O DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA: BREVES ANOTAÇÕES SOB A ÓTICA DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Resumo

O presente artigo tem como objetivo apresentar uma breve análise sobre o direito à moradia, sob a ótica do direito constitucional, discorrendo sobre a importância do acesso à moradia na perspectiva de um Estado Democrático de Direito, quando, em um primeiro momento, apresenta-se o fundamento legal do Direito à Moradia no país, bem como demonstrando como os direitos fundamentais e humanos estão não somente interligados, mas também, condicionados aos direitos sociais; discutir, de forma breve, o conceito de direito à propriedade e a sua função social, por se tratar de elementos que norteiam o direito de propriedade e até mesmo o direito de habitação e de moradia; e examinar, brevemente, o caso emblemático no judiciário brasileiro, denominado como “O Caso da Favela Pullman”. Realiza-se, então, uma pesquisa qualitativa, de natureza básica, por intermédio de revisão bibliográfica e documental sobre o tema estudado, buscando estabelecer um paradigma teórico básico de fácil compreensão sobre a temática direito à moradia tanto no âmbito jurídico quanto no âmbito social.

Abstract

This article aims to present the right to housing from the perspective of constitutional law, discussing the importance of access to housing in the perspective of a Democratic State of Law, when, at first, presenting the legal foundation of the Right to Housing in the country, as well as demonstrating how fundamental and human rights are not only interconnected, but also conditioned to social rights; briefly discuss the concept of the right to property and its social function, as these are elements that guide the right to property and even the right to housing and housing; and briefly examine the emblematic case in the Brazilian judiciary, known as “the pullman favela case”. A bibliographical review is then carried out on the subject studied, seeking to establish a basic theoretical paradigm that is easy to understand, democratizing the academy, addressing all possible aspects, both legal and social, about the right to housing.


Keywords: Right to Housing. Social Right. Constitutional Right

Artigo

O DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA: BREVES ANOTAÇÕES SOB A ÓTICA DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.

Jhovana Karla Oliveira Polvora[1]

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar uma breve análise sobre o direito à moradia, sob a ótica do direito constitucional, discorrendo sobre a importância do acesso à moradia na perspectiva de um Estado Democrático de Direito, quando, em um primeiro momento, apresenta-se o fundamento legal do Direito à Moradia no país, bem como demonstrando como os direitos fundamentais e humanos estão não somente interligados, mas também, condicionados aos direitos sociais; discutir, de forma breve,  o conceito de direito à propriedade e a sua função social, por se tratar de elementos que norteiam o direito de propriedade e até mesmo o direito de habitação e de moradia; e examinar, brevemente, o caso emblemático no judiciário brasileiro, denominado como “O Caso da Favela Pullman”. Realiza-se, então, uma pesquisa qualitativa, de natureza básica, por intermédio de revisão bibliográfica e documental sobre o tema estudado, buscando estabelecer um paradigma teórico básico de fácil compreensão sobre a temática direito à moradia tanto no âmbito jurídico quanto no âmbito social.  

 

Palavras-chave: Direito à Moradia. Direitos sociais. Direito Constitucional. Favela Pullman

 

ABSTRACT

This article aims to present the right to housing from the perspective of constitutional law, discussing the importance of access to housing in the perspective of a Democratic State of Law, when, at first, presenting the legal foundation of the Right to Housing in the country, as well as demonstrating how fundamental and human rights are not only interconnected, but also conditioned to social rights; briefly discuss the concept of the right to property and its social function, as these are elements that guide the right to property and even the right to housing and housing; and briefly examine the emblematic case in the Brazilian judiciary, known as “the pullman favela case”. A bibliographical review is then carried out on the subject studied, seeking to establish a basic theoretical paradigm that is easy to understand, democratizing the academy, addressing all possible aspects, both legal and social, about the right to housing.

  

Keywords: Right to Housing. Social Right. Constitutional Right.

