Financiamento sindical e amplitude de negociação coletiva: uma análise de vetores opostos da reforma trabalhista de 2017

Resumo

A Reforma Trabalhista de 2017 foi imbuída de uma forte ideologia liberal.
Com esse escopo houve modificação em dois institutos precípuos do Direito Coletivo do
Trabalho, relativo ao financiamento sindical e à negociação coletiva. O artigo aborda essas
mudanças, procurando mostrar como a mudança nessas duas frentes tinha um sentido
congruente, dentro dos escopos ideológico, político e econômico. Procura-se demonstrar a
seguir como que, por questões de ordem prática e da estrutura do sistema jurídico há uma
contradição entre elas.

Artigo

XVII ENCONTRO LUSO-BRASILEIRO DE JURISTAS DO TRABALHO

– JUTRA –

GRUPO DE TRABALHO 2: DIREITO SINDICAL

Financiamento sindical e amplitude de negociação coletiva: uma análise de vetores opostos da reforma trabalhista de 2017

Nome do autor: Pedro Fernandes Pröglhöf

Instituição do autor: Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência: Rua Dr. Luis Rocha Miranda, 528, Ap. 53-A, Jabaquara, São Paulo/SP

Fone: (11) 98851-6115

Email do autor: [email protected]

2023

São Paulo


Financiamento sindical e amplitude de negociação coletiva: uma análise de vetores opostos da reforma trabalhista de 2017

Pedro Fernandes Pröglhöf1

RESUMO: A Reforma Trabalhista de 2017 foi imbuída de uma forte ideologia liberal. Com esse escopo houve modificação em dois institutos precípuos do Direito Coletivo do Trabalho, relativo ao financiamento sindical e à negociação coletiva. O artigo aborda essas mudanças, procurando mostrar como a mudança nessas duas frentes tinha um sentido congruente, dentro dos escopos ideológico, político e econômico. Procura-se demonstrar a seguir como que, por questões de ordem prática e da estrutura do sistema jurídico há uma contradição entre elas.

ABSTRACT: The 2017 Labor Reform Act was imbued with a strong liberal ideology. With this scope, there were changes in two main institutes of the Collective Labor Law, related to union financing and collective negotiation. The paper addresses these changes, trying to show how the change on these two fronts had a congruent meaning, within the ideological, political and economic scopes. Following, it is demonstrated how, for practical reasons and by the structure of the legal system, there is a contradiction between them.

 

Palavras-chave: Direito Coletivo do Trabalho; Sindicato; Negociação Coletiva

Keywords: Collective Labor Law; Union; Collective Negotiation

  

Introdução – 1. As reformas trabalhistas e seu pano de fundo – 2. As reformas trabalhistas e seu contexto jurídico-normativo – 3. Estrutura e financiamento sindical pós Reforma – 4. Prevalência do negociado sobre o legislado – Considerações Finais – Bibliografia

Introdução

  

Desde as eleições presidenciais de 2014 esteve em voga uma pauta legislativa direcionada à “flexibilização” das normas trabalhista, sob o argumento de que o trabalhador brasileiro tem direitos demais e que a nossa legislação precisa ser simplificada para permitir o empreendedorismo e pleno desenvolvimento econômico (MAIOR, 2017: 458).2 As promessas daqueles que defendem a reforma trabalhista são sempre no sentido de que a adoção destas medidas permitirá o crescimento econômico, aumento da competitividade de nossas empresas, o desenvolvimento do país e o pleno emprego. Algo que, até o presente momento, não se concretizou.

As premissas teóricas adotadas pelos propositores da Reforma ecoam as teorias liberais que desde os anos 90, impulsionados pelo “Jobs Study” elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 1994. A crença é de que o livre mercado será autossuficiente para a regulação de todo o campo econômico, incluindo-se aqui as relações de trabalho. Tal premissa, contudo, ignora toda o desenvolvimento do campo do direito do trabalho, criado justamente durante o liberalismo econômico clássico, cuja insuficiência para tratar das questões sociais é do conhecimento histórico (TOLEDO FILHO, 2019: 189-190).

