MULHERES NEGRAS: PROCESSOS DE RESISTÊNCIA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL PARA GARANTIA DE DIREITOS

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo analisar os direitos das mulheres negras, e como foram estruturais a partir da escravidão até a constituição do feminismo negro, utilizado como uma ferramenta antirracista e antissexista e uma forma de contribuição para a democracia. Foram utilizados como base bibliográfica os estudos de Fanon, conjugado com o estudo da branquidade de Guerreiro Ramos, além dos estudos do feminismo de Lélia González e demais literaturas especializadas de mulheres negras, assim como consultados artigos científicos, selecionados por meio de busca nos bancos de dados do Scielo e Google Scholar. O estudo é baseado no protagonismo e resistências das mulheres negras e um meio de entendimento da formação do feminismo negro, extraindo-se dessa compreensão a relevância para a constituição de direitos. Assim, destaca-se situações das mulheres negras não só em seus movimentos de luta do cotidiano, mas principalmente na linha da intelectualidade, bem como seu lugar de fala. A articulação entre essas análises permite notar as dificuldades que ainda existem em identificar os sujeitos de direitos dentre aqueles que são socialmente marginalizados e politicamente excluídos.

Abstract

The present work aims to analyze the rights of black women, and how they were structural from slavery to the constitution of black feminism, used as an anti-racist and anti-sexist tool and a form of contribution to democracy. Fanon's studies were used as a bibliographic basis, in conjunction with Guerreiro Ramos' study of whiteness, in addition to the studies of feminism by Lélia González and other specialized literatures of black women, as well as scientific articles were consulted, selected by searching the databases. Scielo and Google Scholar data. The study is based on the protagonism and resistance of black women and a means of understanding the formation of black feminism, extracting from this understanding the relevance for the constitution of rights. Thus, situations of black women stand out not only in their daily struggle movements, but mainly in the line of intellectuality, as well as their place of speech. The articulation between these analyzes allows us to note the difficulties that still exist in identifying the subjects of rights among those who are socially marginalized and politically excluded.

KEYWORDS: Identity. Oppression. Black feminism. Racism. Sexism

Artigo

MULHERES NEGRAS: PROCESSOS DE RESISTÊNCIA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL PARA GARANTIA DE DIREITOS

 

Flávia Helena Santos da Silva, Mestranda em Desenvolvimento Local, pelo centro universitário Augusto Motta, campus Bonsucesso, Pós-Graduanda em Relação Étnicos Raciais da Educação Básica, pelo Colégio Pedro II, campus Centro, Pós-Graduada em direito Civil e Processo Civil, pelo centro universitário Augusto Motta, campus Bonsucesso, Graduada em Direito, pelo Centro Universitário da Cidade, advogada. E-mail: [email protected]

 

  

RESUMO

 O presente trabalho tem como objetivo analisar os direitos das mulheres negras, e como foram estruturais a partir da escravidão até a constituição do feminismo negro, utilizado como uma ferramenta antirracista e antissexista e uma forma de contribuição para a democracia. Foram utilizados como base bibliográfica os estudos de Fanon, conjugado com o estudo da branquidade de Guerreiro Ramos, além dos estudos do feminismo de Lélia González e demais literaturas especializadas de mulheres negras, assim como consultados artigos científicos, selecionados por meio de busca nos bancos de dados do Scielo e Google Scholar. O estudo é baseado no protagonismo e resistências das mulheres negras e um meio de entendimento da formação do feminismo negro, extraindo-se dessa compreensão a relevância para a constituição de direitos. Assim, destaca-se situações das mulheres negras não só em seus movimentos de luta do cotidiano, mas principalmente na linha da intelectualidade, bem como seu lugar de fala. A articulação entre essas análises permite notar as dificuldades que ainda existem em identificar os sujeitos de direitos dentre aqueles que são socialmente marginalizados e politicamente excluídos.

 

PALAVRAS-CHAVE: Identidade. Opressão. Feminismo negro. Racismo. Sexismo

 

ABSTRACT

 The present work aims to analyze the rights of black women, and how they were structural from slavery to the constitution of black feminism, used as an anti-racist and anti-sexist tool and a form of contribution to democracy. Fanon’s studies were used as a bibliographic basis, in conjunction with Guerreiro Ramos’ study of whiteness, in addition to the studies of feminism by Lélia González and other specialized literatures of black women, as well as scientific articles were consulted, selected by searching the databases. Scielo and Google Scholar data. The study is based on the protagonism and resistance of black women and a means of understanding the formation of black feminism, extracting from this understanding the relevance for the constitution of rights. Thus, situations of black women stand out not only in their daily struggle movements, but mainly in the line of intellectuality, as well as their place of speech. The articulation between these analyzes allows us to note the difficulties that still exist in identifying the subjects of rights among those who are socially marginalized and politically excluded.

