O FENÔMENO DAS FAKE NEWS, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O DIREITO DIGITAL

Resumo

O presente trabalho visa abordar a questão das notícias falsas, tão disseminadas no Brasil atualmente, muitas com viés de trazer prejuízo moral e político, sob o enfoque de seu surgimento na sociedade, bem como a percepção de como o advento das transformações tecnológicas do século XXI contribuíram para que tal fenômeno ganhasse cada vez mais força. Será necessário abordar a questão do possível conflito de direitos fundamentais, quando do encontro da liberdade de expressão, preconizadas pelos que se aproveitam das notícias falsas, em oposição ao direito fundamental à honra e à imagem, como defesa daqueles que são vítimas daquelas agressões. Para isso, se faz imperioso o enfoque de como o direito lida com o aparente embate entre normas fundamentais que possuem mesma hierarquia, porém conteúdo valorativo diverso. Necessária a utilização de ferramentas hermenêuticas que possam levar em conta a teleologia constitucional quando da valoração de qual direito em cada caso terá maior prevalência e menor relativização. Nesse ponto, o presente trabalho visa debater a ideia da possibilidade de relativização de direitos fundamentais e de como essa doutrina pode assumir um caráter mais garantista do que limitador apenas. Além disso, visa abordar em que etapa de desenvolvimento se encontra a doutrina do direito digital, numa sociedade cada vez mais informatizada. Sabendo que as relações sociais evoluem em velocidade mais rápida que a proteção do direito, importante delimitar o que se tem de proteção e qual lacuna se pretende fechar para que se possa obter, com o mesmo comando, a proteção dos direitos fundamentais supracitados.

Artigo

O FENÔMENO DAS FAKE NEWS, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O DIREITO DIGITAL

Autor: Bruno Ribeiro de Lima.

Trajetória profissional: Graduado em Direito pela UNESA e pós graduado em Direito Público e Privado, Direito Constitucional e Direito Previdenciário, Bruno Ribeiro coleciona diversos cursos na área jurídica, além de ser o idealizador do canal no youtube “lexinlegis” onde busca democratizar o ensino do Direito, levando conhecimento de forma acessível, gratuita e digital.

RESUMO

O presente trabalho visa abordar a questão das notícias falsas, tão disseminadas no Brasil atualmente, muitas com viés de trazer prejuízo moral e político, sob o enfoque de seu surgimento na sociedade, bem como a percepção de como o advento das transformações tecnológicas do século XXI contribuíram para que tal fenômeno ganhasse cada vez mais força. Será necessário abordar a questão do possível conflito de direitos fundamentais, quando do encontro da liberdade de expressão, preconizadas pelos que se aproveitam das notícias falsas, em oposição ao direito fundamental à honra e à imagem, como defesa daqueles que são vítimas daquelas agressões. Para isso, se faz imperioso o enfoque de como o direito lida com o aparente embate entre normas fundamentais que possuem mesma hierarquia, porém conteúdo valorativo diverso. Necessária a utilização de ferramentas hermenêuticas que possam levar em conta a teleologia constitucional quando da valoração de qual direito em cada caso terá maior prevalência e menor relativização. Nesse ponto, o presente trabalho visa debater a ideia da possibilidade de relativização de direitos fundamentais e de como essa doutrina pode assumir um caráter mais garantista do que limitador apenas. Além disso, visa abordar em que etapa de desenvolvimento se encontra a doutrina do direito digital, numa sociedade cada vez mais informatizada. Sabendo que as relações sociais evoluem em velocidade mais rápida que a proteção do direito, importante delimitar o que se tem de proteção e qual lacuna se pretende fechar para que se possa obter, com o mesmo comando, a proteção dos direitos fundamentais supracitados.

Palavras-chave: liberdade de expressão, fake news, direito digital.