A análise que se pretende expor neste trabalho recai justamente sobre dois aspectos contraditórios em que a Reforma Trabalhista de 2017, a nosso sentir, estampou essa insuficiência do modelo econômico liberal.

Com efeito, a Reforma trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro amplos poderes às empresas e aos sindicatos para realização de acordos e convenções coletivas de trabalho, com prevalência dos instrumentos normativos sobre a legislação. Merecendo aqui destaque o Supremo Tribunal Federal (STF) já ratificou a constitucionalidade destas disposições (ARE 1121633, j. em 02/06/2022).

Em oposição, a mesma Lei nº 13.467/2017 previu que as contribuições sindicais, antes devidas por todos os empregados da categoria, sindicalizados ou não, passariam a ser voluntárias, podendo o emprego optar pelo seu recolhimento.

Vejam, se os sindicatos são necessários para pactuar normas coletivas com capacidade de redução dos direitos legais dos empregados, parece contraintuitivo que

a reforma legislativa reduza e, em alguns casos até estrangule, a capacidade financeira destes mesmos sindicatos. Ora, se sindicatos são necessários para se fazer valer o “negociado sobre o legislado”, eles não podem deixar de existir ou ter seu funcionamento reduzido.

A proposta deste artigo é trazer algumas considerações sobre o tema.

1.  As reformas trabalhistas e seu pano de fundo

 Nosso estudo do conteúdo jurídico da reforma trabalhista não pode vir desacompanhado de uma análise mais ampla dos modelos econômicos, das condições sociais e do clima político, quando da implementação da nova lei. Com efeito, essa visão macro, longe de afastar o estudo de seu objeto próprio, que é o jurídico, apenas engrandece e concede melhores elementos para que o jurista possa melhor compreender o ordenamento e suas nuances. O direito não está jamais descolado do ambiente social. Afina, ubi societas ibi jus, ubi jus ibi societas.

Por este motivo, entendimentos que o trabalho deve ser iniciado com uma exposição dos contextos políticos e econômicos que deram causa à Reforma Trabalhista, que remontam à corrida presidencial de 2014 e ao início do segundo mandato de Dilma Roussef, em 2015.

Logo no início de seu mandato, a presidenta eleita teve dificuldades no diálogo com o Congresso Nacional. Na luta pelo apoio político, delegou o Ministério da Fazenda ao engenheiro e economista Joaquim Levy, formado pela Escola de Chicago, de notável orientação neoliberal, desagradando parte de sua base junto ao Congresso. Sobre o episódio, o ex-candidato Aécio Neves não perdeu a ironia ao dizer que “Levy na Fazenda é como colocar um espião da CIA para dirigir a KGB”, referindo-se ao fato de que a orientação econômica do então Ministro da Fazenda não se alinhava ao programa de governo prometido pelo PT durante corrida eleitoral.3

O episódio acima relatado, apenas serve de ilustração das diversas concessões que foram feitas pelo governo Dilma em seu segundo mandato, apenas para apaziguar a oposição no Congresso Nacional. Outros episódios poderiam ainda ser destacados, como a tentativa de correção da tabela do IRPF acima dos índices de inflação, a concessão de isenção fiscal a diversos setores da economia, adotando-se a pauta

econômica ditada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) (cf. CARVALHO, 2018)4 ou mesmo a extinção do fator previdenciário.

Aliás, a questão da extinção do fator previdenciário demonstra de modo clínico como o Congresso Nacional tentou sufocar o orçamento do Executivo.

O critério de limitação dos valores de aposentadoria “prematuras” foi criado durante o governo FHC, filiado ao PSDB, como forma de contenção dos crescentes gastos com a Previdência Social. Curiosamente, já no início de 2015, quando os frutos da crise de 2014 já estavam se avizinhando, o Congresso Nacional – sem qualquer estudo atuarial e em proposta encabeçada pelos parlamentares do PSDB – aprovou a extinção deste fator previdenciário, o que, segundo estimativas da época poderia custar à União cerca de R$3,2 até o fim de 2060. A proposta legislativa foi vetada pela presidenta Dilma, que então costurou com o Legislativo a edição da MP nº 676/2015, que criou a regra intermediária e progressiva 85/95,5 com notável impacto nas contas do governo federal.