 

KEYWORDS: Identity. Oppression. Black feminism. Racism. Sexism

 

INTRODUÇÃO

 Pensar mulheres negras na atualidade, traduz-se também em refletir em muitos desafios. Quando se conjuga mulheres negras e direito na realidade brasileira remete-se há várias lacunas já que como registram os dados estatísticos (por vários anos, inclusive na última pesquisa realizada em 2019) encontra-se a mulher negra nos piores índices, seja de saúde, trabalho, renda, moradia, educação. Sabemos que tais resultados refletem hoje na sociedade devido ao passado histórico e vergonhoso do país escravocrata. Além disso, apesar  abolição da escravidão, viveu-se longos períodos sob o mito da democracia racial que acentuou mais a desigualdade e ajudou a perpetuar o racismo e sexismo.

Assim temos a dupla opressão vivida pela mulher negra, como bem observou Creshaw (2002), pois tem a interseção do racismo, sexismo.

Por outro lado, pensamos não só no lado negativo, pejorativo das mulheres negras, o qual demonstra as mídias e demonstrados nas pesquisas estatísticas. Se fossemos considerar só a derrota da população negra, em especial da mulher negra, não teríamos sobrevivido até os dias atuais (aqui me incluo como mulher negra, mãe, ativista).

Assim, resistimos, apesar de tentativas de silenciamento e apagamentos de nossa cultura, educação, história. Nessa linha de pensamento que continua-se a luta e conquista-se os direitos, conforme o legado pelas nossas ancestrais, nos fortalecemos através da união em prol do coletivo.

Não buscamos aquela igualdade formal da igualdade perante a lei, mas a igualdade a que temos de direito. O direito de ser tratado dignamente, com respeito, de ter acesso a uma boa educação, à saúde, à moradia adequada, as condições equânimes de trabalho, isto é, direitos básicos a garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

O presente trabalho articulará, de maneira breve, a questão da mulher negra na sociedade brasileira e seus direitos através dos conceitos de racismo de Fanon, Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos bem como se baseará nos conceitos dos estudos de Lélia González e demais feministas negras que integram e estão engajadas no movimento feminista negro.

Consubstancia-se que historicamente, as mulheres negras possuíam valor e identidade que lhes foi atribuída e não as que lhe pertencia verdadeiramente. Por esse viés, o movimento feminista negro é de suma importância para a afirmação da identidade afro-brasileira e, de certa forma, uma maneira educação pela ótica dessas mulheres. A luta antirracista avança melhor com uma teoria que fale sobre a importância de admitir que o reconhecimento e aceitação positiva da diferença são um ponto de partida necessário para erradicar a supremacia branca.

 

NOSSOS PASSOS VEM DE LONGE – O HISTÓRICO E CONTRIBUIÇÃO DAS MULHERES NEGRAS NA FORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA.

 

Remete-se o tema de que nossos passos vem de longe, frase utilizada por Jurema Werneck, pois consideramos que a escravidão resultou não só muito sofrimento à população africana, bem como causou prejuízo em termos de constituição de família, trabalho, moradia e educação, como também impossibilitou a maioria dos escravizados de adquirir riquezas. Ademais, a escravidão foi uma mola propulsora para o desenvolvimento econômico do país. No entanto, o negro não foi reconhecido como um cidadão brasileiro, nem como estrangeiro (Nabuco, 1988), mas tratado como coisa a ser repelida.

Fanon (2004) explica o processo de inferiorização dos negros em dois pilares fundamentais. O primeiro, seria o aspecto econômico, no tocante à perda de terras, da autonomia, e do trabalho. Esse processo econômico é epidermizado, ou seja, baseado na cor da pele e justificado por esse quesito. O segundo item, seria o fato da desculturação, na qual o colonizado era obrigado a adotar uma linguagem diferente da sua nativa. Havia uma imposição de assumir uma outra cultura.

Há a visão etnocêntrica com relação ao escravizado, uma vez que: “os africanos e africanas passaram a ser representados como povos sem lei, fé ou rei, descrição esta que os caracteriza a partir da noção de falta, basilar na construção da imagem do negro como inferior em relação a do branco” (STREVA, 2018, p.37).

Assim, pode-se compreender que: “tanto a inferiorização quanto o sentimento de superioridade são construções socioculturais impostas pela colonização” (FANON, 2008, p.27).

González (1988 b, p.71-72) a seu turno ao se referir ao colonialismo europeu demonstra a forma etnocêntrica como foram tratadas outras culturas, como a africana, pois por se considerada “selvagem e exótica”, ensejou e justificou com “naturalidade a forma violenta e destruidora das forças do pré-colonialismo europeu” sobre os povos que tinham a cultura diferente. E comentou sobre os estudos de Fanon a respeito da “eficácia que a dominação colonial exercia sobre os colonizados”, pois “o racismo desempenhou um papel fundamental na internalização da “superioridade” do colonizador pelos colonizados”.