SUMÁRIO

  1. Introdução…………………………………………………………………………………….4
  2. O que são fake news………………………………………………………………………5
    • O que se entende por news……………………………………………………………..6
    • Origens do fenômeno das fake news…………………………………………………7
  3. Direito Digital e o impacto dos crimes cibernéticos……………………………..9
  4. Aparente conflito de normas fundamentais……………………………………….10
  5. Como o direito pode resolver a questão……………………………………………11
  6. Conclusão…………………………………………………………………………………..13
  7. Referências…………………………………………………………………………………15

  1. INTRODUÇÃO

O direito se projeta como meio de não apenas estruturar a sociedade, bem como trazer segurança às pessoas, ao instituir normas que criam e delimitam direitos. Vivemos um período de grande ebulição social com desarranjos nas várias áreas. Os grandes pensadores jurídicos já traziam a ideia de que a força do direito deve superar o direito da força. Nesse sentido, deve-se buscar o melhor caminho para reestruturar pontos em conflito. E o melhor caminho é sempre pelo direito, pois é pelo diálogo constante que a racionalidade do ser humano é concretizada.

Grande palco para muitos dos conflitos atuais é o meio eletrônico, que ganhou cada vez mais espaço principalmente da última década e meia para cá. O mundo atual vive um período em que quase tudo tende ao digital: desde compras, reuniões, audiências, estudos, o mundo digital toma conta do cotidiano das pessoas com cada vez mais vigor. Na contramão da força digital que se expande, está o direito digital, ainda insosso quando o assunto é ditar normas para essa área em específico.

Dentro dos problemas oriundos de um meio digital sem regras claras, vários são os problemas aparentes, que vão desde crimes contra a honra, crimes contra a dignidade sexual, estelionatos, ameaças, entre outros. Um comportamento recriminável tem tomado conta nos últimos tempos da rede: as famigeradas fake news.

É importante salientar que normalmente é um equívoco trazer à baila de explicações uso de estrangeirismos para conceituação de problemas de uma atualidade brasileira. Mas o caso em análise urge pelo uso do termo em língua inglesa pois, como será esclarecido ao longo do trabalho, construção equivocada seria sua tradução “notícia falsa”, uma vez que noticiar algo falsamente é contrário à própria essência do verbo “noticiar”, estando mais próximo do conceito de “criar uma fábula”, uma estória.

Para entender o problema do fenômeno das fake news é importante inicialmente conceituar o mesmo. Para tanto, recorrer a conceitos técnicos da área jornalística que delimitam o que são as news e, por oposição, seu conceito inverso, além de buscar o impacto na sociedade.

Em momento outro, como melhor solução do problema, é preciso buscar conhecer em que momento ele teve origem, ou como se verá, em que momento esse fenômeno teve maior impacto em uma sociedade cada vez mais ligada a meios eletrônicos e dependentes deste meio. Assim pode-se estabelecer uma cronologia que delimite se esse fenômeno é apenas da sociedade moderna ou já existia em outros tempos.

É importante conhecer como o direito se comporta atualmente em questões ligadas a crimes e contravenções digitais, para poder conceber o nível de atuação da norma jurídica para coibir ou não violações de direitos no meio eletrônico. Desse modo, se entenderá se esse é um problema que já possui solução eficaz ou se precisa de complementação de algum tipo de lacuna.

Deve-se ter uma hermenêutica norteadora da questão, buscando traçar especificamente em qual ponto uma informação é falsa e merecedora de punição e em qual ponto não é, uma vez que as atitudes em sociedade quase nunca têm uma liquidez ou grau de certeza aprimorado. Sendo assim, é importante colocar em grau de comparação direitos que garantam ao mesmo tempo liberdade de expressão e inviolabilidade do direito à honra e à imagem.

Por fim, será importante traçar também sob o aspecto de estudo das punições, quais esbarram no autoritarismo e na censura. O direito tem de sempre estar num meio espacial entre a ausência de ações e o autoritarismo. Esse meio é a justiça no seu sentido mais próximo da legitimação social, no qual o Estado não é inerte a ponto de as injustiças se sucederem descontroladamente, tampouco é ativo em excesso a ponto de trazer na punição traços de autoritarismo e censura.

  1. O QUE SÃO FAKE NEWS

Fake News podem ser traduzidas como notícias falsas. É um termo que sofreu forte conotação pela mídia, principalmente com as eleições norte-americanas de 2016 que introduziram no mundo jornalístico e, por consequência, na sociedade em geral uma terminologia que não se tinha o costume de usar. Desde muito tempo que se conhecem atitudes que podem ser consideradas como propagação de notícias falsas, mas o uso do termo, principalmente em sua vertente de língua inglesa no território nacional, é de costume recente. Com o intuito de não cair na banalização do termo, para se saber o que são fake news, se faz necessário primeiro, buscar qual seria a conceituação do que vem a ser news, ou em bom português, notícia.