INTRODUÇÃO

 

A necessidade de uma casa para onde voltar depois de um dia de trabalho, um lugar confortável para se viver sozinho ou em família, para descansar nos dias de folga ou viver momentos de lazer com amigos, é tão popular em nosso meio social que parece absurdo não ter um local para se viver esses momentos, afinal, desde os primórdios da sociedade, o ser humano busca um abrigo, um lar, uma morada.

Apesar disso, dados apresentados pelo Instituto Habitat[2] em seu relatório anual (2021, p. 10) mostram que entre março de 2020, quando foi declarada a emergência sanitária no Brasil, até o final de 2021, mais de 23 mil famílias foram alvos de ações de despejo. Com isso, percebe-se como o direito à moradia e à habitação no País é frágil, apesar do seu caráter de direito fundamental, conforme previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88).

Ainda, com base em levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgado em 2020, o Brasil tem mais de 5,1 milhões de moradias sem regulamentação adequada, o que indica um alto nível de aglomerados subnormais[3] no país, e uma crise habitacional que só se intensificou após o advento da pandemia mundial, ocasionada pela Covid-19.

Importante ressaltar que o déficit habitacional[4], que é o maior fato gerador de aglomerados subnormais no País, interfere diretamente na manutenção de uma vida digna. O direito à moradia não se resume apenas a ter um teto sobre a cabeça, mas sim a ter um lugar para morar, que seja efetivamente habitável, saudável e sem ônus excessivo de aluguéis, os quais são provocados muitas das vezes por rumores imobiliários. Nesse sentido, é inevitável não vislumbrar como o direito fundamental à moradia se relaciona intimamente com diversos outros direitos fundamentais previstos constitucionalmente, principalmente com o direito à privacidade[5], à liberdade dentro de um espaço e à propriedade privada (SOUZA, 2013).

Ante o exposto, o presente trabalho monográfico almeja investigar o seguinte problema de pesquisa: “Qual a importância da função social da propriedade para a efetivação do direito à moradia?”

A pesquisa traz como objetivo geral apresentar o conceito e o fundamento legal do direito à moradia sob a ótica do direito constitucional. Especificamente, busca-se: discorrer sobre a importância do acesso à moradia na perspectiva de um Estado Democrático de Direito, quando, em um primeiro momento, apresentando o fundamento legal do Direito à Moradia no país, bem como demonstrando como os direitos fundamentais e humanos estão não somente interligados, mas também condicionados aos direitos sociais; discutir, de forma breve,  o conceito de direito à propriedade e a sua função social, por se tratar de elementos que norteiam o direito de propriedade e até mesmo o direito de habitação e de moradia; e examinar, brevemente, o caso emblemático no judiciário brasileiro, denominado como “O Caso da Favela Pullman”.

Nesse diapasão, tendo em vista a relevância no âmbito jurídico, político, econômico e sociológico do assunto em questão, o presente trabalho assenta-se no seguinte tema-problema: qual a relevância social da aquisição da propriedade?

Para desenvolver o artigo, de modo que seja respondido o tema-problema, foi adotada uma abordagem que se dividirá em dois segmentos principais, quais sejam, métodos e principais atividades. Quanto ao primeiro grupo, será utilizada uma abordagem que se inicia pelo enfoque qualitativo, o qual, segundo Prodanov e Freitas (2013), há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em números. Junto a esse enfoque, será adicionado, também, o método exploratório.

No que diz respeito ao segundo grupo, iniciaremos o trabalho com uma revisão de bibliografia sobre o tema estudado, buscando estabelecer um paradigma teórico básico de fácil compreensão, democratizando a academia, abordando todos os aspectos possíveis, jurídicos e sociais sobre o direito à moradia, e inclusive, sobre as formas previstas na atual CRFB/88, no Código Civil e legislações leis infraconstitucionais sobre aquisição originária de propriedade.

