhecimento, os saberes e a cosmovisão de seu povo.

Um Estado Plurinacional é aquele que supera a distinção entre o “nós” e os “outros” (Quijano, 2005, p. 228) onde o padrão europeu – de civilização, de ciência ou de identidade étnica – é considerado universal, desenvolvido, superior e, portanto, um ideal a ser alcançado; para dar início à construção de uma nova sociedade onde não apenas os povos historicamente oprimidos possuem o devido reconhecimento, mas em verdade um Estado onde todo e qualquer ser é valorizado em sua individualidade e diversidade. É um Estado onde as diferentes nações originárias (indígenas, campesinas ou afrodescendentes) se veem não apenas reconhecidas, mas têm seus modos de vida, suas instituições e sua autonomia legitimadas e que, em conjunto com as demais nações formam o Estado Unitário Plurinacional Comunitário, numa convivência intercultural, democrática, solidária e cooperativa, como proposto pelas organizações que participaram das constituintes na Bolívia e no Equador.

3.                  3. Da resistência ao processo colonizador à emergência das organizações indígenas

O intento colonizador europeu para além-mar inicia a partir da retomada do poder da igreja cristã na Europa, depois de um longo período de submissão a outras religiões, especialmente aos muçulmanos que dominaram por séculos toda a região. Após a retomada da prevalência do cristianismo na Europa, processo esse que tem início com as primeiras Cruzadas[26] (1095) e ganha força com Santo Tomás de Aquino[27] (séc XIII), igreja e império aliam-se no desejo de promover conquistas ultramarinas, levando os povos ibéricos para outros territórios expandindo o poderio da igreja e do Estado (Pires, 1998, p. 56-58).

No campo da economia, o principal foco era angariar o máximo de riqueza possível dos territórios conquistados e transferir tudo à metrópole, que possuía já naquela época dificuldades de suprir suas necessidades de alguns tipos de alimentos e produtos variados de consumo. Possuíam também grande interesse nos metais nobres e pedras preciosas, que além do grande valor na comercialização com outros países, eram desejados e consumidos pela elite burguesa, pelos nobres e pelo Estado. Com novas possibilidades de comércio e relações com outros países a economia se fortaleceu, dando início ao sistema de economia capitalista, mais vantajoso que o feudalismo para a nova classe de comerciantes, que emergiu a partir de então.

Esse cenário imprimiu características diferenciadas e bastante violentas na forma como os conquistadores enxergavam os povos que encontraram habitando a região ao chegar às Américas, não os reconhecendo como seres humanos, mas sim como coisas, objetos dos quais poderiam se apropriar e explorar conforme suas necessidades. Como relata Quijano (2005, p. 228), essa é a base do colonialismo, a partir da qual cria-se a ideia de distinção racial, na qual as diferenças existentes são hierarquizadas e a incorporação de certos valores faz com que os europeus (nós) se considerassem superiores aos outros (povos originários, africanos escravizados e seus descendentes). Essa possibilidade de classificar os seres humanos em diferentes raças tinha a finalidade de desumanizar os diferentes e, de acordo com o autor, só passou a existir após o início da colonização nas Américas, pois se adequava perfeitamente aos objetivos capitalistas de exploração idealizados pela elite burguesa das metrópoles.

Nessas bases se desenvolveu a conquista e a colonização de toda América Latina, com a dominação dos territórios, da natureza e dos povos, eliminando tudo que fosse contrário ao ideal de modernidade europeu[28], passando principalmente pelo processo de aculturação dos povos originários, na tentativa de impor um pensamento único, iniciando pela apropriação da terra e dos corpos, em seguida pela religião, passando pela produção do conhecimento e alcançado a organização do Estado.

O pensamento colonizador eurocêntrico se baseia principalmente na ideia de que o homem europeu é o único civilizado frente ao restante do mundo, e que possuem, portanto, a missão de civilizar os demais povos, marginalizando e até mesmo criminalizando as práticas e saberes dos povos originários (Ferrazo; Lixa, 2016, p. 2633). Esses elementos que tentam anular os saberes originários, substituindo-os por uma perspectiva eurocêntrica de produção do conhecimento que se coloca como superior a todas as outras – e em todos os campos do saber (cultural, religioso, científico, político, jurídico) – naturalmente acabaram sendo incorporados por boa parte das populações latino-americanas, o que garantiu a perpetuação da colonialidade dos povos por séculos, inclusive após a independência, originando os Estados nacionais de bases liberal, capitalista e desenvolvimentista na América Latina.

Ainda que colonizadas e mesmo que de forma precária e subjugada, as populações autóctones mantiveram viva a cosmovisão indígena como forma de sobrevivência, mas também de resistência. Nessa linha Sérgio Luiz Fernandes Pires (1998, p. 59) se reporta à análise de Héctor Bruit:

Héctor Hernan Bruit, na obra Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos, afirma – trabalhando o imaginário e o mundo simbólico dos vencidos – que, uma vez cientes que não teriam forças materiais para enfrentar os ibéricos naquele momento [da conquista], os índios fingiram-se conformados, guardando dentro de si a revolta e a esperança de liberação futura, num simulacro de conformismo. (grifo do autor)

O processo de empoderamento dos movimentos indígenas originário campesinos transcorreu de forma lenta e contínua ao longo de muito tempo, quando então a partir das últimas décadas, especialmente dos anos 70/80, o referencial de Estado neoliberal desenvolvimentista adotado na modernidade entrou em crise, levando à emergência de diversas ditaduras que, ao invés de controlar e contornar a crise do modelo estatal, acabaram por fragilizar ainda mais a democracia ainda muito jovem da região (Ferrazo; Lixa, 2016, p. 2639). Apesar da queda dos regimes ditatoriais após esse período, a consequente implementação de regimes democráticos baseados no modelo de representação política se mostrou ineficaz para atender e concretizar as demandas pluralistas da população, em especial dos povos andinos, que permaneceram resistindo, mantendo suas características de pluralidade étnica, cultural e jurídica, baseada nos valores do Buen vivir ou sumak kawsay[29].

O movimento indígena originário campesino vinha se fortalecendo desde as décadas de 60/70, quando diferentes povos indígenas e comunidades campesinas se uniram em torno do objetivo de enfrentar ameaças comuns especialmente ligadas aos territórios, perpetradas por regimes militares e ditatoriais repressivos (Santos, 2015, p.83). Com a queda desses regimes, o discurso indígena passa a se ressignificar abrindo um novo horizonte histórico-político, superando o processo de colonização e a colonialidade de seus ideais, fortalecendo as organizações comunitárias e promovendo a heterogeneidade de seus povos.

Já na década de 90, com o movimento indígena fortalecido e atuando ao lado dos movimentos campesinos, a demanda da plurinacionalidade passa a ser uma constante, pautando a atuação do movimento indígena bem como as discussões e processos políticos e eleitorais tanto no Equador quanto na Bolívia. Simultaneamente ganha força um movimento teórico que questiona a realidade eurocêntrica e a adoção do modelo de Estado moderno neoliberal na América Latina e que coincide com as práticas e ideais dos movimentos indígenas, e que tem como alguns de seus expoentes teóricos como Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Boaventura de Souza Santos, Catherine Walsh (Ferrazo; Lixa, 2016, p. 2634).

Nessa época Luis Macas (apud Dávalos, 2003, p.45), um os maiores líderes indígenas e fundador do CONAIE defendia que

Asimismo nuestra demanda contempla el pedido de reforma al artículo 1 de la Constitución Política del Estado, reconociendo al país como Estado plurinacional, ya que consideramos que nos identificamos como nacionalidades indígenas, que formamos parte de un Estado plurinacional. Para esta reforma será necesario realizar un estudio a fondo, modificar y crear un nuevo marco jurídico, legal y político que contemple nuestros derechos… La reforma a la Constitución conllevaria a la modificacion del carácter del Estado como pluricultural, pluralista y democrático. Es decir, no se reivindicam exclusivamente los derechos de los índios, sino de toda la sociedad ecuatoriana en su conjunto[30].

Devido à organização e à força de suas reinvindicações, o movimento indígena então adquire novos horizontes, deixa de pautar apenas questões de reconhecimento cultural e étnico para transformar-se em um projeto político de construção de um novo Estado Plurinacional, no qual os indígenas são de fato sujeitos políticos capazes de operar tal mudança.

A partir daí o conceito de plurinacionalidade se eleva para além da simples declaração de pluriculturalidade e reconhecimento de direitos coletivos como efetivado na Constituição equatoriana de 1998. Percebendo a resistência estratégica das elites em modificar as estruturas de poder, as lideranças sociais cunham uma nova noção do alcance da plurinacionalidade, pressionando essas estruturas no sentido de promover uma profunda transformação política, econômica e social conferindo peso político às suas demandas objetivando ao final uma mudança marcante do Estado e da sociedade (Dávalos, 2003, p. 46).

