ESPAÇO DE DISCUSSÃO 6: CIDADE E DIREITO

  

Artigo

 


  ENTRE A GARANTIA DO “DIREITO À MORADIA ADEQUADA” E A REALIDADE DA EXCLUSÃO DO ESPAÇO SOCIAL E FÍSICO PARA OS PESCADORES DO JARAGUÁ, MACEIÓ, ALAGOAS[1].

BETWEEN THE GUARANTEE OF THE “RIGHT TO ADEQUATE HOUSING” AND THE REALITY OF THE EXCLUSION OF THE SOCIAL AND PHYSICAL SPACE FOR THE FISHERMEN OF JARAGUÁ, MACEIÓ, ALAGOAS.

 

Alessandra Marchioni[2]

 

Resumo: Essa pesquisa tem como objetivo principal apresentar elementos para uma compreensão mais precisa sobre o fenômeno da “produção capitalista do espaço” urbano na cidade de Maceió, Alagoas, Brasil. Nesse sentido, se justificaria a oportunidade de colocar em prática processos de transformação urbana, atração de investimentos e reposicionamento da cidade através de sua renovação. Esse foi o caso da valorização imobiliária da costa litorânea de Maceió, onde se situa a “Villa dos Pescadores”. Assim, é possível afirmar que o processo de “territorialização” das cidades, promovido pelo Estado, desde una dinâmica capitalista, primeiro afeta as comunidades originárias, incidindo principalmente pelos grupos socialmente excluídos e profundamente segregados. O uso social do direito (“direito à moradia adequada”) aparece como elemento essencial à produção e reprodução dessas estruturas, porque distingue lugares e posições sociais, através de seus atos simbólicos de nomeação, como as decisões judiciais. Nessa pesquisa, será utilizado o método de abordagem sociológico de Pierre Bourdieu, com enfoque para a identificação do habitus praticado por aquela comunidade tradicional, relacionado aos campos social e jurídico.

Palavras-Chave: direito à moradia adequada; comunidade tradicional de pescadores; Maceió

Abstract: This investigation has the main objective to provide elements for a more precise comprehension about the phenomenon of the “capitalist production of urban space” in the city of Maceió, Alagoas, Brazil. In this sense, this would justify an opportunity to put in place processes to urban transformation, attracting investments and the city repositioning by its renewal. This was the case of the real estate valuation of the littoral coast of Maceió, where was the “Fishermen’s Village”. Therefore, it is possible to claim that the process of “territorialisation” of the urban space, promoted by the State through a capitalist dynamic, first affects the primitive communities, mainly among socially excluded groups already deep segregated. The social use of the law (“right to adequate housing”) appears as an essential element of the production and reproduction of these structures, because distinguishes places and social positions, through its symbolic acts of naming, such as the judicial decisions. . In this research, it will be used the Pierre Bourdieu’s sociological approach method, focusing on the identification of habitus practiced by that traditional community, related to social and legal fields.

Keywords: right to adequate housing – traditional fishing community – Maceió.

 1.INTRODUÇÃO

Em 2010, um relatório das Nações Unidas, denunciou a lógica comercial e corporativa que se instaurava no meio urbano, em que cidades deveriam adotar um determinado modelo denominado “cidade global”. Nesse sentido, a cidade global justificaria uma oportunidade de colocar em prática processos de transformação urbana, atração de investimentos e reposicionamento das cidades através de sua renovação.

O modelo de “cidade global” define-se como a transposição para a esfera pública de modelos de gestão e competição empresariais, em que a “cidade” passa a ser vista como uma “empresa”, que compete com outras “cidades-empresa” no mercado internacional. A cidade é reduzida a uma de suas dimensões, a econômica de natureza empresarial e comercial, que passa a depender da atuação de um marketing urbano para ser vendida e consumida. (VAINER, 2012). Desde então, os planos urbanísticos passaram a incentivar a competitividade e a estratégia negociada entre agentes privados e públicos, definida em razão da “oportunidade de negócios” (ASCHER, 2001). Entre as estratégias de expansão da capacidade de acumulação do capital está o processo de “territorialização”, que poderá ser compreendido como “desterritorialização”, a depender do ponto de vista do Poder Público (HAESBAERT, 2012).

Nesse contexto, o direito terá um papel essencial na produção dessa “territorialização” do espaço urbano e na geração de desigualdades no espaço social da cidade, agindo desde uma função legitimadora desses princípios excludentes, que se pretendem hegemônicos. “Nesse sentido, os instrumentos jurídicos não são neutros” (LAGO, 2003, p. 11).

Para Bourdieu (2000), é possível observar um conjunto de disputas em torno do poder de “declarar o direito”, que abranja, ao mesmo tempo, o “poder de construir” uma estrutura social objetiva e o “poder de (re) produzir” efeitos de adesão e de submissão de uma sociedade a uma dada percepção do mundo. Assim, na prática contemporânea, a divisão do trabalho jurídico concorrerá em favor da produção de disposições normativas e de decisões judiciais que garantam um resultado da “produção capitalista do espaço” (HARVEY, 2005).

Dessa forma, esse artigo se propõe a levantar algumas indagações: qual a “concepção de cidade” está subjacente a esse processo de “territorialização” dos espaços social e físico urbanos? Como a solução jurídica da remoção da “comunidade tradicional de pescadores” de seu lugar de moradia se relaciona com a “produção capitalista do espaço”?

Assim, essa pesquisa tem como objetivo principal fornecer elementos sobre um conjunto de representações da sociedade urbana brasileira e alagoana, segundo o qual: “uma comunidade tradicional de pescadores” deve permanecer excluída do espaço social e “(des)territorializada do espaço físico” da cidade a partir da divisão do trabalho jurídico: a prática das politicas públicas e o uso do Plano Estratégico da Cidade de Maceió ; a estratégia da decisão judicial, in casu proferida na Ação Civil Pública nº 0004070-23.2012.4.05.8000, interposta pela Prefeitura de Maceió contra a “Coletividade invasora” da Vila dos Pescadores, a qual ordenou a desocupação de famílias de pescadores que habitavam o local

Esse projeto utilizará a metodologia jurídica e o método observacional, em que o pesquisador registra e descreve os fatos observados. No caso concreto, serão dois níveis de descrição: no âmbito das normativas e suas relações com as decisões judiciais, em que se procurará classificar, explicar e interpretar os discursos jurídicos que ocorrem. E, noutro nível, as características da população dos pescadores e suas famílias, seus hábitos, seus comportamentos, bem como, suas relações com o processo de produção capitalista do espaço, capitaneado pelos Poderes Públicos. Para tanto, será utilizada a pesquisa documental de normas internas, municipais, e a decisão judicial, que deu origem à remoção. Além dessa técnica da documentação indireta, que se dá mediante a coleta de dados, restrita a documentos, escritos, tem-se também a técnica da documentação direta, na qual há a visita ao local e se fazem os registros fotográficos, constituindo-se, como a outra, em fontes primária. Já a pesquisa bibliográfica, abrange um conjunto de bibliografias já tornadas públicas em relação ao tema do estudo, desde livros, artigos científicos, jornais e revistas, desde a remoção até os dias de hoje.

  1. A “CIDADE GLOBAL” E O FENÔMENO DA PRODUÇÃO CAPITALISTA DO ESPAÇO

 

O modelo de “cidade global” define-se como a transposição para a esfera pública de modelos de gestão e competição empresariais, em que a “cidade” passa a ser vista como uma “empresa”, que compete com outras “cidades-empresa” no mercado internacional. A cidade é reduzida a uma de suas dimensões, a econômica de natureza empresarial e comercial, que passa a depender da atuação de um marketing urbano para ser vendida e consumida.[3].

Conforme esclarece Vainer (2012), enquanto o Consenso de Washington, em 1989, ajustava estruturalmente as economias nacionais[4], um outro consenso: o “urbano”, se projetava e se incorporava nas práticas políticas de planejamento das cidades. Desde então, os planos urbanísticos passaram a incentivar a competitividade e a estratégia negociada entre agentes privados e públicos, definida em razão da “oportunidade dos negócios” (ASCHER, 2001).

No contexto desse processo de urbanização[5], um conjunto de formas e de funções sociais dos/nos lugares precisou ser forjado como estratégia para a denominada produção capitalista do espaço.

Nesse sentido, segundo Harvey (2005), embora o processo urbano sob o impacto capitalista seja moldado pela lógica da circulação e acumulação de capital, não se deve desprezar os sintomas e manifestações de “crise do sistema” como razão para a própria reordenação dos espaços e avanços econômicos. Desse modo, crises periódicas, se bem que conduzam a trágicas consequências humanas na forma de falências, queda de salários e desemprego, por exemplo, levam a novas condições de apropriação e renovação de acumulação.

Entre as estratégias de expansão da capacidade de acumulação do capital está o processo de “territorialização”[6], que poderá ser compreendido como “desterritorialização”, a depender do ponto de vista do Poder Público.

Para Deleuze e Guattari (apud Haesbaert, 2012, p. 137):

Quando a divisão se refere à própria terra devida a uma organização administrativa, fundiária e residencial, não podemos ver nisto uma promoção da territorialidade, mas, pelo contrário, o efeito do primeiro grande movimento de desterritorialização nas comunidades primitivas. A unidade imanente da terra como motor imóvel é substituído por uma unidade transcendente de natureza muito diferente que é a unidade do Estado.[…]

Esse fenômeno político produz uma instabilidade e uma fragilização territorial, que incide social e fisicamente sobre os grupos excluídos e profundamente segregados, também denominados “aglomerados de exclusão” (HAESBAERT, 2012). E é assim que tal referência aparece vinculada às noções de espaço social e territorial que se imbricam mutuamente.

Sob essa abordagem, a distribuição dos indivíduos no espaço, ou a “arte das distribuições”, é uma estratégia marcadamente desenvolvida para “conhecer, dominar e utilizar” os indivíduos numa clara “mecânica do poder” direcionada aos seus corpos (FOUCAULT, 2007), mas também engendrada sob as relações distintivas e hierarquizadas entre os agentes sociais e as suas propriedades no “lugar social” e no “espaço físico” (BOURDIEU, 2012).

Assim, não será de outra forma que, a “cidade-empresa” fundará “um lugar” ideal em torno de noções hegemônicas – “da comemoração, do saber, da cultura, do turismo”-  unificadas por arquétipos – “cidade maravilhosa”, “paraíso das águas”, entre tantos outros- . Em contraste, aos lugares “reais”- das “favelas” ou das “grotas” – das cidades plurais e diversificadas, que passaram a ser reconhecidas como obstáculos ao avanço e ao progresso das primeiras.

[…] Tratam-se, em regra, de comunidades localizadas em regiões que, ao longo do tempo, tiveram enormes valorizações e passaram a ser objeto de cobiça dos que fazem da valorização imobiliária a fonte de seus fabulosos lucros. Mas os motivos alegados para a remoção forçada são, evidentemente, outros: favorecer a mobilidade urbana, preservar as populações em questão de risco ambiental e, mesmo de melhoria de suas condições de vida […] (TAVARES, 2014, p. 09)

Será, então, através de ações especulativas que o próprio Poder Público aumentará artificialmente a escassez e o preço dos terrenos adequados ao mercado imobiliário informal, deixando aos pobres a opção das favelas ou dos loteamentos em locais precários, seja por irregularidade fundiária ou por “local de risco” do assentamento[7].

Invariavelmente, são as comunidades em condição de maior vulnerabilidade social e econômica, aquelas que mais sofrem com os deslocamentos forçados, legitimados pela estigmatização e pelo preconceito, a partir das classificações de hierarquia social, refletidas nos assentamentos precários. Em seu “lugar”, serão realocados novos moradores, todos providos de um conjunto de propriedades e capitais sociais, potenciais consumidores de um “novo” espaço físico, agora urbanizado e valorizado pela cidade.

 

  1. A COMUNIDADE DOS PESCADORES DE JARAGUÁ: UM ESPAÇO FÍSICO E UM ESPAÇO SOCIAL DE EXCLUSÃO

 A comunidade pesqueira de Jaraguá, também chamada de Vila dos Pescadores de Jaraguá, é contemporânea à formação de Maceió e cresceu à medida que aumentava o fluxo migratório dos trabalhadores rurais e da pesca de outras cidades para a capital alagoana.

Assim, é na prática da pesca que se pode identificar vários papéis sociais (FIG 1 e 2): aqueles que praticam o ofício da pesca, que confeccionam e mantêm seus instrumentos de pescado, moradores que se ocupam com o conserto de artefatos e com a comercialização e com a limpeza do peixe. Só a “mariscagem”, tarefa que consiste em fazer a limpeza do peixe ou do camarão para entregar ao pombeiro, envolvia a maior parte das pessoas dos domicílios (88,25%) (LABORATÓRIO DA CIDADE, 2006).

Figura 1 Pescadores                                       Figura 2 Marisqueiras

http://alagoasboreal.com.br/editoria/2085/patrimonios/em-maceio-vila-de-pescadores-do-jaragua-e-removida-juntamente-com-uma-tradicao-de-mais-de-60-anos

Das características socioculturais levantadas pela pesquisa do Laboratório da Cidade e do Contemporâneo (2006), percebe-se que a Vila dos Pescadores de Jaraguá poderia ser identificada como uma “ilha de ruralidade” (LEFEBVRE, 2001), despojada daquilo que constitui a urbanidade, ou seja, a comunidade de pescadores ocupava aquele espaço urbano com base em seu valor de uso, na medida em que lhe propiciava condições de subsistência e manutenção de um estilo de vida tipicamente tradicional.

Nesse sentido, importante ressaltar a noção de “espaço urbano”, que também pode ser identificado como a síntese de dois outros termos disputados ideologicamente no “campo”[8] social da cidade: o “espaço social” e o “espaço físico”. Para Pierre Bourdieu (2012), o “espaço social” e o “espaço físico” são categorias distintas, mas que se imprimem mutuamente. Enquanto a noção de “espaço social” ocorre a partir da distribuição dos/entre os agentes sociais e suas propriedades no lugar social, o “espaço físico” é definido pela exterioridade mútua dessas partes.

Efetivamente, o espaço social se retraduz no espaço físico, mas sempre de maneira mais ou menos confusa: o poder sobre o espaço que a posse do capital proporciona, sob suas diferentes espécies, se manifesta no espaço físico apropriado sob a forma de uma certa relação entre a estrutura espacial da distribuição dos agentes e a estrutura espacial de distribuição de bens ou dos serviços, privados ou públicos (BOURDIEU, 2012, p. 160)

Assim, se bem que o “espaço” daquela comunidade de pescadores seja um lugar onde as possibilidades e as práticas sociais se desenvolvam e se reproduzam materialmente, através das práticas políticas, das referências distintivas e da representação social que eles (e os outros) fazem de si mesmos (fazem deles), será no “território” que se realizará a apropriação da pesca, propriamente dita, e onde se dará na prática o domínio e o controle dos usos das frações de “espaço” (RAFFESTIN, 1993). Dessa forma, pode-se dizer que esses “territórios” são espaços físicos de sobrevivência social[9].

No caso da Vila dos Pescadores de Jaraguá verifica-se a configuração tanto do “espaço social”, quanto de sua exteriorização física e territorial. Enquanto o “campo” ou espaço social aparece relacionado tanto às práticas sociais internas à Vila, desde as distinções entre atividades e gênero[10], até aquelas relativas às associações externas feitas à comunidade, reconhecidas pela produção de “barracos” e nas subhabitações (FIG.3) como forma de morar.

Figura 3 “Barracos” da Vila                               Figura 4 Enseada de Jaraguá e barcos de pesca

Fonte: http://noticias.uol.com.br

Desse modo, verifica-se que o “espaço habitado” ou apropriado pelos pescadores acabou por simbolizar o “seu” espaço social, ou a sua posição relativa pela relação às outras pessoas e comunidades da cidade. Esse “espaço” está relacionado ao “espaço físico” da Vila, que expressa, ao mesmo tempo, a posição territorial em oposição a outros lugares e a distância que o separa deles[11].

Em outras palavras, as conquistas de “espaço físico” e “social” não apenas conformam uma hierarquia social, como revertem em ganhos de capital extras a seus agentes, como a renda em função da localização dos lugares mais “nobres” ou “pobres” para residir (FIG.4), e os ganhos ou perdas de posição e de classe em razão do acesso aos locais de prestígio e “bem ou mal localizados” (BOURDIEU, 2012).

Figura 5 Orla do Bairro de Jaraguá e Centro

Fonte: Google maps;

Dentre as particularidades de sua localização, observa-se que a Vila dos Pescadores localizava-se no Bairro de Jaraguá, na orla da cidade de Maceió, na área circundante ao Porto Turístico e há menos de 1km do Centro da Cidade (FIG.5).  Essa é uma área estratégica, bastante valorizada sob o ponto de vista da “cidade mercado”, que valoriza a mobilidade urbana e as infraestruturas de acesso turístico, no caso o Litoral Sul e as “praias do Francês e Gunga”. O Bairro também recebe boa valorização imobiliária, similar aos bairros de classe média e alta (Pajuçara, Ponta Verde e Jatiúca), a isso se somam as suas características históricas.

  1. O USO SOCIAL DO “DIREITO À MORADIA ADEQUADA”

 

Conforme Lago (2003), a legislação tem um papel essencial na produção da ilegalidade urbana e nas condições de desigualdade de condições de vida na cidade. Na disputa em torno das noções que delimitam os “territórios” da cidade, os instrumentos jurídicos têm função legitimadora daqueles princípios excludentes, que se pretendem hegemônicos. “Nesse sentido, os instrumentos jurídicos não são neutros” (p. 11).

Apesar de consagrado como um direito humano social, tanto em convenções internacionais, cite-se o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais (1966)[12], como em dispositivos internos constitucionais e infraconstitucionais, o “direito à moradia adequada” vem sofrendo reveses diante dos atuais modelos de urbanização e desenvolvimento urbano.

Trata-se de situações em que grupos e populações vêm sendo removidos de seus lugares originais de moradia para outras localidades e regiões, sem que lhes sejam asseguradas a continuidade de suas condições de vida (acesso a serviços públicos, condições de manutenção do emprego) e garantias processuais (indenização, participação e decisão sobre o procedimento da remoção) (CAVALCANTE, 2016).

Não à toa, tanto a Missão Conjunta da Relatoria Especial da ONU para Moradia Adequada, quanto a Relatoria Temática Nacional, constataram que a implementação de projetos turísticos urbanos constitui atualmente uma das principais causas do “processo de gentrificação” [13] e de promoção dos despejos forçados no Brasil[14].

No caso da Vila dos Pescadores de Jaraguá, o próprio Plano Diretor protege em seus diversos dispositivos o local habitado por aquela comunidade, merecendo destaque as seguintes normas sobre zoneamento urbano: Zonas de Interesse Ambiental e Paisagístico- ZIAP, Zonas Especiais de Preservação Cultural – ZEP- e Zonas de Interesses Sociais – ZEIS:

PLANO DIRETOR DE MACEIÓ (LEI Nº 5.486/2005)

Art. 33. Constituem diretrizes específicas para a ZIAP dos Terrenos de Marinha e Acrescidos do Litoral: I – apoio à população residente para desenvolvimento de atividades relacionadas à pesca e ao turismo mediante a implementação de programas e projetos de melhoria produtiva; […] III – adequação das intervenções urbanísticas à preservação ambiental; […]

Art. 51. São diretrizes para as Zonas Especiais de Preservação Cultural: I – integração dos programas e projetos de preservação cultural a programas e projetos de habitação de interesse social; II – esclarecimentos à população sobre a importância do patrimônio cultural para o desenvolvimento social e a sustentabilidade econômica. […]

Art. 53. Constituem diretrizes específicas para a ZEP de Jaraguá: I […] II – incentivo ao uso residencial e de comércio e serviços compatíveis; III – estímulo às atividades relacionadas ao turismo cultural e lazer; IV – estímulo às atividades e implantação de equipamentos de lazer náutico e de pesca; […]

E, de modo específico, quanto a ZEP do Jaraguá (FIG.6), regulada pelo Código de Urbanismo e Edificações:

                    Figura. 6 Zona Especial de Preservação Cultural de Jaraguá (ZEP-1)

                              Fonte: Código de Urbanismo e Edificações de Maceió (mapa 2.1), com adaptações.

CÓDIGO DE URBANISMO E EDIFICAÇÕES DE MACEIÓ (LEI 5.593/2007) Art. 51. A Zona Especial de Preservação 1 (ZEP-1 Jaraguá) é constituída pelos seguintes setores: V – Setor de Preservação do Entorno Cultural 3 (SPE-3), constituída por construções ocupadas por população de baixa renda cuja atividade principal é a pesca, sendo de interesse social.

Assim é que, mesmo todo o arcabouço jurídico de proteção constitucional (art. 6º- dos direitos sociais- e artigos 182, 183- da politica urbana) e infraconstitucional (Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001 e os Planos Diretores municipais) não foi suficiente para orientar a conduta e a satisfação das políticas do Poder Público.

  1. ASPECTOS DA DIVISÃO DO TRABALHO JURÍDICO: UMA ABORDAGEM SEGUNDO PIERRE BOURDIEU.

 

Não obstante o direito em vigor, o que se viu em 17 de junho de 2015, foi a desocupação da Vila dos Pescadores de Jaraguá e todas as famílias removidas, numa demonstração de que o “campo jurídico” é um lugar em que não apenas se disputa o “discurso jurídico-normativo”, mas também a “prática política” das decisões judiciais.

Na mesma esteira, o Poder Judiciário decidiu:

[…] Ante o exposto, julgo parcialmente procedentes os pedidos lançados pelo Município de Maceió (e pela União Federal) para:

1) determinar a desocupação, no prazo de até 90 (noventa) dias, de todos os ocupantes da área reivindicada (coletividade invasora e os remanescentes/dissidentes da comunidade tradicional de pescadores que ainda ocupam a área objeto do presente conflito, quer sejam cadastrados ou não na lista oficial da municipalidade);

2) determinar a transferência das famílias – devidamente cadastradas pelo Município de Maceió-AL – remanescentes da comunidade de pescadores do Bairro de Jaraguá, ora reconhecida como tradicional, para os imóveis da Vila dos Pescadores, localizados na Av. Sobral, à beira-mar, no bairro do Sobral, em Maceió/AL, (…);

3) ratificar a transferência já realizada das famílias cadastradas para os imóveis disponibilizados pelo Município de Maceió-AL para o conjunto de habitacional “Vila dos Pescadores”, proibindo-as de retornarem à área da “Favela do Jaraguá”, nos termos do artigo 461 e 462 do CPC; […][Ação Civil Pública nº 0004070-23.2012.4.05.8000] [grifo nosso]

Segundo Bourdieu (2000) isso acontece porque o direito é também um espaço social, próprio e relativamente autônomo, que jamais escapa às intervenções do macrocosmo que o envolve: o Estado. Sujeito a pressões internas[15] e externas[16], o “campo” jurídico manipula e traduz a seu modo (as decisões) tais necessidades.

No mesmo sentido, a significação prática da lei não se determina realmente senão na confrontação entre diferentes corpos animados de interesses específicos divergentes (advogados, procuradores, defensores e juízes), eles próprios representantes de diferentes grupos de interesse (comunidade de pescadores, setor imobiliário, poder público municipal de Maceió), mais ou menos opostos, em função da sua posição hierárquica social (BOURDIEU, 2000, p.217).

Assim é que, a divisão do trabalho jurídico se determina na concorrência estruturalmente regulada entre os agentes e as instituições envolvidas, que não apenas reflete as relações de força existentes, mas constitui o próprio princípio fundamental que orienta a coerência de suas formulações e o rigor de suas aplicações. Isto significa dizer que, mais importante que as disputas sobre as interpretações dos textos jurídicos, está a complementaridade das funções daqueles agentes que contribuem para o “efeito de apriorização” [17] (BOURDIEU, 2000, p.214).

Nesse sentido, o “efeito de apriorização” revela-se com toda a clareza no uso da linguagem jurídica e nos efeitos que ela produz, especificamente, no “efeito de neutralização” e na impessoalidade do enunciador, e no “efeito de universalização” e na demonstração de um consenso jurídico lógico, racional e ético (BOURDIEU, 2000, p.217).

A decisão judicial é uma dessas “formas” jurídicas atribuídas à competência de um juiz[18], em que se pode encontrar marcas dos efeitos de “neutralização” e de “universalização” da lógica do funcionamento do campo jurídico.

 No caso da sentença proferida na Ação Civil Pública nº 0004070-23.2012.4.05.8000 tem-se que:

[…] A Constituição (1), contudo, não é clara ao garantir direitos (sobretudo os de propriedade) às comunidades tradicionais. Essa garantia só é dada aos índios e às comunidades remanescentes de quilombos (art. 231 e art. 68 do ADCT c/c art. 10 do Decreto 4887, de 20.11.2004) (2). […] De mais a mais, diante da lacuna na vontade constitucional acerca da fixação das comunidades tradicionais em sua base territorial, excetuados os indígenas e quilombolas, é possível ao magistrado proceder a juízo de ponderação- balanceamento – entre os interesses em conflito (3), sob a ótica do princípio da proporcionalidade […] (BRASIL, 2012, sentença). [grifo e inserção nossa]

No trecho selecionado, observa-se que as afirmações estão organizadas para cumprir uma determinada função social num dado momento, e para produzir um efeito sobre certos receptores, no caso, os pescadores da Vila de Jaraguá, afastando-lhes a garantia de permanência naquele território.

Para tanto, o enunciador utiliza processos linguísticos característicos, como a referência (1), “A Constituição”, e, depois, a referência (3), “é possível ao magistrado proceder”, noções que podem ser identificadas como um conjunto de elementos sintáticos com predomínio de construções passivas e de frases impessoais, que colaboram para “neutralização” da norma e do juiz, sujeito universal, imparcial e objetivo.

Também é assinalada a indicação sistemática de normas, ou a sua ausência, na combinação das referências (1) e (2). Assim, faz-se menção ao que é declarado, ou não, “na Constituição” associando-a ao emprego da retórica da atestação oficial em relação apenas a quem detém o direito: “essa garantia é dada aos índios e às comunidades remanescentes de quilombolas (art. 231…)”.

 Por último, o efeito de “universalização” aparece nas expressões de generalidade e omnitemporalidade das regras do direito, e na alusão às referências e aos valores transubjetivos que pressupõem a existência de um consenso ético em torno do “balanceamento entres os interesses em conflito”.

Para Bourdieu (2000, p. 216), “essa retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade está longe de ser uma simples máscara ideológica”, ela é a própria expressão do funcionamento do campo jurídico e do trabalho de racionalização a que o sistema jurídico está sujeito.

 

6.CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Esse trabalho buscou demonstrar existir um “campo de forças” e um campo de lutas em que se disputaram o poder de (re)territorialização para satisfazer  demandas econômicas do capitalismo, como de representação da “Vila dos Pescadores do Jaraguá” para justificar a exclusão social e territorial daquela parcela da população no local onde moravam.

Com efeito, essa disputa social/espacial, também abrangeu uma disputa simbólica porque também ajudou a definir divisões e distinções de mundo social: o “nós” e os “outros” num movimento de autoafirmação identitária em relação aos próprios direitos sociais e econômicos, daquela população.

Neste contexto, o campo jurídico contribuiu para a produção da ilegalidade urbana e desigualdade nas condições de vida na cidade. Na disputa em torno das noções que delimitaram a (i)legalidade, os instrumentos jurídicos foram importantes fontes legitimadoras dos princípios sociais excludentes, integradores, concentradores e distributivos.

   A comunidade de pescadores da Vila do Jaraguá caracterizou-se como uma comunidade tradicional, que desenvolveu, com o território ocupado, uma relação indispensável para a sua reprodução social. Nessa relação surgiu a territorialidade, que vincula as comunidades tradicionais aos seus “lugares de saber e de vivência”. Esta significação é peculiar para cada grupo e transcende definições jurídicas, abstratas e formais.

   Em 2012, foi iniciada uma Ação Civil Pública pela Prefeitura de Maceió, pretendendo a remoção das famílias de seu território. O processo não se deu sem “resistência”. A “guerra de posições” no “campo jurídico”, contou com a mobilização e a estratégia de diversos agentes sociais, que traçaram os contornos e os limites do conflito social e jurídico. Nesse embate, o “campo jurídico” monopolizou não apenas a força física, como também a força simbólica, atuando por meio de suas estruturas formais e materiais.

  A divisão do trabalho jurídico se definiu a partir da concorrência estruturalmente regulada entre os agentes e as instituições envolvidas, que se refletiu no princípio fundamental que orientou a coerência das formulações e o rigor das aplicações na solução. Nesse sentido, a decisão judicial foi uma das “formas jurídica” que cristalizou, por meio do “efeito da apriorização”, a materialização dos resultados.

Assim, a decisão em favor da remoção daquela população de pescadores, do seu local tradicional de moradia, é a própria expressão do funcionamento do campo jurídico, em que o direito foi identificado como um instrumento que tendeu a confirmar a “territorialização” previamente existente, seja para conservar a inclusão, seja para sacramentar a exclusão social e espacial.

  1. REFERÊNCIAS

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Uma análise interdisciplinar sobre a segregação dos indivíduos no Rio de Janeiro[19]

An interdisciplinary analysis on the segregation of individuals in Rio de Janeiro

 

Cristina Leite Lopes Cardoso[20]

Anna Carolina Cunha Pinto[21]

Alexsandro de Magalhães Pinto[22]

 

Resumo: O presente trabalho trata, de forma interdisciplinar, sobre as origens e conseqüências da segregação na cidade do Rio de Janeiro. Desse modo, busca compreender os resultados desse processo segregatório dos indivíduos no espaço urbano cuja diretriz fundou-se na condição sócio-econômica dos indivíduos e à preservação dos interesses das elites em detrimento aos direitos dos mais pobres, por exemplo, à cidade.

Palavras-Chave: Direito à cidade; Segregação espacial; Discriminação; Imobilismo social; História da Cidade do Rio de Janeiro.

Abstract: This paper deals, in an interdisciplinary way, on the origins and consequences of segregation in the city of Rio de Janeiro. In this way, it seeks to understand the results of this segregatory process of the individuals in the urban space whose guideline was based on the socio-economic condition of the individuals and the preservation of the interests of the elites in detriment of the rights of the poorest, for example, the city.

Keywords: Right to the city; Spatial segregation; Discrimination; Social immobilism; History of the City of Rio de Janeiro.

Introdução

O presente trabalho busca compreender os efeitos causados pela escolha de, durante as reformas de viés urbanístico empreendidas na cidade do Rio de Janeiro, no começo do período republicano, fixar em regiões periféricas da cidade a sua população mais humilde. O interesse pela temática em questão se dá por ecoarem, ainda nos dias de hoje, conseqüências advindas dessa decisão política. Exemplo disto é o que aconteceu também na cidade do Rio de Janeiro, porém em 2015, através da polêmica Operação Verão, na qual jovens de origem pobre e periférica, em sua maioria negros, foram revistados em ônibus com destino às praias da zona sul do município, região sabidamente mais abastada da cidade. Tal revista, com caráter nitidamente racista e classista, foi defendida pelo governador do Estado e seu secretário de segurança como uma política com fito de proteger os jovens, contudo, o discurso adotado não foi aceito, eis evidenciada a intenção higienista de tal prática. Na mesma época, o prefeito promoveu uma série de mudança nos itinerários nas linhas de ônibus na cidade que afetou especialmente as linhas que ligavam as zonas periféricas às praias: coincidência ou mais um obstáculo para que essas pessoas usufruam da cidade que também é delas?

