O PRECONCEITO QUE ATRASA A REGULAMENTAÇÃO DA CANNABIS NO BRASIL.

Resumo

Trata-se de uma análise crítica as oposições fundamentado em preceitos morais e religiosos que ao longo dos anos interferiram diretamente no controle da sociedade sob paradigma da moralidade higienista proibicionista desenvolvidos nos séculos passados e se estendem até os dias de hoje. Busca-se analisar os argumentos embasados nos dogmas religiosos cristãos no país com interpretação na bíblia sagrada, principal livro das religiões cristãs e apoiado em estudos científicos. Discorre acerca da história da cannabis no mundo, sua introdução em solo brasileiro até a mudança de conceitos sobre seu uso e criminalização no arcabouço do preconceito gerado pela desinformação.

Artigo

O PRECONCEITO QUE ATRASA A REGULAMENTAÇÃO DA CANNABIS NO BRASIL.

 Vilma Leal de Mello Seljan[1]

RESUMO: Trata-se de uma análise crítica as oposições fundamentado em preceitos morais e religiosos que ao longo dos anos interferiram diretamente no controle da sociedade sob paradigma da moralidade higienista proibicionista desenvolvidos nos séculos passados e se estendem até os dias de hoje. Busca-se analisar os argumentos embasados nos dogmas religiosos cristãos no país com interpretação na bíblia sagrada, principal livro das religiões cristãs e apoiado em estudos científicos.  Discorre acerca da história da cannabis no mundo, sua introdução em solo brasileiro até a mudança de conceitos sobre seu uso e criminalização no arcabouço do preconceito gerado pela desinformação.

  1. Introdução

Cannabis é o nome científico conhecido mundialmente da planta que no Brasil é popularmente conhecida como maconha. Ela é uma espécie da flora de origem asiática, entretanto pode ser encontrada em todos os continentes, com grande versatilidade de uso, tanto na indústria de medicamentos, têxtil, cosmética, gastronomia, vestuário, etc., como também em cultos religiosos e mesmo consumo recreativo. Sua matéria prima foi utilizada em grande escala nas mais diversas criações humanas, entretanto na virada do século XIX a cannabis foi listada como uma das drogas a serem combatidas no mundo em virtude de seu potencial efeito psicoativo. A mudança na classificação da cannabis foi marcada principalmente por discursos médico-científicos de ideologia higienista positivista agregado aos dogmas religiosos tão influentes em nossas sociedades, associando a cannabis a um potencial de degeneração da sociedade e descaminho da moral.

Tanto assim que perduram até hoje os conceitos, ou pré-conceitos, com fundamentos nessa ideologia higienista com forte apelo espiritual.

  1. A Religião e seus dogmas como argumentos de persuasão moral proibicionista e a interpretação da doutrina cristã.

Enquanto algumas religiões milenares utilizam a cannabis com fins ritualísticos e medicinais tanto para o corpo quanto para o espirito, outras religiões demonizam a planta descrevendo-a como fonte da perdição do corpo e consequentemente do espírito.

Fato é que, os argumentos trazidos pelos que defendem a criminalização e proibição total da cannabis, negando a ciência e suas comprovações na utilização da planta como insumos medicinais, são superficiais, eivados de subjetivismo ideológico.

Ainda hoje vemos alguns lideres religiosos com o pensamento higienista punitivista de séculos passados, é o caso de um teólogo da Igreja Adventista do Sétimo Dia que publicou um artigo denominado O uso medicinal da maconha e o evangélio[2], onde aconselha que cristãos se abstenham de utilizarem a cannabis, mesmo para fins medicinais, devendo buscar nas drogas, dito lícitas, vendidas em farmácias, o tratamento alternativo apropriado. Afirma que o assunto sobre os benefícios à saúde através do uso medicinal da cannabis necessita ainda de um debate ético para definir os limites do uso medicinal para o recreativo, alegando ainda, que os movimentos para aprovação da cannabis medicinal seriam uma tentativa de burlar a lei com fins de legalização da cannabis. Por fim afirma que a cannabis é uma droga perigosa e que deve ser evitada a qualquer custo. Chega a afirmar que a cannabis com seus efeitos psicotrópicos, tornam as pessoas inaptas na adoração e com baixo discernimento, prejudicando a estrutura social e frequentemente matando as suas vítimas ou levando-as para uma vida de crimes.

