Liberdade de Imprensa versus Presunção de Inocência e a influência da mídia nos Processos Criminais.

Resumo

Presunção de Inocência versus exposição midiática do acusado. 2. A pressão da Opinião Pública em questões de natureza criminal. 3. A sociedade do espetáculo e a espetacularização dos processos criminais. 4. A simplificação, nem sempre positiva, dos processos criminais. 5. A “contaminação entre o direito e a comunicação social” e o descompasso entre o ritmo da mídia e o de um processo judicial . Considerações Finais.

Artigo

Liberdade de Imprensa versus Presunção de Inocência e a influência da mídia nos Processos Criminais.

 

Maíra Fernandes

Introdução. 1. Presunção de Inocência versus exposição midiática do acusado. 2. A pressão da Opinião Pública em questões de natureza criminal. 3. A sociedade do espetáculo e a espetacularização dos processos criminais. 4. A simplificação, nem sempre positiva, dos processos criminais. 5. A “contaminação entre o direito e a comunicação social” e o descompasso entre o ritmo da mídia e o de um processo judicial[2]. Considerações Finais.

Palavras chave: presunção de inocência; opinião pública; mídia; imprensa; processo penal; julgamentos criminais.

 

Introdução[3].

Os processos criminais, dramáticos por sua própria natureza, não raro trazem diversos atrativos à grande mídia: a autoria do fato, a(s) vítima(s), o tipo de crime, o impacto financeiro ou ambiental, as consequências do delito, dentre outros. São elementos que despertam a atenção dos agentes de comunicação e fazem brilhar os holofotes em torno da tramitação da ação penal que, via de regra, é pública e cujos autos judiciais podem ser acessados nas serventias do Juízo, sem grandes dificuldades.

É inquestionável, no presente artigo, a importância de tal publicidade dos atos processuais. Relevância esta que já era ressaltada por Cesare Beccaria, nos idos de 1765, em “Dos Delitos e das Penas”: “sejam públicos os julgamentos; sejam-no também as provas do crime”[4].

Tampouco se questiona, nesta análise crítica da exposição midiática dos processos criminais, o respeito que deve ser conferido à liberdade de imprensa. Ao contrário. Parte-se da premissa sustentada por Albert Camus, de que “uma imprensa livre pode, é claro, ser boa ou ruim, mas, certamente, sem liberdade a imprensa sempre será ruim”[5]. Sem dúvida, seria um contrassenso que a advocacia criminal defendesse uma censura à liberdade de imprensa. Ao contrário, a advocacia da liberdade deve sempre seguir a máxima segundo a qual “posso não concordar com o que você dizmas defenderei até a morte o seu direito de dizêlo[6].

O que se analisará no presente artigo, portanto, é o desafio imposto aos veículos de comunicação: o de que exerçam essa liberdade, mas também respeitem a presunção de inocência.

  1. Presunção de Inocência versus exposição midiática do acusado.

            Sempre sob fortes ameaças e, flagrantemente, desrespeitado pelos Tribunais, o Princípio da Presunção de Inocência, considerado o “reitor do processo penal”, é um princípio civilizatório. Trata-se de um verdadeiro pilar do Estado Democrático de Direito, que está intimamente ligado a outros princípios constitucionalmente assegurados, como o da ampla defesa e do contraditório, bem como o da imparcialidade do julgador, ou, como já dito, da “proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu”[7].

O Direito à Presunção de Inocência e o Direito de Defesa devem ser respeitados em todos os casos criminais. Sobretudo nos mais espinhosos, nos mais difíceis, naqueles em que o acusado se filia a um ou outro espectro ideológico. Não há exceção.