Sobre a exploração da América alegou que:“As sociedades que vieram a constituir a chamada América Latina foram as herdeiras históricas das ideologias de classificação social (racial e sexual) e das técnicas jurídico-administrativa das metrópoles ibéricas”(GONZALÈZ,1988, p.73). E acrescentou ao tema que:

Por isso mesmo, a afirmação de que todos são iguais perante a lei, assume um caráter nitidamente formalista em nossa sociedade. O racismo latinoamericano é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. Veiculada pelos meios de comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido o mito da superioridade branca demonstra sua eficácia pelos efeitos dos estilhaçamentos, de fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura (GONZÀLEZ, 1988a).

No mesmo sentido Ramos (1957, p.157), sobre os estudos da branquidade:

O negro é povo, no Brasil. Não é um componente estranho de nossa demografia. Ao contrário, é a sua mais importante matriz demográfica. E este fato tem de ser erigido à categoria de valor, como exige nossa dignidade e o nosso orgulho de povo independente. A condição do negro só é socialmente problemática em decorrência da alienação estética do próprio negro e da hipercorreção estética do branco brasileiro, ávido de identificação com o europeu.

O Autor citado, na década de 1950, já demonstrava a importância de se estudar o branco. Segundo ele, nas relações raciais, a dominação dos brancos europeus se deu por meio de “um sistema de pseudojustificações, de estereótipos, ou processos de domesticação psicológica”.E continua dizendo que: “nosso branco é, do ponto de vista antropológico, um mestiço, sendo, entre nós, pequena minoria o branco não portador de sangue preto”. E utilizando-se da metáfora biológica, Guerreiro, chama esse desencaixe de patologia, isto é, uma doença afeta todos os brasileiros e resulta em baixa autoestima (RAMOS, 1957, p.219, 224-225).

Por esse motivo, Nascimento (1980, p. 252-253) reforça que devemos conhecer a nossa história, como forma de fortalecer nossa identidade. Salienta sobre a memória afro-brasileira para que haja um futuro melhor para o negro com respeito e valorização às suas origens, cultura, religião, saberes etc. E não somente aquela memória negativa, que atinge um período mais restrito, o qual se inicia com a escravidão em 1500.

Ramos (1957) imbuído no protagonismo do negro de ser detentos da própria história e não somente um objeto de estudo, diferencia negro-tema e negro-vida. E explica que no caso do primeiro é o negro que seria uma coisa examinada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso, enfim uma coisa que chama a tenção. Já o segundo seria algo que não se deixa imobilizar, é despistador, proteico, multiforme, o qual não se pode dar versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje..

Nascimento (1980, p.253) também destacou o racismo em prol do chamado “branqueamento da raça brasileira” quando menciona que o trabalho do africano que ergueu a estrutura do Brasil durante três séculos e meio, se configurou no “próprio corpo e alma deste país”. Tanto eles como seus descendentes nunca foram e não são tratados como iguais pelos segmentos minoritários brancos, os quais têm mantido a exclusividade do poder, do bem-estar e da renda nacional. E citou a imigração dos europeus, que apesar de pobres, chegam como imigrantes e passam a desfrutar de privilégios que a sociedade convencional do país lhes concedeu por ter o tom de pele claro. Não só se beneficiaram dos privilégios como preencheram as vagas no mercado de trabalho que se negava aos ex-escravos e seus descendentes.

Neste particular, pensando no período extenso da escravidão, paira uma dúvida acerca do dinheiro arrecadado com o tráfico de escravos no Brasil. O que foi feito com essa arrecadação? Quem se beneficiou dela?

Sobre o tema dos tributos oriundos do tráfico de escravos, a Carta de Lei de 1824  dispunha o artigo 179, XXI que: “É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude”. A plenitude do direito de propriedade incluía a propriedade de pessoas e comércio, o qual era uma forte arrecadação tributária indispensável para o Governo Imperial.

Neste diapasão explana Prudente (2006, p.50):

(…) não seria exagero dizer que os recursos do Tesouro Nacional foram formados com o dinheiro advindo do tráfico negreiro. O Governo instituiu tributos a ser cobrado sobre a negociação com escravos, sendo o principal deles a Sisa. Assim, o comércio de escravos, foi por um longo período, a principal fonte de recursos do estado brasileiro. Isto faz aumentar a dimensão da dívida social que a República Federativa do Brasil tem ainda em nossos dias com a população afrodescendente.

Assim demonstramos, nesse breve histórico, o quanto foi subtraído de nós, povo negro, em relação à cultura, educação e mais ainda, apagada toda uma história sobre uma nação construída com todo o trabalho dos africanos(as) que foram trazidos obrigados para o Brasil e tratados sem nenhuma humanidade. Não seria demasiado pensar atualmente em uma reparação, já que a presença do racismo e suas mazelas permanece com as pessoas negras até os dias atuais.

Dados os assuntos gerais da escravidão, a seguir, nos próximos parágrafos, será mostrado um campo mais específicos sobre o histórico das mulheres negras.

Importante destacar o papel das mulheres negras que foram escravizadas, para entender o seu papel e importância na formação da estrutura da sociedade brasileira e na economia do país. Não só no aspecto de reprodução, já que tinham a função biológica de reproduzir, aumentando dessa forma a mão de obra para a produção, como na formação das famílias brasileiras.