DESENVOLVIMENTO

1 A importância do acesso à moradia na perspectiva de um Estado Democrático de Direito.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), conforme assevera o brilhante constitucionalista José Afonso da Silva (1988), idealiza a realização de uma justiça social fundada em um rol de direitos sociais com o condão de fornecer meios para a efetivação à uma cidadania plena, com base na dignidade da pessoa humana (SILVA, 1988).

Assim, nasce a relevância do direito à moradia para a efetivação de um Estado democrático. Porém, para uma melhor elucidação do presente trabalho, importante se faz-se explicar como a CRFB/88 define a democracia.

 No entendimento de Silva (1988, p.24),

A democracia que o Estado de Direito realiza há de ser um processo de convivência social, numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, II), em que o poder emana do povo, deve ser exercido em proveito do povo diretamente ou por seus representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação de atos do governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes na sociedade; há de ser um processo de libertação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.

No ordenamento jurídico brasileiro, o direito à moradia tornou-se um direito constitucional, por meio da Emenda Constitucional 26, que o classificou como um direito social. Porém, já vinha recepcionado anteriormente como um direito humano, por meio de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário (SOUZA, 2013).

Nesse diapasão, com base na teoria de que o direito social é uma dimensão dos direitos fundamentais, sendo prestações comissivas do Estado para o cidadão, de forma direta ou indireta, que possibilitam uma qualidade de vida digna, de forma a minimizar as desigualdades sociais (SILVA, 2017) – afinal, a necessidade de uma casa para voltar depois de um dia de trabalho, um lugar confortável para se viver sozinho ou em família, para descansar nos dias de folga ou viver momentos de lazer com amigos é tão popular em nosso meio social – parece absurdo não ter um local para se viver esses momentos, visto que, desde os primórdios da sociedade, o ser humano busca um abrigo, um lar, uma morada.

            Apesar disso, dados apresentados pelo Instituto Habitat[6], em seu relatório anual (2021), mostram que, entre março de 2020, quando foi declarada a emergência sanitária no Brasil, até o final de 2021, mais de 23 mil famílias foram alvos de ações de despejo. Com isso, percebe-se como o direito à moradia e à habitação no país é frágil, apesar do seu caráter de direito fundamental, previsto na Carta Magna de 1988.

            Ainda, conforme levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em 2020, o Brasil tem mais de 5,1 milhões de moradias sem regulamentação adequada, o que indica um alto nível de aglomerados subnormais[7] no país, e uma crise habitacional que só se intensificou após o advento da pandemia mundial, ocasionada pela Covid-19.

            Importante ressaltar, que o déficit habitacional[8], que é o maior fato gerador de aglomerados subnormais no país, interfere diretamente na manutenção de uma vida digna. O direito à moradia não se resume apenas a ter um teto sobre a cabeça, mas sim a ter um lugar para morar que seja efetivamente habitável, saudável e sem ônus excessivo de aluguéis, que são provocados muitas das vezes por rumores imobiliários. Nesse sentido, é inevitável não vislumbrar como o direito fundamental à moradia se relaciona intimamente com diversos outros direitos fundamentais previstos constitucionalmente, principalmente com o direito à privacidade[9], à liberdade dentro de um espaço e à propriedade privada (SOUZA, 2013).

Para concretizar um ideal de Estado democrático, formado por uma sociedade livre, justa e solidária, conforme os ditames da CRFB/88, é inevitável que, no mínimo, toda a população tenha uma moradia digna, salubre, com saneamento básico. Ocorre que, na prática, por sua própria natureza, o direito à moradia invoca da administração pública uma demanda de recursos para sua aplicabilidade plena (ALMEIDA, 2007), o que muitas vezes gera embates ideológicos e políticos, e levanta discussões sobre propriedade, sua função social, organiza movimentos sociais que acabam, por fim, ocupando imóveis abandonados, e traz à tona outra problemática da sociedade brasileira: o excesso de propriedade na mão de poucos, enquanto muitos não têm onde morar. Dessa forma, levanta, também, uma importante reflexão sobre escolhas de representantes legislativos, que, no exercício de suas atribuições, devem legislar de forma que tragam efetividade social e prática para os propósitos da Constituição Cidadã.