O movimento indígena então ganha novos contornos, como descreve Pablo Dávalos (2003, p.43)

de um actor social constreñido y limitado a demandas particulares y em las cuales su enfrentamento com el Estado se hacía en función de reclamar una integración a los mecanismos de participación y representación política, económica y social, una integración que se basaba en el respeto a su identidad cultural, hacia la constitución de un sujeto político en el cual sus demandas son nacionales y su agenda compete y compromete a toda la sociedad.[31]

Passam a caminhar em direção a uma nova história de luta e resistência buscando, além de suas já tradicionais demandas por condições de existência e sobrevivência, a tentativa de superar o passado colonial, politizando temas como as questões de identidade cultural, da possibilidade de autodeterminação dos seus diferentes povos, reivindicando os chamados “direitos originários” que tratam dos direitos sobre os territórios tradicionalmente ocupados em razão de sua existência prévia à colonização (Santos, 2015, p. 72), ampliando a consciência de seu papel e de sua força na construção do Estado que objetivavam.

Herrera Flores (2009, p. 25) observa que a conquista de direitos, e sua posterior positivação – seja no plano internacional, ou no plano interno de cada Estado – surge do fortalecimento de indivíduos, grupos e organizações, para servir de processo no qual a finalidade principal é o acesso aos bens materiais e imateriais, que trazem dignidade à vida humana.

Não foi sem grande esforço de construção de estratégias e planejamento político, a partir dos quais os movimentos dos povos indígenas originário campesinos ganharam força e visibilidade desde a organização e reivindicações da ECUARUNARI[32] (1972) e da criação do CONAIE[33] (1986) no Equador (Dávalos, 2003, p. 44), bem como a partir das guerras da água (abril de 2005) e do gás (maio e junho de 2005) na Bolívia, passando por uma transformação cultural e política dos movimentos sociais na tentativa de superar a colonialidade, que tornou-se possível alcançar o objetivo de ver positivado na Constituição o tão almejado Estado Plurinacional, onde se intenta a construção de um estado “que permita el ejercicio de los derechos de todos” (Macas, 2002 apud Dávalos, 2003, p. 45).

Esse movimento, que transformou a visão que os povos indígenas e campesinos tinham de seu papel na sociedade, operou profundas transformações no campo político, implementando um modelo de constitucionalismo que vem sendo denominado de “novo constitucionalismo latino-americano”, no qual não só os direitos dos povos originários são reconhecidos e positivados, como também, e principalmente, é trazida para o plano constitucional a cosmovisão indígena norteada por princípios como o sumak kawsay e a questão da Plurinacionalidade.

4.                  4. Plurinacionalidade e direitos indígenas nas constituições andinas

Após um longo processo político de muita articulação e discussão entre as elites e os movimentos indígenas, que possuíam projetos de governo bastante diferentes – enquanto os indígenas pautavam seu projeto pela concepção democrática e horizontal de governabilidade, buscando um Estado solidário e cooperativo; o projeto das elites se baseava numa concepção mais autoritária e vertical, pautada pela economia de mercado num modelo de Estado neoliberal – é elaborada, em 2008, a Constituição do Equador, trazendo em seus artigos iniciais a seguinte redação:

Art. 1 da Constituição, o “Equador é um Estado constitucional de direitos e justiça, social, democrático, soberano, independente, unitário, intercultural, plurinacional e laico. Se organiza em forma de República e se governa de maneira centralizada”.

No Art. 2, define-se o castelhano como idioma oficial do Equador e o castelhano, o kichwa e o shuar como idiomas oficiais de relação intercultural. O Art. 6 define a nacionalidade equatoriana como “o vínculo jurídico-político das pessoas com o Estado, sem prejuízo de seu pertencimento a qualquer uma das nacionalidades indígenas que coexistem no Equador plurinacional.

Marina Ghirotto Santos (2015, p. 149-150) faz uma crítica ao texto constitucional no sentido de que ao organizar o Estado em uma República a Constituição dilui a intenção de romper com o modelo tradicional de Estado adotado na modernidade. Observa ainda que apesar de possibilitar a participação da representação indígena em organismos oficiais deixa a desejar ao não implementar uma forma de participação direta para as nacionalidades indígenas. Essas questões acabam por reduzir o alcance do conceito de plurinacionalidade, prejudicando sua implementação.

À mesma época, na Bolívia, a Assembleia Constituinte entende que, desde as movimentações sociais que iniciaram a partir de 2000 e duraram até 2005, ficou evidenciada a crise do modelo de Estado adotado na modernidade, verificando então que sua tarefa seria a de reformular o Estado, através do processo de descolonização, tendo como ponto de partida o reconhecimento do caráter preexistente das comunidades indígenas originário campesinas e que essas, por sua vez, possuíam o direito à autodeterminação, ao autogoverno, de implementarem suas próprias instituições, à uma jurisdição própria, à gestão ambiental e territorial e de serem consultados sobre a exploração dos recursos naturais não renováveis em seus territórios e ainda à língua, cultura, educação e cosmovisões próprias (Alcoreza, 2010, p. 68).

O texto constitucional boliviano traz a plurinacionalidade também em seus primeiros artigos:

Artículo 1. Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías. Bolivia se funda en la pluralidad y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país.

Artículo 2. Dada la existencia precolonial de las naciones y pueblos indígena originario campesinos y su dominio ancestral sobre sus territorios, se garantiza su libre determinación en el marco de la unidad del Estado, que consiste en su derecho a la autonomía, al autogobierno, a su cultura, al reconocimiento de sus instituciones y a la consolidación de sus entidades territoriales, conforme a esta Constitución y la ley.[34]

Na proposta da organização Pacto de Unidad ficava evidenciada a caraterística de anterioridade das populações originárias em relação ao Estado, advindo daí o reconhecimento do direito ao domínio de seu território ancestral, bem como de que é a partir da convivência democrática e intercultural entre esses povos que o Estado é construído. Nesse sentido o pluralismo jurídico deveria ser um dos princípios fundamentais do Estado, compreendendo a coexistência entre as jurisdições indígenas e a jurisdição estatal em igualdade hierárquica. Ocorre que ao modificar a estrutura do texto, se evidencia a visão do constituinte de que é o Estado quem conforma as nações e povos indígenas, demonstrando que ainda não se desfez por completo a visão de eurocêntrica de Estado onde prevalece o monismo jurídico, limitando o reconhecimento da pluralidade jurídica e cultural que, embora marginalizada, sempre existiu na região andina (Tudela, 2017, p. 2967).

Mesmo enfrentando grande resistência das elites e tendo alguns trechos modificados no texto constitucional aprovado, as constituições andinas apresentaram grandes conquistas, demonstrando com clareza a força dos movimentos populares e a intenção de consolidação de um novo modelo de Estado, muito mais democrático, inclusivo e participativo.

Algumas dessas grandes conquistas, na Constituição da Bolívia, além da plurinacionalidade, interculturalidade e pluralismo jurídico (artigo 1), são a democracia comunitária participativa e autonomia indígena originário campesina (artigos 11, 26, 210 e 288 a 296), a titulação coletiva dos territórios indígenas em razão de sua anterioridade ao Estado (capítulo quarto) (Ferrazo; Lixa, 2016, p. 2639) e o Tribunal Constitucional Plurinacional (capítulo sexto) composto por Magistrados e Magistradas eleitos por sufrágio universal, obedecendo aos critérios de plurinacionalidade, representantes do sistema ordinário e do sistema indígena originário campesino (artigo 197, I), podendo ser indicados por organizações da sociedade civil e dos povos e nações indígenas originário campesinas (artigo 199, II).

Na constituição equatoriana pode-se verificar também grandes conquistas nesse mesmo sentido, como por exemplo a plurinacionalidade e interculturalidade também no seu artigo 1º, bem como o reconhecimento e a garantia de diversos direitos coletivos previstos no título II (direito de não serem deslocados de suas terras ancestrais; de exercer funções jurisdicionais segundo suas tradições ancestrais, desde que em concordância com os princípios nacionais e internacionais; a proibição da apropriação dos conhecimentos, inovações e práticas das populações originárias; direito a não sofrer racismo ou discriminação de nenhuma natureza e os direitos da natureza). Traz ainda o regime do bem viver no título VII e a justiça indígena no título IV.

Ainda que as Constituições da Bolívia e Equador tenham demonstrado um grande avanço em relação à proteção de direitos humanos e fundamentais, trazendo para o plano constitucional a cosmovisão indígena, especialmente no aspecto da proteção da biodiversidade e da sócio-diversidade, a efetivação desse novo Estado plural ainda enfrenta grandes desafios.