Observando que, embora o autor do artigo seja mestre em teologia pastoral, não podemos deixar de identificar que suas afirmações não tem embasamento de estudos científicos, sendo que no final do artigo ele mesmo reconhece que o artigo não possui referências científicas, estatísticas ou médicas, apenas suas impressões enquanto pastor, fragilizando assim a credibilidade das informações ali apresentadas.

Tais discursos são sempre eivados de desconhecimento, tudo concatenado para disseminar uma ignorância embalsamada em preconceito cunhado em ideologias historicamente raciais.

O viés do discurso cristão sempre teve como parâmetro o pecado. Desde a criação descrita no livro de Gênesis com a queda de Adão, conhecido como o pecado original, tudo o que foge a doutrina cristã, seja ela católica, evangélica, e suas dissidências é considerado pecado. Assim, a resposta cristã sobre a cannabis se baseia no discurso de uso pecaminoso, pelo simples fato de se tratar de uma droga ilegal e, portanto estaria contaminando o corpo e o espírito humano considerado pelos cristãos como sendo templo do Espirito Santo.

A legalização ou normatização da cannabis é um assunto complexo por demais para ser tratado de forma tão superficial. Importante salientar que qualquer droga, seja ela lícita vendida livremente no comercio, como remédios, cigarros, álcool, açúcar, café, fastfood, entre tantos outros, ou ilícita, como é o caso da cannabis, se consumidos indiscriminadamente apresentam perigo a saúde do seu consumidor.

Tratando da discussão sobre a ilegalidade da planta e todas as suas potencialidades, as manifestações favoráveis à legalização da cannabis buscam uma forma de mudança de status demonstrando que a legalização traria muito mais benefícios sociais em contraponto aos alardeados malefícios, inclusive espirituais.

Importante destacar que a cannabis vem apresentando ao longo dos anos, e com farto material de estudos científicos, propriedades medicinais a partir do uso de suas substâncias, nas mais diversas patologias.

Em diversos seminários, congressos e eventos destinados a discutir a normatização da cannabis, podemos ouvir argumentos, inclusive religiosos dogmáticos para defender seu posicionamento a favor da legalização. Assim, alguns defensores utilizam trechos da bíblia cristã para validarem a liberdade de consumo. Dentre muitas citações, podemos observar um dos mais utilizados trechos extraído do livro de Gênesis1.29[3]: E disse Deus: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda árvore em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. Ora pois, se toda erva existente na terra foi criada por Deus, como pode qualquer uma delas ser ela demoníaca? Não é a criação que contamina e sim a criatura humana que as desvirtua. Em contrapondo ao argumento citado do livro de Gênesis 1.29, os opositores a normatização e legalização contestam a tese do produto da criação alegando que o texto bíblico em questão trata apenas das ervas comestíveis, e mesmo que a cannabis possa ser utilizada na confecção de algum tipo de alimento, isso não altera seu uso mais comum que é em forma de fumo, e como fumo é também considerado pecado, a cannabis se desqualifica para o argumento da criação divina. Alguns religiosos afirmam ainda que a interpretação dos textos bíblicos deve considerar o que foi ordenado antes da queda de Adão, origem do pecado na terra, pois que, com a entrada do pecado no mundo, toda criação foi afetada, não sendo mais considerados produtos puros da criação divina.