Ante o exposto, encerra-se a presente seção com a certeza de que não existe democracia em um País em que a maior parte da população vive à margem da sociedade, com seus direitos fundamentais básicos sendo mitigados, em prol da manutenção de um sistema que beneficia um determinado grupo social dominante. Com isso, quando se levanta a premissa do quão importante é a realização real do que está na CRFB/88, é para a própria manutenção da democracia, afinal, não há como ter uma sociedade livre, solidária e justa, quando parte da população ainda vive com fome, doente e sem ter onde morar.

 

2 O direito à moradia e a função social da propriedade: breve análise sobre o Caso da Favela Pullman.

2.1 A propriedade e a sua função social.

Ao longo da história, a propriedade sempre teve um caráter individualista ao extremo, uma relação direta entre o dono e a coisa possuída, regada por sua inviolabilidade e absolutismo (FACHIN, 1988). Esse fato pode ser verificado, de maneira mais explícita, no Código Civil de 1916, que definiu o direito à propriedade, em seu art. 524, como: “[…] o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua” (BRASIL, 1916). Tendo em seu cerne o condão patrimonialista,  difere-se muito do Código Civil atual, que adotou o fenômeno da constitucionalização do direito civil[10], que impõe limites ao direito de propriedade.

Ao discorrer sobre a dimensão histórica e jurídica da propriedade (TEPEDINO, p. 7, 2013) ressalta que:

No âmbito de uma ampla reforma de matriz econômica e social, a disciplina da propriedade foi significativamente transformada pela Constituição brasileira de 1988, de tendência nitidamente personalista e solidarista. O texto trouxe inovação de forma provavelmente nunca antes vista no tratamento do exercício do direito de propriedade, promovendo sua funcionalização aos valores sociais e existenciais, quase quinze anos antes que o codificador de 2002 assim também viesse a fazê-lo.

Esse caráter inovador da Constituição Federal, ao dispor sobre função social da propriedade, influenciou a norma civil codificada, que passou a tratar também da função socioambiental, ou seja, chega-se à conclusão de que houve uma imersão pelo Código Civil do que consta no artigo 225[11] da Constituição Federal, dispositivo que dá ao meio ambiente um caráter difuso, visando à vida sadia da coletividade em um ambiente natural (fauna, flora, ar, águas), e, no ambiente cultural (patrimônio cultural e artístico) (TARTUCE, 2020). Essa proteção dada ao meio ambiente se justifica de forma inegável, por exemplo, quando vemos os ataques ambientais sofridos pela floresta amazônica nos últimos anos.

Interessante salientar que os fundamentos da República e o caráter de direito fundamental da propriedade, subordinam o seu uso ao atendimento de direitos sociais. Dessa forma, o exercício da propriedade não é mais imune ao Poder Público (TEPEDINO, 2013), ou seja, o proprietário que sofrer qualquer turbação à sua posse só poderá se apoiar em tutelas como as possessórias ou petitórias se tiver, antes, atendido a função social da propriedade. Daí surge espaço para o manuseio de institutos como usucapião e desapropriação privada, afinal de contas, não há como se falar em direito de propriedade sobre imóveis abandonados ou sem nenhuma utilidade social ou econômica.

Com isso, muito se discute na doutrina sobre qual seria o conceito de propriedade. Para Caio Mário da Silva, a propriedade é o direito de usar, gozar e dispor da coisa, podendo reivindicá-la de quem injustamente a detenha (PEREIRA, 2004), pensamento que se coaduna com o antigo Código Civil. De forma mais contemporânea, Maria Helena Diniz (2007) define a propriedade como o direito de usar, gozar e dispor de bens corpóreos ou incorpóreos dentro dos limites normativos. Todavia, o que mais se coaduna com o texto constitucional vigente, é o conceito de Tartuce (2020, p.135):

Assim, a propriedade é o direito que alguém possui em relação a um bem determinado. Trata-se de um direito fundamental, protegido no art. 5.º, inc. XXII, da Constituição Federal, mas que deve sempre atender a uma função social, em prol de toda a coletividade. A propriedade é preenchida a partir dos atributos que constam do Código Civil de 2002 (art.1228), sem perder de vista outros direitos, sobretudo aqueles com substrato constitucional.

