PACTO COMISSÓRIO E PACTO MARCIANO NA RETROVENDA COM ESCOPO DE GARANTIA: PROPOSTA DE DELIMITAÇÃO DAS FRONTEIRAS À LUZ DA METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL

Resumo

No âmbito do sistema de garantias, os artigos 1.365 e 1.428 do Código Civil contemplam a vedação ao pacto comissório. Não se confunde a lex commissoria, contudo, com o pacto marciano. Por intermédio desta cláusula, avença-se que, diante do incumprimento da dívida, o credor poderá se apropriar do bem dado em garantia desde que fixado o seu preço justo. Atento a essa problemática, o presente artigo propõe a análise concreta das fronteiras entre pacto comissório e pacto marciano com enfoque no contrato de compra e venda com pacto de retrovenda.

Abstract

Under the system of guarantees, the prohibition of lex commissoria is contemplated in Articles 1.365 and 1.428 of the Civil Code. The lex commissoria is not to be confused with the marciana clause, a clause authorizing the creditor's appropriation of the asset given as collateral in the event of default of the debt by means of the fixing of the fair price. Aware of this problem, this article proposes the concrete analysis of the frontiers between the lex commissoria and the marciana clause, with focus on the purchase and sale agreement with trade back clause.

Artigo

Pacto comissório e pacto marciano na retrovenda com escopo de garantia: proposta de delimitação das fronteiras à luz da metodologia civil-constitucional

   Diana Paiva de Castro*

Rodrigo Freitas**

RESUMO: No âmbito do sistema de garantias, os artigos 1.365 e 1.428 do Código Civil contemplam a vedação ao pacto comissório. Não se confunde a lex commissoria, contudo, com o pacto marciano. Por intermédio desta cláusula, avença-se que, diante do incumprimento da dívida, o credor poderá se apropriar do bem dado em garantia desde que fixado o seu preço justo. Atento a essa problemática, o presente artigo propõe a análise concreta das fronteiras entre pacto comissório e pacto marciano com enfoque no contrato de compra e venda com pacto de retrovenda.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos reais; sistema de garantias; pacto comissório; pacto marciano.

SUMÁRIO:  1. Introdução. 2. Pacto comissório e pacto marciano. 3. A controvérsia acerca da retrovenda com escopo de garantia como instrumento de fraude à vedação de pacto comissório. 4. Proposta de solução do impasse à luz da metodologia civil-constitucional. 5. Notas conclusivas. 6. Referências bibliográficas.

TITLE: Lex commissoria and marciana clause in trade back clause with guarantee scope: delimitation of the borders in light of the civil-constitutional methodology

ABSTRACT: Under the system of guarantees, the prohibition of lex commissoria is contemplated in Articles 1.365 and 1.428 of the Civil Code. The lex commissoria is not to be confused with the marciana clause, a clause authorizing the creditor’s appropriation of the asset given as collateral in the event of default of the debt by means of the fixing of the fair price. Aware of this problem, this article proposes the concrete analysis of the frontiers between the lex commissoria and the marciana clause, with focus on the purchase and sale agreement with trade back clause.

KEYWORDS: In rem rights; guarantee system; lex commissoria; marciana clause.

  

 1- Introdução

             Na lição de Carvalho Santos, o pacto comissório consiste na “estipulação pela qual uma das partes, o credor, pode ficar com o bem dado em garantia, se o devedor não paga a dívida no vencimento”.[1] Cuida-se de ajuste que permite ao credor transferir para si ou consolidar a coisa dada em garantia em sua propriedade, caso haja o inadimplemento da dívida, à revelia da fixação de justo preço. Em outras palavras, por intermédio da cláusula comissória determina-se a transferência ou manutenção da propriedade em prol do beneficiário, na hipótese de incumprimento da dívida, sem que se estabeleça procedimento no qual se respeite a equivalência entre o valor que se incorpora em definitivo ao patrimônio do credor e o montante devido.

            Na disciplina do Código Civil, veda-se o pacto comissório na alienação fiduciária em garantia (art. 1.365[2]), no penhor, na hipoteca e na anticrese (art. 1.428[3]). Os parágrafos únicos dos aludidos dispositivos permitem, porém, a dação em pagamento da coisa dada em garantia após o vencimento da dívida.

            O presente trabalho se debruçará no estudo desta proscrição. Inicia-se a abordagem com o exame dos fundamentos de proibição do pacto comissório, a fim de se demonstrar que estes não incidem sobre o pacto marciano. Passo adiante, apresenta-se a controvérsia acerca de sua utilização na retrovenda com escopo de garantia pelas partes contratantes, como instrumento de fraude à lei –  e mais especificamente de burla à proscrição da cláusula comissória. Por fim, o itinerário proposto se encerra com a delimitação das fronteiras entre o pacto comissório e o pacto marciano na retrovenda com escopo de garantia à luz da metodologia civil-constitucional.

  1. Pacto comissório e pacto marciano

 Afirma-se em doutrina e jurisprudência que a proibição do pacto comissório, datada do século IV no Direito Romano[4], possui os seguintes fundamentos: (i) inderrogabilidade do procedimento judicial; (ii) repressão à usura; (iii) igualdade entre os credores (par conditio creditorum); (iv) vulnerabilidade do devedor; (v) vedação ao enriquecimento sem causa e (vi) interesse social na proibição da cláusula comissória[5].

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, porém, refuta os três primeiros argumentos. Em obra específica sobre o tema, ensina o autor que, diante da crescente complexidade das relações negociais, o ordenamento jurídico brasileiro admite inúmeras hipóteses de execução de direitos à revelia do poder judiciário. Cita o autor, por exemplo, a possibilidade de desforço imediato nas relações possessórias, o expediente da cláusula resolutiva expressa e o procedimento extrajudicial disciplinado pela Lei 9.514/1997, no bojo da alienação fiduciária de bens imóveis. Afirma, nessa esteira, que o tráfego jurídico contemporâneo requer, a cada giro, mecanismos cada vez mais céleres para a resolução de litígios, pelo que o procedimento judicial não consistiria em único expediente adequado para tal finalidade.

Igualmente, a repressão à usura não importaria em fundamentação adequada para a proscrição. Segundo o ordenamento jurídico brasileiro, a validade do pacto comissório não está condicionada ao respeito à incidência de juros nos limites legais, apesar de a cláusula ter, no comum dos casos, o objetivo de mascarar a usura. Imagine-se que B, carente de numerário, perca o bem dado em garantia para o credor A, em virtude de pacto comissório, após o inadimplemento da dívida. Mesmo que os juros sejam legalmente permitidos – a revelar prática não usurária – tal ajuste se encontrará inquinado de invalidade em razão dos artigos 1.365 e 1.428 do Código Civil. A vedação à usura, portanto, traduz argumento secundário, que não integra a estrutura do pacto comissório.