Veja que o texto bíblico em sua tradução mais fiel diz isso vos será para mantimento. Mantimento não significa apenas alimento, pois que muitas ervas, arvores e frutos não são comestíveis, ou não apenas comestíveis, mas utilizados para tratar da saúde do corpo e também da mente, é o caso da semente de abóbora, que é indicada como vermífugo natural e também como redutor de glicemia; mamão auxilia no trato intestinal; folha de abacate como diurético, antirreumático, antianêmico, antidiarreico e antinflamaório; folhas de boldo usadas no trato digestivo e desconforto estomacal e do fígado.  Esses são apenas alguns dos muitos exemplos que podemos citar dentre as diversas espécies da flora mundial que não são apenas comestíveis mas que são importante no mantimento da vida e saúde dos humanos.

Temos ainda outro argumento muito utilizado pelos que defendem a liberação da cannabis fazendo analogia desta com o consumo de álcool, utilizando como referencia tantos outros trechos da bíblia cristã, o principal deles cita a passagem descrita em João 2.1-11[4], onde o próprio Cristo, durante uma cerimonia de casamento judaica em Caná da Galiléia, transforma água em vinho após ser informado por sua mãe Maria, que o vinho havia acabado. Outro momento citado ocorreu pouco antes de Cristo ser traído, na passagem bíblica de Mateus 26.26-28[5], onde celebrou o que hoje denominamos santa ceia e incentivou a seus seguidores celebra-la em sua memória. Assim, como exemplo, vemos repetidas vezes durante a missa católica celebrada no mundo todo, essa mesma cerimonia, onde o pão e o vinho representam o corpo e o sangue de cristo.

Importante destacar que o vinho a que fazem referências na bíblia, em diversas passagens de seus 66 livros, sendo 39 no velho testamento e 27 no novo testamento, trata-se de vinho de verdade e não de suco de uva, pois que diversas são as passagens que assim o descreve, como em Gênesis 9.21, onde Noé, após plantar uma vinha, bebeu vinho e embebedou-se; Isaias 5.11: Ai dos que se levantam pela manhã, e seguem a bebedice; e continuam até à noite, até que o vinho os esquente!; Provérbios 31.6: Dai bebida forte aos que perecem, e o vinho, aos amargosos de espírito.

Veja que suco de uva não é capaz de embebedar qualquer pessoa, ou aquecer o corpo, nem mesmo trazer alegria aos amargosos de espírito, fazendo clara referência ao efeito provocado por bebida alcoólica. Muitas outras passagens falam sobre o vinho como bebida com teor alcoólico e não suco de uva. Ademais, todas as admoestações feitas no livro sagrado sempre fazem referencias aos excessos e não ao simples consumo, assim é no livro de Lucas 21.34: Ai dos que se levantam pela manhã, e seguem a bebedice; e continuam até à noite, até que o vinho os esquente!. Romanos 13.13: Andemos honestamente, como de dia: não em glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidade, nem em dissoluções, nem em contendas e inveja. Entre tantos outros.

Assim, diversos são os argumentos daqueles que defendem o uso da cannabis e seus benefícios, dentre eles os argumentos de cunho religioso, principalmente cristão, utilizando passagens bíblicas para defenderem seu ponto de vista, em contraponto aos que defendem o proibicionismo puro, que não constituem embasamento científico, de estudos ou mesmo histórico em seus argumentos. Estes chegam a afirmar que a cannabis consumida nos anos 60 e 70 não é a mesma consumida nos dias atuais, fazendo clara referencia a cannabis sintética, mais barata e potente que a sua forma orgânica. Reconhecem que seja natural que as pessoas busquem alguma forma de alívio para os dissabores e dificuldades da vida cotidiana, entretanto a cannabis não seria a escolha segura, pois tende a se tornar um problema ainda maior, tanto para o usuário quanto para sua família, principalmente porque a paz e tranquilidade que muitos buscam não podem ser encontradas em produtos químicos ou qualquer substância externa. A verdadeira paz é alcançada através do relacionamento com Deus.

Nada contra a doutrina dogmática praticada em diversas religiões, desde que ela não impeça a evolução humana, científica, despida de preconceitos que trazem junto à segregação e a marginalização de povos, comunidades e minorias. Estamos defendendo o direito ao uso da erva natural, criada por Deus com suas infinitas propriedades, próprias da criação divina, já fartamente comprovada a sua eficácia no tratamento de diversas patologias.