Inobstante, em pouco mais de um ano, o mesmo corpo legislativo voltaria a analisar uma reforma da previdência – agora em sentido diametralmente oposto e em proposta encabeçada pelo presidente Michel Temer – restringindo os direitos a pensões e aposentadorias, sob o argumento de que a Previdência encontrava-se com as contas estranguladas. Diversos projetos tramitaram nesse sentido, até que em fins de 2019 foi aprovada a Reforma da Previdência, através da Emenda Constitucional nº 103/2019.

Nesse contexto, deu-se o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016. Foi aí então que o movimento de derrocada de direitos sociais, colocado em marcha de modo sutil no segundo mandato da presidenta Dilma, ganhou novas dimensões no segundo semestre de 2016, com início do governo de Michel Temer.

A partir de então foi escancarada a posição neoliberal dos ocupantes do governo, tanto no Legislativo, quanto no Executivo. Sob as promessas de uma melhoria econômica – sintetizada na baixa do dólar e alta no número de empregos – foram então os trabalhadores os principais “contribuintes” desta proposta neoliberal, tendo seus direitos

flexibilizados ou reduzidos, sem que, na prática, tenha se evidenciado qualquer ganho econômico significativo.6

2.  As reformas trabalhistas e seu contexto jurídico-normativo

  

Inobstante o caput do art. 7º da Constituição Federal estabelecer – de forma tímida, é verdade – o princípio da melhoria da condição social dos trabalhadores, não é isso o que se verifica na atualidade. Com efeito, são raras as leis que tenham agregado ou ampliado direitos aos empregados, no período democrático.

Daí a ideia de que a Constituição Federal serviria como obstáculo para o avanço da exploração dos trabalhadores pelos interesses do capital, sendo assegurados àqueles um núcleo mínimo de direitos e garantias que pudessem manter o desenvolvimento social.   Afinal, como leciona Rodrigo Schwarz “a originalidade do Direito do Trabalho, em relação aos demais ramos do Direito positivo, diz respeito sobretudo à imperatividade permeada de caráter tutelar e protetivo das suas normas de direito público” (2011: 3).

Contudo, embora o legislador constituinte tenha inscrito no caput este ideal de progressiva melhora da condição social, foi tímido por demais ao prever nos incisos do art. 7º aqueles direitos que comporiam o núcleo dos direitos trabalhistas.

Uma leitura superficial dos direitos estabelecidos neste artigo já faz perceber que o legislador constituinte não se preocupou em estabelecer direitos normas com eficácia plena, fixando apenas disposições programáticas ou de eficácia contida (TAVARES, 2014:196). Nas palavras da juíza Patrícia Maeda, a teoria da norma constitucional programática “projeta para um outro momento a realização do direito social, negando-lhe eficácia plena e imediata” (2019: 168).

Nesse sentido, são diversos os dispositivos programáticos que, passados já mais de 30 anos da promulgação da Carta Constitucional, ainda não receberam a devida regulamentação: (a) proteção do trabalhador contra a despedida arbitrária (inc. I); (b) garantia de pagamento do salário com a tipificação penal de sua retenção dolosa (inc. X);

(c) licença paternidade (inc. XIX); (d) proteção do trabalho da mulher mediante incentivos específicos (inc. XX); (e) adicional salarial para as atividades penosas (inc. XXIII); e (f) proteção em face da automação (inc. XXVII).

Por outro lado, há disposições inseridas no art. 7º que, sob o pretexto de assegurar um direito, acaba mascarando uma realidade completamente diversa. É o que ocorre, por exemplo, com a garantia ao direito de ação “quanto aos créditos resultantes da relação de trabalho”, desde que observado o prazo prescricional (inciso XXIX).