A proibição, ademais, não se fundaria na violação à igualdade entre os credores. Três argumentos confirmam tal afirmação. Em primeiro lugar, o ordenamento jurídico admite diversas hipóteses de tratamento desigual entre os credores. Como exemplo, observa-se que, antes da insolvência, o devedor pode livremente decidir em que ordem pagará as dívidas vencidas. No concurso singular, obedece-se à ordem cronológica de penhoras e no universal há hipóteses de prelação creditícia e de preferência ao pagamento de créditos concursais. Ademais, o próprio Código Civil estabelece ordem de privilégios nos artigos 964 e 965[6]. Em segundo lugar, tal fundamentação não explicaria a razão da possibilidade, conferida pelo ordenamento, de o devedor oferecer o bem dado em garantia a título de dação em pagamento. Por último, cabe afirmar que a proscrição independe da situação econômica do devedor. O pacto restará nulo ainda que o bem perdido pelo devedor não importe em prejuízo para os demais credores.

Parece, desse modo, que a vedação à cláusula comissória se funda nos últimos três argumentos. O devedor, antes do vencimento da dívida, se encontra em situação de especial vulnerabilidade, carente de numerário e confiante no futuro adimplemento do débito.[7] Por essa razão, a condição de necessidade o leva, no comum dos casos, a ceder a pressões do credor e a aceitar acordo desvantajoso.[8] De outro giro, o beneficiário que se apropria do bem sem a fixação do preço justo, retendo para si a diferença entre o valor do imóvel e o valor do débito, enriquece sem causa.[9] Imagine-se a hipótese em que, para garantia de mútuo no valor de 200 mil reais, seja dado em hipoteca bem imóvel de valor de mercado de 800 mil reais e pactuada cláusula comissória. Diante do inadimplemento do devedor e da transferência da propriedade ao credor, este último terá enriquecido sem causa no montante de 600 mil reais. Tais hipóteses revelam o desequilíbrio evidenciado no expediente da cláusula comissória, o que importa no interesse social sobre sua proibição.[10]

Em síntese, os três argumentos consistem no desvio funcional da garantia prestada. Na lição de Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho:

“Em conta da tutela funcional sobre o acautelamento concedido, impõe-se reconhecer que, diante da sensível situação jurídica do devedor (rectius, garantidor), a possibilidade de enriquecimento do credor via pacto comissório desnatura o escopo de segurança materializado na garantia ofertada, o que importa no interesse social sobre a proibição da cláusula comissória. (…) E, desse modo, diante do quadro traçado, pode-se concluir que a nulidade do pacto comissório decorre de embasamentos múltiplos, que se aglutinam em torno do desvio funcional da garantia prestada. Os três últimos argumentos expostos, como visto, são materializações da violação funcional da cautela ofertada levadas a cabo pelo pacto comissório. Assim, como dito, parece inevitável sustentar que a proibição da cláusula denota fundamento complexo, resultado da combinação das virtudes de cada uma das três últimas justificativas apresentadas: tutela da vulnerabilidade, vedação ao enriquecimento sem causa e interesse social na não difusão do pacto comissório”[11].

Tais fundamentos, contudo, não se aplicam ao pacto marciano, figura jurídica distinta do comissório. Consiste a cláusula marciana no ajuste que autoriza o credor a se apropriar do bem objeto da garantia na hipótese de inadimplemento do devedor, mediante o arbitramento de preço justo.[12] Sua origem histórica remonta ao Direito Romano, em fragmento do Digesto elaborado pelo jurisconsulto clássico Marciano, que afirmava: “pode assim fazer-se a entrega do penhor ou da hipoteca, de sorte que, se, dentro de determinado tempo, não for pago o dinheiro, por direito do comprador, tome posse da coisa, que deve ser então avaliada pelo justo preço; neste caso a venda parece ser de certo modo condicional, e assim decidiram por rescrito os divinos Severo e Antonino”.[13]

            Em seguida, as Ordenações Portuguesas previram o pacto marciano nos seguintes termos: “Se algum devedor empenhar a seu credor alguma cousa movel, ou de raiz, com condição que, não lhe pagando a dívida a dia certo, o penhor fique por ella vendido a arrematado ao credor, mandamos que tal convença seja nenhuma e de nenhum effeito. Porém, se o devedor der alguma cousa sua em penhor a seu credor sob condição, que não lhe pagando a tempo certo, fique o penhor arrematado pelo justo preço, o tal apenhamento assi feito valerá, e a convença será guardada. E em este caso, o penhor será estimado depois do tempo da paga por dous homens bons juramentados e escolhidos pelas partes, convem a saber, per cada hum seu, e ficará arrematada ao credor por o preço, em que for estimado”.[14] O Código Civil de 1916, contudo, não tratou da convenção marciana, contemplando, por outro lado, a vedação ao pacto comissório  em seuartigo 765,[15] no que foi acompanhado pelo Código Civil de 2002 (arts. 1.365 e 1.428).[16]

Distingue-se o pacto marciano da convenção comissória em razão do atributo do justo preço na avaliação do bem cuja propriedade permaneceria ou se transferiria ao credor. Desse modo, enquanto no primeiro há equilíbrio entre o valor da dívida e o valor do bem, o segundo se caracteriza pela finalidade especulativa.[17] No pacto marciano, portanto, o credor se compromete a restituir ao devedor a diferença entre o valor do bem dado em garantia e o valor da dívida, caso aquele seja maior do que este, procedendo-se à justa avaliação da coisa por terceiro independente.[18]

Por outro lado, não se confunde o pacto marciano com a dação em pagamento autorizada pelos artigos 1.365, parágrafo único, e 1.428, parágrafo único, do Código Civil. Enquanto a dação em pagamento consiste em negócio jurídico liberatório voltado à extinção da dívida após o vencimento, em que há liberdade de escolha para o devedor, independentemente da configuração do inadimplemento, de submeter à concordância do credor o oferecimento do bem em pagamento, o pacto marciano traduz acordo prévio ao vencimento e exige como requisito a configuração do inadimplemento do devedor. [19]

            Dessa forma, não incidem na hipótese de cláusula marciana os fundamentos de vedação ao pacto comissório analisados supra. A obrigação de o credor restituir o excedente ao devedor e a avaliação do bem por terceiro independente após o vencimento da dívida afastam os riscos de abusos que orientavam os fundamentos descritos. Tutelam-se, assim, a vulnerabilidade do devedor, evitando-se o enriquecimento sem causa. Vale notar que o pacto marciano traduz vantagens não apenas para o credor, que obtém a satisfação imediata do crédito, mas também para o devedor, que é dispensado das despesas do procedimento de leilão, no qual dificilmente se obtém o valor de mercado do bem, e a quem é assegurada a restituição do excedente entre o valor do bem e o valor da dívida (superfluum).[20] Por tais razões, a admissibilidade do pacto marciano prevalece na doutrina brasileira.[21]

            Fixadas a ilicitude da cláusula comissória e a licitude da marciana, passa-se à análise da configuração de tais pactos no bojo da retrovenda com escopo de garantia.