Cremos que a Operação Verão tem o nítido condão de fixar os indivíduos em suas regiões de origem por considerá-los perigosos e distoantes do ambiente que se crê democrático das praias da zona sul do Rio de Janeiro. Essa medida, além de limitar o direito constitucional de ir e vir desses sujeitos, mina também o seu direito ao lazer e, principalmente, o direito à cidade em que vivem.

Tomando esses episódios que distam mais de um século, temporalmente, entre si urge o esforço de compreender através do desenvolvimento desse trabalho:

  1. como a aproximação dos significados de classes pobres e classes perigosas, tendo em vista que passam, na prática, a descrever as mesmas coisas (CHALHOUB, 1997, p.20) foi e é determinante para a demarcação dos espaços que competem aos indivíduos de acordo com sua raça e classe, interferido diretamente no exercício do direito à cidade dos mesmos;
  2. os efeitos da segregação sócio-espacial, considerando que os bairros assegurados pela polícia durante a Operação Verão com fito de serem protegidos das ações que atribuídas às“classes perigosas” (COIMBRA, 2001), estão diretamente inseridas no que David Harvey intitulou de “a produção capitalista do espaço” em seu livro homônimo de 2005.

Para tal, valeremo-nos da análise de dados obtidos em censos e demais pesquisas cruzados com bibliografia interdisciplinar, com ênfase em materiais oriundos de Direito, História, Geografia e Filosofia.

O espaço dos indivíduos, os indivíduos no espaço

Pensar a segregação dos indivíduos no Rio de Janeiro é pensar diretamente na segregação dos indivíduos no espaço, este dotado de tempos diversos, historicidades.

Em seu livro Evolução Urbana do Rio de Janeiro, um clássico da Geografia Histórica, Abreu (1987) salienta a formação da cidade do Rio através da exclusão dos indivíduos do centro para o subúrbio/periferia. O Estado e suas políticas públicas tendenciosas, nunca isentas, seriam os principais responsáveis por esta segregação em resposta aos anseios do mercado/capital. Uma cidade que privilegia o capital em detrimento dos seres humanos e a perpetuação de uma elite secular que só consegue enxergar o outro como inimigo direto, onde o exercício de alteridade não passa de um conceito abstrato usado nas aulas de sociologia de cursinhos pré-vestibular.

Este argumento por nós proposto com base no trabalho de Abreu (1987), também encontra respaldo na obra de Peter Marcuse (2004, p.24-33) quando o mesmo salienta a relação entre segregação e Estado:

Está, pois, claramente, no âmbito dos poderes mais abrangentes do Estado a permissão ou a proibição dasegregação. Assim, se em qualquer sociedade houver segregação ela ocorrerá com a sanção tácita, quando não explicita, por parte do Estado.

Em seu estudo sobre o papel do Estado e sua relação direta com as classes dominantes, Flávio Villaça (2001) destaca três esferas de controle da produção e consumo do espaço urbano por esta classe:

  1. Esfera Econômica: através do controle do mercado imobiliário, que atende os desejos de localização espacial da classe dominante.
  2. Esfera Política: ocorre pelo controle do Estado, que se manifesta de três maneiras:
  • Controle sobre a localização da infraestrutura urbana.
  • Controle da localização dos aparelhos do Estado.
  • Controle da legislação de uso e ocupação do solo urbano.
  1. Esfera Ideológica: através do desenvolvimento de ideias dominantes que visam auxiliar, em determinados momentos, a dominação da sociedade e aceitação por parte desta de seus ideais.

É possível constatarmos uma lógica desenvolvida, um consentimento formado onde a segregação é vista não como uma anomalia, mas algo natural. Na maioria dos casos, aqueles que não pertencem ao espaço das classes dominantes defendem o direito à propriedade da mesma, comprando o discurso do empreendedorismo, da luta, ou vitória dos ricos. Esquecem eles, ou nunca foi lhes dito (devido à segregação educacional) que uma pessoa só se torna rica através de herança ou roubo (absorção da mais-valia, por exemplo).

Para a elite, a construção e consolidação do consenso não é o bastante, pois o campo das ideias não atinge toda a massa, e grande parte dessa massa se torna ingovernável, seja no lazer (“rolezinhos” nos shoppings, visitas às praias da zona sul) ou na maneira de exigir os seus direitos à moradia, como no caso dos trabalhadores sem-teto. Sem contar os atos de expropriações que são executados diante do quadro de fome, desemprego e desespero que muitos indivíduos vivenciam.

Fronteiras são criadas: muros e cercas (reais ou imaginárias), para manter a elite isolada do outro, o máximo possível, com exceção das empregadas domésticas, os motoristas e demais fornecedores de serviços gerais que a elite não possui a capacidade de executar. Retornando à questão teórica, Caldeira formula um conceito bastante útil para nossas análises – o de “enclaves fortificados”, referindo-se à sociedade “condominizada”:

Sobrepostas ao padrão centro-periferia, as transformações recentes estão gerando espaços nos quais os diferentes grupos sociais estão muitas vezes próximos, mas estão separados por muros e tecnologias de segurança, e tendem a não circular ou interagir em áreas comuns. O principal instrumento desse novo padrão de segregação espacial é o que chamo de ‘enclaves fortificados’, Trata-se de espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. A sua principal justificação é o medo do crime violento. Esses novos espaços atraem aqueles que estão abandonando a esfera pública tradicional das ruas para os pobres, os ‘ marginalizados’ e os sem-teto.

Entre os inúmeros significados filosóficos e epistemológicos que existem em torno da palavra “alienação”, a alienação urbana se torna um dos mais dotados de sentido, no momento em que os constituintes do espaço urbano não se reconhecem como produtores do mesmo, como no caso dos operários que trabalham na construção de projetos arquitetônicos verticais da Zona Sul e são moradores da Zona Oeste, Norte e Baixada Fluminense, ou até mesmo da própria Zona Sul, nas comunidades localizadas no entorno. Vale salientar também o caso dos imigrantes nordestinos que, na maioria dos casos, se encontram desterritorializados ou ocupantes de territórios precarizados, de acordo com uma concepção moderna, pós-moderna, estruturalista ou pós-estruturalista – ao gosto do pesquisador e seu nível de comprometimento com a problemática. Assim, como um operário fabril que não reconhece o fruto de seu trabalho por estar totalmente alienado ao processo de produção, o pedreiro que trabalhou na construção do Shopping Leblon não reconhece a edificação como fruto de seu trabalho e convicto fala para si insistentemente que este local não existe sob qualquer hipótese para seu deleite ou de familiares, é espaço somente para “gente fina”, “rica”, “doutores” e “madames”. Pensamento este engendrado que, sustentado pela hegemonia burguesa, ecoa nas mais diversas áreas da vida em sociedade, como salienta (LEFVRBE, 1989, p.89):

a alienação urbana envolve e perpetua todas as alienações. Nela, por ela, a segregação generaliza-se: por classe, bairro, profissão, idade, etnia, sexo

O fenômeno de periferização e segregação socioespacial são marcados pela divisão social do espaço que, segundo (LIPIETZ,1988), na cidade capitalista é caracterizada:

Pela localização de lugares específicos para produções manufatureiras, determinadas pela proximidade das matérias-primas e dos meios de comunicação. A cidade torna-se o terreno das externalidades. Ao mesmo tempo em que se constituem locais de comando dos negócios econômicos, financeiros e políticos. Uma enorme concentração de proletários, que se deslocam em função da oportunidade da continuação da reprodução de sua força de trabalho. Sua habitação é um “custo social da exploração” de seu trabalho.

Parafraseando Pierre Bourdieu, David Harvey (1989, p.81) foi extremamente feliz em destacar em A Condição Pós-Moderna que:

A produção do capital simbólico serve a funções ideológicas porque os mecanismos por meio dos quais ela contribui ‘para a reprodução da ordem estabelecida e para a perpetuação da dominação’ permanecerem ocultos.

Toda essa questão faz com que as noções de certo, errado, feio, bonito, verdade e mentira sejam relativizadas e não problematizadas, levando o cidadão comum a acreditar, defender e propagar o próprio ideário que o exclui, segrega, explora e criminaliza. Infelizmente, isso nos leva a acreditar que as semelhanças com a livro de (ORWELL, 1996) 1984 não são meras coincidências, ainda mais se pensarmos na cidade constantemente vigiada e sitiada.

Para tanto, na perspectiva de uma ruptura, aqueles que lutam e acreditam em uma “outra” cidade, precisam ter uma postura não reformista, mas revolucionária, como aponta (HARVEY, 2013, p.28) em Cidades Rebeldes:

O direito a cidade não pode ser concebido como um simples direito de visita ou a um retorno as cidades tradicionais. Ao contrário, ele pode apenas ser reformulado como um renovado e transformado direito à vida urbana.

O filósofo judaico vinculado a Escola de Frankfurt, Walter Benjamim, defensor da história a contrapelo, ao falar sobre Paris de seu tempo salienta:

Pela primeira vez, o espaço em que vive o homem privado se contrapõe ao local de trabalho. Organiza-se no interior da moradia. O escritório é seu complemento. O homem privado, realista no escritório, quer que o interior sustente as suas ilusões. Esta necessidade é tanto mais aguda quanto menos ele cogita estender os seus cálculos comerciais às suas reflexões sociais. Reprime ambas ao confirmar o seu pequeno mundo privado. Disso se originam as fantasmagorias do “interior”, da interioridade. Para o homem privado, o interior da residência representa o universo. Nele se reúne o longínquo e o pretérito. O seu Salon é um camarote no teatro do mundo. […] o centro de gravidade do espaço existencial se desloca para o escritório. O seu contraponto, esvaziado de realidade, constrói seu refúgio no lar.

 

O que percebemos no Rio de Janeiro, desde antes da Belle Époque, é uma cidade capitaneada por uma elite que sempre quis ser francesa à moda parisiense, de acordo com modus operandi da burguesia européia. Transpor a ordenação das ruas da Paris de (SARTRE, 1986), descrita em seu romance A Náusea, para o centro do Rio, se transformou na solução brasileira que (OLIVEIRA, 2003) classificou como o ornitorrinco, este estranho animal dotado de bico de pato – considerado ao mesmo tempo réptil, pássaro e mamífero – como metáfora do Brasil enquanto nação presa a um impasse evolutivo.

Uma sociedade entre muros passa a ser fortificada neste momento em que o convívio com o outro, a insegurança, a indiferença e o preconceito passam a ser os nortes basilares do ideário burguês carioca, em um momento como (ROLNIK, 1988, p.49) escreveu:

 

Para a burguesia, o espaço público deixa de ser a rua – lugar das festas religiosas e cortejos que engloba a maior variedade possível de cidades e condições sociais – e passa a ser a sala de visitas, ou o salão.

Como geralmente se observa no sistema capitalista, a cidade, assim como todas outras coisas, passa a se transformar em mercadoria, um objeto onde é enaltecido seu valor de troca em detrimento do valor de uso. Mais uma vez a relação proletariado versus burguesia se faz presente, uma classe que detém os modos de produção, neste caso a cidade (Centro – Zona Sul), contra aqueles que só possuem sua força de trabalho para oferecer, os moradores da periferia (Zona Norte, Oeste, Baixada Fluminense e comunidades), como verificamos nas palavras de Maricato (2013, p.20):

Ela (a cidade) é um produto ou, em outras palavras, também um grande negócio, especialmente para os capitais que embolsam, com sua produção e exploração, lucros, juros e rendas. Há uma disputa básica, como um pano de fundo, entre aqueles que querem dela melhores condições de vida e aqueles que visam apenas extrair ganhos.

Da mesma forma que o período medieval/feudal é dotado de uma historicidade, dentro do capitalismo histórico, o contemporâneo não é diferente. As sociedades não eram capitalistas desde seu surgimento, o que o ideário liberal sempre argumentou e tentou defender. No período colonial, a situação era diferente. (ROLNIK, 1988, p.45-46)  magistralmente relata que:

 Como no burgo medieval, na cidade colonial não existem regiões/trabalho e regiões/moradia, praças da riqueza, praças da miséria. Isto evidentemente não quer dizer que não existiam nestas cidades diferenças de classe ou posição social. Pelo contrário: as distâncias que separavam nobres e plebeus, ricos (…) de pobres (…) eram enormes. Estas distâncias, assim como as distâncias entre senhores e escravos nas cidades brasileiras, não eram físicas. Ricos, nobres, servos, escravos e senhores poderiam estar próximos fisicamente porque as distâncias que os separavam eram expressas de outra forma: estavam no modo de vestir, na gestualidade, na atitude arrogante ou submissa e, no caso brasileiro, também na própria cor da pele. (…) Assim a mistura de brancos e negros nas ruas e nas casas da cidade era possível porque a distância que os separava era infinita. O respeito e hierarquia introduziam a diferença social na vida comunal.

Relativamente, aos grupos sociais que produzem a segregação espacial, (CORRÊA, 1989, p.69) define o papel preponderante das classes dominantes no processo. Em suas palavras:

 A classe dominante ou uma de suas frações, (…), segrega os outros grupos sociais na medida em que controla o mercado de terras, a incorporação imobiliária e a construção, direcionando seletivamente a localização dos demais grupos sociais no espaço urbano. Indiretamente atua através do Estado.

Corrêa afirma ainda que:

Em realidade pode-se falar de auto segregação e segregação imposta, a primeira referindo-se à segregação da classe dominante,e a segunda à dos grupos sociais cujas opções de como e onde morar são pequenas ou nulas. (1989, p.69)

Afirmando que a segregação é um processo, ele a analisa a partir do conceito de “área de alta concentração de classes de rendas superiores” (area of high concentration of upper income classes), que tem as seguintes características, como podemos ver em (VILLAÇA, 2000):

  1. Elas incluem vários bairros de variadas classes sociais. No Brasil várias delas têm até favelas.
  2. A maioria das famílias em tais áreas não são de classes superiores ou de renda superior.
  3. A maioria das famílias de classes superiores mora em tais áreas, mas o reverso não é verdadeiro.
  4. Com uma única exceção (Recife), tais áreas concentram mais de 50 % das famílias de classes superiores. Os restantes 50% estão espalhados por ¾ da área urbana. No entanto, a tendência à concentração em uma única vasta área é clara até em Recife.

A dicotomia entre os conceitos de estranho, diferente, bonito, possível, bem-visto e mal visto faz parte desta sociedade dividida em classes, o que não deixa de ser no caso da cidade, e que é passível de ser encontrado em uma publicação da década de 50 do século XX na seguinte crônica:

Entretanto, os conceitos de subúrbios e de zona norte desde muito tempo até os dias de hoje se confundem, havendo de fato uma dicotomia “zona sul” x “zona norte”/ “subúrbios”, como pode ser vista no texto que se segue, publicado em 19536:Nos dois mundos antagônicos do Rio se forjaram dois estilos de vida totalmente diversos. Aqui não falamos, é claro, de meio termo, mas do que são, caracteristicamente, a ‘zona sul’ e a ‘zona norte’. A zona sul, que começa propriamente no Flamengo, é a civilização do apartamento, e das praias maliciosas, do traje e dos hábitos esportivos, da ‘noite’ e do pecado à meia-luz, dos enredos grã-finos, do‘pif-paf’ de família, dos bonitões de músculos à mostra e dos suculentos brotinhos queimados de sol, dos conquistadores de alto coturno e de certas damas habitualmente conquistáveis, do ‘short’, do blusão e do ‘slack’, dos hotéis de luxo (e de outros de má reputação) e dos turistas ensolarados. O Rio cosmopolita está na zonasul, onde uma centena de nacionalidades se tropicalizam à beira das praias. A zona norte é Brasil 100%. A gente mora largamente em casa (muitas vezes com quintal) e a casa impõe um sistema diferente de vida, patriarcal, conservador. Vizinhança tagarela e prestativa. Garotos brincando na calçada. Reuniões cordiais na sala de visitas. Solteironas ociosas e mocinhas sentimentais analisando a vida que passa debaixo das janelas. Namoro no portão, amor sob controle – para casar. Festinhas familiares, de fraca dosagem alcoólica. A permanente compostura no traje, ajustada com o do procedimento. Paletó e gravata. Mais ‘toilette’ que vestidos, mais área coberta nos corpos femininos. Vida mais barata. Empregada de 300 réis. Menos água, mais calor. Diversão pouca, nada de ‘boite’ e ‘night-clubs’. Noite vazia de pecados e de passos boêmios e sortilégios. Vida menos agradável aos homens, mais abençoada pelos santos.

Zona sul – zona norte, paraíso e purgatório do Rio. Sair do purgatório e ganhar o paraíso é aspiração de quase todos, mas há quem prefira, sinceramente, a vida simples e provinciana dos bairros e subúrbios do norte. Para muitos a zona sul não é o paraíso, mas o inferno da perdição, onde Copacabana dita a imoralidade, o aviltamento dos costumes, a frivolidade e a boemia.

No que tange a segregação dos indivíduos no Rio de Janeiro é possível inferirmos que esta está enraizada em todas as esferas da vida em sociedade na qual o capitalismo se faz presente, seja ela cultural, econômica ou política. Portanto, para transpormos esta barreira que não existe somente no plano físico, mas também mental, uma abordagem interdisciplinar se faz mais do que necessária.

  • A segregação como escolha do Estado: breves considerações sobre a história segregatória do Rio de Janeiro

 Cremos fundamental para a compreensão do caso específico da segregação sócio-econômica no Rio de Janeiro ter em mente os contornos impostos através da relação entre a cidade e a escravidão que perdurou durante séculos. À exemplo do que ocorreu em todo país, no período em questão houve a clara diferenciação entre brancos e não brancos – cabendo, inclusive, alargar o sentido para além da distinção por cor de pele e trazendo para a forma como eram compreendidos tais indivíduos, isto é, cabe afirmar que fora marcada a diferença entre seres humanos e coisas (já que os escravos eram tidos como mercadorias e até mesmo equiparados aos animais), entre sujeitos de direitos e sujeitos à margem do direito, entre dominadores e dominados, entre indivíduos que possuíam uma vida nababesca e aqueles cuja vida possuía um prazo de validade dada a intensa (e cruel) carga de trabalho. Operadas tais distinções de modo inequívoco não há como pensar que tais brancos e não brancos poderiam, ainda que finda a escravidão, usufruir da cidade de forma igualitária.

Nesse diapasão, cumpre ressaltar a contribuição de Lefebvre, sociólogo francês que cunha, em 1968, o conceito de direito à cidade como um direito de não exclusão social  e de acesso às qualidades e benefícios da vida urbana por todos. Para além disto, em Lefebvre temos a noção de que tal direito também envolve a recuperação coletiva do espaço através dos grupos nela marginalizados. Tomando a urbanização como fenômeno de classe (HARVEY, 2012, p. 73) e compreendo que ela desempenha importante papel na absorção dos excedentes de produção capitalista (HARVEY, 2012, p.75) não é difícil entender que a experiência urbana “é envolta com uma aura de liberdade de escolha, desde que se tenha dinheiro” conforme apregoa David Harvey em artigo intitulado Direito à Cidade.

O processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro na vigência da República é fortemente marcado pela condição econômica dos indivíduos o que, insta salientar, é diretamente influenciado por decisões políticas em alguns casos. Nessa toada, interessante exemplo é a da aplicação de táticas diversas de imobilismo social para os negros recém libertos cuja mão de obra passa, em muitos momentos, a ser preterida em face da mão de obra advinda dos imigrantes recém-chegados da Europa, brancos, cuja vinda para o Brasil fora facilitada por inúmeras ações do governo pátrio. Frise-se que apesar da mobilização de diversos setores da sociedade brasileira durante a campanha em favor da abolição, o que se verificou após a sua conquista foi o grande abandono dos negros à sua própria sorte. Os interesses hegemônicos foram mantidos, especialmente no que concerne à manutenção do latifúndio e verificava-se ainda que a crença na inferioridade do segmento negro era afirmada, inclusive, por parte dos próprios abolicionistas (FLAUZINA, 2006, p.65).

Mediante à crescente demanda de que o Brasil se adaptasse ao novo capital que saia da Europa para conquistar o mundo é adequada a afirmação de que “a libertação trouxe ao centro da cena, além do projeto de modernização conservadora para a economia, o delineamento social que a elite desejava para o país”. (MARINGONI, 2011, p.40). Isso se comprova mediante, inclusive, a ausência de reformas que viabilizassem a integração social dos negros e o acesso, por exemplo, a terra cuja compra foi facilitada e, em algumas situações, foi até mesmo cedida aos imigrantes europeus nesse período. Tais lacunas foram determinantes para a marginalização da população negra na época e exacerbou o racismo e sua discriminação na sociedade. Gilberto Maringoni (2011, p.40) explicita que:

com a abundância de mão de obra imigrante, os ex- cativos acabaram por se constituir em um imenso exército industrial de reserva, descartável e sem força política alguma na jovem República. Os fazendeiros – em especial os cafeicultores – ganharam uma compensação: a importação de força de trabalho européia, de baixíssimo custo, bancada pelo poder público. Parte da arrecadação fiscal de todo o País foi desviada para o financiamento da imigração, destinada especialmente ao Sul e Sudeste. (…) Quanto aos negros, estes ficaram jogados à própria sorte.

Considerando a manutenção do status quo, Gizlene Neder (1997, p.109) atenta para as reformas urbanas realizadas na cidade do Rio de Janeiro já sob a vigência da República. Dentre elas, Neder destacadamente aborda a de Pereira Passos (1902-1906), porém, em sua crítica, também alude às reformas das décadas posteriores. Segundo a professora da Universidade Federal Fluminense, tais reformas foram essencialmente marcadas pelo autoritarismo tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, eis que empreendidas dentro de processo de modernização conservadora e inseridas no bojo de uma República autoritária e excludente (NEDER, 1997, p.107). Desse modo, o saber técnico dos engenheiros e arquitetos, assim como o saber médico sanitarista (NEDER, 1997, p.108) se sobrepuseram e não deixaram ecoar críticas com viés humanista que pudessem influenciar no rumo de tais reformas. É importante frisar que as mesmas não contemplaram a vontade dos indivíduos, especialmente dos trabalhadores pobres e de origem africana, que foram (re)designados para zonas periféricas da cidade que, curiosamente, não distavam necessariamente de seu centro. Sobre a distância imposta é fundamental compreender que, ainda hoje, “o processo de segregação e exclusão social tem criado barreiras psico-afetivas que produzem efeitos ideológicos de distanciamento cultural” (NEDER, 1997, p.109). Em outras palavras, é importante compreender que o que se operava naquele momento não era, exclusivamente, um afastamento geográfico já que o mesmo refletia em esferas muito mais profundas dos indivíduos e da sociedade, delineando o modo como os indesejados deveriam se portar socialmente e, mais do que isso, sentir-se perante essa sociedade segregadora. O afastamento imposto aos negros e aos pobres, portanto, não é mera questão espacial e reflete na formação dos indivíduos afastados e sua trajetória de segregação e discriminação. Nesse deslinde, cumpre ainda destacar que:

A modernização das cidades, sobretudo do Rio de Janeiro, constitui, contudo, um dos aspectos do processo histórico de passagem ao capitalismo que envolve, na virada dos século XIX para o século XX, o aprofundamento do aburguesamento, com a implantação do regime republicano. Neste contexto, deve-se considerar a passagem do regime de trabalho escravo para o trabalho livre e seus desdobramentos no tocante às formas históricas de controle social definidora dos marcos de exclusão social que se vão imprimindo na cidade (NEDER, 1997, p.110)

A essa altura já se evidenciava, na prática, que o novo regime não tinha como um de seus objetivos a democratização da sociedade. As possibilidades de mobilidade social eram demasiado restritas, tendo em vista a intenção de manter intocados os privilégios de poucos através de uma cuidadosa estratégia de imobilismo social direcionada aos despossuídos. As intenções dotadas de um viés claramente racista, aliás, eram encobertas pelo manto fantasioso da convivência pacífica e amistosa entre distintas raças no Brasil o que, forçosamente, devemos entender como um mito eis que a realidade não permite equívocos sobre a forma como tal convivência, ainda nos dias de hoje, se dá.

Sobre o assunto, interessante observar o paralelo traçado por Abdias do Nascimento em O genocídio do povo negro entre o que entende por mito da democracia racial e o apartheid sul africano (NASCIMENTO, 1978, p.87). Nesse esforço empreendido por Abdias, a relação entre negros e mercado de trabalho é fundamental para firmar tal paralelo. O intelectual afirma que até 1950, com amparo legal, era prática comum o anúncio de vagas de emprego que estabeleciam características físicas, com especial destaque para a cor da pele, de seus pretensos ocupantes. Em alguns desses anúncios taxativamente se dizia não serem aceitas para as vagas pessoas “de cor” (NASCIMENTO, 1978, p. 82).  Tal prática é apenas um exemplo, dos muitos possíveis, dentro da história brasileira em que a população negra foi discriminada pelo simples fato de ser composta por indivíduos não brancos. Como dito outrora, as estratégias de imobilização social dos negros passam pela questão fundamental do trabalho e o acesso ao mesmo foi obstaculizado desde o fim da escravidão. Por isso é importante elucidar, tomando por mote a questão da moradia, o pensamento de Abdias do Nascimento (1978, p.85) que:

Se os negros vivem nas favelas porque não possuem meios para alugar ou comprar residências nas áreas habitáveis, por sua vez, a falta de dinheiro resulta da discriminação no emprego. Se a falta de emprego é por causa de carência de preparo técnico e de instrução adequada, a falta desta aptidão se deve à ausência de recurso financeiro. Nesta teia o afro-brasileiro se vê tolhido de todos os lados, prisioneiro de um círculo vicioso de discriminação – no emprego, na escola- e trancadas as oportunidades que permitiriam a ele melhorar suas condições de vida, sua moradia inclusive.

A questão da obstaculização do acesso ao trabalho demanda por parte dos governantes que se exerça, em relação à massa de desocupados, o controle desse segmento populacional e isso se dá por intermédio do controle sócio-penal. Em que pese  riqueza da temática, ateremo-nos de forma sucinta ao crime de vadiagem e afins. É evidente que  os elementos ditos perigosos não se restringiam à população negra, porém, conforme fora supracitado, com a abolição da escravidão e a chegada dos imigrantes europeus para compor a força de trabalho brasileira, muitos negros passam a integrar a massa de pobres sem ocupação e, corolariamente, passam a ser alvos comuns das detenções por vadiagem.

            Para fins de contextualização, cabe destacar o episódio que CHALHOUB (1996) discorre em Cidade Febril sobre a destruição do Cortiço Cabeça de Porco, local que abrigava cerca de quatro mil pessoas e era, em 1893, considerado o maior cortiço da cidade. Amparado pelo saber médico-sanitarista, Barata Ribeiro, prefeito do Rio de Janeiro à época, determinou a destruição do espaço e não ofereceu alternativa de moradia para os desabrigados, salvo a remoção das madeiras do entulho resultante da derrubada dos prédios que, mais tarde, serviram de material para a construção de moradias nos morros da cidade para essas pessoas. Esse episódio representa um marco do começo do que Sidney Chalhoub compreende por uma “forma de conceber a gestão das diferenças sociais na cidade”. A partir desse marco, Chalhoub enxerga dois pontos fundamentais acerca dessa maneira de lidar com as diferenças: a primeira é a aproximação dos significados de classes pobres e classes perigosas, tendo em vista que passam, na prática, a descrever as mesmas coisas; o segundo ponto é a construção da noção de que a cidade pode ser gerida através de critérios meramente científicos. Tal ideia consiste na:

crença de que haveria uma realidade extrínseca às desigualdades sociais urbanas, e que deveria nortear então a condução não política, “competente”, “eficiente”, das políticas públicas. Essas duas crenças, combinadas, tem contribuído muito, em nossa história, para a inibição do exercício da cidadania, quando não para o genocídio mesmo de cidadãos (CHALHOUB, 1996, p.20)

As consequências advindas da crença de que a pobreza de alguém bastava para fazer desse indivíduo um malfeitor em potencial são enormes para a história subsequente do Brasil. Um nítido exemplo dessas conseqüências que perduram ainda hoje é o fundamento da ação policial que tem como pressuposto a suspeição generalizada, isto é, a premissa de que todo cidadão é suspeito até que prove o contrário. Nesse ínterim, categoricamente, CHALHOUB (1996, p.23) afirma que: “é lógico, alguns cidadãos são mais suspeitos do que os outros”. Ainda em Cidade Febril, o autor apregoa que o contexto histórico em que o conceito de classes perigosas contribuiu para o fato de que os negros se tornassem os suspeitos preferenciais. Nesse cenário, o já existente crime de vadiagem atende aos interesses hegemônicos e assegura que, em certa medida, parte dos negros, ainda que já em liberdade, prossigam seus trabalhos com uma condição inferior face aos brancos, ou seja, viabilizando mais lucro para os seus antigos senhores.

Cumpre destacar que Gizlene Neder dedicou-se a pesquisar através dos livros da Casa de Detenção da Cidade do Rio de Janeiro, bem como nos relatórios dos chefes de polícia e do ministro da justiça, as origens das estratégias de controle social praticadas pela polícia na capital federal na década anterior à proclamação da República, bem como nos anos subseqüentes. O referido estudo permitiu, no que concerne a urbanização e a segregação dos indivíduos no Rio de Janeiro, a Gizlene afirmar que tais detenções pretendiam “definir comportamentos e sociabilidade urbana e estabelecer o poder dos vários agrupamentos étnico-culturais e sociais sobre o espaço urbano” (NEDER, 1997, p. 124). Outro aspecto fundamental salientado por Gizlene Neder na pesquisa em tela é a de que pode ser observada recorrência da detenção de trabalhadores e que a tolerância com a prática da vadiagem era menor nas regiões mais pobres da cidade (NEDER, 1997, p. 126), havendo uma maior tolerância em regiões como o Estácio e a Lapa.

  • Pobreza, cor e perigo: as classes perigosas

 

A crônica de Celso Athayde, intitulada “Os neguinhos do Buzão” (ATHAYDE, 2005, pp.74-77), será por nós utilizada como ilustração do tópico supracitado. Nela, o fundador da CUFA (Central Única de Favelas), narra um episódio de sua adolescência, onde, acompanhado de um amigo branco dentro de um ônibus que ia de Sepetiba a Bangu, foi vítima de preconceito ao ser insultado por uma mulher branca também passageira do ônibus que, vendo que dois policiais que ingressaram no coletivo, resolveu acusá-lo de estar na companhia de dois jovens negros que saltaram do ônibus, mas que segundo ela “quase a assaltaram”.