No caso da Bolívia, a Lei de Deslinde, prevista constitucionalmente para regulamentar a nova ordem pluralista, devendo ser baseada na igualdade entre as jurisdições indígenas originário campesinas e ordinária, ainda que tenha muitos pontos positivos (como a vedação a violação de direitos humanos, a proteção de mulheres e crianças, a proibição de práticas como linchamento e o caráter vinculante das decisões emanadas da jurisdição indígena), em verdade acabou por limitar fortemente o exercício da justiça originária indígena.

Uma dessas limitações está na exigência de simultaneidade entre os âmbitos material, pessoal e territorial para o exercício da jurisdição indígena. Outro ponto, como observam Ferrazzo e Lixa (2016, p.2646), diz respeito à determinação de que a jurisdição indígena só se aplica caso todas as partes envolvidas no conflito pertençam à mesma nação ou povo, a qual se mostra claramente incompatível com o texto constitucional em seu artigo 191, II, 1, que diz: “Están sujetos a esta jurisdicción los miembros de la nación o pueblo indígena originario campesino, sea que actúen como actores o demandado, denunciantes o querellantes, denunciados o imputados, recurrentes o recurridos.”[35]

Já no Equador, um dos grandes empecilhos tem sido o discurso da governabilidade e a falta de regulamentação de aspectos importantes para a efetivação do projeto de plurinacionalidade. Primeiro porque, como observa Franco Viteri (apud Santos, 2015, p. 153), atual presidente da CONFENIAE[36], a criação de Circunscrições Territoriais Indígenas (artigo 60 da constituição equatoriana) não garante o direito à autonomia no território, pois apesar de garantir aos povos indígenas a realização da consulta livre, prévia e informada em relação à exploração de recursos naturais não renováveis em seus territórios, não garante a necessidade de seu consentimento para tal, reservando a propriedade e o uso desses recursos (em especial ao que diz respeito ao subsolo) ao Estado central. Essa característica, por óbvio, acaba reduzindo o exercício da autonomia territorial no Equador plurinacional.

Pablo Dávalos (2003, p.49-50) acrescenta que um dos principais pontos de conflito pode estar no fato de que os militares jovens – principais aliados do movimento indígena na vitória eleitoral do Coronel Lucio Gutiérrez no Equador – não compartilham do projeto político de plurinacionalidade com a mesma dimensão idealizada pelo movimento indígena, isso porque ainda não compreenderam todas as suas implicações e alcances a longo prazo, o que dificulta a definição de uma agenda e um projeto conjuntos que leve à efetivação do Estado plurinacional.

Ambos os países enfrentam grande resistência da elite econômica local e internacional, que representa os interesses das grandes corporações e do mercado capitalista e contam com o apoio de setores da mídia que tentam constantemente invisibilizar os indígenas reduzindo suas reivindicações a questões étnicas, manipulando as informações (Dávalos, 2003, p.48) no sentido de desviar o foco dos debates evidenciando apenas os conflitos e pressões, numa tentativa de desestabilizar o movimento e simultaneamente reduzir o apoio popular.

Por outro lado, ainda que se verifiquem algumas dificuldades, é importante destacar o papel desempenhado pelo Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) na Bolívia – uma das maiores conquistas e inovações dessa nova ordem constitucional- onde é possível observar a interpretação plural[37], baseada na ponderação intercultural dos princípios abarcados pela concepção de sumak kawsay no âmbito da jurisdição indígena, em conjunto com os fundamentos da jurisdição ordinária e agroambiental, ainda que, como bem destacam Ferrazzo e Lixa (2016, p. 2652)  nem todos os conflitos julgados pelo TCP sejam decididos sob o prisma do pluralismo jurídico, persistindo algumas vezes na aplicação de procedimentos formais ocidentais aos temas que seriam da jurisdição indígena.

5.                  5. Conclusões

A positivação, no plano constitucional, dos direitos das nações indígenas originário campesinas é fruto inconteste das lutas dos movimentos sociais protagonizados por essas populações, de sua resistência e busca histórica pelo reconhecimento e valorização de sua autonomia e garantia de proteção de seu modo de vida, sua cultura, suas especificidades e seus direitos.

É inegável o caráter inovador das constituições andinas ao aprovar e positivar o Estado Plurinacional, avançando no reconhecimento da jurisdição indígena, se abrindo para novos direitos e sujeitos de direitos, caminhando para a consolidação de um Estado comunitário, solidário, democrático e participativo, que valorize e preserve a pluralidade presente em suas nações.

Não obstante o reconhecimento constitucional da Plurinacionalidade, da ancestralidade das nações indígenas originário campesinas, da aplicação dos princípios do bem viver ou sumak kawsay pelas atuais constituições do Equador e Bolívia, é possível identificar forte resistência de uma parcela da sociedade – uma elite conservadora que permanece no poder – que luta para manter seus privilégios conquistados ao longo da história, fazendo-se necessária a resistência e continuidade das lutas dos movimentos sociais, bem como das políticas institucionais, visando trazer para o plano material todos os direitos positivados constitucionalmente (Santos, 2015).

Nas palavras de Aníbal Quijano (2005)

O que pudemos avançar e conquistar em termos de direitos políticos e civis, numa necessária redistribuição do poder, da qual a descolonização da sociedade é a pressuposição e ponto de partida, está agora sendo arrasado no processo de reconcentração do controle do poder no capitalismo mundial e com a gestão dos mesmos pela colonialidade do poder.

Desse modo, ainda que consagrado pelas novas Constituições Latino Americanas, no plano concreto parece haver um grande desafio no que diz respeito à efetividade de um Estado verdadeiramente plural, pautado no respeito às suas diferenças culturais, na justiça social e na sustentabilidade ambiental. Isso porque tais constituições representam um grande avanço no modelo social, econômico e político desses países, o que demanda um longo caminho de lutas a ser percorrido na busca por vencer as resistências encontradas, de um povo historicamente colonizado, mas em especial, de uma elite apegada a seus privilégios, e dos detentores do poder capitalista internacional que pressionam governos e governantes objetivando a manutenção das estruturas de poder e consequentemente do status quo.

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Afinidades relativas: De la Torre Rangel e a tensa relação com uma leitura marxista do direito[38]

Relative affinities: De la Torre Rangel and the tense relationship with a Marxist reading of law

Ricardo Prestes Pazello[39]

Resumo: O presente artigo trata da obra do jurista mexicano Jesús Antonio de la Torre Rangel a partir de uma renovada aplicação do conceito de “afinidades relativas”, para realizar uma aproximação com as perspectivas marxistas de análise do direito no que tange às temáticas da formação jurídica no contexto do capitalismo dependente, da práxis jurídica popular e dos problema dos analogados para definir o jurídico, bem como de seu analogado principal.

Palavras-chave: De la Torre Rangel; teoria crítica do direito; afinidades relativas

Abstract: This paper aims to stdudy the works of the Mexican jurist Jesús Antonio de la Torre Rangel, based on a renewed application of the concept of “relative affinities”, in order to achieve an approximation with the Marxist perspectives of analysis of  Law, focusing themes like history of Law in context of dependent capitalism, popular legal praxis and the problems of the “analogies” to define the Law as well as its main analogue.

Keywords: De la Torre Rangel; critical theory of Law; relative affinities

  1. Introdução

            Jesús Antonio de la Torre Rangel é um teórico crítico do direito com um repertório interpretativo muito diversificado e, sobretudo, sensível aos problemas candentes que afetam os setores mais amplos do continente latino-americano. Encontrar-se com este repertório é, portanto, perceber nele espelhado o debate que mais interessa aos setores populares no que diz respeito a uma mirada crítica quanto ao direito, na América Latina.

            Posso considerar que, no último decênio, tive a oportunidade de me deparar com tal repertório, em várias ocasiões, e por conta disso encontrei em De la Torre uma pedra angular para pensar a problemática jurídica nuestramericanamente, assim como um interlocutor que, humildemente por sinal, vem acolhendo possibilidades de construção teórica, a partir não só de nossas convergências mas também de nossas polêmicas.

            Meu primeiro encontro com Jesús Antonio de la Torre se deu em Curitiba, em 2005. Eu, estudante de graduação ainda, interpelei-o em um debate sobre a resistência popular no contexto latino-americano, provavelmente questionando sobre o papel do advogado popular. Encerrada a discussão formal, fui conversar com ele para saber das possibilidades de ter acesso a suas publicações e ele, gentilmente, me presenteou com um livro recém lançado (DE LA TORRE RANGEL, 2005). Esta primeira interação foi sensivelmente importante, pois no mesmo debate se encontrava também Miguel Pressburger, um dos inspiradores de futuras retomadas da obra de De la Torre, no âmbito da tentativa de reconstruir uma teoria crítica do direito por intermédio de sua proposta de direito insurgente.