  1. A controvérsia acerca da retrovenda com escopo de garantia como instrumento de fraude à vedação de pacto comissório

 Na prática negocial, tornou-se usual a celebração de compra e venda com pacto  de retrovenda com escopo de garantia.[22] Por meio de tal contrato, o devedor alienaria seu imóvel ao credor mediante o valor de numerário desejado, reservando-se ao direito de resolver o contrato por meio do pagamento do preço. Imagine-se que imóvel de valor de 800 mil reais tenha sido alienado pelo preço de 200 mil reais. Nesse caso, se, no prazo fixado, o devedor não possuir o numerário de 200 mil reais para reaver a coisa, o credor terá enriquecido sem causa no montante de 600 mil reais. Estaria, portanto, o credor se apropriando do bem dado em garantia, sem devolução do excedente, a justificar a controvérsia acerca da fraude à vedação de pacto comissório.[23]

Para uma primeira posição, a retrovenda com escopo de garantia não implicaria fraude à vedação de pacto comissório em virtude do momento em que se opera a aquisição (plena) da propriedade. De acordo com o raciocínio, a proscrição se restringiria às hipóteses em que se verifica a seguinte sequência cronológica: celebração do negócio jurídico-inadimplemento-transferência da propriedade. Dito diversamente, somente seria vedado ao credor se apropriar do bem quando este efeito translativo decorresse do inadimplemento da obrigação. Por outro lado, nos casos em que a propriedade é transferida como efeito do registro do contrato, operando-se, a partir do inadimplemento, a mera consolidação da propriedade, a vedação ao pacto comissório não se aplicaria.[24]

Ilustre-se o argumento com a contraposição entre os exemplos fornecidos supra do mútuo com hipoteca e da retrovenda com escopo de garantia. No primeiro caso, o devedor, carente de numerário, oferece bem em garantia real de hipoteca, mas se mantém como proprietário da coisa. Somente se verificado o inadimplemento, a cláusula comissória gerará o efeito de transferência da propriedade ao credor. Já no segundo caso, o devedor transfere imediatamente a propriedade do bem ao credor, reservando-se ao direito de recuperá-la em determinado prazo. Se, em tal data, o devedor não dispor da quantia pactuada, a propriedade será consolidada na esfera do credor, já proprietário. A distinção se coloca, portanto, entre, de um lado, a sequência celebração do negócio jurídico-inadimplemento-transferência da propriedade e, de outro, a sequência celebração do negócio jurídico-transferência da propriedade-inadimplemento-consolidação.

A orientação parte do pressuposto de que, no caso de transferência condicionada resolutivamente, o devedor, ao perder imediatamente a propriedade do bem, passaria a compreender contextualmente o efeito negativo da pactuação e a desproporção de valor, encontrando-se em situação de menor coação psíquica. No mecanismo suspensivamente condicionado, ao revés, o devedor, permanecendo como proprietário do bem, não perceberia o risco que o esperava e confiaria genuinamente no adimplemento.[25]

Já para uma segunda posição, a proibição abrange a retrovenda com escopo de garantia, que deverá ser considerada ilícita. Isso porque, mesmo que a transferência da propriedade seja anterior ao inadimplemento, também nesse caso a aquisição se relaciona à precedente relação de débito. [26] A concepção destaca, portanto, a identidade funcional entre as duas operações.[27] A tese ganhou forças com o advento do artigo 1.365 do Código Civil de 2002, que previu a vedação ao pacto comissório no bojo da alienação fiduciária em garantia, na qual a transferência da propriedade ao credor também ocorre previamente ao inadimplemento.[28]

Permaneceu, entretanto, o argumento da primeira corrente no sentido da ausência de expressa vedação legal à cláusula comissória na retrovenda, devendo-se interpretar restritivamente as exceções.[29] A tal alegação objetou-se que a questão seria (não já de extensão por analogia, mas) de fraude à lei, causa de nulidade do negócio jurídico (art. 166, VI do Código Civil[30]), já que a opção das partes pela retrovenda, em detrimento das garantias típicas, poderia visar justamente a alcançar o resultado vedado pela lei: que o credor fique com o bem dado em garantia diante do inadimplemento do débito. Em outras palavras, não admitir que a retrovenda com escopo de garantia importe em pacto comissório significa tornar inócua a proscrição.[31]

            Fixadas as controvérsias, passa-se à solução do problema com base na metodologia civil-constitucional.

  1. Proposta de solução do impasse à luz da metodologia civil-constitucional

 A incidência dos artigos 1.365 e 1.428 do Código Civil em sua literalidade (que não se refere expressamente à retrovenda, mas apenas às garantias reais típicas), e com enfoque em aspecto estrutural relativo ao momento de transmissão da propriedade, não traduz solução adequada.

Dito diversamente, os dispositivos não podem ser aplicados por subsunção, mecanismo silogístico de aplicação automática do fato concreto (premissa menor) à regra jurídica abstrata (premissa maior).[32] Pela subsunção bastaria a identificação do dispositivo legal que contivesse os fatos para a imediata solução do caso, sem o exame dos demais valores, princípios e regras do ordenamento jurídico e nem tampouco das nuances do caso concreto, procedendo-se, no tema aqui analisado, a uma análise abstrata do negócio jurídico celebrado. Objeto de agudas críticas pela doutrina civilista,[33] o método subsuntivo ignora, a um só tempo, (i) a unidade entre a interpretação e a aplicação do Direito na relação entre normatividade e praxe;[34] (ii) a abertura, historicidade e relatividade do sistema[35] e (iii) a textura aberta da linguagem, em pretensão científica de perfeição e definitividade.[36]

Em superação ao método subsuntivo, a hermenêutica em função aplicativa impõe que, em cada decisão, o magistrado considere (não já o dispositivo legal isoladamente considerado, mas) o ordenamento jurídico em sua unidade, coerência e heterogeneidade e a hipótese fática em todas suas peculiaridades, de modo a individuar o ordenamento jurídico do caso concreto.[37]

Nesse processo, ou bem haverá contrariedade estrutural à regra de regência (ilicitude), ou bem, embora não haja violação direta, o exercício da situação jurídica se revelará contrário à sua função (abusividade), ou, finalmente, ambas as situações jurídicas se configurarão igualmente lícitas e não-abusivas,[38] a atrair a incidência da razoabilidade ou proporcionalidade para a ponderação de interesses e a conformação dos valores do ordenamento jurídico (juízo de merecimento de tutela).[39]

Desse modo, à luz das premissas fixadas de ilicitude do pacto comissório e licitude do pacto marciano, o magistrado, ao apreciar a validade do negócio jurídico com escopo de garantia, deverá observar a complexidade da situação fática, especialmente se há: (a) juros não-abusivos; (b) justa avaliação do bem e (c) devolução do excedente. Diante do equilíbrio da relação jurídica (pacto marciano), e não do intuito especulativo, a solução será pela validade da retrovenda.[40]

De outra parte, será ilícita a retrovenda que implicar concreta apropriação do bem por preço unilateralmente fixado pelo credor ou sem a restituição do superfluum, ainda que estruturalmente a transferência da propriedade se dê em momento anterior ao inadimplemento.[41] Isso porque também na hipótese de retrovenda com escopo de garantia restam configurados os fundamentos da proscrição ao pacto comissório. O devedor se encontra em tal condição de necessidade que se dispõe a alienar o bem e perder a propriedade. O credor, por sua vez, ao se apropriar da diferença entre o valor da coisa e o da dívida, enriquece sem causa e gera prejuízo ao direito dos demais credores. A identidade de função conduz, assim, à identidade de disciplina incidente.