Atualmente, apesar de ser considerada um direito fundamental previsto e protegido pela Lei Maior, a propriedade não é mais considerada um direito ilimitado como outrora, o direito à coisa sofre limitações em prol da coletividade, devendo cumprir deveres anexos à sociedade, ou seja, muito se discute atualmente a função social da propriedade e a função socioambiental da propriedade, não se pode mais haver abusos no exercício da propriedade, a Constituição Federal a isso deixa claro, quando menciona o princípio da função social nada menos que seis vezes ao longo do seu texto: artigo. 5.°, inciso XXIII (rol dos direitos individuais)[12]; artigo 170, inciso III (princípio geral da atividade econômica)[13]; artigo 182, caput (política urbana)[14]; artigo 184, caput[15]; artigo 185, parágrafo único (desapropriação para fins de reforma agrária)[16] e artigo 185 (propriedade rural)[17].

No mesmo sentido seguiu o Código Civil de 2002, que trouxe em seus artigos (1.228 a 1.232), disposições gerais relativas à propriedade, sendo algumas delas claras restrições ao direito de propriedade, sendo a mais evidente a função social da propriedade (TARTUCE, 2020). Nesse diapasão, tem-se que mais nenhum instituto do direito civil pode ser encarado individualmente. Assim, após a entrada em vigor da CRFB/88, tais temas devem ser encarados sob a ótica da dignidade da pessoa humana.

2.2 Breve análise sobre o Caso da Favela Pullman, sob a ótica da função social da propriedade

Localizada na zona sul de uma das maiores metrópoles do mundo, nasceu a Favela Pullman em meados dos anos de 1970, na cidade de São Paulo, abrigando aproximadamente 30 famílias, tendo a favela origem no antigo loteamento Vila Andrade, feito em 1955, que não foi efetivamente implantado e ocupado.

Na época, ainda estava vigente o antigo Código Civil, que não limitava a propriedade. Por isso, após 20 anos de abandono, alguns proprietários buscaram o judiciário para que as famílias que ali se estabeleceram fossem retiradas, condenando-as ainda, ao pagamento de aluguel como forma de indenização, e sem direito às benfeitorias realizadas durante os anos que ali viveram. Após o juízo de 1° instância dar razão aos autores, julgando procedente os pedidos, os moradores da Favela Pullman interpuseram apelação no Tribunal de São Paulo, alegando usucapião especial urbano[18], já que todos estavam ali evidentemente há mais de 05 anos e ocuparam áreas inferiores a 200m². O maior problema dessa tese defensiva é simplesmente não ser aplicável ao caso, por um curto lapso temporal. O instituto da usucapião especial urbano nasceu com a CRFB/88, ou seja, a demanda já existia.

Uma diferença de três anos entre a propositura da ação reivindicatória e a nova ordem constitucional poderia colocar várias famílias em situação de rua, não fosse o voto emblemático do Desembargador José Osório de Azevedo Júnior, que, ao julgar a apelação interposta pelos réus, entendeu que (fls. 501/509) “Trata-se de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está dotada, pelo Poder Público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar”. Em seguida, o Desembargador explica que o objeto da demanda, ou seja, os lotes de terrenos tornaram-se mera abstração jurídica, não mais existindo o objeto de direito à propriedade.