            Posteriormente, já como mestrando em Florianópolis, participei do coletivo de pesquisadores que convidou De la Torre para fazer a abertura de um congresso sobre teorias críticas do direito na América Latina, em 2008. A partir daí, inicia-se um percurso de interlocução teórica mais efetiva, que se expressou na publicação de entrevista realizada durante sua passagem por Santa Catarina, bem como do texto de sua conferência (DE LA TORRE RANGEL, 2009; e 2013) – para não citar a troca de correspondências que incluíam livros e discos e, inclusive, a tradução de um artigo de Óscar Arnulfo de la Torre de Lara, seu filho (DE LA TORRE DE LARA, 2014).

            Se o autor conhecido por intermédio de artigos e livros passou a ser interlocutor de pesquisa, esta situação se consolidou com a sua participação como avaliador de minha pesquisa de doutorado. Tanto na banca de qualificação quanto na banca final de defesa de tese de doutoramento, na UFPR, fui lisonjeado com a presença de Jesús de la Torre, de quem obtive rígida mas também dialógica leitura de meu trabalho. Ademais, a ocasião propiciou novos projetos da interlocução teórica, agora voltada para traduções de seus textos, as quais já estão programadas e dentre as quais já houve uma primeira publicação, referente a palestra concedida em 2014, em Curitiba (DE LA TORRE RANGEL, 2015), tendo por tema o balanço crítico dos 30 anos de escrita de seu difundido livro, O direito como arma de libertação na América Latina.

            Pois bem, considerando este percurso de contatos e trocas, tenho a satisfação de realizar a presente reflexão com o intuito de destacar, em primeiro lugar, o papel protagônico ocupado por De la Torre no cenário das teorias críticas do direito na América Latina, sem perder de vista as possíveis interlocuções com minhas perspectivas de pesquisa e, enfim, realizar um debate, ora acentuando confluências ora contrapontos, para homenagear tão rico e criativo estudioso latino-americano do direito.

            A propósito de tudo isso, então, resgato minhas conclusões, havidas em sede de pesquisa de doutorado, em que considerei a crítica jurídica latino-americana a partir de seu debate paradigmático, ou seja, o debate mexicano entre Óscar Correas e Jesús Antonio de la Torre Rangel. Ali, discutia suas contribuições para a construção de um horizonte teórico-jurídico latino-americano que conjugasse quatro dimensões: perspectiva crítica sobre o direito, movimentos sociais e práxis popular, influências do marxismo e interpretações descolonizantes. Assim, poderia entrever as afinidades de Jesús de la Torre para com a proposta de um direito insurgente (PAZELLO, 2014a).

            No atual ensaio, de outra parte, vou procurar esboçar, com base no mesmo material de investigação, uma nova interpretação sobre as afinidades relativas do marxismo latino-americano para com algumas das conclusões teóricas de De la Torre, aquelas as quais considero as mais potentes.

  1. Das afinidades, em geral

            A relação entre a obra de Jesús Antonio de la Torre Rangel e a crítica marxista ao direito é constituída por tensões que, nem por isso, desfazem possíveis afinidades. Dentro de uma sociologia do conhecimento de inspiração marxista já se procurou absorver noções de tradições teóricas que lhe são exógenas, dentre as quais a noção específica de “afinidade” é um dos exemplos mais notórios e bem sucedidos. E dela farei uso aqui, para os fins da presente análise.

            A partir da sociologia de Max Weber, tem vez a idéia de “afinidade eletiva” ou, a depender da tradução, “afinidade seletiva”. Michael Löwy (2014), em ensaio dedicado a perscrutar sobre um “marxismo weberiano”, remonta as origens da expressão desde o medievo, com os alquimistas, até adentrar apoteoticamente em um romance de Goethe (2014). Weber teria tomado emprestado do escritor romântico a expressão e ela passaria a render frutos em sua sociologia da religião, notadamente para apontar “conotações de escolha recíproca, atração e combinação” (LÖWY, 2014, p. 63) entre capitalismo e protestantismo.

            A análise de Löwy ressalta, porém, a utilização sociológica do termo “afinidade eletiva” por Weber para se referir a formas sociais (como a cultura e a religião) que se correspondem, guardando entre si diferenças quanto a suas especificidades. Aqui, contudo, eu gostaria de ressaltar uma outra faceta de tais afinidades, a fim de avaliar a correspondência entre interpretações teóricas.

            Nesse sentido, a utilização de Perry Anderson do termo “afinidade seletiva” parece promissora. Segundo ele, em contexto de comentários sobre o historiador Eric Hobsbawm, as “afinidades são sempre seletivas”, vale dizer, “a condição para se envolver profundamente com uma cultura estrangeira, não importa quantas, é ter menos contato com outras” (ANDERSON, 2012, p. 342). O mesmo Anderson é quem avalia as afinidades, agora eletivas, de idéias tão contraditórias como liberalismo e socialismo no pensamento de Bobbio (ANDERSON, 2002, p. 238-239). Ou seja, trata-se da possibilidade de encontrar afinidades, mesmo que passíveis de críticas, não só de fenômenos sociológicos, mas igualmente de propostas teóricas (que não deixam de ser fenômenos sociológicos também, mas que se destacam do padrão de utilização weberiana do termo).

            Dessa forma, acredito ser possível ganhar interpretativamente com a procura de afinidades teóricas, mesmo que esta seja uma operação heterodoxa para o campo da análise marxista a qual reivindico. Por isso, vale a pena o comentário de Emir Sader, ao apresentar uma coletânea de textos de Perry Anderson em que se destacam diálogos críticos com autores de tradições teóricas as mais diversas: “o marxismo evoluiu das suas polêmicas internas e nacionais, para intercâmbios com outros autores e escolas, multiplicando sua fertilidade e sua influência” (SADER, 2002, p. 8).

É com esse espírito de intercâmbio, ainda que não sem polêmica, que proponho uma leitura das tensas afinidades entre a obra de Jesús Antonio de la Torre e a crítica marxista ao direito. Ocorre, porém, que não pretendo fazer, como não é de se estranhar, uma simples utilização das noções de afinidades eletivas ou seletivas para tal empreendimento, já que acredito seja imprópria a utilização estrita dessas noções. Vou buscar, inspirado nelas, enfatizar outros tipos de afinidades possíveis, para além de as eletiva ou seletiva.

O próprio Michael Löwy criou/descobriu um outro tipo de afinidade, ainda que ela seja uma contradição em termos: a “afinidade negativa” (LÖWY, 2014, p. 75 e seg.), entre capitalismo e catolicismo. De minha parte, para o confronto entre a obra de De la Torre e a crítica marxista ao direito quero destacar outras duas afinidades possíveis – a supletiva e a substitutiva.

Entre De la Torre e a crítica marxista ao direito não se estabelece nem uma afinidade eletiva nem uma tal seletiva. A afinidade eletiva diz respeito a pólos distintos que entram, “a partir de certas analogias significativas, parentescos íntimos ou afinidades de sentido, numa relação de atração e influência recíprocas, de escolha ativa, de convergência e de reforço mútuo” (LÖWY, 2014, p. 72), portanto implica uma relação positiva, em que a “eleição” é aberta e direta, ou seja, há atrativos explícitos que reciprocamente se magnetizam e autodeclaram essa eletividade.

De outra parte, ainda que sem definição expressa, a afinidade seletiva sugere uma escolha pela exclusão, como na frase de Perry Anderson, em que relacionar-se com uma cultura implica não se relacionar com outras. Assim sendo, afinidade eletiva prima pela escolha por atração positiva enquanto a afinidade seletiva se trata de escolha por exclusão (para não falar da afinidade negativa que representa a impossibilidade da escolha).

As afinidades entre De la Torre e a crítica marxista ao direito têm mais mediações, são mais relativas. São afinidades, pois bem, em que as relações não são tão contundentes, necessariamente, quanto sugere a terminologia de escol marxista weberiano. Não se trata, portanto, nem de atração mútua nem de rejeição peremptória ou ainda de consciente escolha por exclusão. O que há, aí sim, é uma possível convivência, que pode ganhar duas naturezas (mesmo que não coincidentes): ou é uma afinidade complementar, supletiva, ou é uma afinidade reinterpretante, substitutiva. A estas duas afinidades – a partir de agora, supletiva e substitutiva – vou denominar de relativas (aludindo à relação e ao mesmo tempo, como é óbvio, à relatividade).