De outra parte, a admissibilidade do pacto marciano permite temperar o rigor da vedação ao pacto comissório com vistas a apreciar em cada caso se a retrovenda com escopo de garantia traduz preço justo. Permite-se, assim, a consideração de todos os vetores incidentes na hipótese fática, integrando-se regras, princípios e valores do sistema, para que se possa, ao final, construir a norma do caso concreto que melhor concretize a tábua axiológica constitucional.[42]

A título ilustrativo, o Tribunal de Justiça de São Paulo analisou hipótese em que a autora, carente do numerário de R$ 40.000,00, alienou aos réus bem de valor de mercado de R$ 100.000,00 como garantia. No entanto, diante dos juros exorbitantes pactuados, a devedora restou inadimplente. Por consequência, os credores se apropriaram do imóvel, enriquecendo sem causa no montante de R$ 60.000,00. Em face da configuração de pacto comissório (não já marciano), decidiu a 8ª Câmara que “o negócio jurídico simulado visava ocultar verdadeiro pacto comissório real, o qual, nos termos do artigo 765 do Código Civil de 1916, era expressamente vedado”.[43] Com efeito, não foram observadas, no caso, as exigências de juros não-abusivos, justo preço e devolução do excedente.

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já considerou que a suposta compra e venda com cláusula de retrato mascarava, na realidade, autêntico pacto comissório em garantia da dívida com juros onzenários. Aduziu-se a nulidade do ajuste, sobretudo diante da comprovação do preço vil do negócio de compra e venda com pacto de retrovenda, realizado por R$ 190.000,00, quando os imóveis alcançavam valor de mercado de mais de R$ 900.000,00.[44]

  1. Notas conclusivas

             A vedação ao pacto comissório, insculpida nos artigos 1.365 e 1.428 do Código Civil, evita o desvio funcional sobre o objeto garantia prestada ao se tutelar a vulnerabilidade do devedor carente de numerário, impedindo que o credor da garantia real enriqueça sem causa. Tais fundamentos de proscrição, contudo, não se aplicam à cláusula marciana, figura distinta do ajuste comissório.

            Na cláusula marciana, a apropriação do bem objeto da garantia somente se opera após a justa avaliação da coisa e a devolução de eventual excedente (valor do bem que supera o da dívida) ao devedor. Assegura-se, assim, o equilíbrio da relação jurídica, a proteção do devedor contra abusos e a satisfação mais célere dos interesses do credor.

            Diante de tais premissas, ao apreciar a licitude da retrovenda com escopo de garantia, deverá o intérprete analisar as circunstâncias fáticas e as particularidades irrepetíveis do caso. Para a delimitação das fronteiras entre a fraude à vedação de pacto comissório e a admissibilidade do pacto marciano, faz-se mister o exame concreto do equilíbrio do ajuste, sobretudo se há (a) juros não-abusivos; (b) justa avaliação do bem e (c) devolução do excedente. Promove-se, desse modo, a harmonização prática entre, de um lado, a tutela da autonomia negocial e da efetividade do sistema de garantias e, de outro, a proteção da vulnerabilidade do devedor e do interesse dos demais credores.

 

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* Mestranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Advogada.

** Mestrando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Pós-graduado em Direito Imobiliário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro –PUC-Rio. Advogado.

Notas de Rodapé:

[1] SANTOS, J.M. de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. v. X. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 91.

[2] Art. 1.365. “É nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Parágrafo único. O devedor pode, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento desta”.

[3] Art. 1.428. “É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício, anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Parágrafo único. Após o vencimento, poderá o devedor dar a coisa em pagamento da dívida”.

[4] “É uma técnica opressiva do economicamente mais fraco, que no Direito Romano já encontrou a repulsa do imperador Constantino, no século IV, e que mereceu expressa condenação ao tempo da compilação do século VI, eis que pelo menos quatro passagens do Código Justiniano se lhe referem, para repelir: Código, Liv. VIII, Tít. 28, Leis 4,7 e 14; Liv. VIII, Tít. 35, Lei 3” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. IV. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 290). Para um estudo mais aprofundado sobre o tema, v. REIS, Mayara de Lima. O pacto comissório no direito romano. Dissertação de Mestrado em Direito Civil. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014.

[5] Para uma análise aprofundada de tais parâmetros, Cf. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison. Pacto comissório e pacto marciano no sistema brasileiro de garantias. Rio de Janeiro: Processo, 2017, pp. 31-69.

[6] Art. 964. “Têm privilégio especial: I – sobre a coisa arrecadada e liquidada, o credor de custas e despesas judiciais feitas com a arrecadação e liquidação; II – sobre a coisa salvada, o credor por despesas de salvamento; III – sobre a coisa beneficiada, o credor por benfeitorias necessárias ou úteis; IV – sobre os prédios rústicos ou urbanos, fábricas, oficinas, ou quaisquer outras construções, o credor de materiais, dinheiro, ou serviços para a sua edificação, reconstrução, ou melhoramento; V – sobre os frutos agrícolas, o credor por sementes, instrumentos e serviços à cultura, ou à colheita; VI – sobre as alfaias e utensílios de uso doméstico, nos prédios rústicos ou urbanos, o credor de aluguéis, quanto às prestações do ano corrente e do anterior; VII – sobre os exemplares da obra existente na massa do editor, o autor dela, ou seus legítimos representantes, pelo crédito fundado contra aquele no contrato da edição; VIII – sobre o produto da colheita, para a qual houver concorrido com o seu trabalho, e precipuamente a quaisquer outros créditos, ainda que reais, o trabalhador agrícola, quanto à dívida dos seus salários. IX – sobre os produtos do abate, o credor por animais”.

[7] “(…) a tutela do devedor: como bem diziam os Reis de Portugal, o devedor encontra-se numa situação de necessidade, quando pede o empréstimo –  ou não o pediria; ele tem, nesse ensejo, de aceitar todas as exigências do credor que, então como agora, pede sempre por excesso; admitir o pacto comissório iria agravar a situação com uma exploração potencial desmedida do devedor (CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil. v. X. Coimbra: Almedina, 2015, p. 762). Para Vaz Serra, o fundamento “está em que tal pacto pode representar um benefício injustificado para o credor (que adquire uma coisa acaso muito mais valiosa que o crédito), sobretudo quando obtido do devedor que, levado pela necessidade, facilmente consentiria nele” (SERRA, Adriano Vaz. Penhor. Boletim do Ministério da Justiça, v. 58, 1956, p. 217).

[8] “(…) aquilo que a lei pretende prevenir é precisamente que o credor se aproveite da condição de necessidade do devedor, pressionando-o e levando-o a aceitar a celebração de um pacto comissório contra sua livre vontade. Somente por estar necessitado da concessão de crédito ou da obtenção de um alargamento do prazo para o cumprimento da sua obrigação, é que o devedor aceitará sujeitar-se aos efeitos de um pacto comissório” (MATOS, Isabel Andrade de. O pacto comissório: contributo para o estudo do âmbito da sua proibição. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 58-59).  V. tb. RENTERIA, Pablo. Penhor e autonomia privada. São Paulo: Atlas, 2016, pp. 166-167.