No Rio de Janeiro, assim como em outras cidades, no século XIX, havia as chamadas “escravas de ganho”. Eram quituteiras, que vendiam livremente suas mercadorias pelas ruas, para obter o próprio sustento, e o de seus senhores.

Haviam também escravos ou libertos que vendiam produtos na rua, mas as quitandeiras eram uma classe de comerciantes compostas majoritariamente por mulheres negras, escravas ou livres, que vendiam uma variedade de produtos alimentícios (Freitas, 2015). Eram as principais fornecedoras de alimentos da cidade e de suma importância para o negócio dos escravos, pois abasteciam os navios negreiros para a travessia atlântica.

Sobre a tributação das negras ganhadeiras, abrimos um parêntese, para comentar que enquanto escravas havia um tributo no comércio do seu corpo e outro tributo sobre os produtos que vendia. Desde essa época do século XIX, até os dias atuais, nós, mulheres negras, sob o prisma econômico somos duplamente cobradas, apesar de representarmos a maioria da população segundo o IBGE.

Almeida (2018, p.134) observa que:

No Brasil, em que a tributação é feita sobre salário e consumo, em detrimento da tributação sobre patrimônio e renda, que incide sobre os mais ricos, a carga tributária, a carga tributária torna-se um fator de empobrecimento da população negra, especialmente das mulheres negras, visto que estas recebem menos salários

No mesmo sentido Salvador (2014, p.26) esclarece, segundo o relatório da pesquisa As implicações do sistema tributário na desigualdade de renda, em sendo a carga tributária brasileira regressiva:

(…)pois mais da metade dela incide sobre o consumo, isto é, está embutida nos preços dos bens e serviços, a consequência é que as pessoas com menor renda (por exemplo, as mulheres negras) pagam proporcionalmente mais tributos do que aquelas com renda mais elevadas. Com isso, pode-se concluir que a regressividade do sistema tributário, ou seja, o financiamento das políticas públicas brasileiras quanto ao peso dos tributos recai sobre as mulheres e os/as negros/as. Os dados indicam, particularmente, que as mulheres negras pagam proporcionalmente, em relação aos seus rendimentos, muitos mais tributos do que os homens brancos. Com isso qualquer política econômica fiscal e orçamentária que mereça ser levada a sério precisa incorporar o debate da desigualdade racial(…).

Geralmente, as escravizadas ganhadeiras trajavam vestes e adereços conforme sua etnia, portando turbantes, batas, saias, túnicas de cores e panos-da-costa, se não soltos nos ombros, serviam para carregar seus filhos às costas (BARRETO FARIAS et. al, 2006; FREITAS, 2015; SCHUMAHER; VITAL BRAZIL, 2007).

Esse comércio desempenhado pelas “negras ganhadeiras” representava uma utilidade tanto para os escravizados e trabalhadores livres, como uma lucratividade para seus exploradores (que se apropriavam dos lucros da venda) e para o Estado (que arrecadava o imposto e resolvia o problema do abastecimento básico).

Silva (2010) caracteriza a resiliência das escravas urbanas deste período, pois desempenhavam atividades que lhe davam mais oportunidade de mobilização e com essa atitude construíam amizades que futuramente ajudariam em seus planos de fuga ou concessão de alforrias.

Sobre a resiliência e resistência das negras ganhadeiras cabe tecer o comentário de COSTA(2019):

Sagazes e inteligentes, as “ganhadeiras” – que foram as primeiras empreendedoras deste País, viram na atividade uma forma de resistência e de luta contra a escravidão e incluíram rosas na extensa lista de produtos que ofereciam nas ruas. Os valores arrecadados com as flores – após o repasse do ganho do escravizador – eram poupados para a compra de alforria dos seus filhos.

Esse movimento realizado pelas mulheres negras recebeu adeptos entre abolicionistas e se transformou em uma rede estrategicamente articulada na luta em prol do fim da escravidão. Essas mulheres ficaram conhecidas como Rosas Negras e transformaram-se em símbolo da resistência na luta pela liberdade.

Posteriormente, na década de 30, as mulheres integrantes do primeiro agrupamento feminino da frente negra brasileira  – As Rosas Negras – era uma comissão (ou departamento de mulheres) que se vestiam de branco, usavam luvas e ostentavam uma rosa preta no peito, em respeito às líderes ancestrais e também era uma forma de identificar que a luta continuava pela liberdade e respeito à negritude (DOMINGUES, 2007; COSTA, 2019).

SODRÉ (2002, p.148-149) sobre a territorialidade africana no Brasil, já que os negros(as) diaspóricos tiveram que se recontextualizar, pois estavam distantes de sua origem, explica que também ocorria essa “marca” no território brasileiro através dos terreiros. Os grupos de festas, os cordões e os blocos carnavalescos, os ranchos, sempre estiveram vinculados direta ou indiretamente (por meio dos músicos, compositores ou pessoas de influência) ao candomblé. Cada casa de culto tinha o seu bloco carnavalesco. No Morro da Mangueira, destacavam-se os da Tia Fé e da Tia Tomásia. Na Cidade Nova, Tia Ciata, Tia Veridiana, Tia Amélia do Aragão, Tia Presciliana e outras.