Para encontrar tais afinidades, vou acentuar as concepções a respeito do fenômeno jurídico para o autor, tanto no que pertine a suas formas de manifestação quanto no que tange a sua forma fundamental. A este bloco de problemas vou atribuir as possíveis afinidades relativas ao marxismo, a partir da idéia de reinterpretação. Também, vou buscar assinalar duas outras dimensões de sua obra, atinentes a sua perspectiva histórica sobre a construção do direito, de um lado, bem como a suas propostas de ação e uso do jurídico, de outro. Nestes casos, valerão as atribuições de afinidades relativas de cunho complementador. Começo, então, por estas últimas, as afinidades supletivas, no intuito de compreender melhor De la Torre Rangel quanto a suas relações com o marxismo.

  1. Afinidades supletivas

            Como disse, as afinidades supletivas são relativas a elementos que podem ser encontrados, no caso, em duas propostas de análise da realidade social que sejam complementares entre si. Neste sentido, trata-se de uma complementação não necessariamente explícita, ou seja, que não pretende, de antemão, enriquecer outra teoria. Antes, sua característica é a de possuir congruência possível, mesmo que não prevista ou reconhecida.

            No âmbito de uma admissível relação entre a crítica marxista e a análise de De la Torre sobre o direito, destaco dois grandes exemplos: o problema da formação jurídica dependente na América Latina, de uma parte; e a questão da proposta de uma práxis jurídica popular, de outra. Em ambos os casos, as tensões se darão muito mais por omissões do que precisamente por abertas polêmicas.

3.1. Formação jurídica e capitalismo dependente

            Jesús Antonio de la Torre Rangel parte de uma concepção histórica a respeito da formação jurídica latino-americana que denominarei de dependente. Em vários de seus estudos, esta questão aparece. Para os fins do presente ensaio, mencionarei duas passagens significativas.

            A primeira, e mais geral, se encontra em seu livro mais propalado, O direito como arma de libertação na América Latina. Nele, diz que “a realidade social latino-americana, marcada pelo modo de produção capitalista dependente, nos mostra que […] o Direito, longe de regular relações de justiça, favorece a exploração de uns poucos sobre a maioria” (DE LA TORRE RANGEL, 2007, p. 45).

            Segundo De la Torre, a formação colonial latino-americana conviveu, em especial nas colônias hispânicas, com uma contraditória juridicidade, marcada por um “Direito proteccionista dos povos índios e suas propriedades” (DE LA TORRE RANGEL, 2007, p. 85). No entanto, qualquer resquício deste protecionismo restou abalado pelo direito que se construiu após o período de indenpendências nacionais, fazendo prevalecer uma juridicidade liberal e proprietária moderna.

            No caso do México, De la Torre menciona os exemplos de formas jurídicas que apareceram no intuito de consolidar esta perspectiva: a lei de desamortização, de 1856; a constituição, de 1857; as leis de colonização e sobre baldios, editadas entre 1883 e 1910. De minha parte, compreendo que esta análise é coerente com o que venho chamando de formação jurídica dependente (PAZELLO, 2016), atribuição à maneira como se construiu o direito na América Latina, a partir da ótica da teoria marxista da dependência. Assim sendo, no século XIX houve um proceso que renovou a divisão internacional do trabalho e necessitou de uma uniformização jurídica para a periferia do capitalismo que adentrava o palco da intrustrialização. Como paralelo possível aos exemplos do contexto mexicano, poderia mencionar, no Brasil, a lei de terras de 1850, que acaba tendo resultados equivalentes, no sentido de tornar a terra um bem alcançável pela circulação mercantil.

            Esta primeira e geral passagem, em que a interpretação de De la Torre se coaduna com a da crítica marxista ao direito latino-americana, encaminha a uma segunda, na qual o autor propõe que “o povo em sua luta pela transformação social, além dessa consciência jurídica que nasce de sua própria experiência e de sua organização alternativa reapropriando-se do poder normativo, deve fazer uso da juridicidade vigente em seu próprio benefício” (DE LA TORRE RANGEL, 2004a, p. 23).

            A reapropriação do poder normativo pelo povo faria nascer um direito vindo do povo como arma de libertação. Neste aspecto, complementa-se tal perspectiva com o que procurei esboçar como sendo um uso tático do direito (PAZELLO; RIBAS, 2015), no prisma de um direito insurgente produzido pelos movimentos populares como sujeitos coletivos, ou melhor, como não-sujeitos de direito.

            O que torna mais que possível, já que necessário, um uso tático do direito é a presença inevitável da forma jurídica nas relações sociais capitalistas, inclusive as forjadas na periferia do sistema-mundo. De la Torre, aliás, sobre isso é ainda mais enfático, descrevendo seu entendimento de que “o povo latino-americano é muito legalista” e “exige seus direitos se tem consciência de que obra conforme o Direito, isto é, de acordo com a lei” (DE LA TORRE RANGEL, 2004a, p. 19).

            De acordo com uma leitura rigidamente marxista a respeito do direito (ver PACHUKANIS, 1988), o fenômeno jurídico é intrínseco ao capital e suas relações. Contudo, se é verdade que, para quem advoga a superação do capitalismo, deve-se fazer  acompanhar-se de um juízo de igual superação do direito; também é verdade que enquanto o reino da liberdade não se concretizar, é preciso encontrar mediações que subvertam ou se insurjam contra as relações capitalistas normalizadas. A relação jurídica é uma delas e, portanto, um uso tático do direito como reapropriação normativa do poder pelo povo é cabível, complementarmente, ao horizonte teórico e prático da crítica marxista.

            A propósito, reputo como correta a posição acerca do “legalismo” popular latino-americano. Entendo-o, porém, como decorrência da formação dependente do continente, a qual inclui uma formação jurídica de igual cariz. Nesse sentido, erigir uma subjetividade jurídica que se referencia em aspectos visíveis da juridicidade, como a lei e o estado, implica esculpir formas históricas de adequação das relações interpessoais ao imaginário capitalista.

            Sendo assim, tanto o argumento da formação jurídica dependente da América Latina como o apontamento de uma insurgência traduzida por reapropriação normativa do poder pelo povo indicam afinidades relativas entre Jesús Antonio de la Torre Rangel e a crítica marxista ao direito. São afinidades relativas, portanto, que complementam o mesmo argumento, não implicando nenhuma contradição explícita, logo afinidades supletivas.

3.2. Práxis jurídica popular

            Como conseqüência coerente com relação à indicação de uma reapropriação normativa, De la Torre apresenta-se mais do que como um teórico crítico do direito e um professor universitário, já que também um advogado popular. E sua interpretação está igualmente informada por esta dimensão.

            A educação jurídica popular é um elemento importante de sua reflexão, fundamentando sua assessoria jurídica popular. A este respeito, cabe mencionar sua atuação junto a comunidades populares que resultaria na fundação do Centro de Estudos Jurídicos e Sociais Padre Enrique Gutiérrez, ainda nos anos de 1980.

            De la Torre relata que sua imersão na educação jurídica popular se deu por via da figura do padre Enrique Gutiérrez, que lhe propôs um projeto de atuação em que seu foco fosse “pôr ao alcance do povo os elementos e conhecimentos jurídicos básicos para que as próprias organizações populares […] possam prever, prevenir e solucionar os problemas de índole jurídica que se lhes apresentem” (DE LA TORRE RANGEL, 2002, p. 150).

            Tal experiência teve dois grandes momentos: preparação de material pedagógico e realização de cursos com base neste material. Sobre o primeiro momento, do final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980, De la Torre comenta: “para nossa tarefa de educação jurídica popular elaboramos uma série de manuais – uns para promotores e outros ‘populares’ em forma de quadrinhos – que servem de base aos cursos que ofertamos sobre distintas matérias jurídicas” (DE LA TORRE RANGEL, 2002, p. 150). Ao todo, foram oito publicações (cinco manuais e três quadrinhos) as que resultaram desse proceso, abarcando temáticas desde a introdução ao direito até questões urbanas e campesino-indígenas.[40] Posteriormente, entre 2004 e 2008, De la Torre organizou uma reelaboração daquele material, da qual tive acesso a quatro tomos (sobre direito do trabalho, direito ambiental, direito à saúde e questões jurídicas campesino-indígenas) de um total de sete.

            O segundo momento, já do final da década de 1980, consistiu na realização de cursos, com base nos materiais produzidos. Toda esta atuação foi lastreada pela idéia de que era possível realizar um “uso do Direito ao serviço do povo”, pois, apesar de ele ser “estruturalmente opressivo”, há condições de legitimar “direitos arrancados pelo povo” (DE LA TORRE RANGEL; BRAVO LOZANO, 1985, p. 17 e 21), ou seja, que podem ser conquistados. Estas noções, como visto, estão presentes nos textos teóricos mais difundidos do autor e são coerentes com seus horizontes de crítica à formação jurídica latino-americana e a sua proposta de reapropriação do poder normativo.