Assim fez o pároco da paróquia Francisco de Assis Ermelino Matarazzo, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo, conhecido como Padre Ticão.

Em uma matéria publicada pela Editora Abril cujo título é Deus é canabista,[6] mostra o Padre Ticão, com 42 anos de dedicação a projetos sociais, que introduziu em sua paróquia cursos de orientações sobre naturopatia, com intuito de instruir a sua comunidade a se alimentar e cuidar da saúde de forma mais saudável e natural. Para tanto, dentre as diversas ervas existentes em sua horta comunitária, encontra-se a cannabis sativa, de onde ele extrai o canabidiol, utilizando como auxilio no tratamento e prevenção de diversas doenças de sua comunidade.

A matéria traz dados importantes sobre os estudos realizados na paróquia do Padre Ticão utilizando a naturopatia e a medicina holística. Além disso, os cursos ministrados na paróquia alertam para o consumo excessivo de açúcar, refrigerantes, margarina e outros produtos industrializados, bem como a forma de preparo dos alimentos que podem ser tão nocivos à saúde como qualquer droga dita ilícita, e que todo excesso deve ser evitado.

A matéria conta ainda que o padre tomou conhecimento dos efeitos do canabidiol através das pesquisas realizadas pelo Dr. Elisaldo Carlini, médico conhecidíssimo pelos estudos e defesa do uso da cannabis com ampla experiência em farmacologia com ênfase em neuropsicofarmacologia, atuando principalmente nos temas sobre drogas, levantamentos epidemiológicos, plantas medicinais, psicofarmacovigilância. Dr Carlini foi o criador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), membro do Expert Advisory Panel on Drug Dependence and Alcohol Problems da Organização Mundial da Saúde (OMS), conforme informações publicada pela revista pesquisa da FAPESP, edição 168 de fevereiro de 2010.

O pároco informou que após estudar mais de 600 trabalhos científicos sobre os efeitos terapêuticos da cannabis, descreve seu primeiro contato com a substância como uma experiência pessoal revolucionária. Após essa experiência e buscando informações idôneas, Padre Ticão em parceria com a Unifesp, criou ainda um curso sobre as propriedades terapêuticas da cannabis.

Em sua opinião, o Padre afirmou que cristãos que simplesmente repudiam a cannabis não possuem entendimento bíblico de fato, citando como exemplo o mesmo trecho da bíblia contido em Gênesis, 1:29,30, que fala da criação. Ele faz criticas severas sobre julgamento não embasado em ciência, pesquisa, conhecimento e afirmou, Deus perdoa o pecado, mas não perdoa a ignorância.

Veja que o conhecimento é libertador, é possível se enxergar os potenciais positivos com empenho, estudo e dedicação para buscar soluções reais e mitigar os efeitos colaterais, se não impedi-los, ao menos aprender a lidar com eles. São exemplos como os do Padre Ticão que nos fazem ganhar folego nessa empreitada desafiadora de normatização da cannabis no Brasil. Infelizmente perdemos esse grande defensor da utilização plena da cannabis, Padre Ticão falecido em 01 de janeiro de 2021, deixando seu legado aos diversos seguidores que muito aprenderam com seus sermões e sua dedicação ao serviço humanitário.

  1. Breve histórico da cannabis e sua compreensão enquanto potencial medicinal e sua criminalização.

Em 2020 tivemos uma importante noticia vinda da Comissão de Drogas Narcóticas das Nações Unidas que aprovou ainda em 2020, a reclassificação da cannabis para substâncias consideradas de menor perigo, seguindo entendimento da Organização Mundial de Saúde (OMS) [7]. Essa reclassificação foi sinalizada em virtude do movimento mundial que está rediscutindo a legalização e descriminalização da cannabis em conjunto com novas formas de uso e controle do tráfico, a partir de uma nova vertente em contraponto ao proibicionismo puro e dogmático, com a constatação de que o mesmo não foi eficaz na guerra as drogas ao longo de tantos anos. Também considerando o crescente avanço em pesquisas científicas e inegável potencial econômico aliado ao diálogo que possibilita um trabalho sócio educativo com instituições de atendimento e representatividade de usuários de drogas, incluindo as igrejas.