Tal referência faz-se necessária porque o modelo de funcionamento da casa (na Praça Onze) de Hilária Batista de almeida, a Tia Ciata, “babalaô-mirim” (como é designada em registros biográficos) simbolizou a estratégia de resistência pelo jogo à marginalização imposta ao negro em seguida a abolição (CANDEIA & ISNARD, p.11). Foi a maior incentivadora de gênero na cidade do Rio de Janeiro.

No final do século XIX, com a abolição da escravatura, tia Ciata migrou para o Rio de Janeiro, aos 22 anos de idade, em busca de melhores condições de vida e instalou-se no Centro. Teve de trabalhar como quituteira para ajudar em casa e sustentar os filhos. Foi uma das precursoras, do movimento de tias baianas quituteiras da Cidade maravilhosa (MOURA, 1983).

A atuação das tias quituteiras, segundo Sodré (2002, p.149), foi fundamental para garantir a manutenção da cultura popular trazida da Bahia e dos ritos de tradição africana. A habitação, segundo depoimento de seus velhos frequentadores, tinha seis cômodos, um corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas, realizavam-se bailes; na parte dos fundos, samba de partido-alto ou samba raiado; no terreiro, batuque (batucada festiva ou, então o culto). Era o período da história noturna ou clandestina do samba, quando o jogo negro sofria perseguição ostensiva da polícia. E continua dizendo que:

A casa da Tia Ciata tinha suas defesas. Metáfora viva das posições de resistência adotadas pela comunidade negra, a casa continha elementos ideologicamente necessários ao contato com a sociedade global: “responsabilidade” pequeno burguesa dos donos; os bailes na frente da casa (já que ali se executavam músicas e danças mais conhecidas, mais “respeitáveis”; nos fundos, os sambas (onde atuava a elite negra da ginga e do sapateado); também nos fundos, a batucada – terreno próprio dos negros mais velhos, onde se fazia presente o elemento religioso – bem protegida pelo “biombo” cultural da sala de visitas. A economia semiótica da casa, isto é, seus dispositivos e táticas de funcionamento, fazia dele um campo dinâmico de reelaboração de elementos da tradição cultural africana, gerador de significações capazes de dar forma a um novo modo de penetração urbana para os continentes negros. Foi essa maternidade mítica – sustentada pela maternidade mítico social das mulheres (as “mães de santo”, as “tias” negras) na diáspora escrava – que orientou as sínteses e as reelaborações históricas (SODRÉ, p.150-155).

Não era à toa que a casa “matricial”(no sentido de “útero”, lugar de gestão) da Tia Ciata se situava na comunidade da Praça Onze, a única que escapou ao “bota abaixo” reformista do prefeito Pereira Passos. Naquele território, reaglutinaram-se, à maneira de um Pólis, forças de sociabilização. Estas, tangidas pela reforma do Centro da cidade (com a consequente destruição de freguesias com vida comunitária intensa), abriram-se na Praça Onze de Junho ou, simplesmente, Praça Onze (antigo largo do Rocio pequeno), na Cidade Nova.

Esse tópico demonstra a força e resistência das mulheres negras que, apesar das adversidades e omissões do Estado em relação ao tratamento delas enquanto cidadãs, lutam e continuam derrubando barreiras para o alcance de direitos, como a cidadania, por exemplo, a qual foi alijada dessas mulheres por séculos. Reagem contra o racismo e sexismo para alcançarem o direito à humanidade (pois foram e são invisibilizadas), preconizada pela Constituição da República Federativa de 1988.

E A LUTA CONTINUA: MOVIMENTO PELO DIREITO AO RECONHECIMENTO DA MULHER NEGRA E SUAS ESPECIFICIDADES

 

A pesquisa pretende fazer uma breve discussão sobre a importância do movimento feminista negro como uma ferramenta antirracista e antissexista e em prol do direito ao reconhecimento das mulheres negras e suas especificidades.

No Brasil, o direito político de votar foi exercido pelas mulheres em 1932, com a luta de um grupo de feministas sufragistas brasileiras. Essas mulheres organizavam as lutas com objetividade voltada para conquista da cidadania, do reconhecimento de que a não participação nas instâncias de decisão era resultado da sua condição de mulher imposta pelo patriarcado (MOREIRA,2011).

Mesmo diante de uma análise crítica sobre o patriarcado e as reproduções de desigualdade de gênero, a postura do feminismo em defender um “projeto universal de mulher” revelou o formato racista do movimento sobre as particularidades das questões raciais que envolvem mulheres negras na sociedade capitalista (SANTOS, 2019).

Assim mencionando a experiência norte-americana sobre a exclusão das mulheres negras nos movimentos feministas hooks (2014, p.115):

O sexismo e o racismo estavam de tal modo na perspectiva dos historiadores americanos que eles tendiam a não reparar e excluir o esforço das mulheres negras nas discussões dos movimentos americano dos direitos das mulheres. As mulheres brancas acadêmicas que apoiavam a ideologia feminista também ignoraram a contribuição das mulheres negras.