Na ocasião, Celso Athayde observou que absolutamente ninguém no ônibus interferiu na fala da mulher e, apenas quando ele, então com 14 anos de idade, começou a chorar explicando aos policiais que não estava na companhia dos dois “jovens suspeitos que nada fizeram”, mas sim com o seu amigo, que como dito era branco, é que um dos policiais resolveu questionar ao amigo se a justificativa era verdadeira, evidenciando assim que a fala com “validade’ era a do branco e não a do negro. Após o amigo afirmar que Celso Athayde estava em sua companhia a mulher que iniciou os insultos arrependeu-se e pediu desculpas não a quem ela ofendeu, mas novamente ao amigo branco cuja fala era a “legítima”.

O ônibus prosseguiu a viagem e todos seguiram naturalmente como se nada de anormal tivesse ocorrido, apenas Celso Athayde continuou sentindo as dores da segregação e do preconceito. Ele diz:

Com esse episódio eu ganhei muitas coisas na vida. Ganhei, inclusive, a consciência de que o maior preconceito se dá nas periferias, pois é lá que as pessoas possuem o mesmo grau de escolaridade, o mesmo nível social, é lá que as professoras são processadas por discriminação racial considerando que isso não acontece em escolas de ricos, onde não estuda preto, é ali que todos são quase iguais perante a lei, pois existe uma coisa que os difere. Um tem a cor do poder e o outro da miséria.

Perdi outras coisas também. Uma delas foi a amizade do meu amigo William. É que ele contou para a mãe o que tinha ocorrido, e ela determinou que ele nunca mais andasse comigo, porque eu só arrumava confusão. Por esse episódio e outros eu vivia me perguntando: por que eu tinha nascido condenado? Grifo nosso (ATHAYDE, 2005, p.77)

Afirmar que o maior preconceito se dá na periferia não nos parece uma afirmação segura, porém, há sentido ao não se notar o preconceito “em escolas de ricos onde não estuda preto” justamente pelo fato de que a segregação na cidade é tão acentuada e direcionada para os pretos e pobres que há espaços em que sequer eles poderão chegar, mas é fato que, se chegarem, o preconceito se evidenciará mostrando de quem é a cor do poder e a cor da miséria.

O portador da cor da miséria é o portador da vida nua, daquele cuja vida insacrificável, é contudo, matável (AGAMBEN, 1995, p. 17), podendo esse conceito de matável ser visto de diversas formas:

Pode ser interpretado como a morte da dignidade observada na biopolítica segregatória da cidade onde a eles não é permitido o acesso a determinados lugares pertencentes à elite como já visto nos atos de revista generalizado à jovens que iriam à praia, nas mudanças em linhas de ônibus dificultando o ir e vir entre áreas nobres e áreas pobres, na proibição de “rolezinhos” em shoppings centers, bem como, em contrapartida, a permissibilidade de atos atentatórios à dignidade nos espaços segregados das favelas, verdadeiros campos, incluídos na cidade pela própria exclusão. E é essa exclusão que possibilita que esses territórios estejam sempre “a mercê de” algum poder seja ele oficial ou não, como no controle exercido por facções criminosas, por milícias e pela própria opressão estatal como já vimos na revista realizada em crianças no horário escolar, toque de recolher, aceitação de utilização de mandados de busca e apreensão genéricos permitindo a invasão generalizada de residências.

O matável ainda pode ser interpretado como a naturalização da prisão desses indivíduos, público alvo do sistema penal. É sabido que o sistema carcerário sempre teve por objetivo principal, contudo não assumido, o controle de pobres. Segundo o último relatório fornecido pelo Ministério da Justiça, INFOPEN/2016, tínhamos 726.712 pessoas privadas de liberdade no Brasil (INFOPEN, 2016, p.09), sendo, portanto, a terceira população carcerária do mundo, contradizendo a expressão popular de que “ninguém vai preso no Brasil” ou que “o Brasil é o país da impunidade”. Em verdade, o país prende muito, a questão deveria ser direcionada a saber prende “como” e prende “quem”.

A partir da análise da amostra de pessoas sobre as quais foi possível obter dados acerca da idade, podemos afirmar que 55% da população prisional é formada por jovens, considerados até 29 anos, segundo classificação do Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852/2013). Ao observarmos a participação dos jovens na população brasileira total, é possível afirmar que esta faixa etária está sobre-representada no sistema prisional: a população entre 18 e 29 anos representa 18% da população total no Brasil e 55% da população no sistema prisional no mesmo ano. (INFOPEN, 2016, p.30)

Já no que diz respeito à questão racial, a partir da análise da amostra de pessoas sobre as quais foi possível obter dados acerca da raça, cor ou etnia, podemos afirmar que 64% da população prisional é composta por pessoas negras. Na população brasileira acima de 18 anos, em 2015, a parcela negra representa 53%, indicando a sobre-representação deste grupo populacional no sistema prisional (INFOPEN, 2016, p.32). Vale observar que 75% da população prisional do Brasil não teve acesso ao ensino médio, tendo concluído, no máximo, o ensino fundamental. (INFOPEN, 2016, pp. 34-35), evidenciando quem são os indesejáveis de nosso tempo.

Em verdade temos a anulação desses sujeitos (e dos direitos fundamentais) como prática imposta cotidianamente como política de enfrentamento àqueles que são enquadrados como potenciais violadores da ordem (LEMGRUBER, 2014, 47-48). É importante observar que dentre os indivíduos presos, 40% sequer tem condenação definitiva (INFOPEN, 2016, p.14).

E, por fim, o matável pode significar literalmente a banalização das mortes de pretos e pobres, maiores vítimas de mortes violentas não esclarecidas e público alvo dos famigerados autos de resistência como bem demonstrado na tese de doutoramento de Orlando Zaccone, que faz o seguinte questionamento:

A Anistia Internacional divulgou pesquisa, realizada em 2011, na qual constatou que nos vinte países que ainda mantém a pena de morte, em todo o planeta, foram executadas 676 pessoas, sem contabilizar as penas capitais infligidas na China, que se nega a fornecer os dados. No mesmo período, somente os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo produziram 961 mortes a partir de ações policiais, totalizando um número 42,16% maior do que de vítimas da pena de morte em todos os países pesquisados e ainda superior ao da letalidade da última guerra em nosso continente. Mas de que forma estamos a legitimar e conviver com essas cifras, no marco de um Estado de direito, se temos a pena de morte proibida (em regra) pela Constituição Federal Brasileira? (ZACCONE, 2015, p. 21)

O que Orlando Zaccone evidencia é que a justiça criminal opera um sistema que viabiliza que essa violência ocorra conforme o Direito, verdadeira política pública, tanatopolítica, observada rotineiramente nas favelas. Não é ingênuo o canto entoado pela tropa de elite carioca ao dizer: “homens de preto qual é tua missão? É invadir favela e deixar corpo no chão”. (ZACCONE, 2015, pp. 24-28) A questão é: quais são os corpos que caem? Quem são as vidas que não valem? Os criminosos rotulados? Quem são os homo sacer de nossa cidade que só é maravilhosa para quem está do lado da regra e não da exceção?

Determinar quem é a classe perigosa, quem é o inimigo público de uma época nada mais é do que uma construção. Para Eugenio Raul Zaffaroni:

Quase todo o direito penal do século XX, na medida que teorizou admitindo que alguns seres humanos são perigosos e só por isso devem ser segregados ou eliminado, coisificou-os sem dizê-lo, e com isso deixou de considerá-los pessoas, ocultando esse fato com racionalizações (ZAFFARONI, 2014, p.18).

O estabelecimento da ideia de que há um Direito Penal para o cidadão de bem e um para o Inimigo, viola frontalmente a regra de que o Direito Penal deve ser relacionado ao fato e não ao autor, contudo, o que vemos na prática é justamente a justificativa segregatória baseada na ideia de que o que ocorre é excepcional e justificável. Ocorre que, pela teoria do etiquetamento, temos a ideia de criminalidade como resultante de um processo social de interação que define e seleciona tanto o que deve ser considerado como crime, bem como quem deve ser rotulado como criminoso. Por essa razão grifamos a fala de Celso Athayde quando ele diz: “Por esse episódio e outros eu vivia me perguntando: por que eu tinha nascido condenado? (ATHAYDE, 2005, p.77)

A resposta é evidente e dependerá da posição deste dentro da pirâmide social: em sendo preto e pobre, considerando a nossa história, é certo que receberá da sociedade a etiqueta de criminoso em potencial. É a imagem pela qual ele é visto pelas classes dominantes e também será, em determinado momento a forma em que ele mesmo se reconhecerá, elaborando uma nova imagem de si mesmo, adaptando-se ao controle, docilizando-se, como forma de garantir a sua permanência/sobrevivência.

Conforme Augusto Thompson, precursor da teoria do etiquetamento no Brasil, a primeira característica da imagem do criminoso é a sua origem relacionada ao baixo status social, reforçando a ligação entre pobreza e crime: “Ao afirmar que o criminoso é, caracteristicamente, pobre, abre-se facilmente a possibilidade de inverter os termos da equação, para dizer: o pobre é, caracteristicamente, criminoso” (THOMPSON, 1998, pp. 64-66). Criando-se assim a ideia de que, as práticas segregatórias na cidade, o aprisionamento desenfreado e o genocídio praticado contra a juventude negra e pobre seria justificável, reproduzindo assim a ideia higienista, a justificativa pela segurança, a permanência histórica da assepsia, num ciclo vicioso cuja justificativa é sempre existente, sedutora e mutável diferenciando quem é incluído na cidade e quem nela permanece através da exclusão, onde o primeiro “tem a cor do poder “e o outro, o homo sacer da nossa cidade, tem “a cor da miséria”. (ATHAYDE, 2005, p.77)

  • Conclusão

Preliminarmente, compreendemos que no bojo das reformas empreendidas no começo da República não se operava intencionalmente apenas um afastamento geográfico de uma parte da população. As mesmas zelavam pela manutenção de interesses hegemônicos e pela atenuação do medo branco (MALAGUTI BATISTA, 2014), ao isolar as classes tidas como perigosas em zonas periféricas da cidade. Através dessa medida, as referidas classes deveriam, assim, passar a pertencer a esses espaços e circular pelo todo com a finalidade de executar suas atividades laborais – benéficas aos interesses das elites dominantes.

Tendo em vista o sucesso alcançado pelo uso de estratégias de imobilismo social, verificou-se, com o passar dos anos, tímidas mudanças no sentido de promover a ruptura dessas barreiras estabelecidas pelas reformas do começo do século XX. Sendo assim, interessante observar que para Richard Sennet (apud BAUMAN, 2001, p.121) a cidade é o assentamento humano onde estranhos tem a possibilidade de se encontrar, porém, como Bauman apregoa esse encontro se dá de maneira tão abrupta que mais parece um desencontro (2001, p.121), o qual sempre que possível é evitado e, não o sendo, ao menos, busca-se assegurar o menor contato possível com o desconhecido (BAUMAN, 2001, p.133). Desse modo, os estranhos seguem estranhos e, por isso, permanecem considerados como ameaças que devem ser combatidas.

É nesse contexto em que operações, como a Operação Verão, são deflagradas com caráter higienista e o compromisso de assegurar, ainda que falsa, a sensação de segurança para os indivíduos que ocupam os extratos mais abastados da pirâmide social. Resta evidenciada, nesse cenário, uma latente criminalização da pobreza, ainda que nada de concreto justifique, individualmente, tal estigma fixado indiscriminadamente nos componentes dessa classe.

Por isso, cumpre destacar que os processos discriminatórios estão na origem das condutas qualificadas como criminosas (MOLINA, 2002, p.385), o que permite-nos afirma, tomando por base essa teoria, a criminalidade é resultante de um processo social de interação (definição e seleção do que deve ou não ser considerado como crime, e, consequentemente, quem vem a ser definido como criminoso). CARDOSO E PINTO (2015, p.8) afirmam que:

a depender da posição do sujeito dentro da pirâmide social, haverá ou não a chance de receber essa etiqueta de criminoso em potencial. O indivíduo assim rotulado passa a elaborar uma nova imagem de si mesmo, é a imagem onde ele passa a ser visto, ser reconhecido perante as demais pessoas.

 Os moradores dos bairros da zona sul do Rio de Janeiro asseguram sua paz em detrimento do emprego de violência e da negação de direitos dos “outros”, isto é, aqueles que não são bem vindos, salvo na hipótese já ressalvada de estar à trabalho em “sua parte da cidade”. Em favor dos interesses das elites econômicas, ainda hoje, os agentes públicos agem imbuídos da ideia de combate às classes perigosas, evidenciando o recorte classista e por vezes racista de suas ações. Trata-se, portanto, de uma dicotomia que não se apresenta somente como um jogo de palavras, mas que faz parte da lógica do Brasil entre muros, onde a sociedade de condomínio expressa tanto seu mal-estar quanto seu sofrimento e sintoma (DUNKER, 2015).

 

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Contribuições do cooperativismo habitacional uruguaio para a efetivação do direito à moradia no Brasil[23]

Contribution of uruguayan housing cooperatives for effectuation of the right to adequate housing in Brazil

Anna Carolina Lucca Sandri[24]

Resumo: O Brasil apresenta elevados índices de déficit habitacional, principalmente em relação aos setores de baixa renda. Apesar de todo o investimento público no Programa Minha Casa, Minha Vida não houve êxito na diminuição desses índices. Nesse sentido, verificou-se que as políticas públicas que obtiveram maior êxito foram as que envolveram a autogestão habitacional. As cooperativas habitacionais uruguaias constituem um exemplo paradigmático para a efetivação do direito à moradia no Brasil, principalmente por viabilizar a existência de cooperativas habitacionais de usuários, nas quais a propriedade pertence à cooperativa e o cooperado tem direito de uso sobre a moradia. Com isso, impossibilita que as famílias vendam a sua casa, em razão de dificuldades econômicas, e consequentemente fiquem sem residência. Além disso, há a possibilidade de criação de um fundo de socorro destinado a cobrir as parcelas de financiamento devidas pelas famílias em dificuldades financeiras.

Palavras-chave: cooperativa habitacional, déficit habitacional, direito à moradia

Abstract: Brazil has high indexes housing deficit, mainly low-income population. Although all public investment in “Minha Casa, Minha Vida” Program don’t have success in decrease these indexes. The public policies more successful was the ones which have involved housing self-management. The uruguayan housing cooperatives are a paradigmatic example for effectuation of the right to adequate housing in Brazil, mainly for making feasible the existence of user housing cooperatives, in which the property belongs to cooperative and the user has the right of use the residence. Therefore, this prevent families sell their homes, due to economic difficulties, and consequently stay without a residence. Besides that, there is a possibility of creation of a help fund for covering financing installment of families in economic difficulties.

Keywords: housing cooperatives, housing deficit, right to adequate housing

  1. Déficit habitacional no Brasil

 

Segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro (2016), em 2013-2014, o déficit habitacional no Brasil atingiu 5,846 milhões de domicílios[25]. Outro indicador importante para a aferição desse dado é o indicador de aglomerados subnormais[26] do Censo 2010, elaborado pelo IBGE, que apontou a existência de 3.224.529 aglomerados subnormais no Brasil (IBGE, 2017).

É importante ressaltar que o déficit habitacional brasileiro não é resultado de uma incapacidade do setor de construção civil para construir habitações, tanto que conforme dados do Censo 2010 há 6,07 milhões de domicílios vagos[27] no nosso país (PORTAL BRASIL, 2010). O déficit é ocasionado pela falta de recursos financeiros da população de baixa renda, que é mais atingida pelo déficit[28], em ter acesso a uma moradia.

Nos últimos anos, o principal programa habitacional brasileiro foi o “Programa Minha Casa, Minha Vida”, criado em 2009, a partir de várias negociações do governo com o setor da construção civil, com o objetivo de enfrentamento de uma crise econômica (CARVALHO, 2015, p. 15).

Apesar do ineditismo do programa em subsidiar famílias de baixa renda, ele sofreu várias críticas, como, por exemplo, a produção das unidades habitacionais em locais distantes (FERREIRA, 2012, p. 132) e a má qualidade nas construções (GALDO, 2013).

Nesse sentido, a partir de pesquisa realizada, em 2013 foi constatado que o pagamento das prestações do programa e das taxas condominiais gerava um comprometimento médio de quase 40% da renda dos moradores do Programa Minha Casa, Minha Vida na faixa 1 (ROLNIK, 2015, p. 314)[29]. Em muitos dos empreendimentos pesquisados, os conflitos oriundos de problemas surgidos com a manutenção dos conjuntos aliado à inadimplência das taxas condominiais “revelam uma perspectiva de possível colapso na manutenção dos empreendimentos em poucos anos” (ROLNIK, 2015, p. 314).

Dados os escandalosos índices de déficit habitacional apresentados, as cooperativas habitacionais surgem como possível alternativa a ser analisada para concretização do direito à moradia[30] da população brasileira, já que os atuais programas habitacionais não foram suficientes para a resolução do problema.

Nesse sentido, as experiências de cooperativas habitacionais têm sido mais exitosas, como demonstra a análise de Luciana Côrrea do Lago, em que se notou que as moradias de inúmeras experiências autogestionadas apresentavam área superior ao mínimo exigido pela Caixa Econômica Federal (LAGO, 2012, p. 198), garantindo maior qualidade de vida para as famílias beneficiadas. Outra vantagem aferida nesses empreendimentos é sua maior adequação às necessidades diferentes de cada família.

  1. Cooperativismo habitacional no Brasil

As primeiras experiências brasileiras de autogestão habitacional financiadas pelo governo ocorreram, no transcorrer da década de 1970, em um contexto político que exigia programas mais baratos para o mercado popular, o que motivou a inserção da autoconstrução nas políticas do Banco Nacional de Habitação – BNH, ocasionando o surgimento do Programa de Financiamento de Lotes Urbanizados (Profilurb), Programa Federal de Erradicação da Sub-habitação (Promorar) e Programa João de Barro, de acordo com Carvalho (2004: 20, apud BARAVELLI, 2006, p. 91)[31]. É importante ressaltar que as cooperativas não tinham nenhum poder de decisão nas experiências de autogestão realizadas pelo BNH, o qual não envolveu as cooperativas na execução das políticas (DRAGO, 2012, p. 58).

Mais especificamente em relação às cooperativas habitacionais, essas são submetidas ao BNH com a edição do Decreto nº 58.377/1966 (BRASIL, 1966b) até a extinção do banco em 1986 (BARAVELLI, 2006, p. 82). Há um incremento dessa subordinação no âmbito normativo com o advindo do Decreto-Lei nº 59/66, o qual concedeu competência ao BNH para “autorização ou cancelá-la, baixar e aplicar normas disciplinadoras da constituição, funcionamento e fiscalização (…), bem como fixar e aplicar penalidades e definir os casos de intervenção e liquidação” (BRASIL, 1966b).

Dessa forma, as competências do BNH foram exercidas pelo Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais – INOCOOP, que teve atuação em todas as etapas do empreendimento, desde a elaboração do projeto até a entrega das unidades habitacionais, inclusive realizava a fiscalização de todas as fases da obra, por meio de empreiteiras (BARAVELLI, 2006, p. 82). Além disso, tinha atribuição para promover a liquidação e dissolução da cooperativa, após a transmissão da propriedade aos indivíduos (BARAVELLI, 2006, p. 82). Com isso, conforme apontam Ferreira e Morais (2003, apud BARAVELLI, 2006) havia uma dependência das cooperativas habitacionais com o setor público.

Essa tutela do BNH em relação às cooperativas fez com que inúmeras experiências de autogestão habitacional optassem pela constituição de associação comunitária[32], ao invés da forma jurídica cooperativa, como forma de garantir sua autonomia (BARAVELLI, 2006, p. 83). Nesse sentido, conforme Baravelli (2006, p. 86):

Ao contrário do que é aceito ideologicamente, foi a legislação que disseminou o individualismo na apropriação da moradia popular e conduziu o mutirão de São Paulo aos dilemas da propriedade privada das unidades habitacionais, pois, uma vez construída a moradia, era preciso escolher entre a segurança da posse do imóvel que desmobiliza a coletividade ou a mobilização coletiva que torna insegura a posse do imóvel.

Portanto, as experiências de autogestão tinham de escolher entre a segurança da posse garantida pela formalização como cooperativa e a valorização da coletividade pela associação.

A formalização das experiências de autogestão como associação de construção, em que as associações detinham a propriedade coletiva do imóvel não assegurava nenhuma garantia às famílias que saíssem do empreendimento, já que o patrimônio de uma associação não pode ser distribuído livremente entre seus associados (BARAVELLI, 2006, p. 85). Ademais, os associados não adquiriam nenhum direito relativo ao trabalho desenvolvido no mutirão (BARAVELLI, 2006, p. 85).

Nesse sentido, o controle exercido pelo Estado também estava presente na Lei nº 5764/1971, principal marco jurídico do cooperativismo brasileiro, que estabelecia a Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB como representante oficial do cooperativismo e a obrigatoriedade de filiação a essa entidade (GEDIEL & MELLO, 2016), que é alinhada com as cooperativas empresariais (GEDIEL & SANTOS, 2016).

Uma importante conquista foi o reconhecimento da liberdade de criação e participação de cooperativas como um direito fundamental na Constituição Federal de 1988, de forma a abarcar tanto a liberdade de adesão, desligamento, criação ou dissolução de cooperativa (GEDIEL & SANTOS, 2016). Em decorrência da liberdade de associação não deve prevalecer o entendimento de obrigatoriedade de filiação a OCB (GEDIEL & SANTOS, 2016).

Uma das críticas passíveis de se realizar a essa legislação, é a de que abrange tanto o cooperativismo tradicional quanto o popular[33], havendo também as falsas cooperativas que são empresas que adotam a forma jurídica de cooperativa para que seus empregados não disponham de direitos trabalhistas (GEDIEL & MELLO, 2016, p. 194).

Após o final da ditadura, no começo da década de 1980 e início da década de 1990, os movimentos populares de luta por moradia[34] mobilizaram-se em prol de um projeto de lei de iniciativa popular para criação do fundo nacional de moradia popular, que foi apresentado em 1991, bem como para a instituição de um sistema nacional de habitação para integrar Estados e Municípios em políticas habitacionais. Nesse contexto, os movimentos também reivindicavam que a autogestão fizesse parte da política nacional de habitação e recebesse financiamento direto do governo federal (MINEIRO & RODRIGUES, 2012, p. 22).

Em face da não viabilização de recursos orçamentários para a habitação no início do primeiro governo Lula, a UNMP enviou uma proposta ao Ministério das Cidades para inclusão de uma modalidade de autogestão dentro do Programa de Arrendamento Residencial – PAR[35], ainda que a partir da reivindicação, o ministério tenha promovido alterações no programa, a autogestão não foi incluída (MINEIRO & RODRIGUES, 2012, p. 23).

A mobilização realizada teve como resultado o surgimento do Programa Crédito Solidário, em 2004. O programa era visto pelos movimentos como algo temporário, enquanto não era aprovado o fundo nacional de moradia popular, que naquele momento não era consenso e nem havia sequer sido aprovado no Congresso Nacional (MINEIRO & RODRIGUES, 2012, p. 23).

Somente em 2005 houve a instituição do Fundo Nacional de Habitação Social (FNHIS) integrante da estrutura do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, com a aprovação da Lei nº 11.124/2005 (MINEIRO & RODRIGUES, 2012, p. 24). Nesse momento, os movimentos de luta por moradia centralizaram-se na estruturação do sistema, pois entendiam que o fundo iria concentrar os programas de urbanização para assentamentos precários e os de produção de moradias de baixa renda, porém, toda essa expectativa foi frustrada com o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC Urbanização[36], fora do âmbito do FNHIS, o que foi alvo de inúmeras críticas por parte dos movimentos sociais (MINEIRO &RODRIGUES, 2012, p. 24).

Apesar da importante vitória da aprovação da Lei nº 11.124/2005, essa definia que os recursos destinados ao FNHIS só podiam ser recebidas por órgãos públicos, o que excluía as cooperativas e associações. Após pressão dos movimentos sociais houve a edição da Medida Provisória nº 387/2007, convertida na Lei nº 11.578/2007, que permitiu o repasse de recursos para as instituições (MINEIRO; RODRIGUES, 2012, p. 24), o que propiciou o surgimento do programa de Ação de Produção Social de Moradia (APSM), o qual selecionou 61 empreendimentos, dos quais apenas um foi construído (FERREIRA, 2012, p. 128).

Em 2008, os recursos destinados ao Programa Crédito Solidário estavam se esgotando, o que inviabilizaria a sua execução, a não ser que houvesse injeção de novos recursos. Nesse contexto, os movimentos defendiam a destinação de recursos ao FNHIS, ao mesmo tempo em que negociavam mudanças no Programa Crédito Solidário (MINEIRO &RODRIGUES, 2012).

Em 2009 surge o Programa Minha Casa Minha Vida, que não utilizou os recursos do FNHIS e nem estava sujeito às decisões e regras de financiamento do programa às instâncias de participação com extensa representação social (FERREIRA, 2012).

Mesmo com as muitas críticas ao programa, os movimentos de luta por moradia reivindicaram que uma parcela de seus recursos fosse destinada à autogestão, originando assim o Programa Minha Casa, Minha Vida Entidades (MINEIRO & RODRIGUES, 2012, p. 26).

Mesmo assim, as práticas envolvendo autogestão continuaram a ter um caráter residual, já que receberam menor volume de recursos e houve poucas ações para fortalecimento da capacidade de gestão das associações e cooperativas. Portanto, o processo de autogestão ocorreu muito mais pela iniciativa das entidades do que pela incidência de uma política pública para o setor (MINEIRO & RODRIGUES, 2012, p. 28).

Tanto no Programa Crédito Solidário e no Programa Minha Casa, Minha Vida, o empreendimento é formado pela soma de financiamentos individuais (MINEIRO & RODRIGUES, 2012, p. 32), não havendo um financiamento coletivo, diferentemente das cooperativas habitacionais uruguaias.

  1. Cooperativismo habitacional uruguaio

Em relação ao modo de construir, as cooperativas habitacionais uruguaias podem ser classificadas em: de ahorro previo, no qual há a contratação de terceiros para a execução da totalidade da obra, ajuda mútua e autoconstrução, em que o trabalho do sócio e seus familiares só são utilizados na construção de sua unidade habitacional (CAZERES, 2008, p. 38).

Nas cooperativas de ajuda mútua, o trabalho comunitário dos sócios é utilizado para construção coletiva de todas as unidades habitacionais e dirige tecnicamente a cooperativa, ainda que os empreendimentos de autogestão tenham que obrigatoriamente contratar o Instituto de Asistencia Tecnica – IAT para assessoramento técnico (CAZERES, 2008). Além disso, a construção habitacional envolve a ampliação, reparação e conservação das moradias (CAZERES, 2008).

A importância da utilização do trabalho dos cooperados na construção das unidades habitacionais reside no fato de que o mercado não oferece unidades habitacionais com a mesma qualidade, relativa à área e tamanho, devido à necessidade de remuneração da intermediação (BARAVELLI, 2006, p. 89).

A Lei 13.728/68 estipula que o principal objetivo da cooperativa habitacional é possibilitar o alojamento adequado e estável de seus associados, o que não implica necessariamente na transmissão da propriedade da unidade habitacional (CAZERES, 2008, p. 36). Por isso, a lei estipula que as cooperativas habitacionais são classificadas em: de usuários, em que a propriedade pertence à cooperativa e o sócio tem direito de uso e gozo sobre a moradia, e de proprietários, no qual os sócios tem a propriedade individual da unidade habitacional (CAZERES, 2008, p. 37).

O direito de uso e gozo é um direito pessoal e não autônomo, já que é proveniente da condição de sócio. Além disso, não há limitação de tempo, podendo ser transmitido para herdeiros e cedido por ato intervivos, observados os limites da lei. Em relação aos herdeiros deverão subscrever todos os direitos e obrigações do falecido para exercer os direitos de uso e gozo (CAZERES, 2008, p. 40).

Segundo Baravelli (2006, p. 68):

Em termos práticos, tal ‘propriedad colectiva’ significa que a propriedade das unidades habitacionais é escriturada em definitivo para a cooperativa de habitação depois que esta conclui as fases de compra do terreno e edificação das moradias, quando o procedimento comum no mercado habitacional é fracionar e transferir para indivíduos a propriedade de cada unidade habitacional. Portanto, nas cooperativas de habitação por ajuda mútua, a pessoa jurídica criada para contrair o financiamento e viabilizar a construção das habitações não é dissolvida quando estas terminam de ser construídas. Segundo a presidente de uma das mais emblemáticas cooperativas de Montevidéu – Covimt 9 – ‘esto impide en gran parte lo aislamiento de la gente, porque la verdade es que la cooperativa sigue construyendo’. Melhor dizendo, ‘sigue construyendo’ com as tarefas de manutenção das áreas comuns (que não são mais apenas as áreas fora das moradias) e, fora dos limites do terreno, ajudando ou mesmo assumindo a construção de equipamentos comunitários como escolas e postos de saúde (policlínicas), frequentemente cedidos posteriormente para uso público.

Logo, as cooperativas de ajuda mútua mantém a propriedade e continuam ativas, desempenhando atividades de manutenção das áreas comuns e construção de equipamentos comunitários.

A cooperativa possui as seguintes obrigações para com o sócio: pagamento das amortizações e reparações nas residências, manter o sócio no exercício de seus direitos e viabilizar a posse material do sócio na moradia adjudicada (CAZERES, 2008, p. 40). Já o sócio possui as seguintes obrigações com a cooperativa: ter cuidado e zelo com a unidade habitacional, utilizar a moradia para sua própria residência e de sua família, o que implica a impossibilidade de cessão ou locação. Além disso, o associado deve realizar os aportes mensais relativos à amortização, manutenção e demais serviços, oriundos da subscrição das cotas-parte da cooperativa e do pagamento dos serviços prestados, e não do direito de uso e gozo (CAZERES, 2008, p. 40).

O trabalho nas cooperativas de ajuda mútua é considerado aporte de capital realizado pelos sócios e contribui para aumentar as quotas-parte de cada associado (CAZERES, 2008). O trabalho realizado pelos sócios e seus familiares só podem ser realizados pelos sócios e seus familiares, e como não integram nenhum dos serviços que proporciona a cooperativa aos sócios não constitui um ato cooperativo[37] (CAZERES, 2008). Tampouco é considerado trabalho remunerado, portanto, não contribui para a aposentadoria nem há recebimento de salário (CAZERES, 2008).

As cooperativas habitacionais podem constituir um fundo de socorro, constituído a partir da retenção permanente de parcela da cota social do cooperado, que diminui a inadimplência e rotatividade de moradores (BARAVELLI, 2006, p. 60). O fundo tem como objetivo:

cobrir as prestações devidas por uma família em situação de desemprego ou enfermidade. Funciona como um seguro comunitário, capaz de atender as necessidades econômicas de uma família vulnerabilizada socialmente com mais agilidade do que um programa assistencialista e com mais eficiência do que as precauções dos contratos privados. Isto se dá porque o pagamento dos juros e a amortização do financiamento habitacional é uma responsabilidade da cooperativa, isto é, é uma responsabilidade solidária de seus associados e não de cada um deles isoladamente (BARAVELLI, 2006, p. 60).