Nesse contexto, embora a Reforma Trabalhista tenha alterado de modo substancial a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), causa constrangimento as opções feitas pelo legislador, que deixou de lado temas centrais que careciam de regulamentação desde a promulgação da Constituição de 1988, o mesmo ocorrendo com temas de alta relevância que mereciam adequação às Convenções da OIT já ratificadas pelo Brasil.

O professor e desembargador do trabalho Homero Batista da Silva faz uma análise criteriosa da “densidade” de alterações promovidas pela Reforma Trabalhista e indica que ela foi muito mais profunda do que, por exemplo, a reforma do CPC de 2015, que reeditou por inteiro o Código (2017-A: 202).

O teor da reforma deixa claro que a intenção legislativa foi atender determinados grupos de interesse, em detrimento de um verdadeiro debruçar sobre aquilo que poderia de fato colocar o Brasil na vanguarda das relações trabalhistas do século XXI. Como bem destacou a doutrina “o silêncio em torno do tema de segurança do trabalho, que clama por atualizações, nos leva a pôr em dúvida se o propósito da reforma de 2017 tinha mesmo o propósito de melhoras as condições de trabalho” (SILVA, 2017-B: 11).

Tudo a corroborar de que a reforma trabalhista teve como única e precipuamente atender aos interesses de grupos econômicos que viam na proteção do trabalhador um entrave à maximização de seus lucros e minimização de suas responsabilidades.

Tais considerações propedêuticas se fazem necessárias para alargar o campo de visão do direito, para além da forma jurídica. Com efeito, as disposições reformistas devem ser vistas pelo que são: uma proposta liberal de flexibilização de direitos trabalhistas, o que se traduz quase sempre em uma redução da proteção jurídica.

3.  Estrutura e financiamento sindical pós Reforma

 

A forma de organização sindical no Brasil é anacrônica e não condiz com as convenções e tratados ratificados pelo Brasil, o que causa verdadeiro constrangimento no campo da diplomacia (SILVA, 2017-B: 109). Para além das dificuldades políticas próprias da reforma de um tema tão intrincado como esse, há um agravante legal:  o princípio da unicidade sindical tem assento em dispositivo constitucional, de modo que é necessário que eventual reforma seja feita por meio de Emenda Constitucional.

Assim é que persiste no Brasil o sistema sindical que prevê a existência de um único sindicato por categoria, em uma determinada base territorial. Essa falta de liberdade de escolha do sindicato certamente prejudica o engajamento de mais trabalhadores na atividade sindical e é fonte de críticas pela doutrina.

As modificações promovidas pela Lei nº 11.648/2008, que reconheceu a figura das Centrais Sindicais, nas quais sindicatos de diversas categorias podem se agremiar, teve impactos concretos muito tímidos e insuficientes para mitigar a rigidez da unicidade sindical.

Somado a esta questão da estrutura sindical rígida, vem o problema da fonte de custeio dos sindicatos. A Constituição Federal prevê no art. 149 prevê a existência de uma contribuição sindical, de natureza tributária, destinada ao financiamento da atividade sindical.

Como a CLT previa que a contribuição sindical era devida por todos os empregados, sindicalizados ou não, houve uma deturpação da finalidade do tributo. Ao longo dos anos surgiram diversos sindicatos “de fachada”, criados precipuamente para arrecadação desses valores, mas sem qualquer representação efetiva. Como nem mesmo se exige a prestação de contas, a prática tornou-se odiosa entre os empregados, que se viam obrigados a pagar o tributo sem qualquer perspectiva de retorno. Para se ter ideia, segundo dados de 2016, ou seja, os mais atuais à época da edição da Lei nº 13.467/2017, havia exatos 10.817 sindicatos ativos no Brasil (IPEA, 2016: 13).

Com bastante frequência o orçamento do sindicato era aumentado com a previsão de cláusulas em acordos e convenções coletivas prevendo o pagamento de mensal de algum valor fixo, a título de “contribuição assistencial” ou “contribuição confederativa”. Tais disposições normalmente preveem que todos os empregados deveriam contribuir para o sindicato, independentemente de filiação, já que pela regra da unicidade todos iriam se beneficiar das demais disposições inseridas na negociação coletiva.