O resquício da escravidão e a invisibilidade da mulher negra como ser que pesa ou que reivindica permanece pois:

Na colonialidade o corpo negro feminino foi pensado para o trabalho. O corpo feminino branco, para o repouso. Enquanto um repousa, o outro trabalha. Quando o corpo feminino se organiza para reivindicar o lugar do trabalho, fazia tempo que o corpo negro trabalhava. Deve-se frisar que o “trabalho” reivindicado pelo corpo branco feminino não é de mesma “qualidade” reservado aos corpos negros. É ordinariamente trabalho intelectual e de mando.

Entende-se que o feminismo é considerado como movimento de mulheres que lutam pelo alcance de uma sociedade igualitária. Através dele, as mulheres já conquistaram direitos no âmbito social e político, mas pelo feminismo abordar de uma maneira geral a luta de mulheres, houve a necessidade de um recorte mais específico, no caso o feminismo negro. Este surgiu através das especificidades vivenciadas pelas mulheres negras e derruba padrões socialmente naturalizados. No Brasil, esse movimento ganhou força nos anos 1980.

Ganha vulto e, de certa forma, passa a ser uma pauta prioritária, a questão da formação de uma identidade da mulher negra e feminista. Principalmente por terem as mulheres negras especificidades como:

(…) a aprendizagem das nossas crianças, liberdade para nossos rapazes e raparigas, como podem eles estar preparados para ocupações e que ocupações podem ser encontradas como acessíveis a eles, o que podemos especialmente fazer na educação moral da raça pela qual estaremos identificados, a nossa elevação mental e desenvolvimento físico, a educação interna inicial que é necessária para dar às nossas crianças e prepará-las para conhecerem as condições peculiares nas quais se encontrarão, como fazer a maior parte do que é nosso, para estender as nossas limitadas oportunidades (hooks, 2014, p.118).

No mesmo entendimento, Collins (2017, p.51):

Usar o termo “feminismo negro” desestabiliza o racismo inerente ao apresentar o feminismo como uma ideologia e um movimento político somente para brancos. Inserindo o adjetivo “negro” desafia a brancura presumida do feminismo e interrompe o falso universal deste termo para mulheres brancas e negras. Uma vez que muitas mulheres brancas pensam que as mulheres negras não têm consciência feminista, o termo “feminista negra” destaca as contradições subjacentes à brancura presumida do feminismo e serve para lembrar às mulheres brancas que elas não são nem as únicas nem a norma “feministas”.

Segundo Davis:

Na verdade, no fim do século XX houve inúmeros debates sobre como definir a categoria “mulher”. Houve diversas lutas a respeito de quem estava incluída e quem estava excluída dessa categoria. E essas lutas, creio, são centrais para compreender por que houve certa resistência por parte das mulheres de minoria étnicas e também por parte das mulheres brancas pobres e da classe trabalhadora para se identificar com o movimento feminista emergente. Muitas de nós consideramos que o movimento daquela época era excessivamente branco e, em especial, excessivamente burguês, de classe média. (…) As muitas contestações dessa categoria ajudaram a produzir o que viemos a chamar de “teorias e práticas feministas radicais das mulheres de minorias étnicas”.

O feminismo envolve muito mais do que igualdade de gênero. E envolve muito mais do que gênero. O feminismo deve envolver a consciência em relação ao capitalismo – quer dizer, o feminismo a que me associo. Ele deve envolver uma consciência em relação ao capitalismo, ao racismo, ao colonialismo, às pós-colonialidades, às capacidades físicas, a mais gêneros que jamais imaginamos, a mais sexualidades do que pensamos poder nomear. O feminismo não nos ajudou apenas a reconhecer uma série de conexões entre discursos, instituições, identidades e ideologias que tendemos a examinar separadamente. Ele também nos ajudou a desenvolver estratégias epistemológicas e de organização que nos levam além da categoria “mulher” e gênero” (DAVIS, 2018, p.92 e 99).

“O mais importante de tudo isso, e é algo central para o desenvolvimento de teorias e práticas feministas abolicionistas, talvez seja a necessidade de aprendermos a pensar, agir e lutar contra o que é ideologicamente estabelecido como “normal””. (DAVIS, 2018, p.96).

Estratégias de não incluir as mulheres negras ou indígenas nos movimentos feministas que também foram ressaltadas por Jurema Werneck (2009, 161-162):

Constatamos que a exclusão da presença das mulheres negras (a exemplo das mulheres indígenas e de outras pessoas e grupos) dos relatos da história política brasileira e mundial, e da história do feminismo, deve ser compreendida, principalmente, como parte das estratégias de invisibilização e subordinação desses grupos. Ao mesmo tempo em que pretendem reordenar a história de acordo com interesses de homens e mulheres brancas. O que permite apontar o quanto esta invisibilização tem sido benéfica para aquelas correntes feministas não comprometidas com a alteração substantiva do status quo.