Cesare Beccaria já dizia que “perante as leis, é inocente aquele cujo delito não se provou”[8]. Tal princípio se apresenta em duas dimensões: uma interna e outra externa. No âmbito do processo, a dimensão interna do princípio da presunção de inocência impõe ao juiz as seguintes “regras de tratamento e regras de julgamento”: que o ônus da prova seja sempre da acusação, jamais da defesa e que, em caso de dúvida, prevaleça a absolvição, ou seja, que prevaleça a máxima in dúbio pro reo[9].

Tal dimensão interna, portanto, guarda total relação com a proibição de uso abusivo de prisões preventivas, impostas com base em meras presunções abstratas de fuga, na periculosidade do réu. Não raro, muitas decretações de prisões são fundadas na vaga e, em geral, inconsistente “garantia da ordem pública”, numa apontada “personalidade voltada para o crime” e não em um juízo concreto de necessidade de prisão cautelar.

Mas há, também, uma dimensão externa da presunção de inocência, representada, no dizer de Aury Lopes Jr., pela “proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu”[10]. É essa presunção de inocência que, aliada às garantias de imagem, dignidade e privacidade, também constitucionalmente previstas, impõem “limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial”[11].

            Em ação judicial emblemática, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro obteve êxito em ação civil pública, ajuizada com o objetivo de impedir a polícia de exibir fotos dos presos provisórios[12], pois era praxe nas Delegacias prender-se a pessoa provisoriamente e enviar, para a imprensa, sua foto segurando uma depreciativa placa com número de identificação prisional. Sem dúvida, uma imagem fortíssima, que poderia ensejar prejulgamentos, não só pelo Poder Judiciário quanto, de modo geral, pela sociedade que tivesse acesso às matérias jornalísticas.

            Registre-se que o polo passivo da ação era o Estado do Rio de Janeiro, e não os veículos de comunicação. Afinal, estes só conseguiam obter as imagens porque elas eram fornecidas pela própria polícia. Assim, a decisão do TJRJ preserva a presunção de inocência e, ao mesmo tempo, a liberdade de imprensa, pois proibiu apenas a veiculação de imagens dos suspeitos. Permanece liberada a divulgação dos nomes, da descrição dos atributos físicos e dos fatos imputados.

            Além disso, a decisão proferida no TJRJ não traz qualquer óbice às ações de segurança pública, pois a divulgação da imagem do preso[13] poderá ser feita, desde que não de modo vexatório e se fundamentadas, previamente, as razões que justificam a restrição do direito à imagem da pessoa. Em determinada passagem, a juíza de primeira instância afirma que:

Veículos de comunicação, face à crescente empreitada tecnológica por comunicação e fins eminentemente econômicos/publicísticos, a exemplo de matérias jornalísticas veiculadas, tratam comumente as prisões provisórias como espetáculos midiáticos, expondo, por vezes, o preso provisório como se condenado já fosse. Mesmo em casos como o noticiado, não se pode, à margem da legislação posta, vilipendiar direitos, que deveriam ser resguardados pelo próprio Estado, em prol, de, inevitavelmente, garantir divulgação de imagens intramuros de reclusos, em situação de extrema insegurança. Desse modo, a ordem de deveres é invertida ao tempo em que, o sensacionalismo e a exploração comercial perseguem apenas a venda de jornais ou pontos no Ibope[14].

É possível entender o interesse da imprensa em uma determinada imagem. Bourdieau já dizia, sobre o efeito de real da TV, que ela “pode fazer ver e fazer crer no que faz ver”[15], o que pode gerar uma má percepção da realidade. A imagem de uma pessoa algemada e escoltada pela polícia[16] vale mais do que mil palavras e enseja, inevitavelmente, um prejulgamento do acusado.

Sabe-se que é direito dos jornalistas – e até dever – noticiar os fatos que chegam ao seu conhecimento, integralmente. Na realidade, se a imprensa consegue exibir, em tempo real, a prisão de um empresário ou político, é porque tal fato já havia chegado ao conhecimento dela, antes mesmo de acontecer. É natural, então, supor que esse tipo de notícia é enviado pelas autoridades policiais, pelo Ministério Público, ou seja, pela acusação.