[9] “Várias razões explicam a proibição de estipulação de convenções deste jaez. De entre elas destaca-se a necessidade de: (…) (b) prevenir a faculdade de o credor se poder apropriar da coisa constituída em garantia da dívida por um valor substancialmente inferior ao valor do débito; com o que teríamos a necessidade de proteger o devedor contra o perigo de extorsões provenientes do credor; (d) promover a correção negocial, tendente a afastar comportamentos que possam legitimar a atribuição injustificada de privilégios a alguns credores e o aproveitamento da debilidade do devedor, especialmente quando a função de garantia se traduz numa vantagem injustificada para o credor. O que brigaria com um princípio de ordem pública de harmonia com o qual deve existir um nexo de proporcionalidade entre o montante do débito e o acervo de bens do património do devedor sujeitos à execução forçada” (MARQUES, J. P. Remédio. Locação financeira restitutiva (sale and lease-back) e a proibição dos pactos comissórios – Negócio fiduciário, mútuo e acção executiva. Boletim de Direito da Universidade de Coimbra, v. LXXVII, Coimbra, 2001, pp. 599-600).  V. tb. “Essa tese defende que o fundamento e o sentido da proibição do pacto comissório, no direito brasileiro, decorrem: (a) da licitude do pacto marciano; e (b) do direito reconhecido ao credor de ficar com o objeto da garantia, nos casos em que tal objeto já consiste, ou já está nominado, em dinheiro (…). Tais permissões demonstram que o cerne da proibição do pacto comissório está em evitar que o credor se aproprie de eventual excesso que se verificar entre o valor de mercado do bem dado em garantia, no momento do vencimento da obrigação, e o valor da dívida” (HADDAD, Luís Gustavo. A proibição do pacto comissório no direito brasileiro. Tese de Doutorado em Direito Civil. São Paulo: Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2013, p. 126). V. tb. GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; TERRA, Aline de Miranda Valverde. Alienação fiduciária em garantia de bens imóveis: possíveis soluções para as deficiências e insuficiências da disciplina legal. Civilistica.com, a. 4, n. 1, 2015, pp. 8-9.

[10] “(…) a usura e os bons costumes: a possibilidade de apropriação, pelo credor, do bem dado em garantia camufla, com facilidade, uma remuneração excessiva para o mútuo e contradita a deontologia do sector, expressa pelos bons costumes” (CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil. v. X. Coimbra: Almedina, 2015, p. 762).

[11] MONTEIRO FILHO, Carlos Edison. Pacto comissório e pacto marciano no sistema brasileiro de garantias. Rio de Janeiro: Processo, 2017, pp. 58 e 68

[12] Para Massimo Bianca, trata-se da “(…) alienazione ad eventuale e diretto soddisfacimento del creditore, ricondotta tuttavia nei limiti segnati da una stima del bene successiva all’inadempimento, con l’obbligo del creditore, quindi, di versare al debitore la differenza tra il valore accertato e l’importo del debito” (BIANCA, C. Massimo. Il divieto del patto commissorio. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2013, pp. 202-203).  Tradução livre: “(…) alienação a eventual e direta satisfação do credor, reconduzida, contudo, nos limites assinalados por uma estimativa do bem sucessiva ao inadimplemento, com a obrigação do credor, então, de verter ao devedor a diferença entre o valor acertado e a importância do débito”.

[13] MATOS, Isabel Andrade de. O pacto comissório: contributo para o estudo do âmbito da sua proibição. Coimbra: Almedina, 2006, p. 31.

[14] MATOS, Isabel Andrade de. O pacto comissório: contributo para o estudo do âmbito da sua proibição. Coimbra: Almedina, 2006, p. 45.

[15] Art. 765. “E’ nulla a clausula que autoriza o credor pignoratício, antichretico ou hypothecario a ficar com o objecto da garantia, se a divida não fôr paga no vencimento”. A esse respeito, v. “A proibição do pacto comissório funda-se em um motivo de ordem ética. O direito protege o fraco contra o forte, impede que a pressão da necessidade leve o devedor a convencionar o abandono do bem ao credor por quantia irrisória. O imperador Constantino, impressionado pelas manobras capciosas dos pactos comissórios, cuja aspereza crescia assustadoramente, decretou-lhes a nulidade, e as legislações modernas aceitaram essa condenação. O pacto comissório não pode ser estipulado no momento de ser dada a garantia real, nem posteriormente” (BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos estados unidos do Brasil comentado. v. III. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1958, p. 269). Cf. ainda SANTOS, J.M. de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. v. X. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1964, p. 90: “A doutrina dominante é no sentido de ser nula a cláusula ainda que pactuada posteriormente, uma vez que a proibição do pacto comissório funda-se em um motivo de ordem ética, que subsiste, embora sob outro aspecto, mesmo no caso de a cláusula ter sido ajustada após a feitura do contrato. Na verdade, o que se procura evitar, com semelhante proibição, é que a pressão da necessidade leve o devedor a convencionar o abono do bem ao credor por quantia irrisória”.

[16] Recentemente, o tema foi objeto de debates na VII Jornada de Direito Civil. Foi proposto o seguinte Enunciado, não aprovado: “Enunciado proposto (resumo da proposição): A vedação ao pacto comissório não afasta a possibilidade de as partes celebrarem o chamado pacto Marciano, a permitir, diante do inadimplemento do débito, a apropriação do objeto da garantia pelo credor pelo valor justo, precificado pelo mercado ou arbitrado por terceiro independente ao tempo do vencimento da dívida, mediante o pagamento da diferença entre o preço estipulado e o saldo devedor. Justificativa: A proibição do pacto comissório visa a impedir que o credor, valendo-se de sua situação jurídica vantajosa, incorpore o objeto da garantia ao seu patrimônio pelo saldo devedor, pelo preço ajustado ao tempo da celebração do contrato, ou pela quantia por ele mesmo estimada. O problema não está, portanto, na possibilidade de o credor se apropriar direta e permanentemente do bem como mecanismo de satisfação da dívida, mas na forma pela qual seu valor é fixado para efeito da apropriação. Por essa razão, afigura-se lícito e legítimo estipular-se, no título constitutivo da garantia, o Pacto Marciano, pelo qual as partes acordam, diante do inadimplemento da dívida, a apropriação do objeto da garantia pelo credor, pelo valor precificado pelo mercado ou arbitrado por terceiro independente ao tempo do vencimento da dívida, o que garante que se atribua à coisa preço justo, a afastar o risco de prejuízo ao devedor. Nesses termos, a diferença entre o valor da dívida e o preço atribuído ao bem deve ser entregue ao devedor, a fim de que se efetive a incorporação definitiva do objeto ao patrimônio do credor”. Sobre o tema, v. TEPEDINO, Gustavo; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. Lições da VII jornada de direito civil: tendências do direito das coisas. Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-fev-08/direito-civil-atual-licoes-vii-jornada-direito-civil-tendencias-direito-coisas. Demais disso, foi proposto enunciado relacionado ao tema do perdão legal no bojo do procedimento de execução extrajudicial na alienação fiduciária em garantia (§ 5º do artigo 27 da Lei 9.514/1997), questão analisada por TEPEDINO, Gustavo. Direito Civil e proteção das vulnerabilidades. Editorial. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 7, 2016, p. 7.