Como já defendia Gonzaléz (1984, p.225) sobre o feminismo afrolatinoamericano, percebeu-se nos estudos que as mulheres negras para além do compartilhamento de experiências baseadas na escravidão, racismo e colonialismo, bem como o enfrentamento do racismo e sexismo, partilham também processos de resistências. Criticou as ciências sociais por serem insuficientes em suas explicações e numa perspectiva racista e sexista, só se referiam à mulher negra numa ótica socioeconômica que elucidava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. A Autora se coloca em seu lugar de fala, pois as teorias sobre o negro ou o marginaliza ou o infantiliza.

Distinguiu a autora supracitada as três figuras da mulher preta: mulata, doméstica, mãe preta. Falou sobre a naturalidade do racismo no Brasil, devido ao mito da democracia racial, e o papel da mulher negra de subalternidade nesse contexto de dominação cultural. E concluiu que a figura da mulata e da doméstica advém da figura da mucama. Pela doméstica ser tirada de cena, ser ocultada, burro de carga da família dos outros e de sua família e; enquanto mulata vira profissão no carnaval.

Enfatizou, a mulher negra, retirando-a do valor pejorativo, elucidando que a mãe preta seria a mãe da “cultura brasileira” por estar no papel de cuidado, educação, passando seus valores, como por exemplo, o ensino da língua materna e uma série de outras coisas. A mulher branca seria a outra, que não exerce a função materna e só serve para parir o filho do senhor (GONZALES, 1984, p.224, 230, 235).

Convém destacar que compartilha-se com o entendimento de Ribeiro (2017), ao considerar que a linguagem é o fator primordial a ser analisado, pois constitui um instrumento de forma de manutenção de poder, uma vez que exclui indivíduos que foram afastados das oportunidades de um sistema educacional justo. Ademais, a depender da maneira como é utilizada poderá ser uma barreira ao entendimento, além de ser um impeditivo para uma educação transgressora (HOOKS, 2013).

Gonzaléz (1982, p.97) sobre a mulher negra na sociedade brasileira: “Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no baixo nível de opressão”.

Crenshaw (2002, p.9) ao estabelecer o cruzamento entre o gênero e raça, a qual chamou de interseccionalidade considerou que:

(…) as leis e as políticas nem sempre preveem que somos, ao mesmo tempo, mulheres e negras. Da mesma forma, quando mulheres negras sofrem discriminação de gênero, iguais as sofridas pelas mulheres dominantes, devem ser protegidas, assim quando experimentam discriminações raciais que as brancas frequentemente não experimentam. Esse é o desafio da interseccionalidade.

E segue seu pensamento concluindo que: “Quando não pensamos sobre as mulheres como o alvo do abuso, fica difícil criar intervenções para atacar o abuso. Precisamos reconfigurar nossas práticas que contribuem para invisibilidade interseccional” (CRENSHAW, 2002, p.15).

Acrescenta-se ao contexto a reflexão de Alcoff (2016) sobre a necessidade de incluir em nossos currículos outros saberes. Como por exemplo, o saber de mulheres de terreiros, das mulheres de do movimento por luta por creches, liderança comunitárias, irmandades negras, movimentos sociais.

hooks (2013), fala sobre a importância da intelectualidade para a mulher negra, ou seja, sabe unir o pensamento à prática, já que em uma sociedade racista e sexista como a brasileira, mulheres negras foram construídas ligadas ao corpo e não ao pensar. Por isso a importância de se ater à identidade social, para demonstrar como essas identidades têm sido historicamente silenciadas e desautorizada no sentido epistêmico, ao passo que outras são fortalecidas (ALCOFF, 2016).

Para a filósofa Beauvoir (1980), a mulher foi constituída como o Outro, pois é vista como um objeto. A mulher negra seria o Outro do outro, já que não são nem branca, nem homens como afirma Kilomba (2012, p.56):

As mulheres negras foram assim postas em vários discursos que deturpam nossa própria realidade: um debate sobre o racismo onde o sujeito é homem negro; um discurso de gênero onde o sujeito é a mulher branca; e um discurso sobre a classe onde “raça” não tem lugar. Nós ocupamos um lugar muito crítico, em teoria. É por causa dessa falta ideológica, argumenta Heidi Safia Mirza (1997) que as mulheres neras habitam um espaço vazio, um espaço que se sobrepõe às margens da “raça” e do gênero, o chamado “terceiro espaço”. Nós habitamos um tipo de vácuo de apagamento e contradição “sustentado pela polarização do mundo em um lado negro e de outro lado, de mulheres.”(MIRZA, 1997:4). Nós no meio. Este é, é claro, um dilema teórico sério, em que os conceitos de “raça” e gênero se fundem estreitamente em um só. Tais narrativas separativas mantêm a invisibilidade das mulheres negras nos debates acadêmicos e políticos.