A partir desse novo paradigma, cresce o movimento de países na busca de regulamentações internas e investimento em estudos sobre as propriedades da cannabis em suas diversas aplicabilidades, principalmente de cunho medicinal com comprovações científicas a respeito de suas propriedades.

Infelizmente, além das críticas dogmáticas religiosas, temos o uso da cannabis como sinônimo de adjetivo pejorativo, com considerável conceito negativo, principalmente quando direcionado a população pobre e negra. Usuários são classificados como maconheiros, um ser à margem da sociedade estabelecida. Para fazer frente a esse conceito arcaico e carregado de preconceito e discriminação, diversos cientistas, pesquisadores, operadores do direito, e sociedade civil organizada veem lutando pela liberdade e igualdade de direitos. Avanços médicos, e potenciais econômicos buscam compreender as potencialidades passíveis de se extrair da cannabis.

Para entendermos um pouco mais dessa luta por pesquisas e usos, importante frisar um breve conceito histórico da cannabis no mundo.

A cannabis está entre as espécies de plantas mais antigas já registrada na história, sendo uma das primeiras plantas cultivadas pelo homem, utilizada à milhares de anos.

Foi na China onde foram descobertos os primeiros sinais desta fibra, datados de 4000 anos a.C., indicando que a fibra era utilizada com fins medicinais e espirituais, além de tecidos, e cordoarias[8]. A utilização da cannabis na medicina Chinesa é descrita na mais antiga farmacopeia do mundo conhecida como Pen-ts´Chin na qual se refere o uso da cannabis no tratamento de diversos males, dentre os quais são citados as dores reumáticas, problemas intestinais, malária e problemas no sistema reprodutor feminino[9].

Na Índia antiga a cannabis era utilizada pelos Hindus com fins espirituais, indutor da meditação e para usos médicos no tratamento de insónias, febres, tosse, oftalmologia e disenteria[10].

No século XX, o consumo recreativo de cannabis passa a ser identificado como uma forma de rebeldia social por parte dos jovens ativistas e ecologistas da classe média, com um estilo de vida vanguardista.

Fato é que desde a antiguidade a curiosidade humana em constante busca pelo conhecimento através de pesquisas das floras no planeta, fez nascerem diversas substâncias que hoje conhecemos como remédios para diversas patologias. Uma grande variedade de plantas possuem efeitos medicinais e curativos, enquanto outras possuem efeitos danosos à saúde, alguns até mesmo venenosos, mas muitas vezes necessários para as mais diversas aplicações, inclusive como pesticidas no controle de pragas nas produções agrícolas.

Ao longo dos anos, diversos estudos vêm demostrando que a Cannabis possui inúmeras propriedades medicinais, atuando no alívio de dores agudas, antiemético, efeitos antidepressivos, anticonvulsivos, neurológicos, melhora na concentração, dentre outros.  Para a botânica, a cannabis sativa, vulgarmente conhecida como “maconha” ou “cânhamo da Índia”, pertence à ordem das urticales da família das canabináceas[11]. É uma planta dióica cujos seus pés apresentam gênero masculino e feminino.

No Brasil, a cannabis foi introduzida através dos navios em sua maioria como cordas e velas confeccionadas com cânhamo devido a sua excelente resistência, principalmente as intempéries durante as navegações, e o baixo custo de produção. A cannabis também era utilizada pelos escravos para minimizar a dor dos castigos físicos e emocionais, sendo conhecida como potente analgésico e antidepressivo.