Portanto, o fundo de socorro atende de forma eficaz as demandas de famílias em situação de vulnerabilidade econômica, bem como é decorrente da responsabilidade coletiva da cooperativa em realizar os pagamentos do financiamento.

Muitas cooperativas de ajuda mútua organizam-se na Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua – FUCVAM[38], cuja existência foi essencial para contestação em face ao Estado ou entidades empresariais da construção civil (BARAVELLI, 2006, p. 67). Além disso, a entidade também realiza capacitação contínua de quadros de direção e de organização de luta por moradia e fortalece uma rede de movimentos sociais por moradia no âmbito da América Latina (BARAVELLI, 2006, p. 67), inclusive houve uma aproximação entre as cooperativas habitacionais uruguaias e as de São Paulo e de algumas cidades do Rio Grande do Sul (GONZÁLEZ, 2013, p. 190).

Nesse sentido, na década de 1970, a FUCVAM implantou uma fábrica de componentes construtivos, que não subsistiu em decorrência da perda de consumidores (BARAVELLI, 2006, p. 133). Tal fato ocorreu em razão da impossibilidade de produção para as cooperativas de habitação, decorrente da suspensão dos financiamentos e do cancelamento da formação das cooperativas pela ditadura uruguaia (BARAVELLI, 2006, p. 133). A entidade tampouco possuía condições de competir com terceiros, já que em razão de pressão de concorrentes, a entidade teria as mesmas obrigações tributárias das demais empresas do ramo na comercialização (BARAVELLI, 2006, p. 133).

Dessa forma, segundo Baravelli (2006, p. 134):

Vê-se então que o desenho e a qualidade da execução dos componentes construtivos da Fucvam, quando eram oferecidos como mercadorias, não eram economicamente viáveis numa disputa comercial com empresas capitalistas. Sua função econômica só tinha sentido como um produto interno ao cooperativismo de habitação, onde substituíam com vantagem os componentes comerciais porque eram produzidos pelos cooperados para si mesmos. Ao longo dos anos 1980, a produção em escala industrial nas cooperativas de habitação por ajuda mútua foi sendo abandonada pela compra de componentes pré-fabricados por empresas capitalistas. O mercado em que estes componentes são ofertados se tornou concorrencial o suficiente para que as cooperativas sejam um comprador influente e se beneficiem de bons preços.

Portanto, a fabricação dos componentes construtivos compensava apenas para a produção interna das cooperativas, pois poderiam ser adaptadas para as unidades habitacionais que produziam, porém, não conseguiram competir no mercado.

Uma das experiências exitosas no cooperativismo uruguaio foi a realização de reciclaje, que consiste na realização de melhoramento, complementação e subdivisão em várias unidades de uma moradia existente (URUGUAI, 1996). Essa prática ocorreu principalmente em áreas centrais da capital do país, já que a cidade vivenciava uma diminuição da população nos bairros centrais já dotados de infraestrutura urbana, ao mesmo tempo em que os pobres eram cada vez mais expulsos para a periferia (VALLES, 2008, p. 152).

O governo municipal já vinha desenvolvendo projetos de reutilização de edifícios históricos, visando à reabilitação de moradias, porém, inicialmente a concessão de créditos do Banco Hipotecário do Uruguai – BHU era destinado apenas a investidores (VALLES, 2008, p. 155). Posteriormente foi ampliada para pessoas físicas e não abrangeu as cooperativas habitacionais, que só foram beneficiadas por financiamento estatal, após a atuação do governo municipal (VALLES, 2008, p. 155).

A partir da década de 1990 houve uma iniciativa do governo municipal de desenvolver um trabalho interdisciplinar em apoio a grupos de vizinhos organizados na autogestão habitacional, em conjunto com organizações não governamentais, que visava à garantia da permanência da população residente e o aproveitamento da estrutura do edifício existente (VALLES, 2008, p. 154).

Conclusão

Nesse sentido, em face ao elevado déficit habitacional brasileiro e a ineficácia das políticas habitacionais em solucionar a não efetivação do direito à moradia que abrange parcela considerável da população brasileira, o fortalecimento das cooperativas habitacionais é uma possível alternativa para concretização desse direito, em razão do maior êxito desempenhado pelas políticas públicas que envolvem práticas de autogestão.

As cooperativas habitacionais de usuários uruguaias constituem uma experiência exitosa, inclusive influenciando outros movimentos sociais em outros países, dentre os quais se inclui cooperativas habitacionais brasileiras de São Paulo e de algumas cidades do Rio Grande do Sul.

A experiência das cooperativas uruguaias possibilita maior atendimento ao direito à moradia, já que os moradores não podem vender a propriedade, em caso de dificuldades econômicas, ficando sem residência. Além disso, os cooperados podem se utilizar de fundo comunitário destinado a cobrir as prestações do financiamento, em caso de doença ou desemprego.

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 Perspectivas sobre território e mercado no estudo das consequências sociais da globalização[39]

On territory and global economy in the study of the social consequences of globalization

 

Flávia do Amaral Vieira[40]

 

Resumo: Este artigo objetiva refletir sobre as relações entre as políticas econômicas neoliberais e o direito à terra e moradia, explorando conceitos como território e financeirização. Considerou-se como pressuposto que a expansão das políticas econômicas neoliberais, a partir dos anos 1980, favoreceu a entrada de investimentos e acionistas internacionais, mercantilizou e colocou à disposição destas corporações setores básicos da vida das pessoas. Sob hegemonia do capital financeiro e rentista, no qual a terra se transforma em reserva de valor, a propriedade imobiliária e a habitação passam a configurar fronteiras de expansão do capital financeiro e um contexto no qual os governos adotam políticas públicas que abandonaram o conceito de moradia como um bem social e de cidade como um artefato público. Constata-se a existência de uma crise global de insegurança da posse que aprofunda a pobreza e destrói comunidades, laços de parentesco, vizinhança, afeta a saúde pública, os direitos econômicos, sociais e culturais dos afetados, ou seja, deixa as pessoas em situação extremamente vulnerável, perpetuando desigualdades. As mobilizações por direito à moradia, acesso aos espaços públicos e construção de alternativas ilustram o conceito de Rolnik (2015), de “guerra de lugares”, que caracteriza esse fenômeno da colonização da terra pelas finanças.

Palavras-Chave: globalização, território, financeirização, direitos humanos.

Abstract: This article aims to reflect on the relations between neoliberal economic policies and the right to land and housing, exploring concepts such as territory and financialization. It was assumed that the expansion of neoliberal economic policies, starting in the 1980s, favored the entry of international investors and shareholders, made available to these corporations basic sectors of people’s lives. Under hegemony of financial and rentier capital, in which land becomes a reserve of value, real estate and housing become borders of expansion of financial capital and a context in which governments adopt public policies that have abandoned the concept of housing as a social and city good as a public artifact. There is a global insecurity crisis of ownership that deepens poverty and destroys communities, ties of kinship, neighborhood, affects public health, economic, social and cultural rights of those affected, ie leaves people in a situation extremely vulnerable, perpetuating inequalities. The mobilizations for the right to housing, access to public spaces and construction of alternatives illustrate the concept of Rolnik (2015), of “war of places”, that characterizes this phenomenon of the colonization of the land by the finances.

Keywords: globalization, territory, financialization, human rights.

Introdução

Atualmente, constata-se que existe uma tensão crescente entre a expansão da economia na globalização e os direitos humanos internacionalmente garantidos. Os problemas emergem da existência de fortes assimetrias entre o poder econômico e as populações, ou entre corporações e Estados, que geram situações de abusos, delitos e violações de direitos humanos, com notória semelhança às lógicas da colonialidade.

A partir de referenciais teóricos da teoria crítica dos direitos humanos, o objetivo deste artigo é investigar relações entre o discurso de desenvolvimento da globalização como um dos fatores que promove a expulsão e o deslocamento de populações dos seus territórios. O correlato principal é identificar o direito ao território, como modo de preservação da cultura, expressão da autonomia e da dignidade humana.

Toma-se como pressuposto que as reformas estruturais e de disciplina financeira do Consenso de Washington[41] na América Latina foram fundamentais para gerar êxodo da mão de obra rural para as favelas urbanas, em um processo de desligamento entre urbanização e industrialização (DAVIS, 2006, p. 23).

Nesse sentido, desde o Sul Global, espaço imerso na geopolítica da divisão internacional do trabalho de produção de conhecimento, busca-se contribuir para os debates sobre direito à cidade a partir dos movimentos migratórios, remoções forçadas e outros deslocamentos populacionais inseridos em contextos de formação social e política singular.

Para isso, será necessário analisar a lógica de reprodução do capital global e das relações centro-periferia, com aportes da teoria da dependência e estudos pos/descoloniais, para compreender consequências sociais da globalização em termos de território e mercado.

O artigo é realizado a partir de pesquisa documental e bibliográfica, com ênfase na articulação das teorias críticas referenciadas, acrescida do exame de eventos políticos recentes e historiografias do projeto moderno. A metodologia adotada, então, consiste em explorar eventos políticos e questionar a matriz filosófica em face da dimensão alcançada pela atuação das corporações e seus papeis como sujeitos de Direito na atualidade.

Considerando ser o método de abordagem o raciocínio empregado no desenvolvimento da pesquisa, a opção por um método que pressupõe um conhecimento fundamentado na experiência refutando ideias pré-estabelecidas – e às vezes pré-conceituadas – leva, consequentemente, à escolha do método indutivo. Sobre a técnica de pesquisa, serão empregados a documentação indireta, com referencia à pesquisa bibliográfica e documental.

Assim, inicialmente será apresentado um tópico sobre globalização no neoliberalismo, explorando a herança colonial e os aportes sobre desenvolvimento econômico, para em seguida abordar o conceito de território, a partir de reflexões sobre cidadania e direitos.

  1. Políticas econômicas neoliberais, colonialismo e a terra.

 Ao remontar às raízes históricas, epistêmicas, político-econômicas, culturais e ideológicas que interligam os territórios latino-americanos às lógicas operativas do capitalismo transnacional, compreende-se que a globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial (QUIJANO, 2005, 123).

A expansão das políticas econômicas neoliberais na América Latina, a partir dos anos 1980, favoreceu a entrada de investimentos e acionistas internacionais, mercantilizou e colocou à disposição destas corporações setores básicos da vida das pessoas (VIEIRA, 2017, 86).

O entrelaçamento de crise de dívida externa, inflação galopante e terapia de choque do FMI no final da década de 1970 e início da de 1980 destruiu a maior parte dos incentivos ao investimento produtivo na indústria nacional e no emprego público. Por sua vez, os planos de ajuste estrutural canalizaram a poupança nacional da indústria e do bem-estar social para a especulação imobiliária (DAVIS, 2006, 92).

 Assim, transnacionais passam a exercer domínio e monopólio sobre os recursos naturais em praticamente todas as esferas, controlando a maioria dos setores estratégicos da economia mundial, sendo que algumas delas passam a exibir poder econômico superior ao valor do produto interno bruto (PIB) de alguns países.

Entre 1980 e 2010, o valor dos ativos financeiros mundiais cresceu 16,2 vezes, enquanto o PIB mundial aumentou pouco menos do que 5 vezes no mesmo período (PAULANI, 2010, p. 05), superacumulação sem precedentes que resulta tanto do lucro acumulado das corporações quanto da entrada de novas economias emergentes como a China. Para alimentar estes novos vetores de aplicação rentável para os investidores, novos campos de aplicação passam a ser explorados, transformando setores, como novas commodities, financiamento estudantil e planos de saúde, por exemplo (ROLNIK, 2015, p. 27).

Tomando como pressuposto que a hierarquia étnico-racial global é parte integrante do desenvolvimento da divisão internacional do trabalho no sistema capitalista[42], identifica-se a continuidade das relações centro-periferia, agora instituídas por intermédio da reconfiguração territorial e dos fluxos de capitais direcionados aos países da periferia do capitalismo, através dos frequentes deslocamentos de capital e do avanço das grandes corporações transnacionais e conglomerados financeiros (ASSIS, 2014, 619), expandindo a ocupação territorial do capital.

As mediações e o controle sobre os diferentes governos dos Estados periféricos são assegurados, dentre outras formas, pela manutenção das relações assimétricas de poder e pela garantia de que os contratos firmados com as instituições financeiras internacionais não serão quebrados. Outrossim, o controle sobre as populações pobres da periferia (através da coerção, da cooptação e do consentimento) continua sendo uma das tarefas mais importantes dos governos burgueses locais. A associação de interesses entre as classes dominantes imperialistas e periféricas visa assegurar a manutenção das condições de espoliação sobre a classe trabalhadora e, ao mesmo passo, garantir a ininterrupção dos fluxos de bens e capitais em direção aos espaços centrais do capitalismo mundial (CARVALHO, 2012, 746).

Através dessas práticas, o neoliberalismo consolidou a dependência e a subordinação neocolonial na reprodução e acumulação assimétricas necessárias para seu projeto. O colonialismo neoliberal se expressa radicalmente na exploração econômica tanto da força de trabalho, via precarização dos direitos trabalhistas e relações de trabalho; como também na exploração ilimitada da natureza, identificada no extrativismo; e nas condições socioeconômicas e ambientais em geral, a exemplo da ampliação das periferias urbanas (PUELLO-SOCARRÁS, 2013, 48).

Nesse cenário, adiciona-se o fenômeno da urbanização sem crescimento como outra herança dessa conjuntura política global e da reestruturação das econômias do Terceiro Mundo (DAVIS, 2006, p. 23).

[…] essa expansão urbana “perversa” contradisse os modelos econômicos ortodoxos, que previam que o feedback negativo da recessão urbana retardaria ou ate reverteria a migração do campo. O caso africano foi especialmente paradoxal. Como as cidades da Costa do Marfim, da Tanzania, do Gabão e de outros países cuja economia se contraía 2% a 5% ao ano conseguiram ainda manter um crescimento populacional anual de 5% a 8%? Obviamente, parte do segredo é que as políticas de desregulamentação agrícola e “descampesinação” impostas pelo FMI (e hoje pela OMC) aceleraram o exôdo da mão de obra rural excedente para as favelas urbanas, ainda que as cidades deixassem de ser máquinas de emprego. As forças globais que “empurraram” as pssoas para fora do campo – a mecanização em Java e na Índia, a importação de alimentos no México, no Haiti e no Quênia, a guerra civil e a seca de modo generalizado na África, e por toda parte, a consolidação de pequenas propriedades em grandes e a competição do agronegócio em escala industrial – parecem manter a urbanização mesmo quando a “atração” da cidade é enfraquecida drasticamente pelo endividamento e pela depressão. Ao mesmo tempo, o rápido crescimento urbano no contexto do ajuste estrutural, da desvalorização da moeda e da redução do Estado foi a receita inevitável da produção em massa de favelas (DAVIS, 2006, p. 24-5).

Essas situações descritas indicam que não se trata de mais um ciclo de ocupação capitalista do espaço, mas de uma nova relação do capital com o espaço, sob hegemonia do capital financeiro e rentista, no qual a terra se transforma em reserva de valor (ROLNIK, 2015, p. 160).

Assim como a África, a América Latina foi e permanece sendo dos principais alvos da ofensiva imperialista articulada pelos Estados centrais e grandes corporações transnacionais no contexto da globalização neoliberal, através da aplicação de políticas neoliberais e da ação recolonizadora na região (CARVALHO, 2012, 741).

A dívida externa e o subsequente “ajuste estrutural” estimulam sinistros “intercâmbios entre produção, competição e eficiência e consequências ambientais negativas em termos de comunidades potencialmente vulneráveis a desastres” (DAVIS, 2006, 130). Nesse cenário, as realizações positivas da filantropia internacional e a intervenção residual do Estado são totalmente amesquinhadas pelo impacto negativo da inflação da terra e da especulação imobiliária (DAVIS, 2006, 90).

Inclusive, padrões polarizados de uso da terra e de densidade populacional recapitulam antigas lógicas de controle imperial e dominação racial. Em todo o terceiro mundo, as elites pós-coloniais herdaram e reproduziram com ganância as marcas físicas das cidades coloniais segregadas; apesar da retórica de libertação nacional e justiça social, adaptaram com agressividade o zoneamento racial do período colonial para defender os seus próprios privilégios de classe e a exclusividade espacial (DAVIS, 2006, 104).

Assim, embora a colonialidade nunca tenha estado ausente, através do termo recolonização, se identifica o salto quantitativo do imperialismo que vem ocorrendo nos países da América Latina, através de variadas ações que buscam subordinar os Estados periféricos politicamente, economicamente, e militarmente, agravando as desigualdades sociais.

  1. Território e financeirização.

Desde uma perspectiva fundiária informada pela teoria antropológica da territorialidade, delimita-se um campo de análise antropológica centrado na questão territorial dos grupos sociais ao invés dos enfoques clássicos do campesinato, etnicidade e raça.

A partir do foco na questão territorial o objetivo não é reduzir a existência desses grupos a esse único fator ou apagar, ignorar as diferenças existentes entre os diversos grupos, mas sim aproveitar este olhar analítico para verificar semelhanças entre diversos grupos, para vincula-los com suas reivindicações e lutas fundiárias e descobrir possíveis eixos de articulação social e política no contexto jurídico maior do Estado-nação brasileiro (LITTLE, 2002, p. 02).

Paul Little define a territorialidade como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu “território” ou homeland (2002, p. 02). Nesse sentido, a renovação da teoria de territorialidade na antropologia considera a conduta territorial como parte integral de todos os grupos humanos.

Na era do capitalismo financeirizado, em que a extração de renda sobrepõe-se ao mais-valor do capital produtivo, constata-se que terras urbanas e rurais tornaram-se ativos altamente disputados. Atualmente, para Raquel Rolnik, “a hegemonia da propriedade individual escriturada e registrada em cartório sobre todas as demais formas de relacionamento com o território habitado constitui um dos mecanismos mais poderosos da máquina de exclusão territorial” (2015, p. 13).

Na linguagem contratual das finanças, os vínculos com o território são reduzidos à unidimensionalidade de seu valor econômico e à perspectiva de rendimentos futuros, para os quais a garantia da perpetuidade da propriedade privada é uma condição. Desta forma, enlaçam-se os processos de expansão da fronteira da financeirização da terra e da moradia com as remoções e os deslocamentos forçados (ROLNIK, 2015, p. 13).

Denomina-se financeirização o “domínio crescente de atores, mercados, práticas, narrativas [e subjetividades] financeiros em várias escalas, o que resulta na transformação estrutural de economias, empresas (inclusive instituições financeiras), Estados e grupos familiares” (AALBERS, 2015, p. 03).

Com efeito, submetendo as formas de existir a essa única forma, via colonização pelas finanças, a propriedade imobiliária e a habitação configuram poderosas fronteiras de expansão do capital financeiro. A ideologia neoliberalizante que propaga que os mercados são capazes de regular a alocação da terra urbana e da moradia como forma mais racional de distribuição de recursos permitiu que os governos adotassem políticas públicas que abandonaram o conceito de moradia como um bem social e de cidade como um artefato público. Explica Raquel Rolnik:

As políticas habitacionais e urbanas renunciaram ao papel de distribuição de riqueza, bem comum que a sociedade concorda em dividir ou prover para aqueles com menos recursos, para se transformarem em mecanismo de extração de renda, ganho financeiro e acumulação de riqueza. Esse processo resultou na despossessão massiva de territórios, na criação de pobres urbanos “sem lugar”, em novos processos de subjetivação estruturados pela lógica do endividamento, além de ter ampliado significativamente a segregação nas cidades (2015, p. 15).

O resultado desse processo é a transmutação da terra e da moradia em mercadorias e ativos financeiros, que dá origem a uma crise global de insegurança da posse que marca a vida de milhões de habitantes do planeta (ROLNIK, 2015, p. 148). Essa condição afeta desde indivíduos que tiveram suas casas hipotecadas ou que perderam a possibilidade de continuar em seus bairros devido a altas de preços nos mercados internacionais, até pessoas que foram removidas a força de onde viviam, em deslocamentos compulsórios por meio de expulsões ou usurpações de terras, por projetos de infraestrutura ou renovação urbana, expansão de áreas de mineração ou agronegócio, desastres, conflitos armados, entre outros.

  1. Território em disputa: uma questão de direitos.

 As remoções forçadas são manifestação direta da insegurança da posse decorrente da financeirização da terra e da moradia. Dados do Centre on Housing and Evictions (Centro pelo Direito a Moradia contra Despejos) estimaram que, entre 1998 e 2008, mais de 18 milhões de pessoas foram afetadas por remoções, enquanto o Banco Mundial identificou que projetos de mineração e agronegócio afetaram 15 milhões de pessoas anualmente ao longo da década de 2000 (ROLNIK, 2015, p. 149).

As remoções aprofundam a pobreza e destroem comunidades, laços de parentesco, vizinhança, afetam a saúde pública, os direitos econômicos, sociais e culturais dos afetados, ou seja, deixam as pessoas em situação extremamente vulnerável. Rolnik destaca que não são apenas as favelas o único exemplo de insegurança de posse, e sim um amplo leque de indivíduos e grupos[43], sendo os mais pobres aqueles que arcam com o maior ônus decorrente dessa situação (2015, p. 151).

Ademais, as dinâmicas que acompanham a liberalização dos mercados de terras aumentam a pressão sobre os territórios controlados por comunidades de baixa renda, questão agravada pelo fato de que isso ocorre em um momento em que a terra urbanizada não está disponível para os grupos mais pobres (ROLNIK, 2015, p. 152). Nesse sentido, estas comunidades ficam sempre sob ameaça de uma possível expulsão de seus ativos territoriais.

Para Holston (2013), a exclusão da propriedade fundiária tem inúmeras consequências fatais para a cidadania. Por exemplo, no caso do Brasil, a ausência de regulamentação da terra e da segurança dos seus títulos resultou no perpetuamento de extraordinárias desigualdades de propriedade, riqueza, ilegalidades como norma de moradia e violentos conflitos entorno dessa questão.

Esses sistemas emergem e operam a partir de determinados fatores, como o controle desigual sobre os recursos geradores de valor (no caso, a terra); relações assimétricas existentes entre fronteiras socialmente reconhecidas entre redes interpessoais (proprietários e sem posses); mecanismos de exploração, quando as pessoas que controlam um recurso aliciam os esforços de outros na produção de valor por meio desse recurso, excluindo os outros da participação do valor que foi acrescido graças a seus esforços; a limitação de oportunidades, que consiste em limitar a disponibilidade de determinado recurso apenas aos membros internos de certo grupo (TILLY, 2013).

Tilly (2013) aduz que as desigualdades produzidas desse modo tornam-se mais duráveis e efetivas na medida em que os que recebem a mais-valia gerada pela exploração e/ou pela limitação da oportunidade utilizam uma parte desse excedente para reproduzir as fronteiras que separam das categorias excluídas da população e as relações desiguais entre aquelas fronteiras, inclusive citando como exemplo do proprietário de terra que utiliza parte de sua mão de obra para construir cercas e para expulsar assentamentos ilegais (2013).

O exemplo ilustra que as desigualdades produzidas desse modo tornam-se mais duráveis e efetivas na medida em que os detentores da terra utilizam os excedentes da exploração e/ou pela limitação da oportunidade para reproduzir as fronteiras que separam das categorias excluídas da população e as relações desiguais entre aquelas fronteiras.

Chegamos a uma questão central em que a prevalência de uma combinação de recursos que mantem a desigualdade sobre outros afeta os padrões da mobilidade individual e coletiva, e dá viabilidade a um governo autoritário. Afinal, regimes que se baseiam sobre o controle da terra, sobre o trabalho e meios coercitivos, prestam-se facilmente a tirania (TILLY, 2013).

Esse modelo penetra nas cidades, nas políticas urbanas e de moradia, captura territórios, expulsa e coloniza espaços e formas de viver (ROLNIK, 2015, p. 373). Isto é, os efeitos desse modelo são político-territoriais.

Nesse sentido, nas mobilizações contemporâneas, o espaço público se torna mais que objeto de reinvindicação ou cenário. “Ocupações” de terrenos, ruas, edifícios, praças, se multiplicam nas cidades brasileiras, a partir de intervenções culturais ou de movimentos sociais de luta por terra e moradia, muitas vezes em articulação ou alianças estratégicas.

Rolnik denomina esse momento de “guerra dos lugares” ou de “guerra pelos lugares”, em que processos de coletivos de construção de “contraespaços” estão em jogo, isto é, movimentos de resistência à redução dos lugares à locais de extração de renda, possibilitando a experimentação de alternativas e futuros possíveis, num processo marcado pelo confronto e pela violência (2015, p. 378).

Considerações Finais

Este artigo objetivou refletir sobre as relações entre as políticas econômicas neoliberais e o direito à terra e moradia, explorando conceitos como território e financeirização. Para isso, foi necessário analisar a lógica da reprodução do capital global e das relações centro-periferia, com o intuito de compreender as consequências sociais da globalização em termos de território e mercado.

Considerou-se como pressuposto que a expansão das políticas econômicas neoliberais, a partir dos anos 1980, favoreceu a entrada de investimentos e acionistas internacionais, mercantilizou e colocou à disposição destas corporações setores básicos da vida das pessoas.

Constatou-se que não se trata de mais um ciclo de ocupação capitalista do espaço, mas de uma nova relação do capital com o espaço, sob hegemonia do capital financeiro e rentista, no qual a terra se transforma em reserva de valor, a partir de Rolnik (2015).

Assim, submetendo as formas de existir a essa única forma, via colonização pelas finanças, a propriedade imobiliária e a habitação passam a configurar fronteiras de expansão do capital financeiro. No mesmo cenário, os governos adotam políticas públicas que abandonaram o conceito de moradia como um bem social e de cidade como um artefato público.

Constatou-se a existência de uma crise global de insegurança da posse que afeta desde indivíduos que tiveram suas casas hipotecadas ou que perderam a possibilidade de continuar em seus bairros devido a altas de preços nos mercados internacionais, até pessoas que foram removidas a força de onde viviam, em deslocamentos compulsórios por meio de expulsões ou usurpações de terras, por projetos de infraestrutura ou renovação urbana, expansão de áreas de mineração ou agronegócio, desastres, conflitos armados, entre outros.

As remoções aprofundam a pobreza e destroem comunidades, laços de parentesco, vizinhança, afetam a saúde pública, os direitos econômicos, sociais e culturais dos afetados, ou seja, deixam as pessoas em situação extremamente vulnerável, perpetuando desigualdades. Nesse sentido, mobilizações por direito à moradia, acesso aos espaços públicos e construção de alternativas, desde à arte e os movimentos sociais, ilustram o conceito de Rolnik (2015), de “guerra de lugares”, que caracteriza esse fenômeno da colonização da terra pelas finanças.

Referências

 Livro (língua original)

ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 1ed. São Paulo: Boitempo, 2015.

 

  • Livro (traduzido)

DAVIS, Mike. Planeta Favela. Trad. Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2006.

HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Trad. Carlos Szlak. São Paulo: Annablume, 2005.

HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

TILLY, Charles. Democracia. Petropolis, RJ: Vozes, 2013.

III. Capítulo de livro

PUELLO-SOCARRÁS, José Francisco. Ocho tesis sobre el Neoliberalismo (1973-2013). In. O neoliberalismo sul-americano em clave transnacional: enraizamento, apogeu e crise. Organizado por Hernán Ramírez. – São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2013. Págs. 13-57.

  1. Artigo de periódico

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CARVALHO, Marcos Cesar Araujo. A Reconfiguração das relações de poder na américa latina: recolonização e resistèncias em um contexto neoliberal. In Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98. Vol. XVI, núm. 418 (61), 1 de noviembre de 2012.

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A importância do direito ao transporte e as dificuldades para sua efetivação[44]

The importance of right to transport and the difficulties for its realisation

 

Gláucia Sayuri Takaoka[45]

 

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar o direito ao transporte como um direito social, que é fundamental para garantir o direito de ir e vir e a mobilidade urbana. Assim, é possível constatar que o transporte é um direito social meio, necessário para o acesso a diversos outros direitos, como à saúde, educação, trabalho e lazer, ou seja, para a concretização do direito à cidade. O transporte foi incluído no rol de direitos sociais do art. 6º da Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional nº 90/2015. Com sua positivação, poderia supor-se que o Estado passaria a adotar medidas que garantissem o acesso da população ao transporte, afinal, um direito social pressupõe ações governamentais positivas a fim de assegurá-lo. No entanto, além das políticas públicas serem deficitárias e insuficientes, a tarifa representa uma barreira que impede que o povo consiga utilizar o transporte coletivo. Portanto, ao contrário de outros direitos sociais, como a saúde e a educação, não há transporte gratuito. Ademais, além de não garantir o acesso ao transporte, o Estado criminaliza quem tenta utilizá-lo sem pagar a tarifa por meio do art. 176 do Código Penal. E, para assegurar suas determinações, o Estado utiliza seu aparato policial, que é violento, opressor, seletivo e racista.

Palavras-Chave: Direito ao transporte. Mobilidade urbana. Direito à cidade. Criminalização. Seletividade do sistema penal.

Abstract: The aim of this work is to analyse the right to transport as a social right, which is fundamental to ensure the right to come and go and the urban mobility. Therefore, it is possible to verify that transport is necessary to access many other rights, such as health, education, work and leisure, in other words, to enforce the right to the city. The transport was included in the list of social rights of the article 6 of the Federal Constitution through Constitutional Amendment nr. 90 of 2015. With its affirmation, it could be assumed that the State would adopt measures that guarantee the population’s access to transport, after all, a social right presupposes positive governmental actions in order to ensure it. However, besides public policies being deficient and insufficient, the fare represents a barrier that prevents people from being able to use collective transport. So, unlike other social rights, such as health and education, there is not free transport. In addition, besides to not guaranteeing access to transport, the State criminalises who tries to use it without paying the fare through article 176 of the Penal Code. And, in order to ensure its determination, the State uses its violent, oppressive, selective and racist police apparatus.

Keywords: Right to transport. Urban mobility. Right to the city. Criminalisation. Selectivity of the penal system.

1 Introdução

O processo de construção deste trabalho tem origem nas experiências enquanto membro do Movimento Passe Livre (MPL) Fortaleza, do qual fiz parte de 2014 a 2016. O MPL é um movimento social que luta por um transporte coletivo[46] gratuito e de qualidade para todas as pessoas com o intuito de efetivar o direito à cidade. Através das atividades do MPL e como usuária do transporte coletivo, pude vivenciar e ouvir relatos de diversas violações de direitos, o que me causa profunda indignação e ensejou a escolha do tema do presente trabalho.

Desde aproximadamente abril de 2016, os ônibus de Fortaleza passaram a ter um aviso, junto ao cobrador, que informa que pular a catraca é crime, de acordo com o art. 176 do Código Penal (CP), bem como sua respectiva pena. Além disso, a presença de fiscais do Sindiônibus[47] nos terminais e paradas de ônibus se intensificou.

