O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA TUTELA DOS INTERESSES DOS CONSUMIDORES: CANCELAMENTO DE EVENTO DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19

Resumo

O presente trabalho trata da vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo e a proteção da qual necessita em decorrência dessa característica, em especial da atuação do Ministério Público, responsável pela defesa dos direitos dos consumidores, quando esses são violados e o prejuízo ocorre em âmbito coletivo. O presente artigo analisa a atuação da instituição no período da pandemia da Covid-19, momento em que os Poderes Executivo e Legislativo vislumbraram uma possível vulnerabilidade dos fornecedores de serviços, nos setores de turismo e cultura, devido aos adiamentos e cancelamentos de eventos; entretanto, ao disporem sobre a manutenção das relações contratuais, acabaram por vulnerabilizar ainda mais os consumidores. Por meio de pesquisa documental e bibliográfica, constatou-se, especialmente em um caso do Estado do Rio de Janeiro, a importância do Ministério Público na tutela dos interesses dos consumidores, mediante a propositura de uma Ação Coletiva de Consumo com pedido de Tutela Provisória de Urgência Antecipada, que visava exigir a abstenção do fornecedor de serviço em subtrair o direito dos consumidores de obter o reembolso dos ingressos pagos, pois não lhes ofereciam alternativas úteis, perpetuando a vulnerabilidade desses consumidores.

Artigo

O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA TUTELA DOS INTERESSES DOS CONSUMIDORES: CANCELAMENTO DE EVENTO DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19

Flávia Cristina de Oliveira* e João Esdras Ferraz da Silva**

RESUMO

O presente trabalho trata da vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo e a proteção da qual necessita em decorrência dessa característica, em especial da atuação do Ministério Público, responsável pela defesa dos direitos dos consumidores, quando esses são violados e o prejuízo ocorre em âmbito coletivo. O presente artigo analisa a atuação da instituição no período da pandemia da Covid-19, momento em que os Poderes Executivo e Legislativo vislumbraram uma possível vulnerabilidade dos fornecedores de serviços, nos setores de turismo e cultura, devido aos adiamentos e cancelamentos de eventos; entretanto, ao disporem sobre a manutenção das relações contratuais, acabaram por vulnerabilizar ainda mais os consumidores. Por meio de pesquisa documental e bibliográfica, constatou-se, especialmente em um caso do Estado do Rio de Janeiro, a importância do Ministério Público na tutela dos interesses dos consumidores, mediante a propositura de uma Ação Coletiva de Consumo com pedido de Tutela Provisória de Urgência Antecipada, que visava exigir a abstenção do fornecedor de serviço em subtrair o direito dos consumidores de obter o reembolso dos ingressos pagos, pois não lhes ofereciam alternativas úteis, perpetuando a vulnerabilidade desses consumidores.

Palavras-chave: Direito do consumidor. Vulnerabilidade. Pandemia da Covid-19. Ministério Público. Tutela Coletiva.

__________________

* Advogada especialista em Gênero e Sexualidade pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – IMS/UERJ.

** Advogado especialista em Novas Ferramentas do Direito Contemporâneo pela Fundação Escola Superior do Ministério Público – FEMPERJ.

  1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 traz em seu texto garantias e direitos fundamentais, bem como os objetivos da República, dentre os quais estão a construção de uma sociedade justa, livre e solidária e a redução das desigualdades sociais, assim como determinou que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.[1]

O consumidor ganhou especial proteção constitucional, que veio a ser reforçada com a elaboração do Código de Defesa do Consumidor, norma composta por princípios voltados para sua vulnerabilidade, condição sempre presente nas relações de consumo que independe de sua situação política, social, econômica ou financeira, bastando que seja o destinatário final do produto ou serviço.

Entretanto, após o início da pandemia da Covid-19, em que a população precisou se recolher para evitar a aglomeração de pessoas, os fornecedores se viram sem poder vender muitos dos seus produtos e serviços. Tratando-se especialmente dos setores de turismo e cultura, muitos serviços precisaram ser adiados ou cancelados e os Poderes Executivo e Legislativo entenderam que, no período de pandemia, esses fornecedores passariam a ser também pessoas vulneráveis.