[17]  “Enquanto a especulação acerca do ganho que pode ser obtido com a apropriação do bem é inerente ao pacto comissório, de outro lado, no ajuste marciano, a equivalência entre o valor recebido pelo credor com o bem e a importância da dívida constitui o próprio fim almejado pelas partes. As razões que justificam a nulidade do primeiro – a desnaturação da função desempenhada pela garantia e a proteção do devedor vulnerável diante de acordo potencialmente lesivo aos seus interesses – não se aplicam ao segundo” (RENTERIA, Pablo. Penhor e autonomia privada. São Paulo: Atlas, 2016, p. 176).

[18] “Quest’ultimo, come è noto, differisce dal primo perché, in caso di inadempimento, oltre a prevedere, al pari del patto commissorio, il trasferimento definitivo al creditore del bene dato in garanzia, impone che il bene medesimo sia stimato e che il creditore corrisponda al debitore inadempiente l’eventuale esubero. La presenza di tale meccanismo di riequilibrio, che evidentemente esclude in radice la possibilità di un extra­profitto del creditore, fonda il tradizionale giudizio di liceità espresso sul patto marciano dalla giurisprudenza e dalla dottrina largamente maggioritaria” (CIPRIANI, Nicola. La cessione di crediti a scopo di garanzia tra patto commissorio e patto marciano. Rivista di diritto dell’impresa, 1, 2010, pp. 137-138).  Tradução livre: “Este último [pacto marciano], como é sabido, difere do [pacto comissório] porque, em caso de inadimplemento, além de prever, tal como o pacto comissório, a transferência definitiva ao credor do bem dado em garantia, impõe que o próprio bem seja estimado e que o credor verta ao devedor inadimplente a eventual diferença. A presença de tal mecanismo de reequilíbrio, que evidentemente exclui na raiz a possibilidade de um lucro extra do credor, funda o tradicional juízo de licitude expresso sobre o pacto marciano pela jurisprudência e pela doutrina largamente majoritária”.

[19] “Por evidente, nada impede que, após o vencimento, as partes procedam à extinção da dívida mediante a celebração de acordo que preveja a transmissão do bem conferido em garantia pelo seu valor justo. No entanto, tal negócio consubstanciaria dação em pagamento, distanciando-se do pacto marciano na medida em que sua eficácia não se subordina ao implemento da condição do inadimplemento do devedor” (RENTERIA, Pablo. Penhor e autonomia privada. São Paulo: Atlas, 2016, p. 178).

[20] GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; TERRA, Aline de Miranda Valverde. Alienação fiduciária em garantia de bens imóveis: possíveis soluções para as deficiências e insuficiências da disciplina legal. Civilistica.com, a. 4, n. 1, 2015, pp. 10-11.  V. tb. “Proprio in questa prospettiva, appare più soddisfacente una ricostruzione del regolamento contrattuale volta a individuare uno strumento solutorio modellato non intorno allo schema del patto commissorio, bensi a quello del patto marciano, convenzione molto simile al patto commissorio, ma che da questo si discosta laddove prevede la stima del bene conferito in garanzia e la restituzione al debitore dell’eventuale differenza tra l’ammontare del debito garantito e il valore del bene stesso. Cosi ragionando, si giunge all’individuazione di uno strumento che da un lato soddisfa perfettamente le intenzioni e gli obiettivi dei contraenti, dall’altro ha il pregio di non ledere l’interesse del debitore, tutelato dal divieto del patto commissorio. Il patto marciano, infatti, è idoneo a garantire la soddisfazione del creditore con la stessa forza del patto commissorio; la previsione della stima del bene e dell’eventuale restituzione dell’esubero al debitore, peraltro, consente di soddisfare le istanze equitative, solidaristiche e proporzionali che guidano I’ ordinamento” (CIPRIANI, Nicola. Nuovi scenari in tema di patto commissorio autonomo? Rassegna di diritto civile, 1-2, 2002, pp. 430-431). Tradução livre: “Nessa perspectiva, parece mais satisfatória a reconstrução do regulamento contratual voltado à individuação de um instrumento de solução modelado não em torno do esquema do pacto comissório, e sim daquele do pacto marciano, convenção muito similar ao pacto comissório, mas que deste se diferencia no momento em que prevê a estimativa do bem conferido em garantia e a restituição ao devedor da eventual diferença entre o montante do débito garantido e o valor do próprio bem. Assim raciocinando, se chega à individuação de um instrumento que, por um lado, satisfaz perfeitamente as intenções e os objetivos do contraente e, de outro, tem a vantagem de não lesar o interesse do devedor, tutelado na proibição do pacto comissório. O pacto marciano, de fato, é idôneo para garantir a satisfação do crédito com a mesma força do pacto comissório; a previsão de estimativa do bem e da eventual restituição da diferença ao devedor, por outro lado, permite satisfazer as instâncias equitativas, solidaristas e proporcionais que guiam o ordenamento”.

[21] Nesta esteira, leciona Lafayette Pereira que “não é lícito estipular-se no contracto de penhor o pacto commissorio, isto é – que se a dívida não fôr paga no prazo ajustado fique a cousa vendida de pleno direito ao credor, ou pelo preço da dívida, ou pelo preço ajustado ao tempo em que o penhor é constituído. Esta prohibição tem por fim proteger o devedor, sob a pressão da necessidade de momento, contra as exigencias avaras do credor. E’ igualmente prohibido pela mesma razão pactuar-se que a cousa ficará ao credor pelo preço em que elle a estimar. E’ permittido, porém, porque não subsiste a dita razão, estipular-se a venda da coisa ao credor pelo preço que fôr estimado por avaliadores” (PEREIRA, Lafayette R. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A., 1956, p. 397). Moreira Alves, a seu turno, pondera que se afigura lícito “o denominado pacto Marciano (por ser defendido pelo jurisconsulto romano Marciano e confirmado em rescrito dos imperadores Severo e Antonino). Por esse pacto, se o débito não for pago, a coisa poderá passar à propriedade plena do credor pelo seu justo valor, a ser estimado, antes ou depois de vencida a dívida, por terceiros” (ALVES, José Carlos Moreira. Da alienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 127). Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, por sua vez, aduz que “nada impede, todavia, que se reconheça a validade de acordo em que, diante do incumprimento do devedor, a entrega do bem dado em garantia não se revele abusiva quando em cotejo com a obrigação principal descumprida, a evidenciar o enriquecimento sem causa do credor. Trata-se do chamado pacto marciano” (Atualização de PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. IV. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 290). Para Aline Terra e Gisela Guedes, “o eventual caráter cogente da norma que determina  o  procedimento  do  público  leilão  bem  como a  proibição  do  pacto  comissório  não  se  erigem como barreiras intransponíveis à apropriação direta e definitiva do imóvel pelo credor. Desse  modo,  abre-se  às  partes  outro instrumento de  satisfação do  crédito  igualmente legítimo à luz do ordenamento jurídico brasileiro:  a celebração do  chamado  pacto Marciano.  Consiste o  pacto  Marciano  no ajuste  pelo  qual  as  partes  acordam, já  no  contrato que  serve  de  título  à  constituição  da  garantia, a  apropriação  do  seu  objeto  pelo  credor diante do inadimplemento da dívida por valor arbitrado por terceiro, o que garante que  se atribua à coisa preço justo e condizente com as práticas de mercado, a afastar o risco  de  qualquer  prejuízo  ao  devedor” (GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; TERRA, Aline de Miranda Valverde. Alienação fiduciária em garantia de bens imóveis: possíveis soluções para as deficiências e insuficiências da disciplina legal. Civilistica.com, a. 4, n. 1, 2015, p. 8). Por fim, Pablo Renteria sustenta que “a estipulação do pacto marciano no âmbito do contrato de penhor se afigura válida no direito pátrio, na medida em que impõe ao credor a devolução do montante sobressalente alcançado a partir da avaliação objetiva do bem. Afinal, sendo a coisa transmitida pelo seu preço justo e tendo o credor o dever de entregar ao garantidor a eventual diferença entre esse valor e o do crédito, o resultado alcançado por meio do ajuste em caso de inadimplemento do devedor é rigorosamente equivalente ao que o credor teria obtido por meio do adimplemento. Vale dizer, o mencionado ajuste não desvirtua a garantia, transformando-a em fonte de enriquecimento para o credor, nem se presta ao abuso da vulnerabilidade do devedor” (RENTERIA, Pablo. Penhor e autonomia privada. São Paulo: Atlas, 2016, p. 176).