2.1. O que se entende por news

A palavra notícia encontra origem etimológica no termo notitia, do latim, que significa conhecimento. Sob esse ponto de vista, qualquer divulgação que importasse em ampliação de conhecimento seria notícia. No entanto, é preciso buscar uma conceituação que defina mais as bases do que vem a ser notícia para que seja possível traçar parâmetros mais adequados de explicação do que são notícias falas.

Para Cruz e Hermes (2017, p.47) “(…) notícia não teria um valor idiossincrático, mas faz parte do um reconhecimento coletivo do que é notável e do que pode ser trabalhado de maneira planificada”. Segundo os autores, haveria uma inversão do significado da notícia que, ao invés de ter formação ativa, originária, inaugural, teria uma posição passiva, condicionada ao aumento de seu reconhecimento, assunção coletiva desse saber. Sem menor sombra de dúvidas, essa definição valora o conceito de notícia dando à mesma um status que vai de sobremaneira determinar o impacto da mesma na sociedade.

Existe também no meio jornalístico a conceituação que abarca uma ideia de valorização estrutural segmentada da notícia, englobando fatos com maior relevância em primeiro plano para fatos de menor relevância em segundo plano. Conforme Lage (1987, p.16) conceitua “(…) a notícia se define, no jornalismo moderno, como o relato de uma série de fatos a partir do fato mais importante ou interessante; e de cada fato, a partir do aspecto mais importante ou interessante”.

Levando em consideração um ou outro argumento, é de certa unanimidade a ideia de notícia estar aliada à difusão de algum fato, muito embora alguns autores valorem as características que esses fatos precisam ter, uma julgando à luz da incorporação social, outros, pela relevância do tema. De um ou outro modo, o conceito está ligado à verdade do que ocorreu, e aí repousa seguramente a maior das dificuldades de análise.

A verdade é um valor de quase impossível definição, uma vez que os seres humanos são sensoriais e analisam o mundo em sua volta com subjetividade. Deste modo é que se diz que o que é verdade para uma pessoa, pode não ser a verdade para outra. Nesse ínterim, é essencial colocar a notícia numa posição que não seja alterada pela verdade de cada um dos indivíduos, ou como salienta Kant (2001, p.148) “Eis porque se nos depara aqui uma dificuldade, que não encontramos no campo da sensibilidade e que é a seguinte: como poderão ter validade objetiva as condições subjetivas do pensamento”.

Para que a notícia esteja no meio caminho entre a subjetividade da verdade individual e a narrativa crua dos fatos, deve ela se pautar em trazer a exposição do que ocorreu com base numa valorização de pertinência e também de interesse e importância. Assim, estará ela entre os opostos que já, originalmente, afastam a mesma da correta exposição de conhecimento.

Desse modo, conceituando o que vem a ser notícia, pode-se, por oposição, chegar ao conceito de seu oposto, ou seja, o que vem a ser notícia falsa ou fake news. O dicionário Collins (2021) conceitua fake news como sendo: “informação falsa, usualmente sensacionalista, disseminada à guisa de ser um reporte noticiário” (tradução nossa).

Salientando o conceito do dicionário, pode-se concluir como fake news aquele reporte que falta com a verdade dos fatos ou, que quando a apresenta, faz com viés sensacionalista tendente a uma determinada interpretação conforme.

2.2. Origens do fenômeno das fake news

É difícil precisar a partir de qual momento na civilização surgiu o costume de disseminar notícias falsas. Certo é que desde a Antiguidade já se contam os casos em que determinada mentira causou prejuízos e foi impactante para a história local. No século I a.C., como trazido por Posetti e Matthews (2018, p. 2), o imperador Marco Antônio foi vítima de informações caluniosas que arruinaram sua reputação, notícias essas perpetradas por seu opositor Otávio. Nessa composição já é possível visualizar como as notícias falsas deixam de ser singelas mentiras para virarem armas políticas.

E o desenvolvimento histórico das fake news não parou por aí. No século XVIII, em meio à Revolução Francesa, os panfletos de pessoas insufladas contra a tentativa de conclamar Estados Gerais por parte do rei, disseminaram também informações inverídicas do antigo regime. É o que trazem Darnton e Roche (1989, p. 225), que salientam o poder que essa forma de notícia teve desde então: “De 1787 em diante o panfleto político assumiu uma importância cada vez maior na França (…) Essa literatura efêmera fornecia um comentário contínuo sobre praticamente tudo(…)”.