Pensando nisso, medidas provisórias e leis foram editadas na tentativa de equilibrar as relações de consumo, mas os Poderes Executivo e Legislativo esqueceram-se de que essas relações são naturalmente desequilibradas e acabaram por aumentar o desequilíbrio havido entre elas, tornando os consumidores mais vulneráveis ainda.

Diante disso fez-se extremamente importante a atuação do Ministério Público na defesa dos interesses dos consumidores, de modo a impedir seus prejuízos durante a pandemia.

O presente trabalho pretende dar publicidade à atuação do Ministério Público na defesa do Direito do Consumidor e, para tanto, foi realizada pesquisa documental e bibliográfica, especialmente em um caso concreto de cancelamento de evento durante a pandemia, no qual o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro propôs uma Ação Coletiva de Consumo com pedido de Tutela Provisória de Urgência Antecipada, em decorrência de uma denúncia feita por uma consumidora em sua Ouvidoria, com o intuito de demonstrar a relevância social da atuação das Promotorias do Direito do Consumidor.

  1. A VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR

O Direito do Consumidor é oriundo das demandas de uma sociedade capitalista, que após a Revolução Industrial, com o crescimento das metrópoles, gerava aumento de demanda, o que gerou também aumento da oferta e assim, as indústrias passaram a produzir mais para vender mais.

Essa produção em série diminuiu os custos e aumentou ainda mais a oferta e esse modelo de produção deu certo. Cresceu a partir do século XIX, solidificou-se a partir da Primeira Guerra Mundial e, a partir da Segunda Grande Guerra, quando surgiu a tecnologia e fortaleceu-se a informática, cresceu ainda mais. Após a segunda metade do século XX, com a implantação da globalização, surge a sociedade de massa, na qual “[…] a produção é planejada unilateralmente pelo fabricante no seu gabinete, isto é, o produtor pensa e decide fazer uma larga oferta de produtos e serviços para serem adquiridos pelo maior número possível de pessoas […]” (NUNES, 2019, p. 42), a fim de que haja um custo inicial para fabricar um único produto e depois reproduzi-lo em série.

Tal meio de produção precisava vir acompanhado de um modelo de contrato , e como não faria sentido criar um contrato para cada produto, criou-se então o contrato de adesão, adotado pelo Código de Defesa do Consumidor, no qual um fornecedor produz um produto ou serviço em massa e cria para esses um único contrato.

No contrato de adesão só resta ao consumidor, que não tem conhecimento técnico para entender as cláusulas contratuais e as informações a respeito do objeto do contrato, aderir às condições previamente estabelecidas, sem qualquer discussão. E a esse modo de produção, vigente desde o século XX, aplicou-se o Código Civil, sem que houvesse, até 1991, uma legislação específica para tutelar as relações de consumo.

O Código Civil, apesar de prever contratos em espécie, não era capaz de proteger as relações de consumo, porque não se trata de um acordo de vontades das partes que tecem um contrato juntos e depois precisam cumpri-lo. Numa relação de consumo, o consumidor vai ao mercado e adquire produtos ou serviços segundo regras previamente estabelecidas e, para tanto, é preciso legislação protetiva especial, que no caso é o Código de Defesa do Consumidor, com elaboração prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, art. 48: “[…] O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor […].”

Soma-se a isso a previsão da Constituição Federal de 1988 de princípios fundamentais norteadores, dentre os quais estão elencados a dignidade da pessoa humana, princípio maior para a interpretação de todos os direitos e garantias dados a todas as pessoas e o valor social da livre iniciativa, liberdade essa que consiste no direito de o consumidor ser pessoa livre, assim como o fornecedor, que pode escolher correr o risco do empreendimento (NUNES, 2019, p. 65). Mas, ao conjugar esses princípios, tem-se que, se uma pessoa quer algo e tem dinheiro para adquirir, é livre para fazê-lo; entretanto, caso o oposto ocorra, ou seja, haja necessidade de adquirir, o Estado poderá e deverá intervir para garantir a sua dignidade.