Sobre as mulheres negras Collins (2016, p.105) aborda sobre a necessidade de se autodefiniram:

A insistência de mulheres negras autodefinirem-se, autoavaliarem-se e a necessidade de uma análise centrada na mulher negra é significativa por duas razões: em primeiro lugar, definir e valorizar a consciência do próprio ponto de vista autodefinido frente a imagens que promovem uma autodefinição sob a forma de “outro” objetificado é uma forma importante de se resistir à desumanização essencial aos sistemas de dominação. O status de ser o “outro” implica ser o outro em relação a algo ou ser diferente da norma pressuposta de comportamento masculino branco.

Nesse modelo, homens brancos poderosos definem-se como sujeitos, os verdadeiros atores, e classificam as pessoas de cor e as mulheres em termos de sua posição em relação a esse eixo masculino branco. Como foi negada às mulheres negras a autoridade de desafiar essas definições, esse modelo consiste de imagens que definem as mulheres negras como um outro negativo, a antítese virtual da imagem positiva dos homens brancos.

Portando definir-se é essencial para o fortalecimento e demarcação de possibilidades de transcendência da norma colonizadora, como explica Collins (2016).

Carneiro (2003, p.50-51) sobre o feminismo negro, demonstra o olhar sob a ótica das mulheres negras:

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando?

Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalham durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar. Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados.

São suficientemente conhecidas as condições históricas nas Américas que construíram a relação de coisificação dos negros em geral, e das mulheres negras em particular. Sabemos, também, que em todo esse contexto de conquista e dominação, a apropriação social das mulheres do grupo derrotado é um dos momentos emblemáticos de afirmação de superioridade do vencedor. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação. Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca. Quando falamos em garantir as mesmas oportunidades para homens e mulheres no mercado de trabalho, estamos garantindo emprego para que tipo de mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais os anúncios de emprego destacam a frase: “Exige-se boa aparência”.

Quando falamos que a mulher é um subproduto do homem, posto que foi feita da costela de adão, de que mulher estamos falando? Fazemos parte de um contingente de mulheres originárias de uma cultura que não tem Adão. Originárias de uma cultura violada, folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva, coisa do diabo, esse também um alienígena para a nossa cultura. Fazemos parte de um contingente de mulheres ignoradas pelo sistema de saúde na sua especialidade, porque o mito da democracia racial presente em todas nós, torna desnecessário o registro da cor dos pacientes nos formulários da rede pública, informação que seria indispensável para avaliarmos as condições de saúde das mulheres negras no Brasil, pois sabemos, por dados de outros países, que as mulheres brancas e negras apresentam diferenças significativas em termos de saúde.

Portanto, para nós se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja uma variável teórica, mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Potter, que não “pode ser separada de outros eixos de opressão” e que não “é possível em uma única análise. Se o feminismo deve liberar as mulheres deve enfrentar virtualmente todas as formas de opressão”. A partir desse ponto de vista, é possível afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino-americanas –, tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades.

Todas essas abordagens das autoras acima citadas no faz pensar a respeito das resistências das mulheres negras e a entender a formação do feminismo negro além de passar todas as referências e valores para as futuras gerações. Dai se extrai a relevância desse movimento para a conquista de direitos e fortalecimento da identidade das mulheres negras. Assim como, o feminismo negro torna-se ferramenta primordial em face do o racismo e consequentemente o sexismo. Destacou-se as situações históricas e de resistência das mulheres negras não só em seus movimentos de luta do cotidiano, mas principalmente na linha da intelectualidade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o entendimento da formação do feminismo negro e a importância de sua manutenção entendeu-se que fica como legado das intelectuais negras demonstrradas no texto e dos estudos de Fanon, Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos, a compreensão de que devemos continuar no enfrentamento do racismo e sexismo, através da educação, nos apropriando cada vez mais da nossa real história, nossa cultura, resgatando nossa identidade, ocupando os espaços considerados como privilegiados. Pois assim, atuando de forma consciente e pela prática antirracista alcançaremos uma sociedade plural, diversa, sem preconceitos.

Ademais, constatou-se que se torna insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em suas peculiaridades e particularidades, o que exige uma resposta específica e diferenciada. Ao lado do direito à igualdade, surge como o direito fundamental, o direito à diferença e à diversidade. As formas de (re)pensar os direitos das mulheres negras, sob uma perspectiva mais específica, exigem um deslocamento da visão universalizante, a fim de compreender de que forma esses direitos são (ou não) vividos por pessoas de diferentes contextos.

O protagonismo e o empoderamento também são formas de enfrentamento, quando uma mulher negra ocupa um espaço que lhe é negado. Essas ações manifestam a possibilidade de que seus participantes tomem consciência da realidade em que vivem, dos alcances e limites de suas próprias forças, e, a partir desses movimentos, possam adquirir experiências, propondo novos modelos de organização e luta.

A compreensão do que é ser mulher negra, com olhar além das convenções historiográficas, é desconstruir as representações normativas a partir do lugar de fala dessas mulheres para entender os processos de produção e assimilação dos referenciais construídos por elas.

REFERÊNCIAS

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Palavras Chaves

Identidade. Opressão. Feminismo negro. Racismo. Sexismo