Percebe-se que o ato de veicular informações falsas é mais antigo que a própria imprensa ou os meios de comunicação hodiernamente empregados. O que ocorre é uma maior maleabilidade e facilidade de tráfego dessas ditas informações com o passar do tempo conforme o próprio ato de passar informações ficou mais célere.

Entretanto, não se pode confundir o erro de origem jornalística com as famigeradas fake news. No primeiro, há o corriqueiro equívoco ao reportar uma notícia, ao passo de que no segundo o erro é intencional e a propagação se utiliza cada vez mais de meios digitais para disseminação. Nas fake news há precipuamente o intuito de trazer prejuízo, de atentar contra a imagem e a honra, normalmente com intuito financeiro ou político.

Notadamente, nas últimas eleições por vários países no continente americano em geral, a prática das fake news aumentou e atingiu níveis de especialização, com verdadeiros escritórios acostumados com esse uso. Tal fenômeno passou a influenciar principalmente na escolha de candidatos e na boa formação da compreensão política de uma época. Pode se dizer que, com o fim dos vários tipos de estímulos propagandistas que ocorriam nas eleições de outros anos, o mundo da política passou a utilizar-se de ferramentas mais efetivas e mais próximas da população. Paulatinamente ocorreu a troca do discurso e informação pelo meio da radiodifusão para o uso dos aplicativos de celulares e computadores.

Nesse aspecto é importante salientar para as palavras de Francisco Brito Cruz (2018) que traz os riscos de que tal ferramenta mal utilizada ofereça riscos à própria ideia de democracia de um país, pois “(…) as fake news, que agora vitimam o debate público no mundo todo como um vírus que inverte os vetores dos processos democráticos, constituem outra modalidade de mentira (…) produzem estragos”.

  1. DIREITO DIGITAL E O IMPACTO DOS CRIMES CIBERNÉTICOS

Se por um lado é difícil traçar com exatidão o início cronológico de tal fenômeno, não muita dificuldade é encontrada ao se debruçar sobre os inúmeros problemas que traz o fenômeno nos dias de hoje.

O escritor e jornalista italiano Giuliano da Empoli (2019, p. 15) faz a correta associação de o porquê as tais notícias falsas conseguiram imensa popularidade no meio eletrônico: “Naturalmente, como as redes sociais, a nova propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas, pois são essas que garantem a maior participação, daí o sucesso das fake news”. O direito é um reflexo social, e como a própria sociedade, evolui juntamente com suas descobertas e avanços.

No meio digital, tão disseminado na vida de todos da sociedade atualmente, as fake news ganharam corpo, disseminando informações falsas de fácil acesso e espalhamento. Ganharam tanto espaço que passaram a ser utilizadas como barganha e meio de vantagem política ao longo do tempo. É importante saber, inicialmente, como verificar a ocorrência de um ilícito (civil ou penal) no meio digital. Diante dessa preocupação inicial, o operador do direito poderá traçar os próximos passos para a prevenção e punição dos ilícitos ocorridos no meio eletrônico.

Primeiro passo será, para ligar as fake news ao resultado da veiculação das notícias falsas, descobrir o que se entende no direito pátrio sobre o liame entre as duas coisas, ou seja, o nexo causal. Para Patrícia Peck, autora de livros sobre direito eletrônico, na análise entre as teorias da culpa e do risco relativas ao nexo causal, a própria natureza das relações digitais pressupõe a necessidade de utilização da última teoria (2013, p. 262): “Para o Direito Digital, a teoria do risco tem maior aplicabilidade, uma vez que, nascida na era da industrialização, vem resolver os problemas de reparação do dano em que a culpa é um elemento dispensável”. Nesse sentido, não haveria obrigatoriedade de presença do elemento culpa para caracterização do dano, sendo, no caso específico de difusão de informações falsas, a emanação dessas informações em meio eletrônico o elemento necessário para a referida caracterização.