Segundo Nunes (2019, p. 102), no sistema capitalista ao qual estamos inseridos, fundado na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais, na cidadania e numa possibilidade de exploração econômica que vai gerar responsabilidade social, há a constatação de que o consumidor não tem total liberdade de escolha, pois está limitado ao que lhe é oferecido, devendo ser considerado pessoa vulnerável, porque recebe modelos de produção impostos, dos quais não participa, aos quais não acessa e que não controla; é por isso que o Código de Defesa do Consumidor protege-o amplamente e reconhece sua vulnerabilidade.

Além da vulnerabilidade técnica, o consumidor é, na maioria das vezes, pessoa pobre — já que a maioria da população é pobre — e também está diante de uma empresa com maior capacidade econômica, que é o fornecedor de produtos ou serviços, o que traz à pessoa do consumidor também a vulnerabilidade econômica.

Em contrapartida, o empreendedor/fornecedor decide livremente se vai ou não explorar o mercado e, em caso positivo, seu ganho é legítimo, afinal desenvolveu aquela atividade, mas, se sofrer perdas, elas serão igualmente suas. Então, quem corre o risco ao produzir é o fornecedor e jamais o consumidor.

E é em decorrência dessa vulnerabilidade que o Código de Defesa do Consumidor prevê direitos básicos para os consumidores, elencados num rol exemplificativo constante do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I – a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;

VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

IX – (Vetado);

X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral;

XI – a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;

XII – a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito;

XIII – a informação acerca dos preços dos produtos por unidade de medida, tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso.

Parágrafo único.  A informação de que trata o inciso III do caput deste artigo deve ser acessível à pessoa com deficiência, observado o disposto em regulamento.[2]

            Dentre os direitos acima elencados, destacam-se a modificação e a revisão das cláusulas contratuais que sejam ou se tornem excessivamente onerosas, visando à conservação dos contratos de consumo.

            E, com a experiência da pandemia da Covid-19, realidade que se impôs a todas as pessoas, exigiu-se muito esforço para tornar viável a manutenção dos vínculos contratuais com o respectivo cumprimento das obrigações, como a edição da Lei 14.046/2020, que dispunha sobre o adiamento e cancelamento de serviços e eventos dos setores de turismo e de cultura para atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia.

            Entretanto, a mencionada lei, ao invés de proteger o consumidor, pessoa vulnerável da relação de consumo, protegia a pessoa do fornecedor, transferindo àquele todo o prejuízo causado pelo descumprimento do contrato.

  1. PANDEMIA DA COVID-19: A MANUTENÇÃO DAS RELAÇÕES JURÍDICAS EM CASO DE CANCELAMENTO DE EVENTOS

Considerada uma das maiores da história da humanidade, a pandemia da Covid-19 em pouco tempo se espalhou pelo mundo todo e duas crises se instauraram: a sanitária e a econômica, afetando, especialmente, os setores do turismo e da cultura.

Com a rapidez no avanço da doença, vários destinos turísticos foram afetados, com medidas sanitárias para reduzir a circulação de pessoas, como, por exemplo, fechamento de aeroportos e lockdowns. Nos setores de turismo e de cultura brasileiros foi igual e, para evitar um colapso das empresas desses setores, que receberam milhares de solicitações de cancelamento de serviços, entrou em vigor a Medida Provisória 948 no dia 08/04/2020, que veio a ser convertida na Lei 14.046/2020, com alguns acréscimos.