Em casos de grande repercussão, é muito comum ouvirmos, ou mesmo dizermos, que a opinião pública está pressionando as autoridades policiais, ou os juízes, na maior parte das vezes, pela condenação. E, não raro, tais autoridades justificam seus despachos, suas decisões nesse tipo de pressão.

Mas, afinal, o que é opinião pública? Como ela se forma, ou é formada? Ela representa a opinião de quem? Como ela pode influir no julgamento de uma ação penal?

  1. A pressão da Opinião Pública em questões de natureza criminal.

A opinião pública não é o somatório das opiniões das pessoas que integram o público. Não é uma grande reunião de pensamentos e consciências individuais. Ela é apenas a opinião fabricada pelos meios de comunicação de massa, muitas vezes com o respaldo dos chamados formadores de opinião.

Tais veículos de comunicação cumprem o papel de produzir a opinião pública, a qual serve como uma espécie de filtro para a política. Ou seja: a política escolhe os temas que irá trabalhar a partir do filtro da opinião pública que é, por sua vez, fabricado pela mídia.

Por isso, por exemplo, são tão comuns os projetos de lei populistas, que aumentam penas ou criminalizam condutas, sempre que ocorre um caso criminal de grande proporção midiática. No livro “Por que o legislador quer aumentar penas?”, André Mendes aponta que: quase um quinto (19,37%) das proposições legislativas no período entre 2006 e 2014 na Câmara dos Deputados indicavam uma resposta dos legisladores à mídia[17].

Esse populismo penal não se importa com a consequência dessas propostas, apenas com a suposta necessidade de dar uma resposta rápida ao clamor social. Não à toa, segundo Mendes, “63,35% dos PLs não fizeram quaisquer referências extrapenais a dados, estudos e estatísticas relacionadas à norma que pretende alterar”. Há uma escassez de conhecimento técnico e um excesso de reproduções do senso comum.

Há, portanto, uma circularidade entre os meios de comunicação de massas, a opinião pública e a política. Isso é bem próprio da política: ela pauta a opinião pública e é pautada por ela.

O mesmo não ocorre – ou jamais deveria ocorrer – com o direito. Enquanto a política mantém, sim, estreita relação com a opinião pública, o direito não a tem, nem deve ter, ou ao menos não deveria ter. Isso é próprio da política, e não do direito.

Não cabe ao juiz qualquer tipo de integração com a opinião pública. A sua tarefa é, justamente, o oposto. É um trabalho solitário e silencioso, não é algo coletivo. Ao juiz cabe decidir com base nas provas produzidas em contraditório no processo judicial.

Ao contrário da política, o direito não deve pautar a opinião pública, nem pode ser pautado por ela. Não deveria haver, portanto, a referida circularidade entre direito, meios de comunicação de massas e opinião pública. Muitas vezes, contudo, não é o que se vê na prática.

  1. A sociedade do espetáculo e a espetacularização dos processos criminais.

Vivemos hoje no que Guy Debord chamou de “sociedade do espetáculo”. A vida nesta sociedade pode ser apresentada como uma superlativa “acumulação de espetáculos”, na qual “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”[18]. Ele nos traz o conceito de “comportamento hipnótico”, que é aquele motivado pela transformação das imagens em seres reais, o que ocorre quando o mundo real é transformado em simples imagens. Nós vemos isso o tempo todo nas redes sociais.

Para Debord, essa sociedade do espetáculo “é o âmago do irrealismo da sociedade real” e “o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade”.[19] É nesse contexto, de uma “sociedade do espetáculo”, que vemos a transformação do processo penal, de instrumento de limitação do poder punitivo a “objeto privilegiado de entretenimento”, configurando o “processo penal do espetáculo”.

Em sentido semelhante, Antonio Hespanha aponta para uma atual contaminação entre direito e comunicação social e pergunta: “Irá o direito colapsar perante os media?”[20].