É evidente que o objetivo de tudo isso é coagir os usuários a não pularem a catraca nem fazerem traseira[48] e reprimir quem tenta utilizar o transporte coletivo sem dinheiro para o pagar. Uma comprovação disso é que, desde que esses avisos foram implantados no ônibus, os relatos de violência por parte da polícia e dos funcionários das empresas de ônibus aumentaram.

A partir desse panorama, este trabalho busca analisar o direito ao transporte como um direito social, ou seja, um direito fundamental que pressupõe ações positivas do Estado a fim de o efetivar. Procura-se mostrar o quão essencial o transporte é para garantir o direito de ir e vir e a mobilidade urbana, visto que não se pode considerar que andar a pé é suficiente para suprir as necessidades de deslocamento da população, e que, mesmo sendo um direito social positivado constitucionalmente através da Emenda Constitucional nº 90/2015, além de não garantir sua efetivação, o Estado criminaliza quem tenta acessar o transporte coletivo sem pagar a tarifa. Além disso, busca-se analisar os motivos que impedem a concretização do direito ao transporte e, devido ao não acesso ao transporte coletivo, as consequências que a população mais desprivilegiada socioeconomicamente, que é quem mais necessita utilizar o transporte coletivo, sofre.

A construção desta pesquisa foi feita a partir de uma metodologia histórico-evolutiva para analisar o desenvolvimento dos direitos fundamentais e sociais e das manifestações populares que reivindicavam um transporte coletivo gratuito e de qualidade; bibliográfica para estudar as principais fontes que tratam sobre direitos sociais, direito à cidade, direito ao transporte e criminologia; e qualitativa, para a realização de pesquisa com estudantes secundaristas da rede pública de ensino de Fortaleza, cujo propósito foi colher relatos que demonstrassem como a tarifa limita a locomoção pela cidade e como o Estado e as empresas de ônibus têm usado a polícia e a segurança privada, de modo violento e repressor, para impedir que passageiros utilizem o transporte coletivo sem pagar a tarifa.

Para fazer todas essas análises durante este trabalho, irei me ater mais às questões sociais do que às jurídicas. Considero que a interdisciplinaridade é muito importante ao se analisar a sociedade. Ademais, como é ensinado nas aulas de Introdução ao Estudo do Direito, a sociedade vai evoluindo e o Direito vai atrás, tentando resolver problemas já existentes, visto que o Direito não é capaz de evitá-los por ser tardio. Desse modo, espero que este trabalho seja acessível para outras áreas de estudos, não se restringindo ao curso de Direito.

2 O transporte como um direito social meio

2.1 O transporte como garantia do direito de ir e vir e da mobilidade urbana

O crescimento das cidades e sua urbanização gerou segregação territorial. A ocupação do solo passou a ser determinada pelo poder aquisitivo de seus habitantes, o que fez com que as classes mais baixas não tivessem escolha a não ser morar nas periferias. Os equipamentos de infraestrutura ficaram concentrados nas regiões centrais das cidades, assim como os locais de trabalho.

Essa segregação fez com que a classe trabalhadora morasse longe de seus empregos. Ao mesmo tempo, com a expansão das cidades, andar a pé ou em veículos não motorizados movidos a tração animal não mais bastava para suprir suas necessidades de deslocamento. Portanto, o transporte coletivo passou a ser essencial para garantir a mobilidade urbana da população.

Desse modo, hoje em dia, o direito de ir e vir, garantido constitucionalmente através do art. 5º, XV, da Constituição Federal, está intrinsecamente ligado à mobilidade urbana e à efetivação do direito à cidade[49]. Não se pode dizer que o direito de ir e vir limita-se a qualquer pessoa poder andar a pé para onde quiser. Assim, “o transporte coletivo urbano torna-se uma necessidade para a realização da vida das pessoas. É através do transporte coletivo que elas conseguem ter acesso ao trabalho, às escolas, às universidades, aos hospitais, aos centros de cultura e de lazer” (BARROS, 2015, p. 68).

“A mobilidade é, sem dúvida, o elemento balizador do desenvolvimento urbano. Proporcionar uma adequada mobilidade para todas as classes sociais constitui uma ação essencial no processo de desenvolvimento econômico e social das cidades” (FERRAZ; TORRES, 2004, p. 1). Contudo, assim como a expansão das cidades não foi planejada, também não se pensou em um modelo efetivo de mobilidade urbana, que suprisse a demanda dos usuários do transporte coletivo.

Desde meados do século XIX, já havia bondes no Brasil. Mas sua implementação mais massificada foi iniciada apenas no início do século XX, com o aumento da malha ferroviária. No entanto, a partir da década de 1920, os bondes começaram a concorrer com os ônibus, visto que aqueles não conseguiam mais atender as necessidades da população dos novos bairros que estavam surgindo com a expansão das cidades (VASCONCELLOS, 2012, p. 25). Desde então, o Estado brasileiro passou a investir mais nas rodovias e na indústria automobilística, de modo que, em 1968, o sistema de transporte por bondes foi extinto na cidade de São Paulo.

A escolha das rodovias em detrimento das ferrovias trouxe diversas consequências. Priorizou-se uma maior quantidade de veículos em circulação, dado que, enquanto o trem pode transportar centenas de usuários em apenas uma viagem, os ônibus e veículos particulares transportam bem menos pessoas. Há também a diferença de custo: enquanto a implementação de uma ferrovia é mais cara, sua manutenção é muito mais barata que a de uma rodovia, o que faz com que, a longo prazo, uma rodovia demande muito mais recursos. Ademais, há o fator ambiental: a ampla maioria dos veículos automotores são movidos a combustíveis fósseis, que são muito poluentes e prejudicam a saúde da população.

Outro ponto crucial para se entender a mobilidade urbana do Brasil foi a opção feita pelo governo brasileiro em priorizar o transporte individual em detrimento do coletivo. O Estado, ao invés de investir no transporte coletivo, a fim de oferecer um transporte de qualidade que, inclusive, atraísse cada vez mais usuários por ser mais vantajoso do que ter seu próprio veículo, privilegiou o transporte individual, através, por exemplo, de incentivos fiscais. A partir de 1990, com uma política que visava atrair indústrias automobilísticas para o Brasil, a capacidade de produção de automóveis e motocicletas mais que triplicou (CARVALHO, 2016, p. 14).

Sem investimento, o transporte coletivo se torna cada vez mais precário, o que faz com que as pessoas que têm condições financeiras de adquirirem um carro, mesmo que simples, ou uma motocicleta, optem por utilizar o transporte individual ao invés do coletivo. Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho (2016, p. 15) afirma que os “gastos com transporte privado sobem exponencialmente à medida que a renda [familiar] aumenta”.

Outro fator que estimulou a aquisição de automóveis foi a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) ocorrida entre 2012 e 2014, período em que o governo deixou de arrecadar 11 bilhões de reais em IPI (ZERO HORA, 2015). Isso fez com que a frota de veículos particulares circulando diariamente nas cidades aumentasse cada vez mais, gerando grandes congestionamentos, o que reflete diretamente na mobilidade urbana.

Um meio de transporte alternativo são as bicicletas. Enquanto que, para as classes com um maior poder aquisitivo, elas representam um elemento de lazer, para as classes mais baixas, elas são um meio de transporte cotidiano. O investimento inicial em uma bicicleta é elevado para pessoas de baixa renda. Contudo, a médio prazo, devido ao elevado custo da passagem do transporte coletivo, ela se torna uma alternativa economicamente mais acessível.

No entanto, nem todas as cidades são propícias para se deslocar de bicicleta. É importante que o Estado invista na construção de ciclovias e/ou ciclofaixas para garantir a segurança dos ciclistas. Além disso, em locais com muitos acidentes geográficos, é necessário um grande preparo físico para realizar grandes deslocamentos e uma bicicleta com marcha, que tem um custo maior, o que dificulta sua aquisição. As cidades ideais para se locomover de bicicletas são as planas, que é o caso de Fortaleza. Entretanto, seu clima sempre excessivamente quente prejudica os ciclistas, pois eles ficam sujeitos à insolação e desidratação.

Quem não consegue ter seu próprio automóvel ou sua própria bicicleta não tem escolha senão enfrentar, diariamente, ônibus, trens, metrôs e barcas[50] lotados e desconfortáveis, como se fossem sardinhas enlatadas, isso tudo após um longo período de espera, muitas vezes expostos a um sol escaldante, à chuva ou ao frio, já que muitas paradas não possuem abrigo.

Tudo isso se deve ao fato de que quem controla o sistema de transporte coletivo são empresas privadas, que visam aumentar cada vez mais seu lucro. Assim, elas investirão apenas o mínimo necessário para que a estrutura do transporte coletivo continue funcionando. Isso significa que haverá poucos ônibus em circulação, aumentando sua lotação e o tempo de espera dos usuários; o aperto aumenta o assédio sexual sofrido pelas mulheres[51]; os veículos não receberão manutenção adequada e os funcionários das empresas possuirão salários defasados a fim dos empresários conterem gastos.

O transporte coletivo é tratado como uma mercadoria, e não como um direito. Assim, são os empresários que definem quantos ônibus circularão, quantas linhas de ônibus existirão, qual trajeto eles farão, qual seu horário de funcionamento[52], onde serão as paradas, qual o valor da tarifa e quem terá direito à gratuidade, a partir de uma visão puramente mercadológica.

Se o financiamento do transporte coletivo for proporcional à quantidade de passageiros transportados, uma pequena comunidade na periferia da cidade provavelmente não será servida por transporte coletivo, pois o número de passageiros não cobrirá os gastos com o combustível. Da mesma forma, se o financiamento do transporte coletivo for proporcional à quantidade de quilômetros rodados, as linhas que circulam apenas dentro dos bairros, ou aquelas que levam passageiros dos bairros para os terminais de integração, contarão com poucos transportes, mesmo que com uma grande demanda, pois o que importa para os empresários é a geração de lucros, e não as necessidades das pessoas. (BARROS, 2015, p. 86).

A principal fonte de financiamento do sistema de transporte coletivo é a tarifa (SANT’ANNA; LIMA apud MANOLO, 2007). “Nas cidades brasileiras, a operação dos serviços de transporte público por ônibus é (com raras exceções) integralmente financiada pelas tarifas” (GOMIDE, 2003, p. 28). Elas são uma forma de exclusão que impossibilita a mobilidade urbana. Quando a tarifa aumenta, menos pessoas conseguem pagá-la e ter acesso ao transporte coletivo. Quanto menos pessoas usam o transporte coletivo, há menos dinheiro sendo arrecadado pelos empresários. Como eles não abrirão mão do seu lucro, ocorre um novo aumento da tarifa. Essa lógica é insustentável e exclui cada vez mais pessoas do transporte coletivo. Atualmente, cerca de 37 milhões de pessoas são excluídas do transporte coletivo por não conseguirem pagar a tarifa (IBGE apud MPL JOINVILLE, 2017).

As catracas do transporte são uma barreira física que discrimina, segundo o critério da concentração de renda, aqueles que podem circular pela cidade daqueles condenados à exclusão urbana. Para a maior parte da população explorada nos ônibus, o dinheiro para a condução não é suficiente para pagar mais do que as viagens entre a casa, na periferia, e o trabalho, no centro: a circulação do trabalhador é limitada, portanto, à sua condição de mercadoria, de força de trabalho. (MPL SÃO PAULO, 2013, p. 15).

O tratamento mercadológico do transporte coletivo faz com que, mesmo quando a população organiza manifestações e pressiona o governo para que a tarifa não seja aumentada, os empresários consigam manter seu lucro de outras formas:

[…] vendo-se numa situação onde é difícil ou mesmo impossível exigir da prefeitura que aumente a tarifa, há várias possibilidades para que mantenham sua margem de lucro: reduzem gastos com manutenção dos veículos (o que aumenta a ocorrência de quebras de veículos); reduzem a frota em circulação (o que aumenta o tempo de espera do passageiro nos pontos e também o Índice de Passageiros por Kilômetro – IPK); não compram ônibus novos (o que aumenta a idade da frota, com os evidentes problemas de se usar veículos envelhecidos) (MORALES, 2000). Além disso, impedem a recomposição da renda dos rodoviários contra a inflação, mantendo seus salários nos mesmos níveis por períodos cada vez maiores ou concedendo-lhes aumentos irrisórios; e, como último recurso, demitem funcionários. Chegam a reduzir o espaço entre os bancos dos ônibus para transportar mais passageiros por veículo, como denunciado por um leitor no jornal A Tarde de 26 de agosto de 2003 – com evidente incômodo para passageiros altos, gordos ou que portem algum volume, como uma sacola ou mochila. (MANOLO, 2007).

O transporte coletivo não pode ser tratado como mercadoria. Ele é um direito social, que agora está positivado constitucionalmente por meio da Emenda Constitucional nº 90/2015 e que deve ser assegurado pelo Estado. Afinal, sem transporte não há mobilidade urbana, o que impede o acesso a diversos outros direitos, como será visto no tópico seguinte.

2.2 A necessidade do transporte para acessar outros direitos sociais

A Constituição Federal prevê a existência de diversos direitos sociais, dentre eles a educação, a saúde, o trabalho e o lazer. A não ser que o cidadão more em um bairro bem provido de equipamentos de infraestrutura, que é o caso apenas das regiões mais centrais das cidades, onde moram as pessoas com maior poder aquisitivo, e perto de onde trabalha e/ou estuda, não será suficiente ele se deslocar a pé para alcançar esses equipamentos ou outros lugares aonde queira ir e efetivar seus direitos. Dessa maneira, ele terá que recorrer ao transporte, seja coletivo ou individual.

Assim, o transporte pode ser caracterizado como um direito meio, necessário para “atingir os objetivos constitucionalmente consagrados do Estado brasileiro (art. 1º, III, art. 3º, III, CF)”[53] (OLIVEIRA, 2011, p. 66). Sem ele, outros direitos são cerceados:

[…] assumiu-se o discurso do transporte como direito, aliás fundamental para a efetivação de outros direitos, na medida em que garante o acesso aos demais serviços públicos. O transporte é entendido então como uma questão transversal a diversas outras pautas urbanas. Tal constatação amplia o trabalho do MPL, que deixa de se limitar às escolas, para adentrar em bairros, comunidades e ocupações, numa estratégia de aliança com outros movimentos sociais – de moradia, cultura e saúde, entre outros. (MPL SÃO PAULO, 2013, p. 16).

Entretanto, como visto no tópico anterior, o direito ao transporte é constantemente violado. O sistema de transporte coletivo é precário e excludente por conta da tarifa.

Há um aspecto preocupante em relação às tarifas do transporte público no Brasil: os reajustes têm superado a variação da inflação. Entre 1995 e 2002, os bilhetes nas maiores capitais brasileiras aumentaram 25% em termos reais, ou seja, acima da inflação. Isto provoca a exclusão dos mais pobres, com graves consequências em sua mobilidade. (VASCONCELLOS, 2012, p. 89).

Dessa forma, ao impedir o acesso ao direito ao transporte, impossibilita-se o acesso a diversos outros direitos. A omissão do Estado e a violação de direitos que ele gera são múltiplas, o que impede que a população consiga acessar hospitais, escolas, equipamentos de lazer, etc.

Segundo Eduardo Alcântara de Vasconcellos (2012, p. 49), há três fatores que interferem na mobilidade dos indivíduos: “os fatores pessoais, como condição física e financeira; familiares, como a cultura local e o ciclo de vida pessoal; e externos, como a oferta de meios de transporte”. Aspectos como a idade das pessoas (crianças e idosos geralmente não andam desacompanhadas), se elas trabalham ou estudam (o que faz com que tenham que se deslocar mais que as demais), acessibilidade para pessoas com deficiência e custo do transporte são elementos que influenciam a decisão da população sobre como irão se locomover pela cidade. Este trabalho focará no fator financeiro e na despesa que a tarifa representa.

Alexandre de Ávila Gomide (2006, p. 242) afirma que “as populações de baixa renda das grandes metrópoles brasileiras estão sendo privadas do acesso aos serviços de transporte coletivo, um serviço público de caráter essencial, conforme a Constituição Federal de 1988” e que

A inexistência ou a precariedade na oferta dos serviços e as altas tarifas do transporte público, por exemplo, restringem as oportunidades de trabalho dos mais pobres (na procura de emprego ou no deslocamento ao local de trabalho), condicionam as escolhas do local de moradia, e dificultam o acesso aos serviços de saúde, educação e lazer. (GOMIDE, 2003, p. 10).

Devido ao elevado custo da tarifa, e mais ainda de se manter um automóvel particular, a renda familiar está diretamente ligada a como as pessoas dessa família se deslocam. Quanto menor a renda, menor a utilização de veículos motorizados e maior a porcentagem da renda familiar que é gasta pagando passagem. “Se a família é de baixa renda, os poucos recursos são utilizados para pagar o transporte coletivo. […] Se a família é de classe média com um automóvel, a decisão de usar o carro vai depender do preço do combustível e do estacionamento” (VASCONCELLOS, 2012, p. 51). Alexandre de Ávila Gomide acrescenta que

[…] o número de deslocamentos motorizados das famílias de renda mais alta é cerca de cinco vezes superior às de menor renda. Tais disparidades sugerem menor acessibilidade urbana entre os mais pobres, já que o raio de alcance físico dos equipamentos sociais e oportunidades de trabalho fica restrito à sua capacidade diária de caminhada. (GOMIDE, 2006, p. 243).

O formato da família (quantidade de filhos, idade das pessoas[54], se trabalham ou não, se possuem alguma deficiência[55], etc.) é outro fator que interfere nos gastos com transporte. “Famílias com filhos são mais atingidas pelo aumento dos transportes e outros custos ligados à reprodução do trabalho, pois para cada salário há um tanto a mais de custos com crianças em idade escolar, quando estão na escola e não trabalhando, e o custo com transporte multiplica-se com o número de filhos” (MANOLO, s.d., p. 7).

O gênero também influencia no deslocamento pela cidade. As mulheres, que muitas vezes são chefes de família e devem dar conta de trabalhar e cuidar dos filhos e da casa sozinhas, possuem necessidades de locomoção diferentes, tendo, na maioria das vezes, que fazer mais viagens e, portanto, gastar mais com passagem.

Além de terem menos oportunidades de trabalho e menores rendimentos, se comparadas aos homens, as mulheres chefes-de-família possuem padrões de mobilidade diferentes. Por conciliar o trabalho com outras atividades, como tomar conta das crianças (levar e buscar para escola ou creche), as mulheres fazem mais viagens, porém mais curtas, e em horários e itinerários distintos. […] As mulheres utilizam com mais intensidade o modo coletivo e andam mais a pé. Muitas mulheres que têm como ocupação principal o trabalho doméstico têm de fazer mais de duas viagens por dia e, por isso, vêem limitadas suas oportunidades de trabalho, pois têm de pagar mais de duas tarifas. (GOMIDE, 2003, p. 26).

Percebe-se, portanto, que

A atual oferta de serviços muitas vezes não atende às necessidades dessas mulheres. Isso reforça a necessidade de redimensionamento da rede de serviços, com criação de horários, itinerários e serviços diferenciados, levando-se em conta os novos padrões de mobilidade e as necessidades impostas pelas permanentes transformações sociais e do mercado de trabalho. (GOMIDE, 2003, p. 26-27).

Para ilustrar o impacto financeiro do custo da tarifa, imagine-se um mês com 30 dias, sendo que 8 deles representam os fins de semana. Em Fortaleza, onde, atualmente, a passagem custa R$ 3,40 e a meia estudantil custa R$ 1,50, para um estudante da Universidade Federal do Ceará (UFC) que recebe uma bolsa mensal de R$ 400,00[56], supondo que ele apenas pague 2 passagens por dia, de segunda a sexta, isso representa um gasto mensal de R$ 66,00, que equivale a 16,5% de sua bolsa. Isso ao se supor que esse estudante vai para a faculdade apenas uma vez ao dia, o que não é a realidade da maioria deles, pois muitos têm aulas em mais de um período e, quando têm apenas em um, possuem atividades extras em outros. A fim de economizar o valor da passagem, muitos estudantes não veem alternativa senão fazer todas as suas refeições no restaurante universitário (RU) ao invés de comer em casa. Elas custam R$ 1,10 cada (almoço ou jantar)[57], o que faz com que os estudantes gastem R$ 48,40 por mês em alimentação, o que corresponde a 12,1% de suas bolsas. Assim, apenas com transporte e alimentação (partindo do pressuposto que os estudantes fazem apenas 2 viagens por dia e almoçam e jantam no RU, sem contabilizar eventuais lanches ou deslocamentos extras), eles gastam R$ 114,40 reais por mês, o que representa 28,6% de suas bolsas, restando apenas R$ 285,60 para despesas com livros, xérox, materiais escolares, atividades de lazer, cultura, outros deslocamentos, etc., a partir de uma situação hipotética de gastos mínimos, sendo que se sabe que, muitas vezes, não representa a realidade.

Já para um trabalhador que ganha um salário mínimo, que, hoje em dia, é R$ 954,00, e que trabalha 44 horas semanais (8 horas de segunda a sexta e 4 horas aos sábados), em Fortaleza, ele gasta R$ 176,80 por mês pagando passagem, o que constitui 18,53% de seu salário. Para os trabalhadores com carteira assinada, a lei do vale-transporte (lei nº 7.418/1985) prevê, em seu art. 4º, parágrafo único, que, quando o empregador fornece vale-transporte ao empregado, esse arcará com 6% dos custos, que, na situação apresentada, corresponderia a R$ 10,60. Todavia, sabe-se que uma grande parcela dos trabalhadores se encontra no mercado de trabalho informal, sem carteira assinada e sem seus direitos trabalhistas e previdenciários assegurados.

A partir dessas simulações, percebe-se como a tarifa é uma despesa muito onerosa na renda mensal das famílias. Dessa forma, como o transporte é necessário para se acessar outros direitos, as pessoas que não têm condições financeiras para pagar a tarifa, ou que têm apenas para realizar deslocamentos essenciais, como ir ao trabalho e ao hospital, têm seus direitos amplamente violados.

O direito social mais afetado pela tarifa é o lazer, pois sempre será priorizado o trabalho, a educação e a saúde. O lazer é essencial para uma boa saúde psicológica. No entanto, ela sempre será preterida em detrimento de gastos com alimentação e moradia. A distribuição pela cidade de equipamentos de recreação também influi na não efetivação do direito ao lazer, pois a maioria deles está localizada em regiões centralizadas, distantes das periferias, de modo que apenas através do transporte e do pagamento da tarifa as classes mais baixas conseguem chegar a esses locais.

Há três motivos principais para a redução dos deslocamentos com finalidade de lazer nos finais de semana. Primeiro, muitos desses deslocamentos precisam ser feitos pela família, em grupo, o que, diante das altas tarifas do transporte coletivo, implica gastos incompatíveis com o orçamento doméstico. Segundo, a oferta de serviços costuma cair drasticamente nos fins de semana, o que acarreta tempos de espera muito longos. Por fim, como são mantidos os itinerários dos dias úteis e os destinos dos deslocamentos mudam substancialmente nos fins de semana, as pessoas precisam usar mais de um modo de transporte ou completar as viagens com extensos percursos a pé. (ITRANS, 2004, p. 23).

Desse modo, fica nítido que a tarifa impede que diversas pessoas consigam ter acesso ao transporte coletivo, o que impossibilita a locomoção pela cidade. Assim, a população não consegue alcançar os equipamentos de infraestrutura e tem, portanto, seus direitos sociais e seu direito à cidade infringidos.

3 O Estado e o direito ao transporte

3.1 A falta de políticas públicas que garantam o acesso ao direito ao transporte

A tarifa dos transportes coletivos possui um alto custo, o que exclui diversas pessoas do acesso ao direito ao transporte e, consequentemente, a diversos outros direitos. Para mitigar essas violações de direitos, o governo estabelece diversas políticas públicas. Contudo, como será visto, elas são deficitárias e insuficientes.

Segundo Elenaldo Celso Teixeira (2002, p. 2-3), políticas públicas

[…] são diretrizes, princípios norteadores de ação do poder público; regras e procedimentos para as relações entre poder público e sociedade, mediações entre atores da sociedade e do Estado. […] As políticas públicas visam responder a demandas, principalmente dos setores marginalizados da sociedade, considerados como vulneráveis. Essas demandas são interpretadas por aqueles que ocupam o poder, mas influenciadas por uma agenda que se cria na sociedade civil através da pressão e mobilização social. Visam ampliar e efetivar direitos de cidadania, também gestados nas lutas sociais e que passam a ser reconhecidos institucionalmente.

Passar-se-á à análise de diferentes políticas públicas para o transporte coletivo e a mobilidade urbana, com enfoque na realidade fortalezense.

O sistema de integração tarifária é a política pública mais comum nas cidades brasileiras. Ela pode ocorrer através do bilhete único, que permite que o passageiro pegue diversos ônibus pagando apenas uma tarifa em um determinado intervalo de tempo, ou através da integração física nos terminais, onde passam diversas linhas de ônibus e o usuário pode descer de um veículo e entrar em outro sem ter que pagar uma nova tarifa. Em algumas cidades essa integração também ocorre entre modais diferentes (ex.: entre ônibus e metrô).

O intervalo de tempo em que é possível fazer integração costuma variar de 30 minutos (como em São Luís e Porto Alegre) ou 40 minutos (o que ocorre em João Pessoa) até 2 horas (que é o caso de Fortaleza) ou 3 horas (como em São Paulo). A quantidade de integrações pode ser ilimitada (o que ocorre em Fortaleza) ou limitada a, por exemplo, até 4 viagens em São Paulo. Em alguns locais, a integração ocorre somente se for no mesmo sentido (ex.: do bairro para o centro da cidade), como em São Luís.

O principal objetivo da integração tarifária é promover justiça social no sistema de transporte público, eliminando as discriminações geográficas, pois qualquer que seja o local onde o usuário mora, ele pode ir ao local de trabalho, estudo, lazer, etc., pagando uma única passagem. […] A integração tarifária também atua no sentido de democratizar o espaço urbano, pois com a possibilidade de deslocamento entre quaisquer pontos da cidade com o pagamento do valor correspondente ao valor de uma única passagem […] aumentam as oportunidades de trabalho, estudo, compras, lazer, etc. (FERRAZ; TORRES, 2004, p. 127).

No entanto, é importante destacar que, na maioria das cidades, a integração não contempla a região metropolitana. Desse modo, seus habitantes, que costumam ser as classes mais desprivilegiadas socioeconomicamente, são quem mais devem despender pagando elevadas tarifas para chegar aos centros urbanos, onde geralmente estão localizados a maioria dos locais de trabalho da população.

Em algumas cidades, há um sistema de integração de bicicletas. Em Fortaleza, que é uma cidade propícia para se locomover de bicicleta, há esse sistema, chamado Bicicletar. Ele funciona da seguinte maneira: o usuário deve retirar uma bicicleta em alguma das estações e possui 1 hora para se deslocar até outra estação e entregar a bicicleta. Se ele ultrapassa o tempo limite de 1 hora, deve pagar uma taxa. Quem possui o cartão do bilhete único do transporte coletivo não precisa pagar para utilizar essas bicicletas, que custam R$ 5,00 por dia, R$ 10,00 por mês ou R$ 60,00 por ano[58]. Entretanto, devido à possibilidade de atraso e de ter que pagar essa taxa, o usuário só consegue se cadastrar no sistema se tiver um cartão de crédito. Isso representa uma barreira muito grande para o acesso da maioria da população, que não possui cartão de crédito, ou que possui, mas devido ao baixo limite de crédito, a operadora do cartão não aceita a vinculação ao sistema do Bicicletar. Outro elemento importante a ser analisado é a localização das estações das bicicletas, que se encontram apenas em regiões centrais da cidade, impedindo o acesso das classes mais baixas que moram nas periferias.

Outra política pública é o vale-transporte, que foi criado em 1985 a fim de suavizar o impacto da elevação constante das tarifas. Os trabalhadores “pagam no máximo 6% da sua renda com o transporte (o restante é pago pelo empregador), mas a maior parte dos usuários permaneceu sem proteção, pelo fato de serem trabalhadores autônomos, sem direito ao benefício” (VASCONCELLOS, 2016, p. 62). Assim, a atuação do Estado se mostra, novamente, ineficaz.

Há também a meia-passagem para estudantes. Em Fortaleza, os estudantes podem realizar quantas viagens quiserem pagando meia-passagem. Todavia, há cidades em que há um limite de viagens que o aluno tem direito a pagar metade da tarifa. Muitas vezes essa cota estudantil se restringe a 50 passagens mensais, como se quem estuda se deslocasse apenas para ir e voltar da escola e fizesse isso apenas uma vez por dia. Além disso, em algumas cidades, não há cotas de meia-passagem nos meses de férias escolares, quais sejam, janeiro, julho e dezembro, o que reforça o caráter da meia estudantil ser apenas para o estudante se descolar entre sua casa e sua escola. Limitar a meia passagem estudantil restringe a mobilidade urbana de quem estuda e impede que essas pessoas consigam ter seu direito à cidade efetivado.

Pessoas idosas e com deficiência, como já exposto, têm direito à gratuidade do transporte coletivo. Contudo, devido à falta de acessibilidade das cidades, elas têm esse direito restringido.

[Idosos] têm dificuldades físicas de adentrar veículos, em função da falta de degraus adequados e da superlotação. […] No caso da caminhada, os idosos enfrentam obstáculos, tanto por limitações físicas pessoais quanto pela falta de adaptação de vias e calçadas às suas necessidades. […] Um problema muito sério relacionado à caminhada é o intervalo dado para a travessia das vias, quando os tempos de sinal verde são muito curtos para garantir uma travessia segura e confortável. As pessoas com deficiência têm todas as dificuldades para circular, uma vez que o ambiente de trânsito nunca foi preparado para acomodá-los. Estas pessoas vivem a soma dos problemas e dificuldades das demais pessoas, além de os seus próprios problemas. A raiz do problema está tanto nos limites físicos e mentais, quanto nos limites políticos, referentes a não ter suas particularidades reconhecidas pela sociedade. (VASCONCELLOS, 2012, p. 57).

Isso faz com que as pessoas idosas e com deficiência evitem ao máximo sair de suas casas, a fim de não terem que enfrentar todos esses transtornos causados pela ausência de cidades planejadas para garantir a acessibilidade para pessoas com dificuldades de locomoção.

A gratuidade para determinadas categorias, como os idosos e as pessoas com deficiência, representa uma importante conquista. Entretanto, é necessário analisar o impacto econômico dessas gratuidades. Os empresários jamais abrirão mão de seus lucros. Dessa maneira, quem terá que arcar com as tarifas que eles estão deixando de receber são os demais usuários que continuam pagando pela passagem, o que faz com que o preço da tarifa aumente cada vez mais.

É por isso que a autora deste trabalho não defende o passe livre apenas para estudantes e desempregados, pois, nessa situação, quem terá que suportar o ônus dessas gratuidades serão os usuários que continuarão pagando. Ela defende a tarifa zero para toda a população, garantindo, assim, de forma efetiva, o acesso ao direito ao transporte. E isso totalmente possível, tanto que já é uma realidade.