Inicialmente, havia previsão de remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados, respeitando, também, a periodicidade e os valores dos serviços originalmente contratados e ainda que esses serviços fossem remarcados dentro do prazo de 12 meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública, que, de acordo com o Decreto Legislativo nº 06/2020, estava previsto para o dia 31 de dezembro de 2020; de disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas e que poderia ser utilizado pelo consumidor também no prazo de 12 meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública; ou outro acordo a ser formalizado livremente entre as partes.[3]

Entretanto, entendeu-se que o texto da Medida Provisória nº 948 de 2020 causou dúvidas aos operadores do Direito, especialmente no que se refere ao artigo 2º, que previa a desobrigação do reembolso em caso de  remarcação dos serviços ou disponibilização do crédito, e a garantia da remarcação ou da disponibilização do crédito pelo prestador do serviço ou de outro acordo entre partes, mas, caso não fosse possível celebrar o ajuste, o consumidor faria jus à devolução. E, diante disso, foi publicada a Lei nº 14.046/2020, que sanou essas dúvidas, trazendo alterações ao texto da Medida Provisória nº 948 de 2020, dentre elas a previsão de cancelamentos e adiamentos de serviços, reservas e eventos em razão da pandemia; retirou a possibilidade de outro acordo a ser formalizado com o consumidor além da remarcação ou adiamento; e dedução dos valores de agenciamento e intermediação do crédito a ser disponibilizado.[4]

Apesar de a intenção da lei de possibilitar a manutenção da prestação dos serviços dessa natureza com qualidade e, para tanto, prever cancelamentos e adiamentos desses serviços, reservas e eventos, na tentativa de equilibrar a relação entre fornecedor e consumidor, trata-se de relação naturalmente desequilibrada, pois o consumidor é pessoa vulnerável nessa relação e subtrair dele a opção de reembolso desrespeita a Política Nacional das Relações de Consumo, que deve atender às necessidades do consumidor e respeitar os princípios inerentes a essas relações, dentre os quais estão o da vulnerabilidade do consumidor, harmonização de seus interesses com os do fornecedor, boa-fé e equilíbrio dessa relação, bem como da educação e informação dos mesmos, conforme artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor, conforme se depreende do artigo 2º, caput e incisos, da Lei 14.046/2020:

Art. 2º Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, de 1º de janeiro de 2020 a 31 de dezembro de 2022, em decorrência da pandemia da covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem:

I – a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou

II – a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas.[5]

No caso específico de cancelamento de eventos, exigir do consumidor a escolha de nova data para um evento cancelado em decorrência da pandemia ou ficar com crédito para uso na compra de outros serviços, num período que não se sabe o fim, tampouco quando voltará a ser segura a circulação de pessoas, é a imposição de pagamento por um serviço que não se sabe se poderá ser consumido.

O que a Lei 10.046/2020 quer é a manutenção do vínculo contratual, entretanto, a simples escolha do consumidor por uma nova data de realização do evento que sequer se sabe se ocorrerá ou disponibilização de crédito para uso em data igualmente desconhecida, devido à calamidade pública experimentada por todos durante a pandemia da Covid-19, não representa a manutenção do contrato, menos ainda o equilíbrio da relação de consumo, naturalmente desequilibrada, mas exatamente o contrário: a perpetuação do desequilíbrio existente numa relação de consumo, pois dá ao fornecedor de serviços o poder de não devolver ao consumidor o valor por ele pago.

Quando se evoca o direito básico do consumidor de modificar ou revisar cláusulas contratuais o que se quer é a manutenção dos contratos de consumo, a restauração do equilíbrio contratual, ainda que existam cláusulas nulas, pois o que se quer é a equidade contratual (OLIVEIRA, 2011, p. 98), em decorrência da onerosidade excessiva existente e não a manutenção dessa onerosidade excessiva.

A título de exemplo, em 01/09/2020 o Ministério Público do Rio de Janeiro ajuizou uma Ação Coletiva de Consumo com pedido de Tutela Provisória de Urgência Antecipada[6] por conta de uma reclamação em sua Ouvidoria, de uma consumidora que adquiriu um ingresso para ir ao Lollapalooza, um evento musical que aconteceria em São Paulo, no mês de abril de 2020, mas foi adiado pela pandemia da Covid-19.