[22] “A retrovenda constitui cláusula adjeta ao contrato de compra e venda por meio da qual o vendedor se reserve o direito de retrato, isto é, o direito de, dentro de certo prazo, recuperar a coisa vendida mediante a restituição do preço e o reembolso de certas despesas ao comprador” (OLIVA, Milena Donato. Do negócio fiduciário à fidúcia. São Paulo: Atlas, 2014, p. 49).

[23] Sobre o tema, v. os pareceres de REALE, Miguel. Nulidade de ato jurídico. Venda com resgate para encobrir pacto comissório. Se subsiste o penhor, não obstante a nulidade do contrato. Colocação do problema em face do nosso direito positivo. Revista dos Tribunais, 162/17, 1946 e GOMES, Orlando. Anulação de venda por envolver pacto comissório. Novíssimas questões de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1984.

[24] CARINGELLA, Francesco. Studi di diritto civile. t. I. Milano: Dott. A. Giuffrè, 2003, pp. 1.041-1.044.

[25] CARINGELLA, Francesco. Studi di diritto civile. t. I. Milano: Dott. A. Giuffrè, 2003, pp. 1.041-1.044. Nesse sentido, Moreira Alves sustenta que “sendo a razão da proibição do pacto comissório tutelar o devedor da pressão que sobre ele pode exercer o credor para obter o adimplemento, ela – ao contrário do que sucede com relação ao penhor, à anticrese e à hipoteca, em que a transferência da propriedade da coisa dada em garantia só ocorre quando há o inadimplemento da obrigação de restituição da quantia mutuada – não se dá em se tratando de retrovenda com escopo de garantia, em que a transmissão do domínio pode verificar-se imediatamente após a celebração desse negócio jurídico indireto”.

[26] CARINGELLA, Francesco. Studi di diritto civile. t. I. Milano: Dott. A. Giuffrè, 2003, pp. 1.041-1.044.

[27] Neste sentido, v. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison. Pacto comissório e pacto marciano no sistema brasileiro de garantias. Rio de Janeiro: Processo, 2017, pp. 161-162.

[28] “Veda-se o pacto comissório na alienação fiduciária, de modo análogo ao art. 1.428 no âmbito das demais garantias reais. Não se pode prever, sob pena de nulidade, que o fiduciante fique com a coisa dada em garantia se a dívida não for paga no vencimento. (…) Buscou o legislador (…) assegurar que não se configurasse enriquecimento sem causa por parte do credor – que poderia adquirir coisa de valor superior ao da dívida garantida –, e tampouco prejuízo para o devedor – que poderia permanecer obrigado a parte da dívida apenas por não ter sido o bem vendido pela melhor oferta, ou, ao menos, pelo preço médio de mercado” (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. (Orgs.). Código civil interpretado conforme a constituição da república. v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 754).

[29] Assim já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “O fundamento da ação de nulidade é o art. 765 do Código Civil (…) Esta norma jurídica figura entre as disposições gerais dos direitos reais de garantia e a sua aplicação se cinge aos casos que especifica. Só é lícito interpretá-la nos expressos termos em que foi enunciada, não comportando ampliações nem analogia. As hipóteses são de hipoteca, anticrese e penhor” (STF, RE 98.947, 1ª T., Rel. Min. Alfredo Buzaid, julg. 22.6.1984). No entanto, tal posicionamento foi alterado pelo Superior Tribunal de Justiça: “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se consolidou no sentido de que o pacto comissório não se limita aos casos expressamente previstos no artigo 765 do Código Civil, diversamente da posição do Supremo Tribunal Federal, o qual entendia que a norma nele contida tinha abrangência restrita” (STJ, REsp 475.040/MG, 3ª T., Rel. Min. Ari Pargendler, julg. 24.6.2003).

[30] Art. 166. “É nulo o negócio jurídico quando: (…) VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa”.

[31] “Veja-se o seguinte exemplo: A encontra-se disponível para mutuar a B 50.000 euros, importância que este lhe havia pedido. Todavia, pretende que B transfira para si a propriedade de sua casa, como garantia de pagamento do montante mutuado e dos respectivos juros. B aceita essa pretensão. Todavia, sabendo que tal acordo violaria a proibição constante do artigo 694.º do Código Civil e, como tal, seria nula, A e B decidem procurar dar outra feição ao seu contrato. Em vez de outorgarem assumidamente um pacto comissório autónomo, A compra a casa de B pelo valor de 50.000 euros e acordam ainda que B pode resolver tal compra e venda, caso em que teria de reembolsar A do preço e dos juros vencidos sobre tal quantia. Julgamos que o intuito fraudatório é patente e por conseguinte consideramos tal acordo entre A e B inválido, como consideramos inválidos todos os demais acordos em que seja possível apurar facticamente o propósito de frustar a aplicação da lei. Inválidos por serem negócios em fraude à lei. Inválidos, no caso de que nos ocupamos, por haver o objectivo ilícito de evitar a aplicação da norma que estabelece a proibição do pacto comissório e determina a sua nulidade –  o artigo 694.º do Código Civil” (MATOS, Isabel Andrade de. O pacto comissório: contributo para o estudo do âmbito da sua proibição. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 175-176).

[32] TEPEDINO, Gustavo. O ocaso da subsunção. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. t. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 444.