Em evidente inovação jurisprudencial, aplicou o instituto da função social da propriedade ao dar razão aos recorrentes, fundamentou o relator pela impossibilidade de aplicar o Código Civil de 1916 que não fosse à luz da CRFB/88, vez que a Carta Magna não concebe um direito à propriedade paralelo à sua função social, ou seja, entendeu o relator que os autores da ação reivindicatória praticaram seu direito à propriedade de forma antissocial, uma vez que os lotes ficaram abandonados por mais de 20 anos, totalmente tomados por vegetação, até a consolidação da favela construída pelas pessoas que ali passaram a morar.

Interessante notar que nem sempre o direito é puramente técnica processual, no caso em tela, claramente se celebrou um direito coletivo em desfavor de um direito individual, a função social preenche o conceito de boa-fé, quando se confronta a posse antissocial dos proprietários que nunca deram qualquer destinação ao imóvel, com a posse dos ocupantes que dotarem o bem de uma finalidade social, coletiva (TARTUCE, 2020).

 

Conclusão

 Esse trabalho possibilitou entender, a partir das bibliografias e das doutrinas utilizadas, bem como da breve análise do Caso da Favela Pullman, como o direito à moradia ainda é muito frágil no país, e quase sempre demanda a atuação do poder judiciário como interventor da omissão dos outros poderes em dar eficácia à norma Constitucional que garante a moradia como um direito social-fundamental.

Para se atingir uma compreensão dessa realidade, definiu-se como objetivos estudar o direito à moradia sob a ótica do Estado Democrático de Direito, bem como apresentar institutos correlatos essenciais como o direito à propriedade e à sua função social. Nessas reflexões, chega-se à conclusão de que para se alcançar o ideal ético social de uma democracia, há que não somente limitar a propriedade condicionando-a ao cumprimento de sua função social, mas dar instrumentos para que mais pessoas acessem uma moradia digna e de qualidade, seja por intermédio do acesso à justiça, garantindo o acesso à propriedade através da usucapião, ou incentivando mais políticas públicas e programas habitacionais.

 

Referências

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 Notas:

[1] Graduada no Curso de Bacharelado em Direito no Centro Universitário Fluminense (UNIFLU). E-mail: [email protected]

[2] O Instituto Habitat para a humanidade Brasil produz relatórios anuais sobre a questão habitacional brasileira com dados e estatísticas, bem como, apresenta o que foi realizado pelo Instituto.

[3] Segundo classificação adotada pelo IBGE, são formas de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia (públicos ou privados) para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas que apresentam restrições à ocupação.

[4] A Fundação João Pinheiro (FJP) relaciona o déficit habitacional total pela soma de cinco (sub) componentes: (i) domicílios rústicos; (ii) domicílios improvisados; (iii) unidades domésticas conviventes déficit; (iv) domicílios identificados como cômodos; e, (v) domicílios identificados com ônus excessivo de aluguel urbano.

[5] De acordo com Novelino (2019, p. 383): “[…] a intimidade está relacionada ao modo de ser de cada pessoa ao mundo intrapsíquico aliado aos sentimentos identitários próprios (autoestima, autoconfiança) e à sexualidade. Compreende os segredos e as informações confidenciais”.

[6]

[7]

[8]

[9] De acordo com NOVELINO (2019,  P. 383): “a intimidade está relacionada ao modo de ser de cada pessoa ao mundo intrapsíquico aliado aos sentimentos identitários próprios (autoestima, autoconfiança) e à sexualidade. Compreende os segredos e as informações confidenciais”.

[10]  A constitucionalização do direito civil, também chamada de direito civil constitucional, nada mais é do que a imposição de uma leitura dos institutos de direito civil, conforme preconizado pela CRFB/88. A norma não deixa de ser de direito privado, mas direito privado interpretado conforme a Constituição Federal.

[11] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

[12] XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

[13] III – função social da propriedade;

[14] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

[15] Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

[16] Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos à sua função social.

[17]  Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

[18] Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Palavras Chaves

Direito à Moradia. Direitos sociais. Direito Constitucional. Favela Pullman