No final do século XVIII a Coroa Portuguesa instalou a Real Feitoria do Linho Cânhamo no Rio Grande do Sul com o objetivo de explorar comercialmente os derivados da cannabis, além de muito utilizada na produção de cordas para as grandes navegações, também tinha seu uso ainda na medicina e gastronomia a partir da extração de óleos das suas sementes. A cannabis se fez presente em boa parte da história brasileira e que ao longo dessa história a sociedade brasileira nem sempre a tratou com um conceito imoral, associado à criminalidade e a degradação da saúde e da sociedade.

Segundo a historiadora Luísa Saad[12], ao tratar historicamente da cannabis no Brasil, na justificativa para venda de algum produto derivado da cannabis eram utilizados argumentos médicos para justificar tais vendas, como no caso dos Cigarros Índios. A Real Feitoria do Linho Cânhamo, instalada em 1783 pela Coroa Portuguesa, foi responsável pelo plantio de cannabis e a produção de fibra de cânhamo, empreendimento que durou quase meio século, sendo encerrado somente em 1824.

No contexto histórico de discussão dos usos medicinais da cannabis no Brasil, três autores, Carl Friedrich Von Martius, Joaquim Monteiro Caminhoá e Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, tiveram grande importância para a produção e desenvolvimento do saber botânico e naturalístico brasileiro. Em 1853, Von Martius dedicou um parágrafo da sua obra Flora Brasiliensis para descrever a cannabis e seus usos no Brasil, como o medicinal através do consumo de pílulas e o uso recreativo pelos negros através do fumo. Na premiada obra Botânica Geral e Médica, de 1881, Joaquim Caminhoá apresenta uma extensa descrição dos aspectos botânicos da cannabis apontando para o uso no combate às cólicas. Chernoviz reafirma a hipótese de Caminhoá, no livro Dicionário de medicina popular, de 1890, apontando para um dos efeitos colaterais do uso da cannabis, a agressividade do usuário, mas destacou que a planta também continha potencial medicinal, utilizada no trato de cólera e doenças mentais. O pensamento de Martius, Chernoviz e principalmente Caminhoá, serviu de referência, mesmo que de forma indireta, para os discursos médico-científicos do século XX, sendo citado como referência no livro Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros de 1958, por cinco dos mais de vinte autores. Desse modo, as obras mencionadas merecem destaque na tentativa de construção de um contexto sobre as imagens da maconha nos discursos médicos do século XIX. Devendo ser observado que o trabalho dos três autores é marcado pelas noções de moralidade de sua época.

Sendo assim, desde a virada do século XIX ao XX, embora reconhecendo a potencialidade de usos medicinais da cannabis, o senso da moralidade impulsionado também pela igreja, formou um conjunto de hábitos e características que passaram a ser categorizados e entendidos pela medicina como “enfermidades sociais”, que estariam degenerando física e moralmente a sociedade, apresentando uma visão estreita entre a ciência e a moral.

  1. Conclusão

O enfoque deste artigo é demonstrar que a cannabis é uma planta secular, utilizada pelo homem nas mais diversas finalidades, que ao longo dos anos, influenciadas pelos interesses de cada época, em particular o de domínio higienista com forte apoio da igreja, vem ganhando espaço no mundo pelas suas propriedades medicinais, inegáveis e já amplamente demonstrados através de dados científicos. Utilizada desde a forma de tintura e óleos, até os mais avançados exames como os de DNA, que já conseguem indicar precisa e individualmente, o tipo e dosagem da substância extraída da cannabis para a patologia especifica naquele determinado paciente.

Assim, considerando os argumentos contra e a favor da normatização da cannabis devemos passar pela reflexão consciente e despida de qualquer preconceito, buscando conhecimento através da pesquisa histórico científica, e os debates que vem crescendo principalmente no campo jurídico, onde se encontra o cerne da questão, uma vez que ela consta como uma das plantas com potencial de substâncias psicoativas e, portanto, criminalizada, mas também onde se conhece o padecer dos efeitos dessa criminalização, seja para aqueles usuários encarcerados como se traficante fossem, tendo em vista a subjetividade existente ainda hoje na norma penal incriminadora, seja pela grande parcela da sociedade que necessita do acesso aos insumos para fins medicinais que ainda precisam se socorrer ao judiciário para conseguir realizar o tratamento de saúde.