            A fundação do Centro de Estudos Jurídicos e Sociais Padre Enrique Gutiérrez (hoje, Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Mispat) tem a ver com esta experiência que visava a concretizar a seguinte divisa: “o uso do direito objetivo ao serviço do povo deve ir acompanhado de uma educação jurídica ao próprio povo”. Daí as interessantíssimas conclusões sobre a práxis jurídica, segundo De la Torre:

além de o povo conhecer seus direitos e saber fazê-los valer criticamente, é necessário que chegue a prescindir dos profissionais do Direito, gerando em suas próprias organizações pessoas preparadas que exerçam a advocacia. Os advogados que estiverem com o povo, além de assessorar juridicamente suas lutas, devem deitar esforços na tarefa de preparar gente do próprio povo que exerça a advocacia. É necessário que o advogado deixe de ser imprescindível (DE LA TORRE RANGEL, 2002, p. 155).

            A partir daí, as afinidades supletivas entre De la Torre e a crítica marxista ao direito são novamente evidenciáveis. Fortalecendo-se a organização (e o poder) popular, abre-se espaço para um direito insurgente, não só pensado para as classes populares, mas também utilizado por ela. Em nossa opinião, isto se afina plenamente com uma perspectiva pedagógica marxista, de educação prática e transformadora (para além de o fato de que De la Torre atuou, em várias ocasiões, como advogado popular de comunidades e organizações populares). E ainda que subsistam os problemas referentes à forma jurídica em si, De la Torre aponta para outro aspecto, dotado de relativa radicalidade, qual seja, o labor pela prescindibilidade do advogado, em dois sentidos: como agente externo à classe popular (já que serão formados advogados no interior desta classe); mas também como especialidade da divisão do trabalho.

            Segundo o que visualizo nesta proposta, De la Torre contribui para uma complementação para a crítica marxista ao direito, a partir da proposição de uma educação jurídica popular que faça do profissional da advocacia alguém prescindível (tendência observável, contemporaneamente, nos projetos dos movimentos populares para a utilização do direito, com seus próprios quadros formados na área). Esta compreensão potencializa as teses marxistas sobre o direito, sobretudo as que se referem ao horizonte de extinção do fenômeno jurídico conquanto se supere a sociedade do capital. Logo, mais uma afinidade relativa entre De la Torre e o marxismo.

            Na seqüência, todavia, irei apresentar outra modalidade de afinidade entre o jurista mexicano e a proposta marxista para o direito, não mais centrada na complementação, mas sim em reinterpretações possíveis de ambos os pólos sob análise.

  1. Afinidades substitutivas

            Se as afinidades supletivas permitem que se visualize um diálogo teórico por meio de complementações analíticas, as afinidades substitutivas dizem respeito a perspectivas teóricas que chegam a um mesmo resultado sem, contudo, partirem de uma mesma fundamentação e nem necessariamente avaliarem tal resultado da mesma maneira. Não serão complementares porque explicam o fenômeno a partir de argumentos distintos, ainda que suas conclusões permitam encontrar descrições diretamente proporcionais entre si.

            Adiante, estabelecerei dois exemplos como os mais paradigmáticos em termos de afinidades relativas a De la Torre e o marxismo, ambos centrados na discussão a respeito da natureza do jurídico. Serão, portanto, exemplos que evidenciarão o que é o direito e qual sua essência.

4.1. O problema dos analogados para definir o jurídico

            Jesús Antonio de la Torre Rangel defende o jusnaturalismo histórico analógico como base teórica explicativa para se compreender o direito. Seu ponto de partida é afastar qualquer reducionismo das explicações sobre o que signifique o direito. Daí, ele apresentar a seguinte compreensão geral: “o direito é um termo que se predica de forma análoga a várias realidades: a norma ou direito objetivo, a faculdade ou direito subjetivo, o justo objetivo e a ciência do direito” (DE LA TORRE RANGEL, 2011, p. 28).

            O presente horizonte interpretativo aponta para um importante entendimento do qual compartilham as teorias críticas do direito em geral, qual seja, o de que o direito é um fenômeno complexo que não pode ser reduzido a uma única dimensão. O antirreducionismo jurídico do qual De la Torre compartilha também está presente na crítica marxista ao direito, ainda que com silhueta um tanto diversa. De minha parte, procurei demonstrar a existência do antirreducionismo jurídico tanto em Marx quanto em Pachukanis (PAZELLO, 2014a; 2014b), os dois principais autores do marxismo que trataram do assunto. Os entendimentos acerca do antirreducionismo jurídico são diversos porque para De la Torre o direito pode ser a normatividade, a faculdade jurídica, a justiça e a ciência, ao passo que, desde a ótica marxista-pachukaniana, trata-se de enfatizar os vários momentos da forma jurídica, em suas aparências legislativa e jurisprudencial, em sua essência relacional, em sua fundação como valor/capital, mas também em suas espécies transitivas, como a moral e a regulação privada.

            Neste caso, por contraste, não se parte nem de uma mesma fundamentação teórica e nem se tem uma mesma avaliação axiológica a respeito do fenômeno jurídico. No entanto, chega-se, sim, a uma conclusão diretamente proporcional: para explicar o fenômeno jurídico não cabem reducionismos que excluem, de antemão, algumas de suas manifestações. Os analogados do jusnaturalismo histórico e os momentos da forma jurídica, então, guardam entre si relação de afinidades substitutivas.

Sobre este aspecto, cabe ainda ressaltar algo tão interessante quanto o fato de a definição de afinidade eletiva, em Löwy, possuir referência a uma dimensão analógica, também. Como já citei, o sociólogo franco-brasileiro conclui, a partir do texto weberiano, que a afinidade eletiva diz respeito a “certas analogias significativas” e compreende “a existência de elementos convergentes e análogos” (LÖWY, 2014, p. 72 e 64). Logo, se para uma teoria crítica do direito como a construída por De la Torre cabem analogados jurídicos para se escapar do reducionismo sobre a interpretação do fenômeno do direito, a idéia mesma de pensamento analógico, encontrada na obra do filósofo mexicano Mauricio Beuchot (2010), pode ser recepcionada para se estudar o direito, como ferramenta obtida, a partir de um enriquecimento teórico havido em um diálogo tenso mas produtivo, pela própria crítica marxista. Além de isso, tem parentesco direto com a opção metodológica adotada neste ensaio, já que procurar afinidades (eletivas, seletivas, negativas, relativas, supletivas ou substantivas) não deixa de ser, em algum sentido, uma manifestação de um pensamento analógico.

O problema dos analogados é pertinente, assim, à teoria crítica do direito por seu desenvolvimento permitir, definitivamente, dimensionar o fenômeno jurídico como complexo, afastando interpretações rasteiras e/ou ingênuas. Para uma teoria marxista do direito, tal contribuição ganha contornos igualmente relevantes, dado que não é incomum encontrar teorizações, tanto identificadas com o marxismo quanto abertamente opostas a ele, que reduzem o direito a uma única realidade, especialmente a um genérico fenômeno de “dominação” que tem caráter heurístico muito baixo, além de não guardar espelhamento com os avanços do marxismo senão por vulgata.

Sendo assim, fica a compreensão de que o antirreducionsimo jurídico é uma afinidade relativa de cunho reinterpretante entre De la Torre e a crítica marxista ao direito, sendo que o problema dos analogados pode ser compreendido como uma contribuição servível a ambas as propostas. A seguir, passo a considerar, como decorrência do que até aqui expus, outra afinidade substitutiva, aquela que diz respeito ao problema do analogado principal ou essência do direito.

4.2. O problema do analogado principal para encontrar a essência do direito

            O jusnaturalismo histórico analógico, conforme o entende De la Torre Rangel, caracteriza-se por explicar o direito como um complexo de realidades, as quais, porém, possuem um centro gravitacional, ou seja, um analogado principal. Em sua obra, De la Torre adota duas posições distintas, no decorrer do tempo. Por isso, a afinidade relativa sobre a qual falarei agora exigirá uma ponderação paralela.

            Até sua tese de doutoramento, defendida em 2006, Jesús Antonio de la Torre explicou sua posição analógica sobre o direito encarando-o a partir de um analogado principal, os direitos subjetivos (ver, a respeito, texto escrito dois anos antes, em DE LA TORRE RANGEL, 2004b). Sobre isto, poderia ser dito que sua perspectiva jusnaturalista é de tipo crítico, na medida em que defende a pessoa humana como centro criativo e livre de produção da justiça. Logo, a justiça, para este jusnaturalismo, seria analogado secundário, já que decorrente do princípio personalista.