De acordo com o site Fare Free Public Transport, há 132 cidades no mundo com tarifa zero[59]. Dentre elas, 13 estão no Brasil, quais sejam: Itatiaiuçu – MG, Eusébio – CE, Anicuns – GO, Maricá – RJ, Silva Jardim – RJ, Monte Carmelo – MG, Potirendaba – SP, Paulínia – SP, Muzambinho – MG, Pitanga – PR, Ivaiporã – PR, Porto Real – RJ e Agudos – SP.

João Alexandre Peschanski (2013, p. 62) afirma que “o real obstáculo para a propositura da tarifa zero diz respeito às relações de poder no capitalismo” e explica que

As montadoras têm, evidentemente, interesse em manter a sociedade dependente dos carros que fabricam. Para garantir seus lucros, precisam manter essa dependência e investem para pressionar os governos locais e federal de forma a preservar seu controle sobre o sistema de transporte. No Brasil, têm alta capacidade de pressão, pois contam com políticos aliados em posições-chave, na Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados, e potencial chantagem sobre o governo, ameaçando demitir trabalhadores se seus interesses não forem atendidos. (PESCHANSKI, 2013, p. 62).

A tarifa representa uma grande barreira que exclui a população do transporte coletivo. Ao contrário dos sistemas de saúde, em que existe o Sistema Único de Saúde (SUS), que atende qualquer pessoa gratuitamente, até mesmo estrangeiros, e o de educação, que oferece escolas públicas até o final do Ensino Médio para qualquer pessoa, no transporte, se a pessoa não possui dinheiro o suficiente para pagar o valor da tarifa, ela simplesmente é impedida de utilizar o transporte coletivo, o que representa uma notória violação ao direito ao transporte.

Ademais, como o sistema de transporte coletivo é controlado por empresas privadas, que apenas visam lucro, isso afeta diretamente o valor da passagem, que aumenta cada vez mais. Por isso, defende-se que a administração pública é quem deve gerir o sistema de transporte coletivo, o que representaria uma queda significativa no valor da tarifa, visto que não mais se visaria lucro.

Isso é o que ocorre nos trens da região metropolitana de Porto Alegre, que são controlados pela Trensurb (Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre S.A.), que é “uma sociedade de economia mista, vinculada ao Ministério das Cidades, Governo Federal, que tem por acionistas a União (99,8558%), o Estado do Rio Grande do Sul (0,1116%) e o município de Porto Alegre (0,0326%)” (TRENSURB), ou seja, uma empresa sem capital privado. O transporte é de qualidade e, atualmente, custa R$ 1,70, um preço bem inferior à tarifa dos ônibus porto-alegrenses, que custa R$ 4,30.

É fundamental salientar que as políticas públicas, como quaisquer outras ações governamentais para a população, são conquistas sociais, são vitórias do povo, dos movimentos sociais, que, após se manifestarem e pressionarem o Estado, conseguem a implementação de ações que visam efetivar seus direitos. Não se pode ter a ingenuidade de achar que elas são concessões dos políticos. E, na verdade, essas conquistas ainda são mínimas comparado ao que o Estado deveria fornecer à população para que ela tivesse seus direitos assegurados. Assim, o Estado continua se mostrando omisso e opressor.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Gallup World Poll em 2009, apenas metade da população brasileira está satisfeita com o sistema de transporte coletivo. O Brasil ocupa a 110ª posição, dentre 150 países pesquisados, e “o brasileiro possui um nível de satisfação com transporte público inferior ao de países com a mesma renda” (NERI, 2011, p. 62).

3.2 O impedimento ao acesso ao transporte coletivo através da criminalização

Como visto no tópico anterior, se uma pessoa não se enquadra nas hipóteses de gratuidade do transporte coletivo e ela não tem o dinheiro para pagar a passagem, ela é impedida de utilizar o transporte coletivo, tendo, portanto, seu direito ao transporte violado. Diante dessa situação, quem não tem condições financeiras de pagar a tarifa, mas precisa se deslocar por uma distância que é impraticável percorrer a pé, não vê alternativa senão pular a catraca ou fazer traseira.

Entretanto, de acordo com o art. 176 do Código Penal, tais práticas são crimes:

Art. 176 – Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento.

Pena – detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa,

Parágrafo único – Somente se procede mediante representação, e o juiz pode, conforme as circunstâncias, deixar de aplicar a pena. (BRASIL, 1940)

Ater-se-á à parte final do enunciado do caput do artigo, em razão do objeto deste trabalho ser o transporte.

O Estado, além de ser omisso e descumprir sua obrigação de garantir o acesso ao direito social ao transporte, criminaliza quem tenta acessá-lo de uma forma que seja sem pagar a tarifa. E o próprio art. 176 já faz um recorte socioeconômico em relação a quem será criminalizado: pessoas que não possuem condições financeiras para pagar por tais serviços, ou seja, pessoas de classes baixas, que já têm diversos outros direitos desrespeitados cotidianamente, o que simboliza uma evidente criminalização da pobreza.

Desse modo, é possível perceber um conflito entre a norma penal, que criminaliza quem utiliza o transporte coletivo sem pagar a tarifa, e o princípio da insignificância[60]. De acordo com a Teoria Geral do Direito, quando há uma incompatibilidade entre uma regra e um princípio, este deve prevalecer em detrimento daquele. Ademais, o próprio Código Penal prevê que o estado de necessidade[61] é uma excludente de ilicitude, segundo seu art. 23, I, e o próprio art. 176 afirma que o juiz pode deixar de aplicar sua pena, mas isso vai de encontro à seletividade do sistema penal que é propagada pelo Estado.

Para essas pessoas, que não têm escolha senão pular a catraca ou fazer traseira, tais ações configuram uma reação mínima em relação a um Estado que as oprime, que infringe seus direitos diariamente. São ações diretas[62], que mostram a indignação da população com os sistemas social, político e econômico atuais.

Diante dessa conjuntura de agitação popular, o Estado reage da única maneira que sabe reagir, reprimindo a população por meio da violência. Além de criminalizar quem pula a catraca através da legislação, ele reprime quem utiliza o transporte coletivo sem ter dinheiro para pagar por meio de seu aparato policial. Em Fortaleza, há, inclusive, um aviso dentro dos ônibus informando que pular catraca é crime[63], que tem um claro objetivo de coagir os passageiros.

A polícia, que teoricamente deveria proteger a população e representar segurança, torna-se o agente público mais temido pelo povo. A militarização da polícia faz esse medo aumentar ainda mais. Ela passa a significar repressão, agressão física, morte. Ela é a “força garantidora da ordem” (PEREIRA, 2015, p. 43), que tem como lógica o extermínio do povo negro, pobre e periférico. Prevenção e repressão tornam-se “a mesma coisa, sem nuances, sem disfarces” (BATISTA, 2015, p. 92).

Em pesquisa[64] sobre o transporte coletivo realizada com estudantes secundaristas da rede pública de ensino de Fortaleza, diversos responderam que já foram agredidos fisicamente pela polícia, pelo motorista, pelo cobrador ou pelos seguranças das empresas de ônibus por terem pulado a catraca ou feito traseira. Eles relataram que, quando isso ocorre nos terminais, eles não mais conseguem pegar o ônibus e têm que ir andando até seus destinos. Alguns disseram que foram levados para a delegacia pelo motorista do ônibus, onde também foram agredidos pela polícia. Também contaram que, na região da Beira-Mar[65], há seguranças das empresas de ônibus nas paradas para garantir que ninguém pulará a catraca. Eles mandam todos os passageiros subirem e já irem passando pela catraca, impedindo que alguém fique nos bancos do ônibus presentes antes da catraca, a fim também de coibir que alguém faça traseira. Além disso, esses seguranças mantêm seus rostos cobertos para não serem identificados, pois, caso alguém pule a catraca, eles retiram essa pessoa do ônibus e a agridem.

A ação da polícia comprova o caráter repressor e seletivo do sistema penal. Afinal, as pessoas com elevado poder aquisitivo, que são majoritariamente brancas, costumam cometer os chamados crimes de colarinho branco, nos quais não utilizam violência mas geram um impacto econômico muito maior nos cofres públicos do que deixar de pagar uma passagem, e, mesmo assim, geralmente recebem punições bem mais brandas se comparadas aos crimes patrimoniais mais comuns cometidos pelas classes mais baixas, como furto, roubo e receptação. Na verdade, ninguém deveria ter a obrigação de pagar a passagem para conseguir acessar o sistema de transporte coletivo e ter seu direito ao transporte efetivado.

Também é importante destacar a simbologia do art. 176 do CP. O nome do crime é outras fraudes, ou seja, é um tipo de estelionato. Contudo, o legislador achou necessário criar um tipo penal[66] específico para determinadas condutas, quais sejam, utilizar meio de transporte, comer em um restaurante ou alojar-se em um hotel sem ter recursos para pagar por esses serviços. Dessa maneira, o legislador, além de tipificar o acesso ao direito ao transporte, também tipificou formas de acesso ao direito social à alimentação e à moradia.

Constata-se, portanto, que o Estado, ao invés de garantir a efetivação do direito ao transporte, veda seu acesso através da imputação como crime de condutas como pular a catraca e fazer traseira, criminalizando as classes mais desfavorecidas da sociedade, que não possuem recursos para pagar a passagem dos transportes coletivos. Trata-se de uma tipificação inconstitucional, dado que vai de encontro ao direito social ao transporte garantido  através da Emenda Constitucional nº 90/2015.

4 Conclusão

A partir das análises desenvolvidas até aqui, é possível constatar que o direito ao transporte é imprescindível. A urbanização expandiu os limites das cidades e excluiu as classes baixas das regiões centrais. Fora isso, os equipamentos de infraestrutura e os locais de trabalhos ficaram concentrados nos locais habitados pelas classes com maior poder aquisitivo, o que gerou uma segregação territorial. Assim, andar a pé ou por veículos não motorizados passou a não mais ser suficiente para que a população conseguisse se locomover.

Essa segregação urbana perdura até hoje e faz com que quem tenha que percorrer maiores distâncias para chegar ao trabalho, hospitais, escolas, equipamentos de lazer, etc. seja a população mais pobre. “A desigualdade socioespacial demonstra a existência de classes sociais e as diferentes formas de apropriação da riqueza produzida. Expressa a impossibilidade da maioria dos trabalhadores em apropriar-se de condições adequadas de sobrevivência” (RODRIGUES, 2007, p. 75).

Desse modo, o transporte tornou-se essencial para a efetivação do direito de ir e vir e da mobilidade urbana, além de permitir o acesso a diversos outros direitos sociais a fim de concretizar o direito à cidade. “O sistema de circulação é um elemento essencial na mobilização da força de trabalho, considerando-se a separação física entre os locais de moradia, de trabalho e de realização das atividades necessárias à reprodução” (VASCONCELLOS, 2001, p. 35).

Todavia, o transporte coletivo é de péssima qualidade. Há poucos ônibus circulando, resultando em um longo período de espera e em lotação e desconforto para os passageiros, além de assédio para as mulheres; as linhas de ônibus são pensadas visando apenas levar a mão de obra da periferia para os seus locais de trabalho, então não há linhas que abranjam toda a cidade, limitando a circulação da população; os ônibus não recebem manutenção adequada; muitas paradas não possuem abrigo, fazendo com que os usuários tenham que ficar aguardando o ônibus debaixo de sol, frio ou chuva.

Ademais, a tarifa configura uma barreira que exclui diversas pessoas do acesso ao transporte. Não há transporte gratuito, visto que quem não possui condições financeiras para pagar a tarifa é impedido de utilizar o transporte coletivo, diferentemente, por exemplo, do SUS e das escolas públicas. Assim, devido ao elevado preço da passagem, a população restringe-se a se deslocar apenas para locais imprescindíveis, como ir ao trabalho, ao hospital e à escola. As classes mais baixas não conseguem ir a parques, praças, locais de entretenimento, etc. Isso representa uma evidente violação ao direito à cidade. Portanto,

A luta pelo direito à cidade é luta pelo direito à vida. A construção da utopia do direito à cidade tem como meta transformar o espaço segregado em um espaço em que diminua a opressão, exploração e espoliação, o preconceito de raça, classe, etnia, gênero. Que o espaço segregado produto do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo não continue a ser condição de permanência, mas que se torne condição de mudança. (RODRIGUES, 2007, p. 87).

Como quem controla o sistema de transporte coletivo são empresas privadas, seu principal objetivo é obter lucro. Elas não estão preocupadas em oferecer um serviço de qualidade, e sim apenas investir o mínimo possível para manter a estrutura de transporte coletivo funcionando e lucrar cada vez mais. Isso faz com que a população proteste, reivindicando um transporte coletivo de qualidade e gratuito para todas as pessoas.

A partir das reivindicações e pressão populares, o transporte foi incluído no rol de direitos sociais presente no art. 6º da Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional nº 90/2015. Enquanto direito social, pressupõe ações positivas do Estado a fim de garantir a efetivação do direito ao transporte. Contudo, como exposto, o Estado se mostra omisso, sem realizar políticas públicas eficazes que consigam assegurar o direito ao transporte e o direito à cidade da população.

Ademais, além de impedir o acesso ao transporte por meio de elevadas tarifas, o Estado criminaliza, através do art. 176 do CP, quem tenta acessá-lo por meios alternativos sem pagar a tarifa, isto é, pulando a catraca ou fazendo traseira. Por meio de seu aparato repressor chamado polícia, o Estado prende e agride as pessoas mais desprivilegiadas socioeconomicamente, ou seja, a população negra, pobre e da periferia, que já tem diversos outros direitos desrespeitados cotidianamente.

Diante dessa conjuntura, é necessário que os movimentos sociais se unam para lutar contra a retirada e violação de seus direitos. Somente por meio da luta popular é que os direitos são assegurados. Afinal, o Estado, que é controlado por quem ocupa os poderes executivo, legislativo e judiciário, não está preocupado nem possui interesse em garantir os direitos do povo. Quem detém o poder político e econômico do país quer apenas aumentar seus privilégios.

Assim, o povo deve reivindicar que o controle do transporte coletivo seja retirado da iniciativa privada. Não visar lucro reflete diretamente na qualidade do transporte e no valor da tarifa, como foi comprovado a partir do exemplo dos trens da região metropolitana de Porto Alegre.

Outra reivindicação fundamental é a instituição da tarifa zero para todas as pessoas, dado que, quando apenas parcela dos usuários não paga a passagem, os demais que deverão arcar com esse ônus, pois os empresários nunca abrirão mão de seu lucro.

O programa Tarifa Zero significa uma resposta consistente […] a uma série de problemas urbanos verificados nas cidades brasileiras de hoje em dia. Ao incentivar o uso do transporte coletivo em detrimento do individual, os benefícios gerados são verificados no trânsito das cidades – acarretando menor número de acidentes de trânsito, menores coeficientes de poluição sonora, visual e atmosférica, além de aliviar o comum stress urbano –, no acesso à cidade por parte das classes subalternas – cuja segregação espacial é parcialmente superada, ensejando a superação final da lógica da cidade capitalista, que se dará apenas com a superação da mercantilização do solo e do espaço – e mesmo num contexto geopolítico global, no qual há temas como o efeito estufa e as recentes guerras motivadas pelo controle da produção mundial de petróleo, que estão diretamente relacionadas com a superação da “cultura do automóvel”. A Tarifa Zero visa socializar os custos de um serviço público cujos benefícios são sociais, mas que são suportados atualmente apenas por seus usuários diretos. Ora, pode-se dizer que o empresário também é beneficiado – e talvez seja o maior beneficiado – pelo transporte coletivo, que transporta seus empregados até o local de trabalho, onde lhes será extraída a mais-valia decorrente do processo de produção capitalista. Igualmente, o comércio é beneficiado pelo transporte coletivo, que viabiliza o escoamento de produtos e o deslocamento de consumidores até seus estabelecimentos comerciais, gerando lucros para os seus donos. Trata-se, portanto, de onerar economicamente todos os beneficiados pela prestação do serviço de transporte coletivo, e não apenas os seus usuários diretos, que pertencem justamente à parcela da população com menores condições econômicas de arcar com os custos do sistema. (DIEHL, 2008, p. 64-65).

Por tudo que foi exposto, conclui-se que apenas com a organização da população e dos movimentos sociais, lutando e reivindicando a concretização de seus direitos, é que a realidade social poderá ser modificada. Não se pode esperar que as melhorias partam por livre e espontânea vontade dos governantes e detentores do poder.

Referências

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Apêndice A – Foto

 Fonte: Fotografia da autora, 23 mai. 2017.

Apêndice B – Questionário

Questionário aplicado a estudantes secundaristas da rede pública de ensino de Fortaleza:

  1. Apenas andar a pé é suficiente para suprir suas necessidades cotidianas de deslocamento? (Ex.: ir à escola, hospital, parque, praia, etc.)
  2. Se você responder não para a pergunta anterior, qual meio de transporte você costuma utilizar? Para quais lugares/finalidades (escola, hospital, lazer, trabalho, etc.) você costuma utilizar esse meio de transporte?
  3. Você já deixou de ir a algum lugar por não ter dinheiro para pagar a passagem?
  4. Você já pulou a catraca ou fez traseira por não ter dinheiro para pagar a passagem? Se sim, você já sofreu alguma consequência por causa disso? (Ex.: ser agredido pela polícia ou pelo cobrador, ser levado para a delegacia, etc.)
  5. Caso você nunca tenha sofrido alguma consequência por não ter tido dinheiro para pagar a passagem, você conhece alguma pessoa que já sofreu? Se sim, o que aconteceu com ela?
  6. Você sabia que pular catraca e fazer traseira são crimes (de acordo com o artigo 176 do Código Penal)? O que você acha disso?


As vozes na/da cidade: por uma política urbana contra-hegemônica [67]

The voices in the city: for a counter-hegemonic urban policy

Nathalia Assmann Gonçalves[68]

Resumo: O objetivo do estudo é compreender a dinâmica inerentemente contraditória da política urbana atual através de um marco teórico materialista. Para isso, primeiramente, será analisada a lógica de mercado que atualmente predomina na expansão das cidades, abordando também as consequências dessa idéia de cidade mercadoria, como o caso da gentrificação. Além disso, a fim de conseguir traçar um horizonte mais democrático nas cidades, será discutido as teorias de justiça contemporânea, pois essas, diferentemente da tradição liberal, buscam uma aproximação mais concreta ao pluralismo, ou seja, aceitam que os antagonismos fazem parte das relações humanas. Essas abordagens não fetichizam a compilação legal, isto é, presumem mais opções de ordenamentos através da valorização da prática que transcendem a esfera unicamente legalista. Em razão disso, para termos uma cidade mais inclusiva, que fuja da lógica mercantilista, devemos buscar meios contra hegemônicos de luta, buscando, assim, problematizar e apontar horizontes mais ricos em diversidade.

Palavras chave: Urbanização; mercantilização; gentrificação; diversidade; democracia

 

Abstract:The objective of the study is to understand the inherently contradictory dynamics of current urban politics through a materialistic theoretical framework. In order to do this, the market logic that currently prevails in the expansion of cities will be analyzed, as well as the consequences of this idea of a commodity city, such as the case of gentrification. Moreover, in order to be able to draw a more democratic horizon in the cities, theories of contemporary justice will be discussed, since these, unlike the liberal tradition, seek a more concrete approximation to pluralism, that is, they accept that antagonisms are part of the relations human beings. These approaches do not fetishize the legal compilation, that is, presume more options of ordinances through the valorization of the practice that transcend the solely legalistic sphere. For this reason, in order to have a more inclusive city, which refuses the mercantilist logic, we must seek counter-hegemonic means of struggle, seeking to problematize and point out horizons richer in diversity.

Keywords: Urbanization; commodification; gentrification; diversity; democracy

 1. O avanço da mercantilização no mundo urbano

No modo de produção capitalista, o espaço é utilizado como meio de produção para a geração de mais valia, sendo consumido como um produto e incorporando a lógica de mercado. Isto é, a terra é encarada como um produto, possuindo alto valor de troca e sendo submetida às regras do mercado, sem participação popular ou intervenção pública. Nesse sentido, vivemos em uma sociedade em que o direito de propriedade privada e a sede de lucro do mercado imobiliário se sobrepõem sobre todos os outros tipos de direitos humanos que visam, no mínimo, preservar a dignidade da pessoa humana. Apesar dessa realidade, há inúmeros grupos resistentes de minorias excluídas dessa lógica. A grande busca desses grupos é que os direitos coletivos de determinada categoria politicamente minoritária seja de fato respeitado, como no caso dos trabalhadores, das mulheres, sem terra, negros, indígenas e LGBTQ+. Além dessas minorias políticas carente de atenção por parte do estado, há também no Brasil o movimento dos tem teto (MTST), clamando por um espaço de moradia urbana digna, suas pautas visam a inclusão no lugar que vivem, isto é, lutam por igualdade de direitos na cidade, cuja construção e planejamento foram realizados à revelia da maioria da população, principalmente das minorias excluídas. Isso prova que a cidade é cenário de disputa, sempre haverá quando existir uma discrepância de privilégios entre sujeitos que habitam o mesmo espaço.

Harvey (2014) afirma que até hoje, em pleno século XXI, carecemos de uma consciência  bem definida de nossa tarefa de construir cidades mais acessível a todos e todas, ele propõe uma pertinente reflexão sobre o modo como fomos feitos e refeitos, ao longo da história, por um processo urbano impulsionado por forças sociais poderosas. Saber que estilo de cidade queremos é uma pergunta que não pode ser desvinculada da questão de que tipo de vínculos sociais, relacionamentos com a natureza, estilos de vida, tecnologias e valores estéticos nós almejamos. Frisa-se, o direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos(cidadãs e cidadãos), mudando a cidade. Na medida em que pertencemos a cidade e ela nos pertence, uma relação simbiótica indissociável. Por isso, é um direito coletivo e não individual. A transformação, portanto, depende do exercício de vários poderes coletivos para remodelar os processos de urbanização.

 O geógrafo coloca questionamentos, ainda atuais, dos analistas do século XIX, tais como: essa dramática urbanização contribuiu para o bem-estar humano? Transformou-nos em pessoas melhores ou deixou-nos a esmo em um mundo de anomia e alienação, raiva e frustação? Tornamo-nos meras mônadas lançadas ao sabor das ondas de um ocenao urbano? (HARVEY, 2014)

Diante disso, desde a origem, as cidades surgiram para absorver o excedente de capital produzido, isto é, criação de novos mercados para consumir o excedente acumulado. A urbanização, seja ela da maneira que for (extensiva, intesiva, concentrada, pulverizada) serve como uma engrenagem do sistema, fornecendo a dinâmica necessária para a ‘saúde’ do sistema. Por essa razão é que houve tantos estímulos para a urbanização, pois dessa maneira haveria mais lucro, ou como diria Karl Marx, mais-valia, para os detentores do capital. Portanto, a cidade pode ser considerada o lócus do capitalismo

Analisar essa riquíssima temática é uma tarefa bastante complicada, pois há inúmeros meandros que merecem atenção redobrada pois são determinantes para a compreensão de todo o cenário que nos apresenta. É importante ressaltar que além de todo o arcabouço teórico que existe para essa matéria, devemos ter consciência que são somentes instrumentos que nos auxiliam a interpretar o presente, isto é, a realidade concreta é que nos deve guiar, caso contrário os estudos permanecem em nuvens elucubrativas que em nada, ou muito pouco, modificam o real. Em outras palavras, é a partir da observação do espaço que me circunda, quais as forças que contribuem para a formatação do ambiente que estamos inseridos? qual o caminho que está sendo escolhido? Estamos conscientes que nossas escolhas diárias atingem a coletividade? A resposta é vaga para os questionamentos acima realizados, pois o material que possuímos são a análise do passado e a realidade presente, para o futuro só nos resta suposições e prognósticos.

Nesse sentido, é importante que se entenda desde quando o mercado se apoderou mais fortemente da organização das cidades brasileiras. A história começa a partir de 1980 com o fim do Banco Nacional de Habitação, surgindo, para substituí-lo, o sistema de financiamento imobiliário, colocando novas formas de captação de recursos para o setor imobiliário, reflexo da cultura liberal dos anos 90. Em outras palavras o que ocorreu foi a entrega do financiamento habitacional para o mercado. Isso gerou um aprofundamento da desigualdade socioespacial, pois houve uma homogeneização social das áreas pela regulação do preço da terra. Essa homogeneização acarretou e ainda acarreta, uma forte fragmentação do espaço pois se diminui as áreas comuns de convivência plural e de relação com as diferentes camadas sociais da população. A homogeneização gera o conceito de ‘cada um no seu lugar’ sem trocas, sem misturas, como se cada setor fosse um mundo ordenado a parte, no caso,  áreas para os migrantes, pobres, autóctone e espaços para a classe média. Além disso, há os locais que são os ‘pontos fortes’ de poder, riqueza e a periferia, também hierarquizada dentro da categoria, porém são dominados pelo centro, isto é, precisam dele para viver.[69]

O espaço, devido ao modo de produção capitalista, passou a fazer parte dos circuitos de valorização do capital, seja pela mercantilização da terra ou pelo seu parcelamento ou pela inclusão nos circuitos de circulação do capital financeiro, tornando-se um capital imaginário. O espaço dentro da lógica capitalista é uma questão complexa, pois segundo Lefebvre o espaço não seria o lócus passivo das relações sociais, mas sim ativo gerenciado pela classe hegemônica, pois segundo ele, a burguesia dominante dispõe  de um duplo poder sobre o espaço, pela propriedade privada do solo e por dominar a estratégia do Estado propriamente dita.(BOTELHO,2007)

Se percebe atualmente nas cidades brasileiras uma total anuência do ente estatal para com essa lógica mercantilizadora, as justificativas para a aceitação dessa prática é a falta de recursos, sendo necessária a busca de parcerias no setor privado. Essas associações não seriam um problema caso os objetivos não fossem o lucro da empresa investidora. Assim sendo, os locais da cidade passam a ser objeto de especulação imobiliária, passando a ter status de mercadoria. Nesse sentido Marx(1996) explica o que seria o valor de troca

O valor de troca aparece como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de uma espécie se trocam contra valores de uso de outras espécie, uma relação que muda constantemente no tempo e no espaço. (O valor de uso se modifica, ora se perdendo ora se valorizando.) O valor de troca parece, portanto, algo casual e puramente relativo; um valor de troca imanente, intrínseco à mercadoria.(MARX, 1996)

Frente a isso, se percebe que o valor de uso da terra urbana está sendo abstraído em relação ao valor de troca, isso retira o caráter social da coisa, sendo substituído por relações meramente mercantis.

Se abstraírmos o seu valor de uso, abstraímos também os componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso. Deixa de ser uma utilidade e passa a ser mercadoria. Todas as suas qualidades sensoriais se apagam. (…) Ou seja, a substância social foi cristalizada em valores mercantis. (MARX, 1996)

Por esse motivo, que os usos dos espaços urbanos também devem ser problematizados, pois esses valores também são afetados pela lógica mercantilizadora exposta ao longo desse capítulo. No próximo tópico trabalharei as intervenções privadas nas cidades e a anuência estatal.

1.1 intervenções, gentrificações, expulsões e remoções urbanas

As intervenções que ocorrem no ambiente urbano são cunhadas de revitalizações, esse termo abstrato oculta as diversas violências que ocorrem, tais como: remoções forçadas sem qualquer contrapartida, a exigência de ter status de consumidor, a mudança arbitrária do perfil da localidade, a mudança de rota dos transportes públicos e outras alterações que afetam diretamente a vida dos(as) moradores(as). Muitas dessas intervenções são realizadas sem a participação popular e sem aviso prévio, pois como já levantado anteriormente, a essa é a prática da gestão empresarial das cidades.

Através de uma lente materialista, mais precisamente com a teoria de acumulação primitiva de Rosa Luxemburgo, verificamos que as revitalizações podem ser consideradas como expansões do sistema capitalista, isto é, ao transformar locais ‘não capitalistas’ em ambientes capitalistas por excelência, aprimorando as relações consumeristas. Luxemburgo, utilizou essa teoria para explicar a lógica da colonização européia em terras latinas, africanas e asiáticas, conforme o trecho:

as vantagens dessa ampliação do mercado foram naturalmente monopolizadas pelo capital; por um lado, aumentaram as fazendas gigantescas que com sua concorrência oprimiam o pequeno fazendeiro; por outro, este se converteu em vítima dos especuladores que lhe compravam os cereais para pressionar o mercado mundial. Reduzido à impotência pelo poder imenso do capital, o fazendeiro se endividou, sintoma típico do declínio da agricultura. (Luxemburgo, 1976, 353)

e conclui o capítulo ‘a luta contra a economia rural’, afirmando o seguinte:

O resultado geral da luta entre o capitalismo e a economia simples de mercado é esse: o capital substitui a economia de mercado simples , depois desta ter substituído a economia natural. Se o capitalismo vive das formações e das estruturas não-capitalistas, vive mais precisamente da ruína dessas estruturas, e, se necessita de um meio não-capitalista para a acumulação, necessita-o basicamente para realizar a acumulação, após tê-lo absorvido. Considerada historicamente, a acumulação capitalista é uma espécie de metabolismo, que se verifica entre os modos de produção capitalista e pré-capitalista. Sem as formações pré-capitalistas, a acumulação não se pode verificar, mas, ao mesmo tempo, ela consiste na desintegração e assimilação delas. Assim, pois, nem a acumualção do capital pode realizar-se sem as estruturas não-capitalistas nem estas podem sequer se manter. A condição vital da acumulação do capital é a dissolução progressiva e contínua das formações pré-capitalistas.(Luxemburgo,1976, p.363).

Diante dessas observações, podemos concluir através desse marco teórico que o sistema só tende a se reproduzir atualmente nas cidades através da conquista pelo capital de novos espaços urbanos. Por esse motivo que as revitalizações podem ser consideradas como uma ação (violenta) de expansão das relações capitalistas, já que envolve remoções e expulsões.

Importante destacar quais são as principais consequências da adoção de uma lógica empresarial na gestão das cidades. Para isso, importante também problematizar a tendência[70] de  legalização em massa de assentamentos informais, principalmente em países da américa latina, como no caso do Peru. Um dos defensores dessa política ‘legalizatória’ é o economista Hernando de Soto, conforme se observa no trecho

As posses são defectivas: casas construídas em terras cujos direitos de propriedade não estão adequadamente registrados, empresas sem constituição legal e sem obrigações definidas, indústrias localizadas onde financistas e investidores não as podem ver. Porque os direitos de propriedade não são adequadamente documentados, esses ativos não podem se transformar de pronto em capital, não podem ser trocados fora dos estreitos círculos locais onde as pessoas se conhecem e confiam umas nas outras, nem servir como garantia a empréstimos e participação em investimentos (Soto,2001, p. 20)

Na obra, é afirmado que assentamentos informais seriam ‘capital morto’, pois vivem na ilegalidade, estando excluídos do mercado financeiro. Dessa maneira a regularização fundiária, frise-se, por si só, colocaria ‘vida’ nesses locais, na medida em que haveria um preço a ser negociado entre interessados e isso contribuiria para o desenvolvimento econômico das cidades latinas. Além disso, durante o livro é colocado vários argumentos sobre as vantagens do título formal, pois dessa maneira, seria facilitado o acesso ao crédito, fomentando assim a economia. Fornece ainda números e cálculos de quanto se valorizaria as terras se houvesse a legalização.