Segundo ela, tendo em vista o cancelamento do evento, a empresa deu-lhe duas possibilidades: utilização do ingresso em nova data a ser confirmada ou converter o valor do ingresso em crédito. Entretanto, essas alternativas não lhe agradavam, pois a nova data representava obrigação incerta; afinal, na provável e não certa nova data, não havia como ter conhecimento da situação sanitária, ou seja, não era possível saber se seria permitida a aglomeração de pessoas, própria de eventos como aquele. Quanto à conversão do valor do ingresso em crédito, essa alternativa também se mostra descabida, visto que não é possível saber se outro evento futuro interessará à consumidora e se ela poderá comparecer na data em que será programado, restando o crédito inútil.

Diante de tal caso ficou clara a vulnerabilidade do consumidor, que, mesmo diante de um período pandêmico, em que está mais vulnerável, tem seus direitos básicos violados sob a alegação de momentânea vulnerabilidade do fornecedor, que lhe subtraiu o direito ao reembolso da quantia paga pelo ingresso, com o argumento de que havia lhe oferecido duas alternativas. Entretanto, tais alternativas não lhe ofereciam as informações essenciais do serviço, quais sejam: a data certa de novo evento e os artistas que iriam se apresentar na nova data apresentada.

Ressalta-se que o direito à informação é também direito básico do consumidor, pois ele precisa conhecer o produto ou serviço para se convencer de consumi-lo ou não.

E é por conta de tais violações que o Ministério Público intervém nas relações de consumo, haja vista a vulnerabilidade dos consumidores.

O Ministério Público é uma instituição indispensável à defesa da ordem jurídica, ao regime democrático e aos interesses sociais e individuais indisponíveis, atuando como agente transformador da realidade social. E, no que tange às relações de consumo, a instituição busca pela justa relação entre consumidores e fornecedores.

  1. A IMPORTÂNCIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA TUTELA DOS INTERESSES DO CONSUMIDOR

Segundo a Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXII, “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.[7]

 Além de outros dispositivos constantes da Constituição, o Código de Defesa do Consumidor detalha tais direitos, uma vez que os consumidores precisam de mais proteção por serem pessoas vulneráveis e, com esse intuito, traz ferramentas que visam harmonizar o desenvolvimento econômico e tecnológico às suas necessidades, como, por exemplo, garantir o respeito a sua dignidade, saúde e segurança.

Corroborando com essa intenção, foi promulgado o Decreto nº 7.963, de 15 de março de 2013, que institui o Plano Nacional de Consumo e Cidadania e cria a Câmara Nacional das Relações de Consumo, com o fim de garantir efetividade às normas de proteção ao consumidor.[8]

E, apesar da legislação disponível em favor dos consumidores, muitos fornecedores de produtos e serviços ainda se aproveitam da vulnerabilidade dos consumidores para oferecer-lhes produtos e serviços de forma abusiva, beneficiando-se e prejudicando-os. Soma-se a isso que muitos deles não conseguem garantir sozinhos a defesa dos seus direitos.

Dessa forma, o Ministério Público, através das promotorias do consumidor, intervém na defesa dos direitos coletivos dos consumidores, haja vista ser o responsável por isso, por força do artigo 5º da Lei 8.078/90:

Art. 5° Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o poder público com os seguintes instrumentos, entre outros:

[…]

II – instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público;

[…][9]

Todas as vezes em que for verificada uma lesão aos direitos dos consumidores, em áreas como alimentação, lazer, bancos, consórcios, telefonia, TV por assinatura, planos de saúde, internet, transportes públicos (ônibus, metrô, trem, barcas, etc.) comércio e serviços em geral, inclusive no que diz respeito à propaganda enganosa ou abusiva e ao descumprimento de ofertas, dentre outras questões de consumo, o cidadão pode fazer sua comunicação ao Ministério Público.[10]

A atuação do Ministério Público na defesa dos consumidores está ligada aos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Basta haver relevância social da matéria e interesse público na afronta ao Direito do Consumidor, em âmbito coletivo, para se presumir sua vulnerabilidade e, assim, atuar o Ministério Público.