            A partir de 2006, porém, De la Torre modifica sua visão: “sustentamos agora que o analogado principal do Direito, o prioritário, o sobressalente do jurídico é o justo objetivo, isto é, precisamente a coisa ou conduta devida ao outro” porque “a justiça implica a alteridade, requer do outro” (DE LA TORRE RANGEL, 2011, p. 45). Na realidade, De la Torre inverte o argumento e faz a subjetividade decorrer da justiça ou até a pressupõe nesta. A verdade é que o jurista mexicano, assim como assinalei no item anterior, apresenta os analogados jurídicos como vários momentos da forma jurídica: os analogados secundários intrínseco – a norma – e extrínseco – a ciência; o analogado principal – direitos subjetivos, na primeira versão; justiça, na segunda; e o analogado decorrente do principal (portanto, entre o principal e o secundário) – justiça, na primeira versão; e direitos subjetivos, na segunda.

            O jusnaturalismo de De la Torre, com esta inversão, não deixa de continuar crítico, já que a justiça permanece como um desiderato de concretude e, mais ainda, acolhe o sujeito nela mesma. A diferença, a meu ver e contudo, é que na primeira versão de sua teoria, em que o analogado principal se encontrava nos direitos subjetivos, o fundamento explicativo residia em uma intuição mais próxima do ser da realidade social (ainda que premido por fortes tendências metafísicas, no sentido filosófico do termo). Já sob o primado da segunda versão, em que o analogado principal do direito é a justiça, sua fundamentação desloca-se para uma ainda mais explícita deontologia, para uma utopia que, apesar de necessária, pode confundir um eventual desavisado que, procurando um discurso ontológico (sobre o que o direito é, de fato), encontra um discurso deontológico (sobre o que direito deveria ser) sem o saber.

            Para a teoria marxista do direito, notadamente a de Pachukanis (1988), que leva às últimas conseqüências o método de Marx para o âmbito jurídico, a essência do fenômeno está em uma dimensão relacional. Portanto, o direito é antes de qualquer outra coisa uma relação social. No entanto, não é uma relação social em geral, caso contrário não poderia haver uma coerência metodológica com a própria proposta de Marx, na qual se procura sempre encontrar a especificidade dos fenômenos em um dado contexto social. Assim, o direito se apresenta como uma relação social especificamente jurídica na medida em que garante a circulação de mercadorias equivalentes entre sujeitos de direito tornados iguais entre si. A forma jurídica, então, diz respeito a uma relação contratual em que seus elementos mais básicos são representados pelo sujeito de direito, como forma social basilar.

            Aqui, como fica evidente, reside uma forte tensão entre o pensamento de De la Torre e a crítica marxista ao direito, apesar de também uma afinidade relativa. Na última versão do jusnaturalismo histórico em que o analogado principal se apresenta como sendo a justiça, acredito não haver mais que tensão com o marxismo (portanto, não há afinidade relativa explícita, ainda que sim pelo sentimento de incômodo com a desigualdade social do mundo capitalista). Por outro lado, na versão em que o analogado principal residia nos direitos subjetivos, havia uma explícita afinidade substitutiva, já que seriam diretamente proporcionais os entendimentos do marxismo, ao compreender a essência do direito na relação de troca de mercadorias entre sujeitos jurídicos, e de De la Torre, com o foco na pessoa humana como radical realidade criadora do direito.

            Ocorre, porém, que tal afinidade substitutiva, como disse, não compartilha nem da mesma base teórica (personalismo versus marxismo) nem da mesma axiologia sobre seus resultados (para De la Torre, lastrear sua teoria nos sujeitos de direito é um elemento muito positivo, pois se estaria levando em conta a realidade humana como a mais importante; para o marxismo, centrar-se nos direitos subjetivos é uma abstração que escamoteia a desigualdade dos que são estruturalmente desiguais). Nem por isso, suas conclusões deixam de se corresponder, tendo-se nos direitos subjetivos como analogado principal uma tradução para a relação jurídica essencial pachukaniana na troca de mercadorias entre sujeitos de direito. Mesmo assim, a afinidade relativa guarda sentido e no estado atual da teoria que foi medrada por De la Torre, apresenta-se inclusive como interpelação para reconsideração de seus posicionamentos, no último decênio, sobre o tema.

  1. Em síntese: afinidades relativas

            Como resultante desta singela análise, posso dizer que o instrumental hermenêutico construído a partir da noção de afinidades tem promissora utilização, especialmente se se levar em consideração campos teóricos em tensa interação, como é o caso do jusnaturalismo histórico analógico e da crítica marxista ao direito.

            Se isto é verdade, também o é o fato de que o alcance das idéias de afinidades eletiva e seletiva, como as presentes nos ensaios de Löwy e Anderson, respectivamente, é limitado para sopesar perspectivas teóricas com maiores nuanças. Diante da necessidade de maiores mediações, não é suficiente um conjunto categorial que só avalie a existência de escolha recíproca, seleção por exclusão ou até mesmo a negação interativa. É preciso, isto sim, encontrar ferramentas analíticas que permitam sublinhar eventuais complementações e sobreposições. Tudo isto no intuito de enriquecer o diálogo entre teorias, mormente de enriquecer o repertório do marxismo (no caso, na construção de uma teoria crítica do direito).

            Por isso, ao invés de afinidades eletiva (por congruências) e seletiva (por exclusões), apresentei, como um esboço, aquilo que entendi melhor aprouver a análise da relação entre a obra de De la Torre e o marxismo, vale dizer, as afinidades supletiva (por complementação), como nos exemplos da crítica à formação jurídica latino-americana e da práxis jurídica popular, e substitutiva (por reinterpretação), a partir do exemplos dos analogados jurídicos e do analogado principal.

            Como visto, as afinidades relativas, seja a supletiva ou a substitutiva, recompõem a possibilidade de diálogo teórico e reconsidera o peso das tensões entre a importante contribuição de Jesús Antonio de la Torre Rangel para o direito, sem dúvida uma das mais relevantes em nosso contexto social, e a crítica marxista ao direito.

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NOTAS: 

[1] Resumo de artigo apresentado ao Espaço de GT 3 – Pensamento crítico e pesquisa militante na América Latina do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2] Mestranda no Programa de Pós-Graduação e Direitos Humanos da Universidade de Brasília.

[3] Mestra pelo Programa de Pós-Graduação e Direitos Humanos da Universidade de Brasília.

[4] A problemática trazida na PEC do Teto dos Gastos Públicos diz respeito à redução significativa nos gastos com educação e saúde, o que será sentido pela classe trabalhadora, em maior intensidade. Conheça o texto da emenda disponível em < https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127337 >. Acesso em abril/2018.

[5] Confira-se trecho da sentença: “Como forma de auxiliar no convencimento à desocupação, autorizo expressamente que a Polícia Militar utilize meios de restrição à habitabilidade do imóvel, tal como suspenda o corte do fornecimento de água; energia e gás. Da mesma forma autorizo que restrinja o acesso a terceiros, em especial parentes e conhecidos dos ocupantes, até que a ordem seja cumprida. Autorizo também que impeça a entrada de alimentos. Autorizo, ainda, o uso de instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o período de sono. Tais autorizações ficam mantidas independentemente da presença de menores no local, os quais, a bem da verdade, não podem lá permanecer desacompanhados de seus responsáveis legais.”

[6] Dentro da nossa perspectiva feminista iremos relacioná-las às jovens (e mulheres) aguerridas como a Jéssica, do filme “A que horas ela volta”; Ângela Davis, nome internacional que representa o feminismo negro e Lélia Gonzalez, expoente do movimento interseccional feminista aqui de nossas terras

[7] De acordo com o Censo do IBGE de 2017.

[8] Como se denominam as estudantes que participaram das ocupações

[9] L2 é o nome de uma avenida localizada no Plano Piloto. “Pobre de L2” seria uma ironia, porque a renda per capita do Plano Piloto é uma das maiores do país, segundo censo do IBGE. Disponível  em < https://cidades.ibge.gov.br/brasil/df/panorama >. Acesso em abril/2018.

[10] Segundo dados do  Atlas da Violência 2017, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a população negra corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios. Disponível em <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/atlas-da-violencia-2017-negros-e-jovens-sao-as-maiores-vitimas>. Acesso em abril 2018.

[11] Da Pedagogia da Autonomia, onde se lia “o adolescente”, aqui adaptado para “a adolescência”.

[12] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 3 (Pensamento crítico e pesquisa militante na América Latina) do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[13] Mestranda no programa Direito e Desenvolvimento da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – FDRP/USP.

[14] Professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – FDRP/USP.

[15] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 3 (Pensamento crítico e pesquisa militante na América Latina) do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[16] Graduanda no curso de bacharelado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Pesquisadora voluntária no Grupo Institucional de Pesquisa em Direitos Humanos e Fundamentais (GPDH – UESC).