Entretanto, essa idéia se apresenta de maneira muito simplista, pois de nada adianta um título se não forem implementadas políticas públicas que visam melhorar a qualidade de vida das pessoas que ali habitam, na medida em que a dignidade não depende exclusivamente de um papel. Edésio Fernandes (2001) analisando essa teoria, afirma que a ideia é atraente, porquanto singela, e os números, em cifras bilionárias, bastante tentadores. Mas é preciso ter cuidado: a regularização dominial não necessariamente gera a inclusão social, caso a política fundiária não for acompanhada de políticas sociais. Ou seja, não basta aplicar um ‘preço de mercado’ em uma área e titular proprietários, pois o problema da falta de condições de moradia não se resolverão automaticamente.

A lógica por detrás desse pensamento é a do mercado, pois alude à idéia de que cada pessoa seria uma ‘pequena empresa de si mesmo’, e que o avanço pessoal depende de energias individuais e empenhos empreendedores, infelizmente, a questão se apresenta muito mais complexa, possuindo raízes no modelo socioeconômico capitalista. Além disso, não é garantido que aquelas pessoas que forem titularizadas permanecerão nesses locais. Isto é, o caráter social da legalização pode ser somente uma máscara para encobrir o interesse imobiliário em gentrificar determinada área.

 Essa prática de distribuição de títulos sem o devido acompanhamento de políticas públicas de infraestrutura, somente serve para recrudescer a lógica de mercado e a gentrificação. A tese do autor afirma que para o capitalismo ser bem sucedido nos países de economia periférica, é necessário legalizar as situações ilegais a fim de tornar esses capitais ativos e assim haver circulação, melhorando assim a economia desses países. Entretanto, essa pura entrega de título em regiões mais empobrecidas serve somente para aumentar o fenômeno da gentrificação

 A gentrificação está intimamente ligada à entrega da cidade como um todo ao mercado, em outras palavras, é um processo de transformação ou substituição das paisagens urbanas. Normalmente realizado com parcerias de entes privados em uma localidade já habitada que possui uma dinâmica já consolidada entre os(as) moradores(as). Essa situação, é rápida ou gradativamente substituída por um uma expressão geográfica diferente da outrora, normalmente mais elitizada, expulsando de maneira natural (os próprios moradores do local não se sentem enquadrados nessa nova lógica) ou forçada (onde remoções são realizadas através da força com ou sem contraprestação).

O significado literal da palavra remonta ao termo gentry de origem inglesa que significa de origem nobre, fazendo alusão a uma espécie de “elitização” do espaço urbano.  O termo como hoje se utiliza foi criado pela socióloga germano-britânica Ruth Glass na década de 1960.

O fenômeno da gentrificação pode possuir inúmeras causas e uma diversidade de gentrificadores e gentrificados, isto é, esse processo não necessita para a sua configuração o cumprimento específico de requisitos, mas sim a observação holística da situação concreta. Entretanto, conforme exposto anteriormente, o solo urbano encarado como uma mercadoria, faz com que a valorização e a consequente especulação imobiliária aconteçam ressignificando as relações ali existentes.

O fenômeno da gentrificação pode ser interpretado também como uma política higienista remontando ao período crucial da urbanização brasileira que se deu por volta da década 1970, nessa época a imigração do campo para a cidade atingiu seu máximo grau e as expulsões e desmontamento de ocupações também eram práticas recorrentes nos governos, principalmente nesse período autoritário.

 De qualquer forma, há uma remoção/expulsão da população de baixa renda para os pontos mais afastados, gerando ainda mais segregação urbana. Em outras palavras, as diferentes camadas sociais se excluem também pelo diferente preço cobrado pelo espaço. Nesse sentido, é interessante para o mercado a existência de locais péssimos em infraestruturas, localização e acessibilidade, pois assim, pelo método comparativo, se valoriza (ainda mais) as áreas bem localizadas, dotadas de sólidas infra estruturas, facilitando a fixação dos preços. Essa lógica, por sua vez, incentiva a urbanização extensiva, pois quem não pode pagar acaba sendo empurrado para as franjas urbanas, carentes em infra estrutura. Esses três fenômenos (fragmentação, homogeneização e hierarquização) surge, segundo Lefevre a anticidade, pois gera um mundo de dificuldades, obstáculos para aqueles que não ‘pertencem’ a essa lógica. Nesse sentido, no próximo ponto se buscará analisar esses intrínsecos debates e disputas por reconhecimento  nas diversas lutas coletivas de grupos politicamente minoritários, isto é, será problematizado a questão política analisado sob a perspectiva da diversidade

  1. A disputa por espaços urbanos mais democráticos

Chantal reconhece que toda identidade se constrói através das diferenças, a condição de existência de toda identidade é a afirmação de uma diferença, a determinação de um outro que servirá de exterior, permite compreender a permanência do antagonismo e as suas condições de emergência. No domínio das identificações coletivas, que se trata da criação de um ‘nós’ pela delimitação de ‘eles’, sempre existe a possibilidade de que essa relação nós/eles se transforme em uma relação de amigo/inimigo, isto é, que se converta em um antagonismo. Isso se produz quando se começa a perceber o outro, a que até aqui se considerava uma simples maneira da diferença, como negação da nossa identidade e como questionamento da nossa existência. A vida política nunca poderá dispensar o antagonismo, pois assim se descobre a ação pública e a formação de identidades coletivas. Isso tende a constituir um ‘nós’ em um contexto de diversidade e conflito. Para se construir esse ‘nós’ é preciso se distinguir ‘deles’. Por isso a questão decisiva de uma política democrática não reside em se chegar a um consenso sem exclusão- pois envolveria a criação de um ‘nós’ que não possuísse um ‘eles’, mas em chegar a estabelecer a discriminação ‘nós’ e ‘eles’ de tal modo que se mostre compatível com o pluralismo (MOUFFE, 1999).

Importante destacar que o vazio ideológico, a imparcialidade, neutralidade e o tecnicismo muitas vezes encarado como ‘o correto’ podem, por diversas vezes, acobertar justificativas que atentam e reforçam  a idéia de opressão de grupos políticos minoritários, isto é, concernentes a classe, raça e gênero. A democracia não somente está em perigo quando há um déficit de consenso sobre as suas instituições e de adesão aos valores que representa, mas também quando a sua dinâmica agonística se vê obstaculizada por um consenso aparentemente sem resquício, isto é, encarados como verdades universais irrefutáveis.

Por essa razão que a democracia não deve ser encarada, em qualquer hipótese, como algo natural e evidente ou como o resultado de uma evolução moral da humanidade. É importante reconhecer o seu caráter improvável e incerto. Deve-se se atentar para o caráter extremamente frágil da democracia, já que algo nunca é definitivamente adquirido, pois não existe “umbral de democracia” (MOUFFE, 1999) que, uma vez alcançado, tem sempre garantida a sua permanência. Esse raciocínio leva também a conclusão de que as garantias e direitos devem ser constantemente renovados através dos movimentos sociais, como os sindicatos, associações, movimento das mulheres, LGBT, movimento negras(os), indígenas, isto é, contestações das minorias políticas oprimidas que buscam através de suas pautas e demandas específicas de cada grupo atingido pela falta de representatividade, respeito ou igualdade formal.

O neoliberalismo, mais do que uma versão particular do modo de produção capitalista, é visto como um modelo civilizacional que se sustenta através da desigualdade nas relações sociais. Essa desigualdade, por sua vez, assume múltiplas formas, que não passam de outras tantas faces da opressão. A opressão dos trabalhadores é uma delas, porém existem muitas outras espécies de opressão, como as que afetam as mulheres, as minorias étnicas, os povos indígenas, os agricultores, os desempregados, os imigrantes, as subclasses dos guetos os(as) homossexuais e os(as) negros(as), podendo ser resumido em três categorias: raça, classe e gênero. Todo tipo de opressão gera exclusão. Tudo o que é homogêneo a princípio tende a transformar-se em violência exclusivista. Daí que as diferenças, por carregarem consigo visões alternativas de emancipação social, devam ser respeitadas. Articulação entre o princípio da igualdade e o princípio da diferença exige um novo radicalismo nas lutas pelos direitos humanos. O liberalismo político neutralizou o potencial radicalmente democrático dos direitos humanos ao impor a todo o mundo uma realidade histórica europeia de tipo muito restritivo. Tal qual como são muitos os rostos da opressão, assim também são variadas as lutas e as propostas de resistência. Tão variadas elas são, de fato, que nenhuma vanguarda as unificará. (SANTOS, 2016)

É nesse sentido que a busca pelas mais variadas formas de ordenação, que fujam da lógica da lei estatal é enriquecedor para qualquer tipo de política, principalmente a urbana. Chantal Mouffe, ciente dessa essencial pluralidade na política, propõe um ‘modelo agonístico de democracia’, isto é, uma alternativa tanto ao modelo agregativo quanto ao modelo deliberativo, que seria referente ao antagonismo inseparável das relações humanas. A autora propõe a permanência das diferenças desde que compatível com o modelo democrático.

Essas teorias contemporâneas visam dar vozes (e ouvidos) as mais variadas categorias que compõe a sociedade, não para se encontrar um consenso entre todas as pautas, mas sim de diversificar as ordenações, dissolvendo o monopólio estatal para assim reconhecer outras concepções da realidade. Nesse sentido, as contradições do espaço urbano- por exemplo, a discriminação no acesso aos consumos coletivos e a estratificação e segregação habitacionais- são irresolúveis se separadas das condições de exploração classista no interior do processo produtivo.

Essas múltiplas vozes que ecoam a partir da disputa por espaço e reconhecimento na cidade, podem ser personificados através dos coletivos , associações de bairro, sindicatos, manifestações artísticas e uma multiplicidade de expressão que foge da lógica dominante hegemônica. Nesse sentido é necessário recriar alternativas de absorção dessas inúmeras pautas que transcendam a esfera legal, já que esse âmbito é limitado à ideologia dominante.

Portanto, o regime democrático é uma conquista que deve ser defendida constantemente. Na visão e teoria de Chantal Mouffe, para que essa constante luta ocorra é necessário ser instaurado condições para que o pluralismo agonístico permita reais confrontações no seio de um espaço comum, objetivando a possibilidade de haver opções verdadeiramente democráticas.

  1. Considerações finais

Nesse sentido, no trabalho foi analisado as questões latentes na cidade, principalmente nas brasileiras, através de marcos teóricos que buscam relacionar as questões do sistema capitalista com as velhas e novas dinâmicas entre o ambiente urbano e os(as) moradores(as). Esse debate, vai mais além ao analisar as questões políticas de diversidade que estão conectadas com a questão urbana, já que são levantadas pautas que afetam a maneira de como nos relacionamos com o ambiente em que vivemos.

Dessa maneira, se conclui que em virtude da análise interdisciplinar do tema, se percebe que a questão da política urbana não será resolvida de maneira isolada e mediante compilações legalistas, já que os problemas urbanos transcendem esse âmbito. Nesse sentido, se ampliou a escala de análise, isto é, ao se perceber ordinariamente as exclusões que decorrem da homogeneização causada pelo preço da terra na cidade, consequência  direta da  lógica mercantilizada da cidade em que o espaço urbano é encarado como uma mercadoria, resultando uma série de violências, tais como, expulsões, remoções e gentrificação. Se buscou trazer para a discussão teorias que buscam dar uma resposta a essa falta de vozes no espaço, trazendo para esse estudo as teorias contemporâneas de democracia.

Portanto, para uma política urbana ser contra hegemônica é necessário compreender toda a lógica que rege o atual processo de mercantilização que encara a cidade como se mercadoria fosse. A partir disso, poderemos tentar buscar estratégias que fujam dessa lógica hegemônica de poder, urge reconhecer e absorver as heterogeneidades e diversidade de vozes que compõe o urbano.

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A luta pelo direito à cidade no Baixo Amazonas: a atuação dos movimentos sociais no processo de revisão do Plano Diretor de Santarém-PA[71]

The fight for the right to the city in the Baixo Amazonas: the actions of social movements in the review process of the Santarém-PA Master Plan

 

Ana Beatriz Oliveira Reis[72]

Yuri Santana Rodrigues[73]

  

Resumo: Temos por objetivo apresentar como tem sido reivindicado o direito à cidade pelos movimentos sociais do Baixo Amazonas. Essa finalidade é alcançada por meio do acompanhamento do processo de revisão do Plano Diretor da cidade de Santarém iniciado em julho de 2017. Para apreender essa dinâmica, apresentar-se nossa compreensão sobre o que é o direito à cidade. Utilizamos ainda categorias específicas para se pensar a urbanização na América Latina, em especial, na região norte do Brasil. No campo empírico, destaca-se estudo do que vem sendo realizado no âmbito do projeto de pesquisa “O direito à cidade em Santarém-PA.” Tem-se por referencial a pesquisa participante utilizando-se das técnicas de entrevista, observação direta, revisão bibliográfica e análise documental. Destacamos a Conferência Municipal de revisão do Plano Diretor, ocorrida nos dias 23 e 24 de novembro, momento em que os movimentos sociais da região, na sua diversidade, conseguiram expressiva vitória frente aos interesses do setor do agronegócio sintetizados na resistência à construção do Porto Maicá. Atualmente, os movimentos se articulam para garantir que o conteúdo aprovado na Conferência seja respeitado integralmente pela Câmara. Logo, a análise que se faz aqui poderá ser mais bem delineada futuramente a partir dos desdobramentos desse processo.

Palavras-Chave: direito à cidade; baixo amazonas; movimentos sociais; plano diretor; Santarém.

 

Abstract: We aim to present how has been claimed the right to the city by the social movements of the Baixo Amazonas. This purpose is achieved by monitoring the review process of Santarém’s Master Plan initiated in July 2017. In order to understand this dynamic, it is necessary to present our understanding of what the right to the city is. We also use specific categories to think of urbanization in Latin America, especially in the northern region of Brazil. In the empirical field, we highlight a study of what has been carried out within the research project “The right to the city in Santarém-PA.” The reference research is based on the techniques of interview, direct observation, review bibliography and documentary analysis. We highlight the Municipal Conference to review the Master Plan, held on November 23 and 24, when the region’s social movements, in their diversity, achieved a significant victory over the interests of the agribusiness sector synthesized in the resistance to the construction of Porto Maicá . Currently, the movements are articulated to ensure that the content approved at the Conference is fully respected by the City Council. Therefore, the analysis made here may be better delineated in the future from the unfolding of this process.

Keywords: right to the city; Baixo Amazonas; social movements; master plan; Santarém

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Introdução

O presente trabalho acadêmico vem apresentar como tem sido reivindicado o direito à cidade pelos movimentos sociais do Baixo Amazonas, evidenciando essa luta, por meio do acompanhamento do processo de revisão do Plano Diretor da cidade de Santarém no ano de 2017. Buscando compreender essa dinâmica, faz-se necessário, primeiramente, apresentar nossa compreensão sobre o que é o direito à cidade. Por intermédio das obras de Henri Lefebvre (2001, 2002) e David Harvey (2014), seria possível compreender duas dimensões do direito à cidade: a primeira delas se relaciona ao direito das pessoas ao valor de uso da cidade, devendo esse valor sobressair ao valor de troca. Além do direito ao valor de uso, o direito à cidade contemplaria ainda uma dimensão utópica que almeja a reinvenção das cidades por intermédio de perspectivas outras que não a do capital. Portanto, seria o direito à cidade um direito anticapitalista por ter como objetivo último a abolição das relações de classe, embora a classe revolucionária urbana não seja composta apenas por operários fabris, como adverte David Harvey (2014, p.16).

Faz-se necessário ainda, caracterizar o espaço urbano santareno ressaltando as peculiaridades da região Amazônica. Sobre a produção do espaço na América Latina, Paul Singer destaca que o desenvolvimento urbano está intrinsecamente relacionado à “maior ou menor integração dos vários países no mercado capitalista internacional” (SINGER, 2014, p. 67). Segundo o economista, esse processo em contexto periférico ocorreria como forma de reestruturação das forças produtivas capitalistas por meio da conexão entre a economia de subsistência e o mercado, expandindo-se as redes de transporte, promovendo o aumento do consumo de bens industrializados e, consequentemente, reduzindo o cultivo.

Na Amazônia, ressalta-se que, desde a segunda metade do século XX, o processo de urbanização tem sido a expressão de uma política de desenvolvimento nacional baseada na expansão da fronteira agropecuária (BECKER, 2013, p. 33), causando significativos impactos sociais e econômicos neste território. Nessa conjuntura, as cidades amazônicas foram se estabelecendo com deficiências de infraestrutura e equipamentos urbanos disponíveis, resultado de um processo histórico em que os projetos para ocupação da região priorizaram capacitar à produção, sem preocupações quanto a políticas públicas urbanas que ordenassem a estruturação das cidades. Segundo Berta Becker, a geopolítica estatal objetivava o controle territorial com pouca ou nenhuma preocupação com as questões sociais (2008, p.48).

A cidade de Santarém, localizada na região oeste do Estado do Pará, se sobressai como principal centro urbano da região do Baixo Amazonas desde a economia colonial. No ano de 2012, tornou-se sede da região metropolitana de mesmo nome. Recente pesquisa publicada evidencia as peculiaridades dessa metrópole que, nas últimas décadas, passou a sofrer maiores pressões do agronegócio voltado para a produção da soja e do mercado imobiliário. Nesse contexto, o espaço urbano da região metropolitana de Santarém pode ser considerado ambivalente por, cada vez mais, atender ao perfil hegemônico de cidade (cidades globais) e por ainda concentrar populações que reproduzem modos seculares de vida como as populações ribeirinhas, povos tradicionais, indígenas e quilombolas (GOMES et al., 2017) . Destaca-se ainda a simbiose entre espaço urbano e espaço rural, sendo esses limites muito tênues embora, atualmente, emerjam novos conflitos sociais em Santarém por acesso ao solo urbano e aos direitos relacionados à vida na cidade, como nas ocupações urbanas, por exemplo, a ocupação “Vista Alegre do Juá.”

Caracterizado, ainda que de maneira breve, o espaço urbano santareno, resgatamos o processo de revisão do Plano Diretor de Santarém iniciado em 2017, destacando a Conferência Municipal de revisão do Plano Diretor, ocorrida nos dias 23 e 24 de novembro, momento esse em que os movimentos sociais da região, na sua diversidade, conseguiram uma expressiva vitória frente aos interesses do setor do agronegócio brasileiro.

 

  1. Resgate do Processo de Revisão do Plano Diretor de Santarém – PA

O primeiro plano diretor do município de Santarém foi aprovado em novembro de 2006, o artigo 182 da Constituição de 1988 determina que o plano diretor é o instrumento que define a função social da Propriedade Urbana que só viria a ser regulamentado pela Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, o Estatuto da Cidade também determinou que a lei que instituísse o plano diretor deveria ser revista, pelo menos, a cada dez anos. Com isso, a revisão do Plano Diretor de Santarém deveria ser realizado no ano de 2016, mas em função de várias prerrogativas apresentadas pelo Poder Público acabou perdendo esse prazo, sendo iniciado em julho de 2017.

O processo de Revisão do Plano Diretor Municipal tem sido conduzido pela Secretaria Municipal de Planejamento, Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Tecnologia (SEMDEC) com o apoio do Governo do Estado do Pará pelo Programa Estadual de Ordenamento Territorial Urbano (PROTURB), que tem em suas especificidades apoiar a revisão de Planos Diretores para municípios que o prazo de suas leis já está vencido. Este impôs uma curta agenda sendo esse fato utilizado pelo município para justificar a construção de um calendário extremamente apertado de seis meses para a realização das três audiências públicas, das doze oficinas comunitárias (cinco na zona urbana e sete na zona rural) e da Conferência Municipal de Revisão do Plano Diretor. Eis uma das primeiras contradições desse processo, uma vez que tal agenda não tem sido respeitada pelo próprio poder público, uma vez que o texto do novo Plano Diretor, aprovado na conferência, ainda não foi apreciado pela Câmara Municipal até o presente momento.

Figura 1. I Audiência Pública

 Fonte: Jornal online, Folha MT

A primeira audiência Pública que deu início a Revisão do Plano Diretor do Município de Santarém, foi realizada no dia 04 de julho de 2017 na Casa de Cultura, com um público aproximado de 220 pessoas entre líderes comunitários, representantes de órgãos públicos, da sociedade civil e de movimentos sociais do município. Representando a gestão municipal estavam presentes o Vice-prefeito de Santarém em exercício, José Maria Tapajós e o secretário de Planejamento Ruy Correa. O secretário do (SEMDEC) expôs o plano de ação do município para revisão do plano diretor como forma de definir as próximas datas das oficinas que seriam realizadas em vários polos da cidade, foram também ouvidas as opiniões e sugestões dos participantes da audiência. Explica o secretário Ruy Corrêa que:

A ideia é que todos do município participem dos debates. Por isso, montamos um cronograma que atinja tanto a área urbana quanto a rural, onde as oficinas serão desenvolvidas. Vale ressaltar que queremos sugestões para melhoria de vida dos moradores de Santarém, e não imposição. (RUY CORRÊA, 2017).

             Com as pautas finais da Audiência Pública, ficou previsto para o mês de agosto que seriam realizadas cinco oficinas nos distritos das grandes áreas de Aldeia, Nova República, Prainha, Santarenzinho e Maicá. Na zona rural, as oficinas ficaram para o mês de setembro nas comunidades do Lago Grande do Curuai, Rio Arapiuns, Rio Tapajós, Rio Amazonas, Eixo-Forte, Rio Curuá-Una e Arapixuna.

II AUDIÊNCIA PÚBLICA

            Com as oficinas acontecendo na área urbana e rural, foi o momento de ser realizado a segunda audiência pública efetuada no dia 13 de outubro (sexta-feira), novamente na casa de cultura do município. Nesse momento, os movimentos sociais de Santarém fizeram valer sua voz na Audiência Pública e manifestaram repúdio e protesto, motivo pelo qual o Poder Legislativo ameaçou alterar artigos da Lei complementar de parcelamento, uso e ocupação de solo na vila balneária de Alter do Chão, alterações essa que implicariam na construção de edifícios de 19 metros em várias comunidades da região, além de promover a verticalização da orla e de toda a área de praias. O Projeto de Lei ainda transformaria o PAE Eixo Forte[74] em zona urbana e a APA MAICÁ[75] em área portuária. Por esse motivo, o Projeto de Lei apresentado pelo Vereador Antônio Rocha se mostrou aliado aos interesses do capital imobiliário e dos empresários da logística de portos, ignorando e desrespeitando, o processo de revisão do Plano Diretor, tentando aprovar uma lei específica que estava sendo debatida na revisão da norma geral que é o Plano Diretor.

            Diante disso, os/as representantes dos movimentos sociais de Santarém apresentaram cartas de repúdio em protesto reivindicando o arquivamento do Projeto de lei por todas as suas violações, e recusaram-se a continuar a revisão do Plano Diretor caso o Projeto de Lei não fosse suspenso pela Câmara Municipal. Desse modo, a Audiência Pública foi suspensa para o dia 10 de novembro de 2017.

 

FIGURA 2. Leitura das cartas de repúdio

 

Fonte: Fonte própria

II AUDIÊNCIA PÚBLICA (RETOMADA)

Resultado da audiência pública anterior, o dia 10 de novembro de 2017, foi marcado pela retomada da II audiência do plano diretor do município de Santarém, em efeito as mobilizações dos movimentos sociais, como apresentados anteriormente. A audiência teve como local a Sede do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais, e o objetivo foi a de aprovação do diagnóstico municipal com proposta de estratégias de ação que foram detectados nas oficinas executadas tanto na área urbana quanto rural.

A programação da audiência iniciou com a divisão de grupos de discussões de propostas evidenciando problemáticas vinculados aos eixos temáticos na área da saúde, habitação, infraestrutura, meio ambiente, assistência social, turismo, cultura, agricultura, educação, mobilidade e trânsito. Além disso, o local escolhido para a realização prejudicou a logística das pessoas que queriam participar, não havendo transporte de fácil acesso, a infraestrutura do espaço era impróprio para quantidade de pessoas presentes, evidenciando a falta de organização do Poder Público. Essa situação influenciou, diretamente a ausência de grande parte da população e em contrapartida favoreceu a presença maior de indivíduos ligados ao interesses econômicos do município, sendo mais preciso aqueles que estavam apoiando o setor do agronegócio para as medidas de inclusão das propostas de construção dos portos no Maicá.

Por esse motivo, como a audiência não estava ocorrendo democraticamente com a participação popular, os movimentos sociais, junto a líderes comunitários, professores, estudantes universitários impediram o andamento da audiência. O tumulto ocasionou a presença da Polícia Militar no local, permitido ao poder público e aos líderes dos movimentos sociais entrarem em um consenso.

A situação obrigou serem feitas mudanças no planejamento inicial da audiência, com a reorganização do espaço para propor um melhor diálogo e participação de todos. Em meio as discussões foi permitido a inclusão de novas propostas e ao término do tempo estipulado ocorreu o retorno para a sede onde foi feita a leitura do diagnostico, processo esse realizado por todos e com a aprovação das novas propostas para serem votadas novamente a 1ª Conferência Municipal de Revisão do Plano Diretor nos dias 23 e 24 de novembro.

FIGURA 3. Momento de chegada da Polícia Militar

Fonte: Fonte própria

III AUDIÊNCIA PÚBLICA

Em efeito as treze oficinas e seis audiências públicas praticadas tanto nas zonas urbana e rural de Santarém, o processo de revisão do Plano Diretor entra em seus últimos andamentos. Com a última audiência pública prevista na programação, foi realizada na manhã do dia 01 de dezembro de 2017, na Casa da Cultura, local de apreciação da minuta construída após a conferência dos dias 23 e 24 de novembro, a audiência contou com aproximadamente 300 participantes que analisaram a minuta que será enviada à Câmara Municipal onde os vereadores irão, em votação, aprovar ou não as sugestões. Em um momento final o projeto será transformado em lei para que possa entrar em vigor no ano de 2018 com validade até o ano de 2027.

 

  1. Atuação dos movimentos sociais frente ao Plano Diretor

            Antes do início oficial das atividades de revisão do Plano Diretor, com a realização da primeira audiência pública no dia 04 de julho de 2017, os movimentos sociais da cidade organizaram o seminário “O que é o Plano Diretor?” como forma de capacitar os diferentes segmentos para as discussões sobre Política Urbana. Destaca-se que esse movimento se constitui por estudantes, federações de associações de bairro, sindicatos, setores ligados à igreja católica, ONG’s, trabalhadoras e trabalhadores urbanos e rurais, movimento indígena, quilombola, povos tradicionais, ambientalistas, professores da educação básica e do ensino superior, entre outros. Sabendo dessas articulações os movimentos sociais de Santarém em conjunto organizaram-se para propor esse seminário que viesse esclarecer a todos os interessados sobre a importância de participação da sociedade nas modificações determinadas para os próximos dez anos.

Figura 4. Professora Ana Beatriz na mesa

 Fonte: Fonte própria

Figura 5. Público participante

 Fonte: Fonte própria

 

  1. Conferência como momento de expressiva vitória

As várias interferências incumbidas pelos interesses da classe empresarial e do agronegócio no município de Santarém, por ser um município estratégico pra o escoamento de soja na região, atualmente colocam em risco uma área de preservação ambiental Maicá para transformação em área portuária. Observando que esses interesses podem prejudicar diretamente a lógica de vida local dessa região, suscitou que certos grupos sociais do município iniciassem uma mobilização maior para atuação da cidadania em um espaço institucional como a I Conferência da Revisão do Plano Diretor de Santarém. Isso, para lutar contra o poder do capital e garantir o direito de se viver em uma região, como a Amazônia, que ainda resiste para manter os seus costumes, suas culturas, suas tradições, seus rios, a tranquilidade da natureza, aquele modelo de vida que é interpretado como um modelo ultrapassado pelo chamado “desenvolvimento”.

Diante disso, os dias vinte e três e vinte e quatro de novembro de 2017 foram os dias de acontecimento da I Conferência do Plano Diretor no município de Santarém, dois dias inteiros para revisar mudanças no antigo Plano Diretor do Município. O encontro aconteceu durante a semana, quinta e sexta-feira, das 08h00 da manhã até às 18h00 da tarde, na Escola Brigadeiro Eduardo Gomes. A conferência foi planejada para promover as últimas discussões a respeito do que foi realizado e proposto nas oficinas desempenhadas tanto na zona urbana quanto rural do município, avaliando com a sociedade a aprovação da minuta para em seguida ser entregue à Câmara Municipal.

Para a surpresa de muitos, como um pequeno grupo uniformizado liderado pelo Sindicato Rural de Santarém (Sirsan) que na tentativa de conduzir as alterações no texto e aprovar mudanças para favorecer o setor do agronegócio e da construção civil, viram-se, no primeiro dia de conferência, incumbidos pela presença dos movimentos sociais e de diversos segmentos da sociedade santarena como comunidades tradicionais, movimento indígena, quilombolas, moradores de diversos distritos como Alter do Chão, Eixo Forte, associações de moradores urbanos, pastorais sociais, comunidades de pescadores, associações extrativistas, estudantes, professores, líderes comunitários, setores ligados à igreja católica, representantes de sindicatos, marcarem presença em massa, demostrando que todos estão atentos aos impactos sociais e ambientais das grandes obras e da expansão do agronegócio na Amazônia.

Toda essa mobilização, permitiu a população buscar garantir o direito à cidade em Santarém, com a implementação do saneamento básico, transporte público de qualidade, mais saúde, mais educação, mais cultura, mais apoio aos pequenos produtores, às associações extrativistas, à preservação da biodiversidade e uma política ambiental eficiente e responsável. A presença desses sujeitos foi muito importante em decorrência do processo, desde o início, não atender a proposta com legitimidade. A metodologia aplicada nas oficinas foram realizadas de maneira superficial, os locais para o acontecimento eram de difícil acesso, além da infraestrutura não atender a necessidade demandada.

Figura 6. Participação de estudantes indígenas

Fonte: Jornal Comunitário O Boto

A conferência iniciou com tempo determinado para credenciamento ficando combinado que só aqueles que chegassem entre 08h00 e 10h00 da manhã, estando com o crachá, poderiam votar. O tempo provocou uma certa preocupação aos que não haviam chegado, porém não impediu a presença de mais de 700 pessoas na quadra da escola. Como a Organização não esperava a participação de tantas pessoas, foi fator de vários imprevistos na hora, evidenciando o pouco suporte técnico que auxiliassem no credenciamento, não havendo crachás suficientes, a infraestrutura do lugar impropria para um evento desse porte. Essas situações nos permitiu compreender que o processo não havia sido programado para a participação popular.