Estrategicamente, as diversas prisões simultâneas das atuais Operações da Polícia Federal, salvo exceções, são realizadas com intensa cobertura midiática, quase sempre em tempo real[21]. Durante o dia, as imagens são reiteradas e a elas são acrescidos pequenos trechos de documentos da investigação, até então sigilosa.

É esse o “abrir das cortinas” do “processo penal do espetáculo”, que tanto insufla o clamor popular e, de modo geral, dificulta o trabalho da defesa.

Não há dúvidas de que o inafastável respeito à liberdade de imprensa, garantia constitucional que merece e deve ser respeitada em uma democracia, garante aos jornalistas e aos meios de comunicação o direito de publicar tudo aquilo que julgarem ser de interesse público, mesmo que diga respeito a um processo criminal.  Há quem afirme que isso é mais do que direito, é dever do profissional de mídia.

O problema é que, muitas vezes, uma divulgação excessiva de mídia pode gerar o que Simone Schreiber, em seu livro “Publicidade Opressiva dos Julgamentos Criminais”[22], denomina campanha de mídia contra o réu ou réus, eis que presentes os seguintes elementos que a caracterizam:

  1. intensidade de inserções relacionadas ao caso em um ou mais veículos e por longo período de tempo;

  2. divulgação parcial de fatos e versões e manipulação de dados – ou seja, uma exibição fragmentada das provas de acusação: trechos de documentos, frases soltas e descontextualizadas de interceptações telefônicas;

  • linguagem predominantemente opinativa, defendendo, de modo mais ou menos explícito, a condenação do réu[23] e

  1. a divulgação de provas ilícitas para sustentar a tese condenatória (por ex. interceptações telefônicas não autorizadas judicialmente)[24].

            Assim o foi no âmbito da Operação Lava Jato, nos processos de Júri com repercussão midiática, como o da boite Kiss, do caso Nardoni, ou em diversas outras ações penais que despertaram o interesse da grande imprensa. Não é difícil identificar que, em todos esses casos, houve enorme pressão popular, bradando pela condenação dos réus, com o foco voltado para a natureza do crime, e não para o conhecimento das provas dos autos.

  1. A simplificação, nem sempre positiva, dos processos criminais.

Segundo Bourdieu, os jornalistas – sobretudo os que comandam os meios de comunicação – “operam uma seleção e uma construção do que é selecionado”[25] para ser exibido. De modo geral, o “princípio de seleção é a busca do espetáculo, do sensacional. A televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e lhe exagera a importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico”[26]. Isso cai como luva aos processos criminais que já são, por natureza, acontecimentos repletos de drama e tensão.

Jornalistas sérios preocupam-se com as fontes e, na maior medida possível, com a verdade dos fatos, a realidade. Não inventam fatos inexistentes, não criam factoides. Sem dúvida, a liberdade de imprensa e uma boa comunicação dos acontecimentos relacionados a uma ação criminal podem ser um instrumento para um julgamento justo. Podem ser, inclusive, uma fonte relevante para apontar erros judiciais.

Mas há, também, os veículos cuja preocupação é, apenas, a de oferecer o melhor espetáculo para sua audiência. Em nome disso, há os que, não raro, descontextualizam fatos ou falas, omitem informações, gerando um descompasso entre o que, realmente, acontece nos autos do processo e o que é retratado na mídia.

Nem sempre, é bom que se diga, esse descompasso é culpa dos(as) jornalistas. E nem sempre há uma intenção, um “dolo” de camuflar informações importantes para a defesa. Em um maxiprocesso como a Lava Jato, por exemplo, em que mesmo os advogados têm dificuldade de conhecer os volumosos autos, é muito difícil que as equipes de jornalismo compreendam as intrincadas discussões probatórias e processuais. Ainda assim, contudo, e isso é um complicador nesse cenário, é comum que os veículos de comunicação não se limitem a divulgar a informação a que tiveram acesso e passem a tecer comentários e opiniões sobre os casos que estão sendo noticiados.