[17] Graduando em Direito pela Universidade Regional de Blumenau – FURB.

[18] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 3 (Pensamento crítico e pesquisa militante na América Latina) do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[19] Professora, pesquisadora e extensionista vinculada ao Curso de Direito da Universidade Regional de Blumenau com pesquisas na área de Movimentos Sociais e Pluralismo Jurídico.

[20]Ignácio Ellacuría Beascoechea, padre jesuíta e Doutor em Filosofia e Teologia, nasceu em Portugalete, província de Vizcaya, Espanha, em 9 de novembro de 1930. Em 1967, transfere-se para El Salvador para aturar na Universidade Centroamericana (UCA) José Simeón Cañas, como professor. Por sua militância ao lado dos empobrecidos e por suas ideias, no dia 16 de novembro de 1989, foi brutalmente assassinado pela Força Armada de El Salvador.

[21] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 3 – Pensamento crítico e pesquisa militante na América Latina do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[22] Acadêmica do 8º semestre do curso de Direito da Universidade Regional de Blumenau – FURB. Pesquisadora nos grupos de Pesquisa da ABDConst na FURB; CONSTINTER – O patrimônio comum do constitucionalismo democrático e a contribuição da América Latina; e Política Constitucional e Novas Juridicidades: desvelando práticas sociais emancipadoras.

[23] Esse processo de colonização será abordado com maior detalhamento no título 3 do presente trabalho.

[24] A organização Pacto de Unidad foi composta pelas principais organizações sociais da Bolívia, como a Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Campesinos da Bolívia, a Confederação Sindical de Comunidades Interculturais da Bolívia, a Confederação Nacional de Mulheres Campesina Indígena Originárias da Bolívia, entre várias outras.

[25] Artículo 1. Esta Constitución respeta y constitucionaliza la preexistência de las naciones y pueblos indígenas originarios y afrodescendentes, el domínio ancestral sobre sus territorios y garantiza su libre determinación que se express en la voluntad de conformar y ser parte de Estado Unitario Plurinacional Comunitario, y en el derecho a controlar sus instituciones, al auto gobierno, a desarrollar su derecho y justicia propia, su cultura, formas de vida y reprodución, al derecho a reconstituir sus territórios y al derecho a definir su desarrollo con indetidad.

[26] As Cruzadas foram espécies de expedições do mundo cristão europeu contra o islamismo árabe, com o intuito de reconquistar Jerusalém. Iniciaram em 1095 e foram até 1291.

[27] Uma das maiores figuras cristãs. Sua teologia é baseada no direito natural e na conquista da salvação pela razão. É ele quem funde o pensamento cristão com a filosofia de Aristóteles, corrente que vai se propagar pela Península Ibérica, em especial a Espanha.

[28] A modernidade pode ser compreendida de várias maneiras. Pode-se associar a modernidade com o “Iluminismo e a razão, partindo da ideia de que teria ocorrido uma saída das trevas da ignorância” ingressando “no período das luzes, proporcionado pela racionalidade científica”. É possível também pensar a modernidade a partir da tese de Enrique Dussel, segundo a qual a modernidade iniciou com a chegada dos colonizadores ao continente americano, quando os europeus impuseram sua vontade sobre o índio americano, através da apropriação e da violência (Wolkmer; Kyrillos, 2015, p. 2).

[29] Humberto Cholango, liderança indígena e presidente da CONAIE em 2011, define o bem viver ou sumak kawsay como “um novo modelo de vida (frente à concepção ocidental) mas que vai além dos indígenas e é válido para todo o planeta. Esta noção supõe harmonia com a Mãe Terra e a conservação do ecossistema. Ela significa finalmente a felicidade para os índios e todos os outros humanos”. (François Houtart, 2011, p.10-11).

[30] Também nossa demanda contempla o pedido de reforma do artigo 1 da Constituição Política do Estado, reconhecendo o país como um Estado plurinacional, já que consideramos que nos identificamos como nacionalidades indígenas, que somos parte de um Estado plurinacional. Para esta reforma será necessário realizar um estudo minucioso, modificar e criar uma nova estrutura jurídica, legal e política que contemple os nossos direitos … A reforma da Constituição levaria à modificação do caráter do Estado como pluricultural,  pluralista e democrático. Ou seja, os direitos dos índios não são reivindicados exclusivamente, mas de toda a sociedade equatoriana como um todo. (Tradução livre da autora).

[31] de um ator social restrito, limitado a demandas particulares no qual seu confronto com o Estado se fazia em função de uma integração aos mecanismos de participação e representação política, econômica e social, uma integração baseada no respeito à sua identidade cultural, para a constituição de um sujeito político em que suas demandas são nacionais e sua agenda é a responsabilidade e o compromisso de toda a sociedade. (Tradução livre da autora).

[32] Ecuador Runacunapac Riccharimui (traduzido do kichwa para o português significa o “despertar de todos os povos indígenas do Equador). Foi criada a partir de uma Assembleia realizada em Tepeyac, formada por 200 delegados de várias organizações que tinha a compreensão cada vez mais latente de que a problemática indígena não se restringia às questões étnico culturais, mas passava também pelas questões de classe. (Santos, 2015, p.83)

[33] Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador. Criada em 1986, com representação de todas as nacionalidades e organizações indígenas, objetivando lutar pelos territórios; reconhecimento e valorização das culturas, povos e nacionalidades e qualidade de via em geral dos diferentes povos indígenas. (Santos, 2015, p.87)

[34] Artigo 1. A Bolívia é constituída como Estado Social Unitário de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e autônomo. A Bolívia se baseia na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e lingüístico, dentro do processo de integração do país.

Artigo 2. Dada a existência pré-colonial dos povos indígenas originário campesinos e seu domínio ancestral sobre seus territórios, sua autodeterminação é garantida no marco da unidade do Estado, que consiste em seu direito à autonomia, autogoverno, sua cultura, o reconhecimento de suas instituições e a consolidação de suas entidades territoriais, de acordo com esta Constituição e a lei. (Tradução livre da autora)

[35] Os membros da nação ou povo indígena originário campesino estão sujeitos a esta jurisdição, atuando como autores ou réus, reclamantes ou denunciantes, denunciados ou imputados, recorrentes ou recorridos. (Tradução livre da autora)

[36] Confederação das Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana, que representa a região de Pastaza no

âmbito da CONAIE, da qual fazem parte sete das catorze nacionalidades indígenas reconhecidas em todo o Equador (Achuar, Andoa, Shuar, Kichwa, Shiwiar, Waorani e Zápara).

[37] Um exemplo dessa inovação pode ser verificado na Sentença Constitucional Plurinacional 1422/2012. No julgamento desse caso – o autor de um furto que foi expulso com toda sua família da aldeia onde vivia, após deliberação da comunidade em assembleia – o TCP apoiou-se em um laudo produzido pelo órgão denominado “Unidade de Descolonização”, que realizou um amplo estudo antropológico verificando a existência pré-colonial da comunidade, suas práticas ancestrais que incluíam meios próprios de resolução de conflitos, para realizar o julgamento do caso. (Ferrazzo; Lixa, 2016, p. 2647-2649).

[38] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 3 (Pensamento crítico e pesquisa militante na América Latina) do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[39] Professor do Curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Direito das Relações Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR). Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Bacharel em Direito pela UFPR. Pesquisador do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania (NDCC/UFPR), do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL/UFPR) e do grupo de pesquisa Direito, Sociedade e Cultura (FDV/ES). Pesquisador e conselheiro do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), do qual já foi Secretário Geral (2012-2016). Coordenador-geral do Centro de Formação Milton Santos-Lorenzo Milani (Santos-Milani). Integrante da coordenação do Instituto de Filosofia da Libertação (IFiL). Conselheiro do Centro de Formação Urbano-Rural Irmã Araújo (CEFURIA), do qual já foi Coordenador Administrativo (2015-2017). Membro do Conselho de Representantes da Associação dos Professores da Universidade Federal do Paraná-Seção Sindical do ANDES-SN (CRAPUFPR), do qual já foi Presidente (2015-2017), tendo sido também Diretor Jurídico da APUFPR-SSind (2013-2015). Coordenador do projeto de extensão popular Movimento de Assessoria Jurídica Universitária Popular – MAJUP Isabel da Silva, junto à UFPR. Colunista do blogue assessoriajuridicapopular.blogspot.com.br e do jornal Brasil de Fato. Contato: [email protected]

[40] O levantamento deste material eu o fiz em minha pesquisa de doutoramento, ainda que só no intuito de arrolar as suas referências bibliográficas e não seu conteúdo (PAZELLO, 2014a, p. 380).