Figura 7. Credenciamento dos participantes

Fonte: Jornal Comunitário O Boto

Com a finalização do credenciamento foram fechados os portões da quadra da escola dando andamento a programação da conferência. A metodologia aplicada, fez-se a partir da divisão de Grupos de trabalhos referentes aos 10 eixos temáticos para dialogarem sobre sugestões de alteração no texto do antigo Plano Diretor, revendo artigo por artigo da lei. Os grupos temáticos representavam: (1) mobilidade e trânsito, (2) assistência social, (3) saúde, (4) educação, (5) agricultura, (6) cultura, (7) turismo, (8) meio ambiente, (9) habitação e (10) infraestrutura. O dia 23 de novembro não foi suficiente para que todas as pautas fossem discutidas, sendo finalizadas no segundo dia, 24 de novembro, útimo dia conferência e o momento de aprovação das modificações no texto do antigo plano diretor, em plenária plenária com a participação de todos.

O segundo dia , começou com uma certa comoção por parte de todos. Em seguida foram feitas as leituras do regulamento discutidas nos grupos no dia anterior, e no final de cada a sua votação e aprovação. O clima aumentou em alguns momentos, novamente em relação ao eixo em polêmica, mas atuação da população foi mais forte com aprovação de pautas que estavam de acordo com a necessidade do município, não olhando apenas para desenvolvimento econômico, mas também para o social, político e cultural.

Ao fim do dia, chegava a hora de por em pauta a votação do eixo mais polêmico, a construção de portos no Lago do Maicá. Momento de maior comoção pelos dois lados, os que defendiam a construção e os que estavam majoritariamente em defesa de um outro tipo de desenvolvimento para a região. Sara Pereira, representante da Organização não governamental Fase Amazônia e moradora do município de Santarém fortalece em sua fala, expressando:

Todas e todos que chegam ao nosso torrão são bem-vindos, desde que respeitem nossas identidades, ouçam nossas necessidades e se proponham ao diálogo em função da construção de um lugar melhor para todos nós, com oportunidades equitativas e o usufruto de nossas riquezas naturais em favor da melhoria da qualidade de vida de nosso povo, garantindo o respeito aos nossos direitos territoriais, à preservação dos nossos bens comuns e dos nossos modos de vida.  (SARA PEREIRA, FASE, 2017)

O grande número de participantes da sociedade  local, que se colocou em defesa de um outro tipo de desenvolvimento para a região ou como denomidado o “bem viver”, garantiu vitória na votação envolvendo as áreas portuárias da cidade. É bem retratado pelo representante da Comissão de Justiça e Paz, Thiago Rocha o sentido do que é esperado pelo Bem Viver, no qual indica que é poder no final do dia contemplar pôr do Sol na frente da cidade que nasceu, que conviveu, é poder aproveitar as praias, a companhia das pessoas, aproveiatar a familia, e não viver única e exclusivamente preocupado em crescer academicamente, em competir com os outros, ter que trabalhar muito pra enricar, é sair dessa lógica que ele chama de escravidao, é poder ser independente, ser autônomo, sujeito da própria história, o bem viver é isso, poder viver dentro do seu território, com a sua identidade, com a sua cultura.

Figura 8. Thiago Rocha da CJP

Fonte: Jornal Comunitário O Boto

Ao final da Conferência ficou evidente que a população santarena não aceitará a destruição que envolva o patrimônio ambiental de maior valor, em troca de um suposto progresso que beneficia a poucos. Com evidente maioria, os movimento sociais conseguiram barrar a alteração da lei e pedir, sim, estudos técnicos sobre os locais com validação de viabilidade para instalação de novos portos na cidade. Embasados através de pesquisas técnicas e consulta à comunidade local, dentro de um processo participativo e transparente, a comunidade pretende conjuntamente auxiliar a apontar a melhor área para esses grandes projetos.

Figura 3. Momento final da votação na Conferência

Fonte: Jornal Comunitário O Boto

Conclusões

Foi durante a Conferência Municipal de revisão do plano diretor que o confronto entre os projetos antagônicos de cidade se tornou mais evidente, acirrando as disputas políticas pelo conteúdo do novo plano diretor. Embora as muitas inconsistências do processo, esse momento permitiu uma articulação histórica dos movimentos sociais de Santarém por meio da mobilização e da atuação expressiva dos diversos segmentos organizados em um arranjo de reivindicações que possibilitou barrar as alterações no Plano Diretor permissivas à construção do porto Maicá. Dentre as vitórias da conferência, destaca-se a garantia de que a construção de qualquer projeto na área deva ser submetida à Consulta Prévia aos povos tradicionais como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Findo o prazo estipulado pelo governo estadual para a aprovação do novo plano diretor pelo poder legislativo municipal, os movimentos sociais de Santarém se articulam para garantir que o conteúdo aprovado na Conferência seja respeitado integralmente pela Câmara Municipal. Logo, a análise que se faz aqui poderá ser mais bem delineada em momento futuro a partir dos desdobramentos desse processo, inclusive quanto à dimensão das limitações dos espaços institucionais de participação tendo em vista a vitória parcial do movimento na Conferência Municipal.

Referências

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DEMO, Pedro. Pesquisa Participante: saber pensar e intervir juntos. 2 ed. Brasilia: Liber Livro Editora, 2008.

GOMES, Taynara do Vale et. al. Santarém (PA): um caso de espaço metropolitano sob múltiplas determinações. In:  Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 40, pp. 891-918, set/dez 2017.

HARVEY, David. Cidades Rebeldes. São Paulo, Martins Fontes, 2014.

LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana.  Belo Horizonte: Humanitas, 2002.

__________. O Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

SINGER, Paul. Economia Política da Urbanização. 3ed. São Paulo: Contexto, 2014.

SANTARÉM. O plano diretor de Santarém. In: Folha MT/Cidades, 04 de julho de 2017. Disponível em: <http://www.folhamt.com.br/artigo/195073/Comunidade-e-orgaos-publicos-discutem-propostas-para-o-plano-diretor-de-Santarem>. Acesso em: 07/07/2017.

SANTARÉM. I Conferência Municipal de Revisão do Plano Diretor”. In: O Boto. Santarém, 25 de novembro de 2017. Disponível em: < http://www.o-boto.com/2017/11/25/conferencia-municipal-pdm/>. Acesso em: 27/11/2017.

 

YIN, Robert K. Estudo de Caso: planejamento e métodos. Tradução de Ana Thorell. 4 ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.

 


NOTAS:

[1]Trabalho apresentado no Espaço de Discussão E6 (Cidade e Direito) do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[2] Professora da Universidade Federal de Alagoas. Doutora em Direito (UFSC).

[3]A cidade marketing pode ser observada nas imagens e nos textos e nos slogans de guias turísticos. Frequentemente trechos das canções: Maceió (Lourival Passos) e de Ponta de Lápis (Antônio Roberto Brandão Barbosa e Marcos Maceió) poetizam a cidade de Maceió, suas belezas e encantos e em que Maceió é apresentada como exemplo máximo de perfeição da natureza e da vida no “Paraíso das águas” (SILVA, 2015).

[4]Segundo Maricato (2012, p.129), o modelo urbano estatal sucumbiu à internacionalização dos capitais, sobre a qual se fundou o Estado pós-moderno. Nesse Estado, que passa a assumir características neoliberais, deixa-se de acolher estratégias keynesianas de geração e emprego e aumento salarial para viabilizar as ações do mercado financeiro e os empreendimentos típicos produzidos por uma geração de “cidades globais”.

[5]O período atual revela um padrão de dominação externa que se dá em conjunto com a expansão das grandes empresas corporativas e imobiliárias, empresas que trouxeram um novo estilo de organização, de produção e de marketing, com novos padrões de planejamento. As grandes cidades brasileiras têm características de uma urbanização corporativa, baseada na noção de crescimento econômico e na especulação imobiliária daí derivada (FERNANDES,2006, p. 18).

[6]Para David Harvey (2005), o processo de acumulação pode se dar com a criação de novos desejos e necessidades, como o estímulo a boa moradia, ou pela expansão do comércio para novas regiões geográficas (p.48).

[7]A morfologia dos assentamentos favelados apresenta peculiaridades decorrentes das características próprias dos terrenos ocupados: em encostas ou áreas planas, em áreas alagáveis ou pantanosas, próximas a vias de acesso e “tráfego pesado”, com alta densidade populacional (GONDIM, 2010).

[8]O campo social definido por Bourdieu (2001, p. 120) não é uma estrutura determinada, mesmo que seu funcionamento corresponda às “leis gerais dos campos”. A estrutura do campo é o produto da história desse campo, quer dizer, a história das posições constitutivas desse campo e aquelas que ele favorece.

[9]Segundo Cardoso (2003,p.3-4): “os territórios pesqueiros são construídos pelos pescadores a partir do trabalho e da apropriação da natureza, territórios que podem ser delimitados, mesmo na fluidez do meio aquático e sobre os quais pescadores exercem algum domínio”. Ambos os elementos fazem referência à ação e à memória das comunidades tradicionais, porque se tornam essenciais para a reprodução daquele modo de vida.

[10]Existem os pescadores, as marisqueiras, os pombeiros, e os diferentes ganhos entre essas funções. Esses ganhos podem ser sociais (posições sociais) econômicos (renda obtida) e sempre simbólicos, relativos aos papeis de representação e legitimidade para decidir “as coisas” da Vila.

[11]O processo de urbanização alagoano foi intensificado, nas últimas décadas, em parte, devido a migrações internas (interior/capital) motivadas pelo processo de mecanização das usinas de cana-de-açúcar, que reduziu as oportunidades de emprego (LINS, 2010).

[12]O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)/1966, que em seu art. 11 destaca: “Os Estados -parte  reconhecem o direito de toda a pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para a sua família, inclusive (…) moradia adequada” (NAÇÕES UNIDAS, 1966). Esta noção mereceu uma interpretação extensiva através do Comentário n. 04 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais/1991: “Segundo o ponto de vista do Comitê, o direito à habitação não deve ser interpretado em um sentido restrito ou restrito que o equipara com, por exemplo, o abrigo provido meramente de um teto sobre a cabeça dos indivíduos”(…) “deve ser lido referindo-se não apenas como habitação, mas como habitação adequada (…) habitação adequada  significa privacidade adequada, espaço adequado, segurança, iluminação e ventilação adequadas, infraestrutura básica daquela e localização adequada em relação ao trabalho e facilidades básicas, tudo com um custo razoável” (NAÇÕES UNIDAS, 1991)

[13]“Gentrificação” é um termo utilizado para caracterizar o processo de valorização imobiliária de uma zona urbana que, na maioria dos casos, vem acompanhada do deslocamento dos habitantes de classes sociais mais baixas para outro local e, ao mesmo tempo, atrai para aquele local pessoas com maior poder econômico.

[14]Juntamente com pelo menos outros quatro tipos de conflito, a saber: condições de inabitabilidade e insegurança jurídica da posse em periferias; comunidades econômica e socialmente vulneráveis e a moradia em área de risco; deslocamentos forçados de comunidades tradicionais e quilombolas; planos e projetos urbanos sem participação e aprovação popular.

[15]No interior do campo jurídico, é a autoridade jurídica investida do poder de violência física e simbólica, legitimada pelo monopólio estatal, que produz e exerce, respectivamente, teoria e prática jurídicas. Essa posição privilegiada da autoridade jurídica em relação ao leigo, não afasta a possibilidade de conflitos internos de competência entre as próprias autoridades jurídicas e jurisdicionais (BOURDIEU, 2000, p.211).

[16]Segundo Bourdieu (2004, p. 21), qualquer campo científico é um mundo social e, como tal, faz imposições, solicitações relativamente independentes às pressões sociais que o envolve. No caso das pressões externas envoltas ao campo jurídico, observa-se que elas aparecem retraduzidas pela própria lógica do campo, que por sua natureza social, não consegue se desvencilhar completamente do ponto de vista das outras ciências.

[17]O “efeito de apriorização” está associado à estrita hierarquia jurídica, não só pelas instâncias judiciais e os seus poderes, mas pelas decisões e interpretações em que se apoiam, como também relacionada às normas e às fontes que conferem a autoridade de suas decisões (BOURDIEU, 2000, p.214)

[18]A competência do juiz é a autorização legal que essa autoridade estatal detém para decidir os conflitos levados à jurisdição do Estado, é a parcela de jurisdição que compete a cada órgão jurisdicional.

[19]Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 6 (Cidade e Direito) do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[20]Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora de Direito Processual Penal do Centro Universitário Augusto da Motta (UNISUAM).

[21]Mestranda no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel em Direito pela Universidade Candido Mendes (UCAM).

[22]Licenciando em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense.

[23] Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 6 (Cidade e Direito) do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[24]Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná, com bolsa pela CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Graduada em Direito pela UFPR. Integrante do NEFIL – Núcleo de Estudos Filosóficos e do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania, ambos vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.

[25]A pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro é realizada a partir dos dados extraídos da PNAD de 2013-2014. A metodologia adotada pela instituição de pesquisa abrange os seguintes elementos: domicílios precários, coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel urbano e adensamento excessivo de domicílios alugados (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2016).

[26]O indicador aglomerados subnormais é constituído pelas ocupações formadas por no mínimo 51 unidades habitacionais, desprovidas de serviços públicos essenciais ou que a urbanização seja fora dos padrões vigentes (IBGE, 2017). Esse conceito não abarca todo o déficit habitacional, por exemplo, não considera o ônus excessivo com o aluguel, mas é interessante sua utilização devido a sua maior abrangência na coleta de dados.

[27]O indicador de domicílio vago contabiliza os imóveis em construção, mas não considera os de ocupação ocasional ou que os moradores não estiveram presentes durante a pesquisa (PORTAL BRASIL, 2010).

[28]Em 2014, o déficit habitacional da faixa de renda até três salários-mínimos representava 83,9% do total do déficit habitacional urbano (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2016).

[29]Em 2013, foi realizada pesquisa pelo LabCidade com moradores de empreendimentos do PMCMV faixa 1, nas regiões metropolitanas de São Paulo, Campinas, Baixada Santista e Região Administrativa de Ribeirão Preto, com base na aplicação de 930 questionários (ROLNIK, 2015, p. 315).

[30] O direito à moradia é direito social assegurado no artigo 6º da Constituição Federal e no artigo 11 do PIDESC, que foi recepcionado no ordenamento jurídico brasileiro, por meio do Decreto nº 591/1992. No tocante ao PIDESC, o Comentário Geral nº 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabeleceu elementos mínimos do direito à moradia.

[31]Segundo Sachs (1999: 150, apud BARAVELLI, 2006, p. 93), o Profilurb tinha como objetivo a prevenção ao crescimento das favelas, enquanto que o Promorar visava sua reabilitação, já que partia do pressuposto que não podiam ser extintas pela realocação de seus moradores para locais distintos. Por outro lado, o Programa João de Barro atuou mediante o financiamento de 7 mil unidades habitacionais para famílias de baixa renda que viviam em habitações unifamiliares isoladas em lotes periféricos, realidade pertencente principalmente a pequenas cidades do interior do Norte e Nordeste (BARAVELLI, 2006, p. 92).

[32]Segundo o artigo 53 do Código Civil, as associações são caracterizadas como “união de pessoas que se organizem para fins não econômicos” (BRASIL, 2002). Já as cooperativas são sociedades de pessoas, constituídas para exercer atividade econômica em proveito comum de seus associados (BRASIL, 1971).

[33]O cooperativismo popular insere-se dentro do âmbito da economia solidária, que também envolve outras experiências não limitadas a forma jurídica cooperativa, podendo também consistir em associações ou grupos informais (GEDIEL, MELLO, 2016, p. 201). A economia solidária possui os seguintes objetivos: “produzir um bem ou serviço de modo sustentável e sem ter por finalidade o lucro; gestão independente do Estado; estruturas associativas; processo decisório democrático com ênfase na participação e na cooperativa, assim como primazia das pessoas e do trabalho sobre o capital” (CARLEIAL & PAULISTA, 2008, p. 5).

[34]Nesse contexto, atuavam fortemente a União Nacional de Luta por Moradia – UNMP, com incidência em processos de autogestão, o Movimento Nacional de Luta por Moradia – MNLM, com atuação em ocupação de terras, a Confederação Nacional das Associações de Moradores – CONAM, vinculada a entidades de bairro, associações comunitárias, e a Central de Movimentos Populares – CMP, que engloba movimentos populares diversos, como “ONGs de mulheres, movimentos de negros, de moradia e comunitários, passando pelos movimentos culturais, de rádios comunitárias, indígenas e ecológicos” (FERREIRA, 2012, p. 122). Além disso, na Constituinte houve a reunião de várias organizações para encaminhar uma proposta de Emenda Popular de Reforma Urbana, que propiciou a organização do Movimento Nacional de Reforma Urbana, posteriormente denominado de Fórum Nacional de Reforma Urbana, que envolve muitas entidades “em torno da defesa da reforma urbana, da gestão democrática e da promoção do direito à cidade” (FERREIRA, 2012, p. 123).

[35]O PAR foi um programa criado para atender a demanda habitacional da população de baixa renda, mediante o arrendamento residencial com a possibilidade de compra do imóvel (BRASIL, 2001).

[36]O PAC permite transferências de recursos de órgãos ou entidades da União para Estados, Distrito Federal e Municípios para execução de ações do PAC (BRASIL, 2007). Em relação a sua modalidade de urbanização de assentamentos precários possibilitou a destinação de recursos para o melhoramento das “condições de habitação e mobilidade em assentamentos precários em centros urbanos, com obras de infraestrutura como construção de moradias, drenagem, abastecimento de água, esgotamento sanitário e iluminação pública” (PAC, 2017).

[37]No direito brasileiro, ato cooperativo é “tradicionalmente reconhecido como o realizado na relação entre cooperado e cooperativa ou na relação entre cooperativas, quando associadas, para a consecução dos seus objetivos sociais” (GEDIEL; MELLO, 2016, p. 198), definição que também é adotada no artigo 79 da Lei nº 5.764/71. O artigo 9º da Lei uruguaia 18.407/2008 dispõe que os atos cooperativos são aqueles realizados entre cooperativas e seus sócios ou os sócios de cooperativas sócios ou entre cooperativas entre si quando estiverem associadas (URUGUAI, 2008). Além disso, o ato cooperativo deve ser uma execução em cumprimento direto do objeto da cooperativa (CAZERES, 1994, p. 31). Por isso, o objeto do ato cooperativo de moradia é a prestação ou obtenção de serviço cooperativo de moradia (CORVALAN, 1990, p. 151, apud CAZERES, 2008, p. 36).

[38]Adota-se neste trabalho a definição de movimentos sociais de Daniel Camacho (1997, p. 216 e 217) que os considera “uma dinâmica gerada pela sociedade civil, que se orienta para a defesa de interesses específicos. Sua ação se dirige para o questionamento, seja de modo fragmentário ou absoluto, das estruturas de dominação prevalecentes, e sua vontade implícita é transformar parcial ou totalmente as condições de crescimento social”. Por isso, apesar da constituição formal da FUCVAM como federação de cooperativas, sua atuação é condizente com a de um movimento social.

[39]Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão ED 6 – Cidade e Direito do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[40]Doutoranda em Direito, área de concentração Direitos Humanos, do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Pará. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: [email protected].

[41]A denominação Consenso de Washington faz referência a um documento apresentado pelo Institute for International Economics em uma reunião em Washington DC., Estados Unidos, em 1989, com propostas de reformas que já vinham sendo aplicadas em alguns países da América Latina e que eram consenso entre os membros do Congresso e governo estadunidense, tecnocratas das instituições financeiras internacionais, agências econômicas do governo norte-americano e o Federal Reserve Board (BANDEIRA, 2002, 35). Este conjunto de políticas macroeconômicas previa um amplo programa de reformas estruturais dirigidas aos países da periferia (OLIVEIRA, 2011, 146), com recomendações de que o Estado se retirasse da economia, seja como empresário ou como regulador das transações domésticas e internacionais, a fim de que toda a América Latina se submetesse às forças do mercado. A adoção de tais medidas constituiria condição fundamental para que estes Estados pudessem renegociar a dívida externa e receber qualquer recurso das agências financeiras internacionais, como o Bando Mundial e Fundo Monetário Internacional. A ratificação da proposta neoliberal tornava-se condição para negociar qualquer cooperação financeira externa, bilateral ou multilateral, de forma que os países teriam que sujeitar suas respectivas políticas econômicas e decisões de investimentos à fiscalização internacional, por meio das condicionalidades. Os principais países latino-americanos ficaram diante do seguinte dilema: ou declaravam moratória ou se submetiam aos órgãos intergovernamentais de regulação financeira. A quase totalidade dos governos acabou optando pela segunda alternativa (SINGER, 1996, 164).

[42]Actualmente, as zonas centrais da economia-mundo capitalista coincidem com sociedades predominantemente brancas/europeias/euro-americanas, tais como a Europa Ocidental, o Canadá, a Austrália e os Estados Unidos, enquanto as zonas periféricas coincidem com povos não-europeus outrora colonizados. O Japão é a única excepção que confirma a regra, na medida em que nunca foi colonizado nem dominado pelos europeus e, à semelhança do Ocidente, desempenhou um papel activo na construção do seu próprio império colonial. A China, embora nunca colonizada na sua totalidade, viu-se periferizada pelo uso de entrepostos coloniais como Hong Kong e Macau, e por intervenções militares directas (GROSFOGUEL, 2008, 127).

[43]“[…] refugiados e pessoas deslocadas internamente, afetadas por conflitos, desastres e mudanças climáticas ou ameaçadas por esses fatores; pessoas em terras destinadas a projetos de desenvolvimento ou afetadas por estes; ocupantes de terras valiosos; inquilinos com ou sem títulos legais, em assentamentos informais ou em contextos formais, em áreas urbanas e rurais; migrantes internos ou internacionais; minorias; comunidades nômades; grupos afetados por discriminação baseada em casta ou estigma; pobres, sem-terra, sem-teto; arrendatários; trabalhadores em regime de servidão; outros grupos marginalizados, como pessoas com deficiências ou vivendo com HIV; povos nativos em países com histórico de colonização; grupos com direitos consuetudinários à terra; e até proprietários privados de casas hipotecadas” (ROLNIK, 2015, p. 151).

[44]Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão 6 – Cidade e Direito do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[45]Advogada formada em Direito pela Universidade Federal do Ceará e ex-membro do Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária (NAJUC), projeto de extensão da Faculdade de Direito da UFC.

[46]Opto por utilizar a expressão “transporte coletivo” ao invés de “transporte público” por acreditar que o transporte coletivo não é verdadeiramente público. A tarifa é uma grande barreira que impede que diversas pessoas consigam acessá-lo.

[47] Sindiônibus é o Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Ceará.

[48]Em Fortaleza, o usuário dos ônibus entra pela porta traseira do veículo e sai pela porta dianteira. Desse modo, uma das alternativas para quem não tem recursos financeiros para pagar a passagem é embarcar e desembarcar pela porta traseira, prática conhecida como fazer traseira.

[49]O direito à cidade é garantido pela Constituição Federal em seus arts. 182 e 183. Ele pode ser definido como “o usufruto eqüitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos. Este supõe a inclusão do direito ao trabalho em condições eqüitativas e satisfatórias; de fundar e afiliar-se a sindicatos; de acesso à seguridade social e à saúde pública; de alimentação, vestuário e moradia adequados; de acesso à água potável, à energia elétrica, o transporte e outros serviços sociais; a uma educação pública de qualidade; o direito à cultura e à informação; à participação política e ao acesso à justiça; o reconhecimento do direito de organização, reunião e manifestação; à segurança pública e à convivência pacífica. Inclui também o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial, sexual e cultural, e o respeito aos migrantes” (CARTA MUNDIAL PELO DIREITO À CIDADE, 2006).

[50]Trens, metrôs e barcas estão presentes em apenas algumas cidades do país. Por isso, focarei meu estudo nos ônibus, que, nas cidades com mais de 60 mil habitantes, são responsáveis por 86% do transporte coletivo (ANTP apud VASCONCELLOS, 2016, p. 62). Os ônibus urbanos e metropolitanos operam em cerca de 85% dos municípios brasileiros (IPEA, 2010, p. 546).

[51]Em algumas cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, a fim de combater esses assédios, o governo implementou o “vagão rosa”, que é um vagão do trem ou metrô destinado apenas para mulheres, e o assento preferencial para mulheres. Sou contra essas políticas públicas. Ao invés de coibir o agressor, isola-se a vítima. Ademais, a mulher que escolhe não ficar no vagão rosa ou no assento preferencial é mal vista, como se estivesse querendo ser assediada. Também é necessário levar em conta que apenas um vagão (no total de 6 no metrô de São Paulo) é destinado apenas para mulheres, sendo que elas compõem a maioria da população brasileira (BRASIL, 2015), então elas são confinadas em um espaço extremamente limitado. No caso dos assentos preferenciais, eles foram criados para ajudar pessoas com dificuldades de locomoção ou de se manter em pé, seja por serem idosas, gestantes, terem alguma deficiência ou estarem com uma criança de colo. Colocar a mulher como alguém nessa situação, dizendo que ela deve ficar sentada, é muitíssimo inadequado. Além disso, estar sentada não impede o assédio, visto que o assediador ainda poderá, por exemplo, ficar olhando para o decote da mulher ou ficar se esfregando em seu ombro e braço. O MPL Florianópolis (2013) afirma que “se por um lado o Estado está reconhecendo a necessidade de políticas de mobilidade voltadas às mulheres, por outro a opção que se faz com tal medida é a de responsabilizar as passageiras por sua segurança. Ou seja: segrega-se as possíveis vítimas e não os violentadores”.

[52]Isso faz com que os usuários sejam feitos de “Cinderela”, dado que, na maioria das cidades do país, a frota de ônibus circula apenas até a meia noite. Em algumas cidades, como Fortaleza, há os corujões, que são ônibus que circulam durante a madrugada. Todavia, o tempo de espera entre um ônibus e outro é extremamente demorado e as linhas cobrem uma pequena região da cidade.

[53]Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] III – a dignidade da pessoa humana;

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: […] III – erradica a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

[54]O Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) garante, em seu art. 39, a gratuidade no transporte coletivo para pessoas com mais de 65 anos, e faculta às legislações locais estender esse direito para pessoas a partir de 60 anos. Em Fortaleza, crianças com 7 anos e/ou até 1,10 m de altura também não pagam passagem. (FORTALEZA, 2013)

[55]No Brasil, a lei nº 8.899/94 garante a gratuidade no sistema de transporte coletivo interestadual para pessoas com deficiência. No âmbito municipal, isso varia de acordo com a legislação local. Em Fortaleza, a lei complementar nº 0057/2008 garante a gratuidade no transporte coletivo urbano para as pessoas com deficiência.

[56]Esse é o valor atual da bolsa de permanência concedida aos estudantes de instituições federais de ensino superior que se encontram em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Seu valor é estabelecido pelo Ministério da Educação. (MEC, s.d.).

[57]Na UFC, apenas os estudantes que moram na residência universitária (estudantes de baixa renda oriundos de municípios diferentes dos de onde fica o campus onde estudam) ou que têm isenção no RU por serem de baixa renda podem tomar café da manhã no RU.

[58]Disponível em: < https://www.mobilicidade.com.br/bicicletar/comoutilizar.aspx>. Acesso em: 01 abr. 2018.

[59]Disponível em: <https://freepublictransport.info/city/>. Acesso em: 01 abr. 2018.

[60]De acordo com o princípio da insignificância, “é necessária uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Frequentemente, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material, por não produzirem uma ofensa significativa ao bem jurídico tutelado. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a sem lesado. (…) a insignificância da ofensa afasta a tipicidade.” (BITENCOURT, 2013, p. 369-370)

[61]Estado de necessidade é a “colisão de bens jurídicos de distinto valor, devendo um deles ser sacrificado em prol da preservação daquele que é reputado como mais valioso” (BITENCOURT, 2013, p. 409). No caso em tela, há a colisão entre o acesso ao direito social ao transporte e a proteção ao patrimônio das empresas de transportes.

[62]Segundo Émile Pouget (apud FARJ, 2009, p. 117), “a ação direta acontece quando o próprio movimento social em reação constante contra o meio atual, nada espera dos homens, das potências ou das forças exteriores a ele, mas […] cria suas próprias condições de luta e retira de si mesmo seus meios de ação. […] Portanto, a ação direta é a clara e pura concreção do espírito de revolta: materializa a luta de classes que ela faz passar do campo da teoria e da abstração ao campo da prática e da realização. Em conseqüência, a ação direta é a luta de classes vivida no dia-a-dia, é o assalto permanente contra o capitalismo”.

[63]Ver apêndice A.

[64]Ver apêndice B.

[65]Região central de Fortaleza junto à praia, onde moram pessoas com elevado poder aquisitivo e há diversos equipamentos de lazer.

[66]Tipo penal é a descrição, na legislação penal, de uma conduta delitiva. Tipificar é quando o legislador descreve, de modo abstrato, uma conduta e a classifica como crime.

[67]Resumo de artigo apresentado ao Espaço de Discussão 6 (Cidade e direito) do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[68]Graduada em Direito pela UFSM. Mestranda da linha de pesquisa direito da cidade pela e atualmente Mestranda da área de concentração Pensamento Jurídico e Relações Sociais, linha de pesquisa Direito da Cidade (UERJ)

[69]BOTELHO, Adriano. O urbano em fragmentos: a produção do espaço e da moradia pelas práticas do setor imobiliário- São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007

[70]Recentemente foi aprovada a  LEI Nº 13.465, DE 11 DE JULHO DE 2017, que regulamenta atualmente as regularizações fundiárias baseadas essencialmente no título, descaracterizando a multidisciplinariedade desse processo. A medida provisória que gerou essa lei, 759, gerou bastante polêmica entre os movimentos sociais e acadêmicos, na medida em que foi verifcado um retrocesso nessa área. Recebeu mais de 700 emendas, entretanto a essência ‘legalizadora’ seguiu  existindo.

[71]Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão Cidade e Direito do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.

[72]Professora de Direito do programa de Ciências Econômicas e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Mestra em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Política e Planejamento Urbano pelo IPPUR/UFRJ;

[73]Graduando em Gestão Pública e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA

[74]Projeto de Assentamento Agroextrativista realizado pelos Projetos de assentamentos de reforma agrária reconhecidos pelo Incra, criados por outras instituições governamentais para acesso às políticas públicas do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA).Fonte:<http://www.incra.gov.br/assentamentoscriacao>

[75]Área de Proteção Ambiental (APA) localizada no município de Santarém, é uma extensa área natural destinada à proteção e conservação dos atributos bióticos (fauna e flora), estéticos ou culturais ali existentes, importantes para a qualidade de vida da população local e para a proteção dos ecossistemas regionais, e que vem sendo alvo dos olhares dos interesses econômicos para transformação em área portuária. Fontes:<http://www.oeco.org.br/dicionarioambiental/29203-o-que-e-uma-area-de-protecao-ambiental/>