  1. APARENTE CONFLITO DE NORMAS FUNDAMENTAIS

Algo que muito se discute hodiernamente é em que medida ter uma norma que venha a vedar manifestações, ainda que falsas, atentaria contra o comando constitucional da liberdade de expressão. De um lado haveria a proibição de veicular aquilo que, em sendo falso, por sua natureza e conforme exposto, traria danos à imagem de pessoas; por outro, o próprio direito a se expressar. Como se passará a ver, trata-se de conflito meramente aparente de normas fundamentais.

Primeiro é preciso se compreender a teleologia do comando constitucional de proteção dos direitos fundamentais. Não se pode ter uma defesa absoluta de tais direitos, uma vez que a relativização de várias garantias ali esculpidas ocorre costumeiramente, desde que em prol de outro comando que se mostre mais adequado na situação fática.

Em segundo lugar, é necessário entender a abrangência e o alcance do direito à liberdade de expressão dos incisos IV e IX do art. 5º da Constituição Federal. Com relação ao inciso IV, a livre manifestação do pensamento, como trazido pelo texto da Carta, enfoque na liberdade de expor o que se pensa sem amarras. Tal garantia com um tratamento até prolixo é justificada pelo histórico nacional de censura e perseguição a determinados posicionamentos. O mesmo texto que garante essa liberdade atenta para o fato de que a mesma não pode ser exercida por meio de anonimato. Nesse ponto, fica notória a intenção do constituinte originário de estabelecer os parâmetros através dos quais eventuais desrespeitos oriundos de uma liberdade plena venham a ser punidos.

É necessário que seja traçada a inteligência do tratamento da situação em que uma norma assume posição aparentemente antagônica a outra norma de igual hierarquia dentro do mesmo contexto jurídico. Nesse ponto, o operador do direito deve se valer de garantias primeiras, sem as quais, as demais não podem ser analisadas, como a reserva do possível. O professor Ingo Sarlet (2012, p. 255) traz o pensamento da utilização de critérios de proporcionalidade na interpretação desses eventuais conflitos, ministrando o respeito à reserva do possível como espécie de limitação para garantia dos direitos fundamentais, como bem assevera: “A reserva do possível constitui, em verdade, espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflitos de direitos (…) com intuito de salvaguardar o núcleo essencial”.

Além disso, o direito surge como ciência com vistas a propiciar melhor vivência em sociedade, ao passo que regula as relações diárias em todos os cantos da sociedade. A mesma Constituição que prevê a liberdade na manifestação do pensamento e na expressão de atividade de comunicação, aduz acerca da inviolabilidade da honra e imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano decorrente, conforme o inciso X do art. 5º.

Tem-se de um lado a garantia à manifestação de pensamento e do outro a inviolabilidade da honra e imagem. Tal exposição pode dar a entender de existência de um conflito, mas esse embate é meramente aparente, pois o operador do direito deve utilizar-se da ponderação necessária para analisar caso a caso a questão. O direito à livre manifestação de pensamento pode ser mantido sem que haja desrespeito à proteção da inviolabilidade da honra e da imagem, sendo necessário que se façam meios necessários para coibir os abusos resultantes daquele. É o pensamento de Barbosa, Guimarães e Rabelo (2011, p. 788) que, ao analisarem as perspectivas de controle do Supremo Tribunal Federal diante de um fato de aparente conflito de normas de cunho constitucional, chegaram à conclusão de que por mais fundamentais que sejam, tais dispositivos sofrem limitação com vistas a garantirem o exercício de outros dispositivos de igual hierarquia e proteção, quando asseveram: “O direito à liberdade de expressão é uma hipótese desse foco. Tal direito tem status fundamental e é, portanto, assegurado pela Constituição Federal de 1988, entretanto, sofre limitações a fim de assegurar o cumprimento de outros preceitos fundamentais”.

  1. COMO O DIREITO PODE RESOLVER A QUESTÃO

Diante do exposto acima acerca do fenômeno das fake news, da pouca proteção conferida a direitos quando são violados através de meio digital, bem como da inteligência de que ambos os direitos fundamentais coexistem harmonicamente no sistema jurídico brasileiro, urge por parte do direito a necessidade de criar mecanismos para aumentar a proteção contra os abusos realizados. A ciência jurídica precisa sempre agir e, principalmente, em casos de lacuna de proteção, sua forma de atuação necessita ser mais enérgica.