Ocorre que para o empregado que já não tem interesse no engajamento sindical e, muitas vezes, vê uma representação sindical anímica, esse tipo de disposição torna-se mais um motivo para criar aversão à figura do sindicato.

A jurisprudência já havia se alinhado no sentido de declarar a nulidade desse tipo de cláusula, garantindo que o empregado sem filiação não tivesse que pagar a contribuição assistencial. Nesse sentido, a Súmula Vinculante nº 40, do STF, segundo a qual “a contribuição confederativa de que trata o art. 8º, IV, da Constituição Federal, só é exigível dos filiados ao sindicato respectivo“.

Ainda assim, o que se verifica na prática, é que o empregado tem descontado do salário, mês a mês, o valor da contribuição e somente após o despedimento é que vem a juízo pedir a restituição do valor.

Neste cenário, o legislador aproveitou-se dessa “maciça aversão à contribuição sindical” (SILVA, 2017-B:109) para minar a fonte de custeio dos sindicatos, pensando que com isso estaria não apenas fragilizando os sindicatos, mas também prejudicando que tivessem uma atuação mais combativa, pois estariam mais à mercê das empresas.

No governo Bolsonaro essa tentativa de minar a capacidade financeira dos sindicatos tornou-se ainda mais gritante. A contribuição sindical é paga anualmente, incidindo sobre o salário do mês de março (art. 582, da CLT). No dia 01/03/2019 o então presidente editou a Medida Provisória nº 873/2019, prevendo que a contribuição sindical não deveria ser descontada pela empresa da folha de pagamento, mas cobrada diretamente pelo sindicato perante seus representados.

A MP não foi posteriormente confirmada pelo Congresso Nacional, mas foi vista como uma provocação direta aos sindicatos e causou tumulto e insegurança jurídica naquele período. O judiciário recebeu uma maré de ações pedindo a declaração de inconstitucionalidade da MP e manutenção do sistema de contribuição, com desconto em folha.

O que não se pode perder de vista é que a lógica por trás da Reforma Trabalhista e dos governos que se sucederam foi a de um ideário liberalista, para o qual os sindicatos são vistos como entrave à atividade econômica. E o melhor modo de ver reduzido o seu campo de ação é certamente prejudicando a sua fonte de custeio.

Ao fazer a reforma o legislador passou ao largo das questões de fundo, relativas à estrutura e forma de funcionamento dos sindicatos, o que talvez se dê pelo fato de não ver com bons olhos a figura dessa instituição. O mais simples, portanto, seria estrangular sua fonte de renda, o que levaria naturalmente à extinção da maioria dos sindicatos e diminuição da capacidade de atuação dos demais.

Tal visão, contudo, contrasta outro ponto da mesma reforma: a elevação da norma coletiva a um status superior ao da lei, o que só é possível por meio da negociação coletiva com estes mesmos entes sindicais. O que consideramos uma incongruência dentro da mens legislatoris.

4.  Prevalência do negociado sobre o legislado

  

Não é recente a crítica sobre o conteúdo do inciso XXVI do art. 7º da Constituição Federal, que prevê o “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”.

Afinal, se já o caput do art. 7º reconheceu a existência de outros direitos que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores, qual seria efetivamente a necessidade deste dispositivo? Haveria duas opções e a primeira seria dizer que a norma é redundante. A segunda, seria dizer que existe a possibilidade de redução dos direitos por meio de negociação coletiva.

Como não há palavras inúteis na lei, é evidente que este inciso foi incluído para garantir a legalidade de acordos e convenções coletivas que flexibilizem ou reduzam direitos trabalhistas. Veja-se ainda que o inciso XIV vai ainda mais além, possibilitando que a negociação coletiva flexibilize inclusive a jornada especial de 6 horas garantidas aos empregados que atuam em turnos ininterruptos de revezamento.