Nesse diapasão, as Promotorias de Defesa do Consumidor recebem e dão encaminhamento às denúncias que versem sobre violações dos direitos dos consumidores, buscando protegê-los, desde que legitimadas a agir, conforme versa o art. 129 da Constituição Federal:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

[…]

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

[…][11]

Como exemplo da atuação das Promotorias de Defesa do Consumidor é o caso anteriormente citado, sobre a negativa de reembolso do ingresso para o evento musical Lollapalooza, que aconteceria em São Paulo, no mês de abril de 2020, mas foi adiado pela pandemia da Covid-19, no qual a consumidora registrou o caso na Ouvidoria.

Após o recebimento da denúncia, o Ministério Público verifica se o fornecedor está descumprindo direitos da coletividade de consumidores, o que pode ser constatado por diversas formas, inclusive pelo grande número de notícias de pessoas apontando o mesmo problema. Sendo esse o caso, o Ministério Público poderá responsabilizar o fornecedor do produto ou do serviço através da medida judicial ou extrajudicial cabível, que favorecerá todo o grupo de consumidores prejudicados e não apenas aquele que denunciou[12].

No caso concreto, o Ministério Público ajuizou Ação Coletiva de Consumo com pedido de Tutela Provisória de Urgência Antecipada baseado na supressão do direito dos consumidores ao reembolso do valor pago pelo ingresso, que não deve servir como penalidade se rejeitadas as formas de cumprimento alternativo da obrigação do fornecedor, pois o princípio da conservação do contrato contido no Código de Defesa do Consumidor é para manter a relação jurídica existente e, não sendo possível, ele será nulo, tendo direito o consumidor a eventual indenização por perdas e danos materiais e morais.

O fornecedor não pode transferir, indevidamente, à parte vulnerável da relação de consumo, o risco pelo prejuízo causado pela não prestação do serviço, motivo pelo qual o Ministério Público requereu na ação que o fornecedor se abstivesse de subtrair do consumidor o direito ao reembolso do valor pago pelo ingresso, bem como o pagamento de indenização por danos morais coletivos, afinal, vários consumidores foram prejudicados com essa conduta do fornecedor de serviço.

Assim como a consumidora denunciou o caso do Lollapalooza, qualquer consumidor que se sentir lesado poderá fazer uma denúncia sempre que tiver conhecimento sobre um fato em que a sociedade tenha sido prejudicada, ou quando um dos direitos comuns a todos tenha sido desrespeitado, momento em que ele poderá optar ou não pelo sigilo ou, ainda, pelo anonimato.

            Importante frisar que a lesão sofrida pelo consumidor individualmente deve buscar apoio junto a órgãos de defesa do consumidor com atendimento individual, como o PROCON, Defensoria Pública (NUDECON), no caso de não possuir condições financeiras, podendo também recorrer ao Judiciário por meio de um advogado.[13]

  1. CONCLUSÃO

A Constituição Federal prevê a promoção da defesa do consumidor, o que levou à promulgação da Lei 8.078/90, legislação com esse objetivo.

Sendo o consumidor pessoa vulnerável, precisa de especial proteção, que deve ser obtida, além de outros meios, pela atuação do Ministério Público, quando se tratar de violação dos direitos do consumidor em âmbito coletivo.

Dessa forma, possuindo o Ministério Público autonomia funcional, a fim de que atue na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, promoverá a defesa do consumidor, já que também é o responsável por proteger seus interesses.

Assim, sua atuação é indispensável e passou a ser ainda mais no período da pandemia da Covid-19, momento em que os consumidores passaram a ficar ainda mais vulneráveis, necessitando de que o Ministério Público garantisse o equilíbrio das relações de consumo, em especial as que versassem sobre prestação de serviços turísticos e culturais.