Sobre isso, Bourdieu diz que há “um elo negativo entre a urgência e o tempo” e se pergunta como os comentaristas de TV conseguem pensar em velocidade acelerada – a quem chama de fast thinkers.  A conclusão é a de que eles pensam por ‘ideias feitas’, ou seja: aquelas aceitas por todo mundo, banais, convencionais. São falas que não problematizam nada[27], nem cogitam haver outro lado. Eis o perigo de casos criminais comentados em tempo real.

Afinal, âncoras de jornal, comentaristas e convidados são “formadores de opinião” e suas avaliações têm potencial capacidade de reverberação. Não raro, os jornalistas prestam informações incompletas (por falta de tempo ou interesse em prestá-las integralmente), erradas (por desconhecimento jurídico, ou porque a verdade é pouco atraente para o espetáculo, como a anulação de uma decisão, liberdade do réu). Salvo exceções, o devido processo legal não costuma interessar à mídia e é comumente visto como óbice, ideia muito em voga atualmente, não só entre os jornalistas. Basta ver que Sergio Moro, enquanto ainda era juiz, publicou em um jornal o artigo intitulado “o problema é o processo”[28].

Cada vez mais, vemos avançar a ideia de simplificação dos processos criminais, nem sempre positiva e que tem seduzido, até mesmo, alguns advogados.

Ao comentar a contaminação entre o direito e a comunicação social, Hespanha aponta a estratégia, tanto da defesa, quanto da acusação, em países como Estados Unidos da América e Portugal, de utilizar técnicas comunicativas próprias da mídia para simplificar a narrativa dos processos judiciais, especialmente em matéria de prova, selecionando os “fatos mais chamativos e vibrantes”. Assim, a história passa a não ser mais construída com base nas provas, mas, sim, com vistas a torná-la mais “atraente” e assemelhada a série de TV[29]. Um dos meios para isso é o chamado “gancho”, ou seja, concluir um noticiário, deixando no ar um suspense do que está para acontecer  com o processo judicial.

O objetivo disso não é só tornar a linguagem do direito mais acessível aos leigos, o que seria uma iniciativa louvável. Segundo o autor, a intenção por trás dessas novas formas de comunicação do direito é “condicionar o interlocutor” através de “meios muito mais sofisticados e sustentados na técnica e nos saberes sobre a cognição”. Para ele, Hespanha, isso “corrói o ideal de um diálogo justo, transparente e livre” e serve para “manipular testemunhas, jurados ou juízes”[30].

A consequência dessa estratégia é que os espectadores transportam, para os casos jurídicos, os estereótipos da ficção – os “bom” vs os “maus”, o “herói” vs o “vilão” – e, com a cada vez mais frequente transmissão dos julgamentos pela imprensa, o “pensamento raciocinante”, ou seja, argumentativo, é substituído pelo “pensamento associativo”, ou seja, aquele formado por imagens desgarradas, sem uma sequência lógica, cujos espaços vazios de informação (eis que a mídia, de fato, não informa tudo, nem tem como informar) são preenchidos por “pré-compreensões”  (estereótipos, modelos) existentes na  conceituação popular.

Conforme diz Hespanha, embora seja importante traduzir o direito para quem não é da área, é grande a probabilidade de que esse tipo de apresentação apele para “uma forma psicológica de apreensão e resolução do caso jurídico diferente da tradicional”[31]. Nos processos criminais, tal circunstância pode ser, particularmente, perigosa, pois uma compreensão fragmentada do caso pode levar a uma injusta condenação do réu.

  1. A “contaminação entre o direito e a comunicação social” e o descompasso entre o ritmo da mídia e o de um processo judicial[32].