A falta de conhecimento por uma considerável parcela da população as aprisionam na ignorância e as tornam passiveis de controle de rebanho sem questionarem o real sentido do proibicionismo praticado a séculos pelos detentores do poder sem nenhum benefício prático e efetivo a população. O conhecimento é libertador, assim nos ensina o mestre Jesus Cristo: Se vó permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. João 8.31-32[13].

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas:

[1]Advogada, especializada em Direito Público, desenvolvendo ao longo de sua carreira assistência jurídico legislativa com prática em projeto de Direitos Humanos. Membro da Comissão do Direito do Setor da Cannabis Medicinal da Seccional da OAB Rio de Janeiro, presidente da Comissão do Direito da Cannabis Medicinal da 3ª Subseção da OAB Petrópolis/São José do Vale do Rio Preto. Criação evangélica, formação católica, cristã praticante.

[2]ROSSI, Rafael. O uso medicinal da maconha e o evangelho – Notícias Adventistas, Brasília, dez. 2014. Disponível em: <http://www.noticias.adventista.org.html> acesso em: 31 ago. 2023.

[3] ALMEIDA, João Ferreira de. A Bíblia Sagrada. São Paulo. Imprensa da Fé. 2013. 1360 p.

[4] ALMEIDA, João Ferreira de. A Bíblia Sagrada. São Paulo. Imprensa da Fé. 2013. 1360 p.

[5] ALMEIDA, João Ferreira de. A Bíblia Sagrada. São Paulo. Imprensa da Fé. 2013. 1360 p.

[6] MESSIAS, Carlos. Deus é canabista. São Paulo, jul. 2020. Disponível em: < https://elastica.abril.com.br/especiais/padre-maconha-canabidiol-religiao.html> acesso em: 31 ago. 2023.

[7] Relatório Mundial sobre Drogas 2013.  UNODC jun. 2013. Disponível em: <https://www.unodc.org/ipo-brazil/pt/frontpage/2013.html> acesso em: 30 ago. 2023.

[8] ESCOHOTADO, Antonio. História elementar das drogas. Tradução: BARREIROS, José Colaço.1ª ed. Portugal: Antígona, 2004. 225 p. Disponível em: <https://www.biblioteca.bertrand.pt/reader/index.html> Acesso em: 27 ago 2023.

[9] ZUARDI,Antonio Waldo. História da cannabis como medicamento: uma revisão. São Paulo: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Jun 2006. Disponível em:<https://www.scielo.br/j/rbp/a/ ZcwCkpVxkDVRdybmBGGd5NN> Acesso em: 27 ago 2023.

[10] ESCOHOTADO, Antonio. Historia elementar das drogas. Tradução: BARREIROS, José Colaço. 1ª ed. Portugal: Antígona, 2004. 225 p. Disponível em: <https://www.biblioteca.bertrand.pt/reader/index.html> Acesso em: 27 ago 2023.

[11] HONORIO, Káthia Maria. ARROIO, Aguinaldo. SILVA, Albérico Borges Ferreira da. Aspectos terapêuticos de compostos da planta cannabis sativa. São Carlos. Instituto de Física de São Carlos, Universidade de São Paulo. Abr. 2006. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/qn/a/LmPbLrC3DY6Z68BK6cMHPbf/> Acesso em : 27 ago 2023.

[12]SAAD, Luisa. Fumo de negro: a criminalização da maconha no pós-abolição. Bahia. 2019. Editora EDUFBA. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/32169/1/fumo-negro-RI.pdf.> Acesso em : 27 ago 2023.

[13] A Bíblia Sagrada. Tradução: ALMEIDA, João Ferreira de. São Paulo. Imprensa da Fé. 2013. 1360 p.