O Ministério Público possui importante papel na proteção da pessoa do consumidor. Além de órgão conciliador, também é legitimado para propor ações no caso de violação de seus direitos, visto que trata de pessoa vulnerável, que não tem condição de defender, sozinha, seus interesses.

Portanto o Ministério Público, representado por suas Promotorias de Defesa do Consumidor, atua diretamente como transformador da realidade social dos consumidores, que, no âmbito da coletividade, têm seus direitos violados e não conseguem impedi-la.

  1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor de 1990. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm.

 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

BRASIL. Decreto no 7.963, de 15 de março de 2013. Institui o Plano Nacional de Consumo e Cidadania e cria a Câmara Nacional das Relações de Consumo. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d7963.htm.

 

BRASIL. Lei nº 10.046 de 24 de agosto de 2020. Dispõe sobre medidas emergenciais para atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia da covid-19 nos setores de turismo e de cultura. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14046.htm.

CAMPANHA, André Cogo. Alterações da Lei 14.046/2020 dá ótimo fôlego para as empresas de turismo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-03/andre-campanha-alteracoes-lei-140462020.

NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

OLIVEIRA, James Eduardo. Código de Defesa do Consumidor anotado e comentado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

PERES, Hudson Alexandre Araújo; RODRIGUES, Renata Knackfuss. As Promotorias de Defesa do Consumidor e sua Relevância na Defesa da Sociedade: breve análise do ano de 2018. Revista Eletrônica Jurídico-Institucional, ano 9, nº 13, jan./jun. 2019. Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte.

TERRA, Rodrigo. Peça processual. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº78, out/dez. 2020. p. 375-391. Disponível em: http://www.mprj.mp.br/documents/20184/2026471/Rodrigo_Terra.pdf.

Notas:

[1] PERES, Hudson Alexandre Araújo; RODRIGUES, Renata Knackfuss. As Promotorias de Defesa do Consumidor e sua Relevância na Defesa da Sociedade: breve análise do ano de 2018. Revista Eletrônica Jurídico-Institucinal, ano 9, nº 13, jan/jun, 2019. Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte.

[2] BRASIL. Código de Defesa do Consumidor de 1990. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 13 mar. 2022.

[3] CAMPANHA, André Cogo. Alterações da Lei 14.046/2020 dá ótimo fôlego para as empresas de turismo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-set-03/andre-campanha-alteracoes-lei-140462020. Acesso em: 23 mar. 2022.

[4] Ibidem.

[5] BRASIL. Lei nº 10.046 de 24 de agosto de 2020. Dispõe sobre medidas emergenciais para atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia da covid-19 nos setores de turismo e de cultura. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14046.htm. Acesso em: 23 mar. 2022.

[6] TERRA, Rodrigo. Peça processual. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº78, out/dez. 2020. p. 375-391. Disponível em: http://www.mprj.mp.br/documents/20184/2026471/Rodrigo_Terra.pdf. Acesso em: 28 mar. 2022.

[7] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27 mar. 2022.

[8] BRASIL. Decreto no 7.963, de 15 de março de 2013. Institui o Plano Nacional de Consumo e Cidadania e cria a Câmara Nacional das Relações de Consumo. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d7963.htm. Acesso em: 27 mar. 2022.

[9] BRASIL. Código de Defesa do Consumidor de 1990. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 13 mar. 2022.

[10] Disponível em: https://www.mprj.mp.br/conheca-o-mprj/areas-de-atuacao/consumidor/sobre. Acesso em: 27 mar. 2022.

[11] BRASIL. Código de Defesa do Consumidor de 1990. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 13 mar. 2022.

[12] Disponível em: https://www.mprj.mp.br/conheca-o-mprj/areas-de-atuacao/consumidor/sobre. Acesso em: 27 mar. 2022.

[13] Ibidem.

Palavras Chaves

Direito do consumidor. Vulnerabilidade. Pandemia da Covid-19. Ministério Público. Tutela Coletiva.