Nesse cenário de “contaminação entre o direito e a comunicação social” há, ainda, o fator tempo: o ritmo da mídia não é o mesmo de um processo judicial[33].

Os riscos desse descompasso entre os ritmos é grande: quando um comentarista – dos que Bourdieu chama de fast thinkers – não conhece o direito, nem o caso (as provas e os fatos) e se arvora em comentar na TV sobre o que não domina, a partir de ideias feitas, isso contribui não só para criar a opinião pública pela condenação do réu, mas para pressionar o julgador.

Como o tempo do processo e o tempo da mídia são diferentes, a pessoa exposta pode ser absolvida muito tempo depois. De modo geral, essa absolvição, contudo, não tem a mesma exposição de mídia que a acusação.

Mesmo quando divulgadas as absolvições, muitas vezes o estrago feito pela exposição midiática é irreparável. Exemplo disso é o caso da Escola Base, em São Paulo, em que duas mães acusaram três casais que nela trabalhavam, de abuso sexual. Os donos do colégio foram acusados de promover orgias sexuais. Os acusados foram presos, fotografados, expostos na mídia antes de conclusas as investigações.

Jornais populares publicavam manchetes como a seguinte: “Kombi era motel na escolinha do sexo”. A escola foi depredada pela população[34]. Antes que os acusados tivessem prestado depoimento na delegacia, os sigilos bancários deles foram quebrados, a pedido do relator da CPI sobre prostituição infantil. O sensacionalismo era tanto, que prenderam um americano que nada – absolutamente nada – tinha a ver com o caso e só foi solto nove dias depois.

Os suspeitos concederam entrevista para a imprensa e diversos jornalistas sérios começaram a ponderar que o fato poderia não ser verdadeiro. Eis a importância de uma imprensa séria e responsável como há, sem dúvida, em diversos veículos de nosso país. Uma boa matéria jornalística pode, sim, contribuir para inocentar um acusado.

Foi o que, tardiamente, ocorreu no caso da Escola Base. Diversas provas da inocência dos envolvidos começaram a aparecer, eles foram inocentados e os jornais fizeram uma mea culpa do erro. Mas o estrago, na vida daquelas pessoas, já estava feito. Trata-se de erro que pode ser indenizável, mas é irreparável.  E o ódio gerado nas pessoas também não se desfaz com naturalidade.

Bourdieu aponta que a televisão, através do uso selecionado de imagens, é capaz de “desencadear sentimentos fortes, frequentemente negativos” como, por exemplo, o ódio, o que “implica sempre uma construção social da realidade capaz de exercer efeitos sociais de mobilização (ou de desmobilização)”[35]. No processo penal do espetáculo, isso tem especial relevância, e pode influenciar o julgamento de ações penais.

Considerações Finais

O que se vê muitas vezes, nos processos midiáticos, é uma espécie de retroalimentação entre os representantes do Poder Judiciário e a imprensa, o que pode influenciar a esperada imparcialidade dos julgadores: ao mesmo tempo em que o Poder Judiciário alimenta a imprensa com informações referentes aos processos em julgamento, esta mantém aceso o interesse da população nas notícias e pressiona os julgadores a decidir conforme o clamor popular.

Embora não haja fórmula específica sobre como lidar com essa questão, é possível afirmar que a liberdade de expressão e de imprensa pode ser perfeitamente compatível com o direito ao contraditório e à ampla defesa, se os meios de comunicação se limitarem a informar e não a pré-julgar, além de disponibilizarem tempo e espaço para as manifestações de representantes da advocacia ou da defensoria pública.

Evidente que a defesa técnica, por uma questão estratégica, pode preferir não se pronunciar. Mas é fundamental que os veículos de comunicação tenham, sempre, o cuidado de checar a veracidade das informações – é comum circularem fake news sobre processos criminais – e que faculte espaço para advogados ou defensores se pronunciarem sobre o que estiver sendo dito pela acusação.