Não há, até a presente data, no ordenamento jurídico pátrio, um diploma legislativo que cuide especificamente de evitar os males oriundos das fake news. Via de regra, são utilizadas as proteções e punições a violações de direito à honra e à imagem comuns a vida não digital. É fundamental que a sociedade entenda que o mundo digital e o mundo real são, a bem da verdade, a mesma coisa, e assim como certas limitações são impostas ao dito mundo real, o meio eletrônico precisa de tais regulamentações para que se possa evitar lacunas de proteção.

No ano de 2020, a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará editou a lei nº 17.207 que foi inovadora em criar a punição pela divulgação de notícias falsas por meio digital. Entretanto, tal diploma legislativo apenas se ocupou de impor multa a fake news ligadas a pandemias, endemias ou epidemias, ou seja, aquelas que trazem um prejuízo evidente à saúde pública.

Primeiramente é necessário atualizar a forma com as quais as relações eletrônicas são feitas à luz do direito. Não se pode ter a rede mundial de computadores como algo novo, posto que não é mais. Por meio dela, a vida de toda a sociedade está integrada, variados trabalhos são feitos e o sistema judicial cada vez mais se informatiza, ou seja, é necessário ter um olhar mais atual para a forma com as quais as informações passam por ela.

Sendo assim, e com base no direito à livre manifestação do pensamento, bem como no comando constitucional de vedação ao anonimato (art. 5º, IV), é necessário que se tenha um registro mais efetivo de utilizações da rede mundial de computadores. Acessos, criações de contas e movimentações eletrônicas precisam estar associadas à identificação física das pessoas que movimentam essas informações, quer seja pela ligação ao número do registro geral ou ao cadastro de pessoa física.

Desse modo, eventuais abusos e espalhamento de fake news terão suas emissões ligadas diretamente a pessoa que os perpetrou. Uma consequência secundária dessa mudança será o efeito didático e, até certo ponto, coercivo, de impedir e prevenir que novos problemas ocorram. É fato que uma rede mundial de computadores que permita anonimatos, permite consequentemente que o usuário mal intencionado se sinta mais protegido já que se esconde sob o véu do sigilo absoluto.

Além disso, é necessário que a legislação sofra atualizações mais frequentes. É certo que a sociedade caminha mais rapidamente que o direito, mas é imperioso que a norma jurídica tenha adaptações mais frequentes à realidade fática sob pena de se entender ficar inócua.

  1. CONCLUSÃO

As fake news formam um fenômeno que já existe na sociedade há bastante tempo e que foi amplificado com o advento do mundo digital em que atualmente se utiliza para quase toda relação social. Como tal, aproveitou-se da celeridade das comunicações neste meio e conseguiu atingir a mais pessoas e em um tempo muito menor. E trouxe com isso, o dano que já espalhava, com mesmo efeito mais força e abrangência.  Como fenômeno social, deve o direito se preocupar em traçar a moldura que vise evitar a ocorrência de novos transtornos no seio de sua abrangência. Entretanto, a doutrina e aplicação do direito enquanto solucionador de conflitos de natureza digital ainda carece de ampliação mais garantista. O direito deve procurar evoluir com a mesma destreza de velocidade que as relações e interações sociais, do contrário tenderá a ser mera folha de papel, sem eficácia.

Para além da questão que urge de se ter um ordenamento jurídico mais moderno e mais atuante em questões contemporâneas, é necessário entender que o conflito muitas vezes suscitado entre o direito à liberdade de expressão e a garantia à honra, como tentativa de não se imputar punição ao espalhamento de fake news não deve prosperar. Isso porque, o conflito que se observa é, sob o aspecto de uma exegese pós-positivista, conflito aparente de normas, tendo o ordenamento jurídico atual mecanismos para conseguir, se não alcançar toda a relação digital como se apresenta, resolver com base em critérios de hermenêutica constitucional o problema apresentado.

É necessário, para tanto, buscar efetivar-se a reserva do possível como mínimo necessário interpretativo para a relativização ou não de direitos fundamentais caso a caso. E o entendimento de que a relativização desses mesmos direitos não importa em mitigação dos mesmos, mas em atendimento à garantia de funcionamento de outros direitos igualmente necessários para o cumprimento dos comandos constitucionais.

  1. REFERÊNCIAS

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Palavras Chaves

liberdade de expressão, fake news, direito digital.