Compartilhamos aqui do espanto de Homero Batista da Silva, para quem

(2017-C:302):

“O pior é que, ao final do inc. XIV, o art. 7º autoriza que a negociação coletiva recoloque as coisas no estado anterior ao da Constituição Federal de 1988, forçando os empregados ao cumprimento da jornada de oito horas, sem compensação ou bonificação alguma. A frase é tão impactante e levanta tantas dúvidas – por que o legislador criaria uma vantagem e a entregaria para a norma coletiva a abolir? Qual a finalidade da norma? Qual o bem jurídico a ser tutelado?”

(grifos nossos)

Como se vê a discussão não é nova e vem desde ao menos a promulgação da Constituição de 1988. Sem prejuízo, a disposição ganhou novos contornos com a Reforma Trabalhista, que incluiu na CLT o art. 611-A, prevendo que “A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre (…)”.

A justificativa vem estampada no §3º do mesmo dispositivo, o qual prevê o “princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”. Essa inovação legislativa não passou desapercebida pela doutrina. Em crítica incisiva, mais uma vez nos valemos das palavras do professor Homero Batista da Silva, para quem“(…) princípios são regras que nascem da observação do comportamento social ou da lógica dos institutos ou ramos jurídicos. Não é comum que um princípio, não tendo sido detectado no âmbito social, seja criado à força por uma lei ordinária” (2017-B: 114).

A questão atinge o âmago da razão de ser do Direito do Trabalho, um sistema de normas irrenunciáveis destinadas à proteção do empregado. Do princípio da proteção do empregado deriva sempre as regras de aplicação da norma mais favorável e interpretação mais favorável ao trabalhador. Além disso, por ser um direito tuitivo, haveria sempre uma progressão na conquista de direitos, o que timidamente tinha sido expresso no art. 7º da Constituição Federal como vedação normativa ao retrocesso social.

Sem prejuízo o STF entendeu pela constitucionalidade da disposição, declarando no julgamento do ARE 1121633 que (Tema 1046):

“São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.”

A redação não foi da mais felizes, pois deixou uma razoável dúvida sobre o conceito de direitos trabalhistas “absolutamente indisponíveis”. Ocorre que em 28/04/2023, após a apresentação e arguição deste trabalho perante a banca avaliadora, o STF publicou o acórdão relativo ao julgamento do ARE 1121633, no qual esclarece com mais detalhes que a validade da norma coletiva não pode ser pautada pelo rol expresso nos arts. 611-A e 611-B da CLT. Segundo voto do relator Min. Gilmar Mendes “os limites da negociabilidade coletiva devem ser buscados na própria jurisprudência consolidada do TST e do STF em torno do tema”. E arremata em seu voto:

“A jurisprudência do TST tem considerado que, estando determinado direito plenamente assegurado por norma imperativa estatal (Constituição, Leis Federais, Tratados e Convenções Internacionais ratificados), tal norma não poderá ser suprimida ou restringida pela negociação coletiva trabalhista, a menos que haja autorização legal ou constitucional expressa.”

 Ainda que se tenha restringido o campo da negociação coletiva para estes temas, é certo restou um amplo espaço para a negociação coletiva e a flexibilização da legislação. E para tanto, as empresas não podem prescindir da figura dos sindicatos e, por isso mesmo, deve ser observar num cenário próximo o ressurgimento da discussão acerca da fonte de custeio dos sindicatos. O interesse na manutenção e na saúde financeira dos sindicatos estará novamente em pauta, mas não necessariamente pelo interesse na defesa dos trabalhadores, mas sim pelo interesse do empregador em estabelecer norma coletiva flexibilizando normas do contrato de trabalho.

Tanto assim é, que após a apresentação e arguição deste trabalho perante a banca avaliadora, foi publicada decisão do Min. Luíz Roberto Barroso no julgamento do ARE 1018459 no sentido de ser possível o estabelecimento de contribuição assistencial por meio de negociação coletiva, desde que se assegura ao empregado o direito de oposição. O que já revela uma modificação de entendimento do STF em relação à sua própria Súmula Vinculante nº 40.