Em tempos tão duros para o incompreendido direito de defesa, o exercício da advocacia em um caso midiático pode trazer um dificultador a mais: o de remar contra a maré, o de o profissional herdar para si a ira coletiva que, eventualmente, volta-se contra o cliente e que se manifesta, sobretudo, no anonimato das redes sociais. Nos Tribunais da Internet, as pessoas são acusadas, julgadas e condenadas na velocidade da luz.

Com efeito, não há dúvida de que não há democracia sem imprensa livre, e essa liberdade representa um poder extraordinário, que pode ser utilizado para o bem, ou para o mal. Para informar, ou para manipular. Não à toa, Joseph Stalin dizia que “a imprensa é a arma mais poderosa no nosso partido”, pensamento muito próprio de governos monocráticos ou antidemocráticos.

            Justo por isso, tal poder precisa ser exercido com absoluta responsabilidade e com respeito, de modo irrestrito, às demais garantias constitucionais. Vale dizer: aos jornalistas, cabe informar e, ao juiz, cumpre julgar. Quando um jornalista julga e um juiz divulga, é porque algo está fora do lugar. Mais cedo ou mais tarde, as consequências disso acabam se tornando altamente prejudiciais para qualquer país.

 

[1] Advogada criminal, sócia do Escritório Maíra Fernandes Advocacia. Mestra em Direito e Pós-graduada em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora convidada da FGV Rio, da Universidade Cândido Mendes e de diversos cursos de especialização. Conselheira titular da OAB-RJ. Presidente da Comissão de Crimes Digitais da OABRJ e coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCRIM.

[2] HESPANHA, António Manuel.  Ibidem., p. 413.

[3] Artigo publicado, originalmente, em: Mulheres da Advocacia Criminal. Wanessa Rodrigues. (Org.) 1ed.:, 2021, v. 1.

[4] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Rio de Janeiro: Tecnoprint S.A., p. 52.

[5] Trad. livre de “A free press can, of course, be good or bad, but, most certainly without freedom, the press will never be anything but bad”. CAMUS, Albert. Albert Camus, Quotes, Quotations, Famous Quotes. Createspace Independent Publishing Platform, 2016.

[6] Tal frase, muito conhecida e disseminada, é equivocadamente atribuída a Voltaire, mas nunca foi dita pelo filósofo, segundo os estudiosos de suas obras.

[7] LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 97.

[8] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Rio de Janeiro: Tecnoprint S.A., 1969, p. 66.

[9] LOPES Jr., Aury.  Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 96

[10] LOPES Jr., Aury.  Idem., p. 97.

[11] LOPES Jr., Aury.  Idem., ibidem.

[12]TJRJ. Ação Civil Coletiva nº 0131366-09.2013.8.19.0001, ainda sem trânsito em julgado. Sentença e apelação favoráveis aos pedidos formulados pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Informações sobre a decisão também disponíveis em: http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/8838-Decisao-obtida-pela-DPRJ-proibe-exposicao-de-presos-provisorios. Acesso em 20/05/20.

[13] Não se desconhece a relevante discussão acerca do sexismo linguístico, que merece ser evitado. Todavia, por questão de espaço e melhor fluência do texto, optou-se por adotar as palavras, tão somente, no gênero masculino, compreendidas como o denominado “termo neutro”, a englobar homens e mulheres. Assim, por “preso” leia-se “preso ou presa”. Da mesma forma, advogados e advogadas, juízes e juízas, dentre outros exemplos.