[33] A esse respeito, anota Gustavo Tepedino: “Entretanto, a despeito da racionalidade lógica do silogismo, há duas premissas equivocadas que autorizam a subsunção. A primeira delas é a separação entre o mundo abstrato das normas e o mundo real dos fatos no qual aquelas devem incidir, já que, a rigor, o direito se insere na sociedade e, por conseguinte, os textos legais e a realidade mutante se condicionam mutuamente no processo interpretativo. Em segundo lugar, a subsunção distingue artificialmente o momento da interpretação da norma abstrata (identificação da premissa maior) e o momento da aplicação da norma ao suporte fático concreto (enquadramento da premissa menor ao texto normativo). Contrariamente a tal compreensão, não é possível interpretar a norma aplicável sem levar em conta a hipótese fática que, por sua vez, se encontra moldada pelas normas de comportamento estabelecidas pelo direito (o qual condiciona a atuação individual). Daí a unicidade da interpretação e aplicação, sendo falsa a ideia de que haveria normas ideais em abstrato, capazes de tipificar e captar as relações jurídicas em concreto” (TEPEDINO, Gustavo. Liberdades, tecnologia e teoria da interpretação. Revista Forense, v. 419, 2014, p. 419).

[34] “O momento da factualidade é absolutamente ineliminável do momento cognoscitivo do direito que, como ciência prática, caracteriza-se por moventes não historiográficos ou filosóficos, mas aplicativos” (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 132).

[35]  MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Reflexões metodológicas: a construção do observatório de jurisprudência no âmbito da pesquisa jurídica. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 9, 2016.

[36] “Essa escola [Escola de exegese francesa] descura, portanto, da constatação da textura aberta da linguagem. Tal expressão tem origem em autores como Friedrich Waismann e Ludwig Wittgenstein e confronta a ideia do positivismo lógico que identifica o significado de uma afirmação com o seu método de verificação: de um lado, afirma-se que os conceitos ‘não estão delimitados, de forma a priori, em todas as direções possíveis’ e, portanto, não podem ser reduzidos às suas verificações; de outro lado, a miríade de possibilidades em que um termo pode ser empregado não traz em si ‘uma única característica comum que percorre e pode ser identificada em todas as suas instâncias’, mas apresenta tão somente conexões que podem ser identificadas como ‘semelhanças de família’” (KONDER, Carlos Nelson. Distinções hermenêuticas na constitucionalização do direito civil: o intérprete na doutrina de Pietro Perlingieri. Revista da Faculdade de Direito (UFRPR), v. 60, 2015, p. 202).

[37] “Individuar a normativa a ser aplicada no caso concreto, ou seja, individuar o ordenamento jurídico do caso concreto, é obra do intérprete, que se vale dos princípios e das regras que se encontram na totalidade da experiência e da realidade histórica. A sua tarefa, portanto, não é uma operação mecânica, mas sim, cultural, muito absorvente, socialmente relevante e controlável” (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 130).

[38] SOUZA, Eduardo Nunes de. Abuso do direito: novas perspectivas entre a licitude e o merecimento de tutela. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 50, 2012, pp. 71-72.

[39] A respeito da identidade funcional entre razoabilidade e proporcionalidade, cf. “Quando un po’ frettolosamente si critica la giurisprudenza dei Tribunali Superiori, affermando che quel che è proporzionale non sempre è ragionevole, ovvero si evocano aspetti esclusivamente strutturali, senza porre la dovuta attenzione alla funzione di tali nozioni; o, ancora, si ricorre al senso volgare di entrambe le espressioni (è proporzionale la legge del taglione, sebbene non sia ragionevole), si ignora che ciò che è proporzionale, in termini esclusivamente matematici, appare contrario ai valori dell’ordinamento, ed è pertanto antigiuridico” (TEPEDINO, Gustavo. La ragionevolezza nell’esperienza brasiliana. Rassegna di diritto civile, v. 2, 2017, p. 660). Tradução livre: “Quando um pouco apressadamente se critica a jurisprudência dos Tribunais Superiores, afirmando que aquilo que é proporcional nem sempre é razoável, ou se evocam aspectos exclusivamente estruturais, sem dar a devida atenção às funções de tais noções, ou, ainda, se recorre ao sentido vulgar de ambas as expressões (é proporcional a lei de talião, ainda que não seja razoável), se ignora que aquilo que é proporcional, em termos exclusivamente matemáticos, se afigura contrário aos valores do ordenamento, e é portanto antijurídico”.

[40] “Não se resume, pois, ao equilíbrio das prestações principais apenas, na medida em que a proporcionalidade não é meramente quantitativa, mas, sobretudo, qualitativa. Assim, deve ser invocada, por exemplo, sempre que a uma das partes se reserva faculdades que são injustificadamente recusadas à outra, bem como quando uma das partes impõe a outra parte ônus, dos quais injustificadamente se exonera. Ademais, leva em consideração não só o momento formativo do consentimento e/ou a superveniência de fatores externos, mas todo o conjunto contratual, apreciado de forma integral, unitária e dinâmica, e guiado pela noção de proporcionalidade. Nesse sentido, observa-se que o estudo do equilíbrio contratual não deve ser realizado pontualmente apenas no tocante à determinada obrigação estaticamente considerada, mas de forma global, levando em conta a relação jurídica como um todo, a abranger as especificidades de  cada situação jurídica em concreto, em perspectiva dinâmica.  Na busca do equilíbrio funcional, devem ser avaliadas,  por   exemplo,  circunstâncias  contratuais  além  daquelas  traduzidas  nos   clássicos  binômios  preço-serviço  ou  preço-coisa.  Em uma sociedade  fluida e de massificação do consumo, impõe-se observar fatores como o risco assumido por cada contratante, além de juros, cláusulas penais, cláusula resolutiva expressa, dentre outros. A busca do equilíbrio requer a investigação ampla da  relação,  o  que  impõe  ao  intérprete  o  dever   de  mirar  também  aspectos  negociais  não  clausulados  e  até  mesmo  eventuais coligações contratuais” (MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; RITO, Fernanda Paes Leme. Fontes e evolução do princípio do equilíbrio contratual. Pensar, v. 21, 2016, p. 389).

[41] “A retrovenda com escopo de garantia, por si só, não configura simulação e é admitida como legítimo expediente a ser utilizado pelos indivíduos com essa finalidade. Entretanto, se encobrir juros usurários, taxas abusivas ou o pacto comissório, será ilícita, como qualquer negócio jurídico em geral” (OLIVA, Milena Donato. Do negócio fiduciário à fidúcia. São Paulo: Atlas, 2014, p. 51).

[42] “O que quero dizer é que a interpretação jurídica é mais do que um exercício de simples compreensão ou conhecimento do que está escrito nas leis. Porque a interpretação do direito é sempre voltada à obtenção de uma decisão para problemas práticos. Por isto, interpretação e aplicação não se realizam autonomamente. (…) O que na verdade existe (…) é uma equação entre interpretação e aplicação. De modo que aí não há dois momentos distintos, mas uma só operação. Interpretação e aplicação se superpõem” (GRAU, Eros. Técnica legislativa e hermenêutica contemporânea. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008, p. 284).

[43] TJSP, Ap. Cív. 0008937-97.2004.8.26.0506, 8ª CDPriv., Rel. Des. Silvério da Silva, julg. 13.1.2017.

[44] TJRS, Ap. Cív. 70007927890, 19ª C.C., Rel. Des. Mário José Gomes Pereira, julg. 10.1.2006.

Palavras Chaves

Direitos reais; sistema de garantias; pacto comissório; pacto marciano.