Considerações finais

 Nossas considerações propedêuticas deram à exposição a ótica pela qual enxergamos a Reforma Trabalhista de 2017, situando no contexto político, econômico e jurídico, a mens legislatoris, orientando assim nossa interpretação sobre os temas que aqui entrelaçamos: de custeio das entidades sindicais e prevalência do negociado sobre o legislado.

Como aventamos já no início, a visão liberal que orientava o legislador reformista levou-o a modificar a legislação trabalhista em dois pontos congruentes com sua visão de mundo: (a) de um lado a necessidade de minar a atuação dos sindicatos, sufocando sua fonte de custeio; e (b) de outro, a garantia que o negociado deverá prevalecer sobre o legislado, possibilitando uma maior flexibilização das normas trabalhistas, o que daria mais “dinâmica” a atividade empresarial.

Ocorre, contudo, que esses dois vértices, quando analisados em conjunto, apresentam uma incongruência prática, pois não é possível fazer a negociação coletiva sem a intervenção sindical.

Nesse debate, é possível que a questão da fonte de custeio volte a ser tema de cláusulas inseridas em negociações coletivas. E agora, como há possibilidade de ampla negociação, talvez seja o caso de o STF rever o conteúdo da Súmula Vinculante nº

40.7 Quero dizer, diante da tese fixada no Tema 1046, será que continuam sendo nulas as

cláusulas que preveem a instituição de uma contribuição assistencial? Não parecer que seja um tema “absolutamente indisponível”. Aliás, é um tema até “inofensivo” perto das outras regras sujeitas à flexibilização, como períodos de jornada, redução de intervalos e outros.

Para além disso, uma última reflexão na intercalação dessas duas searas. A empresa que entender necessária a atuação sindical não pode financiar o seu funcionamento, mesmo que isso se dê por meio de norma inserida em negociação coletiva, porque há um inequívoco conflito de interesses. A atividade sindical profissional deve necessariamente ser financiada pelos trabalhadores.

Esse é o desafio.

Referências bibliográficas

  

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Notas de rodapé:

1 Doutorando em Direito do Trabalho (USP). Mestre em Processo Civil (USP). Especialista em Direito e Processo do Trabalho (USP). Bacharel em Direito (Unesp). Servidor concursado do TRT da 15ª Região, atualmente exercendo a função de Assistente de Desembargador do Trabalho.

2 Como alerta Jorge Souto Maior, mesmo no ano eleitoral de 2014 já se pode perceber o início dessa derrocada, com a edição do Decreto nº8.243/2014 que, sob pretexto de ampliação da participação popular é criada o “Sistema Único do Trabalho – SUT, pelo qual, de forma bastante sutil, se retomava a ideia embutida na Emenda n. 3, de negar o caráter de indisponibilidade da legislação trabalhista”.

3 Nesse sentido: <https://www.infomoney.com.br/politica/aecio-neves-levy-na-fazenda-e-como-um- quadro-da-cia-para-dirigir-a-kgb/>. Acesso em 19/03/2020.

4 A tese é defendida de modo brilhante e poético pela professora da FEA/USP, Laura Carvalho. Segundo a economista durante o governo Lula o país deu um grande passo à esquerda, no governo Dilma, com a adoção da pauta FIESP, deu-se um passo à direita, e, após o processos de impeachment, no governo Temer, o país deu então um passo para trás. Essa manobra esquerda-direita-trás formaria então uma valsa. Daí o nome de sua obra – Valsa Brasileira.

5 Nesse sentido: <http://g1.globo.com/economia/noticia/2015/06/dilma-veta-fator-previdenciario-e- edita-mp-com-regra-de-progressiva.html>. Acesso em 19/03/2020.

6 Não apenas as taxas de desocupação medidas pelo IBGE mostraram-se estáveis, com pouquíssimas variações no mês a mês, mas também a taxa de pessoas trabalhando de modo informal saltou para o patamar de 41%, jamais antes registrado.

7 O que já começou a se observar no julgamento do ARE 1018459, com o voto do Min. Luís Roberto Barroso como destacado no item antecedente.

Palavras Chaves

Direito Coletivo do Trabalho; Sindicato; Negociação Coletiva