[14] TJRJ. Ação Civil Coletiva nº 0131366-09.2013.8.19.0001. Sentença proferida em 19/10/2015:” JULGO PROCEDENTE O PEDIDO, confirmando a antecipação de tutela deferida, para condenar o Estado do Rio de Janeiro, por intermédio de seus agentes púbicos (Delegados de Polícia, Policiais Militares, Agentes da SEAP, entre outros), em se tratando de Pessoas presas provisoriamente, somente divulguem o(s) nome(s) do(s) acusado(s), descrição dos seus atributos físicos juntamente com o fato(s) imputado(s) sem qualquer divulgação de imagem ou foto. Caso não opte pela divulgação nos termos declinados acima, o Estado do Rio de Janeiro, por meio de seus agentes públicos, deverá motivar previamente, e de maneira clara, congruente e explícita, as razões para a exibição de foto ou imagem involuntária, desde que o façam de maneira a não possibilitar a imediata identificação do encarcerado provisório, SALIENTANDO, SOBRETUDO, A UTILIDADE DA EXPOSIÇÃO PARA A PERSECUÇÃO PENAL, PRÉ-PROCESSUAL E PROCESSUAL, sob pena de multa de R$10.000,00 (dez mil reais) para cada exposição, multa que será revertida a titulo de indenização para o preso cuja imagem foi indevidamente exposta”.

[15] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 28.

[16] Confira-se, por exemplo, a imagem do ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, algemado nas mãos, na cintura e nos pés “Cabral é levado ao IML de Curitiba com algemas nos pés e nas mãos”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/01/1951755-cabral-e-levado-ao-iml-de-curitiba-com-algemas-nos-pes-e-nas-maos.shtml. Acesso em 20.05.2020.

[17] MENDES, André Pacheco Teixeira.  Por que o Legislador quer aumentar penas?  Belo Horizonte:  Del Rey, 2019.

[18] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017, p. 37.

[19] DEBORD, Guy. Op. Cit., p.38.

[20] HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito, Op, Cit., p. 421.

[21] Por ex.: a prisão do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, foi transmitida ao vivo e reprisada, várias vezes, durante o dia na TV. DIONÍSIO, Bibiana et. al.  Eduardo Cunha é preso em Brasília por decisão de Sérgio Moro. Deputado foi levado em avião da Polícia Federal para Curitiba. Prisão é por tempo indeterminado e referente a processo por propina.Publ: 19/10/2016 13h29.  Do G1 PR, da RPC e da GloboNews http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/juiz-federal-sergio-moro-determina-prisao-de-eduardo-cunha.html. Acesso em 20/05/2020.

[22] SCHREIBER, Simone. A Publicidade Opressiva De Julgamentos Criminais. Uma investigação sobre as consequências e formas de superação da colisão entre a liberdade de expressão e informação e o direito ao julgamento criminal justo, sob a perspectiva da Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[23]Confira-se a longa matéria em: http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/v/prisao-de-marcelo-odebrecht-foi-capitulo-marcante-da-lava-jato/6368048/ Acesso em 20/05/2020.

[24] SCHREIBER, Simone. Op.Cit., p. 412.

[25] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Op. Cit., p. 23.

[26] BOURDIEU, Pierre. Ibidem., p. 25.

[27] BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., p. 40.

[28] MORO, Sérgio; BOCHENEK, Antônio Cesar. O problema é o processo. Publicado em 29 Mar. 2015. JORNAL ESTADÃO. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-problema-e-o-processo/>. Acesso em 20/05/2020.

[29] HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito. Op. Cit., p. 420.

[30] HESPANHA, António Manuel. O caleidoscópio do direito. Op. Cit., p. 421.

[31] HESPANHA, António Manuel.  Op. Cit., p. 423.

[32] HESPANHA, António Manuel.  Ibidem., p. 413.

[33] HESPANHA, António Manuel.  Ibidem., p. 413.

[34] Confira-se em: https://noticias.r7.com/prisma/arquivo-vivo/so-a-imprensa-tem-culpa-no-escandalo-da-escolinha-do-sexo-01022018. Acesso em 20/05/2020.

[35] BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., p. 28.

Palavras Chaves

presunção de inocência; opinião pública; mídia; imprensa; processo penal; julgamentos criminais.