Perspectivas de (des)criminalização das drogas no Brasil: reflexões sobre uma política criminal instrumentalizada

Resumo

Embora o Estado brasileiro tenha o compromisso com o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária, o presente artigo defende e sustenta que a Administração Pública adota uma agenda de Estado que viola o seu propósito constitucional e, para tanto, utiliza o instituto da reserva do possível como mero subterfúgio a justificar sua omissão em relação à concretização de diversos direitos fundamentais de ordem social, dentre eles a política de Previdência Social.

Abstract

Although the Brazilian State is committed to the development of a fair and supportive society, this article defends and maintains that the Public Administration adopts a state agenda that violates its constitutional purpose and, to this end, uses the possible reservation as a mere subterfuge to justify its omission in relation to the implementation of several fundamental social rights, including the Social Security policy.

Artigo

Perspectivas de (des)criminalização das drogas no Brasil: reflexões sobre uma política criminal instrumentalizada

 

Ana Arruti

Advogada criminalista, 3ª Vice-Presidente da Comissão de Criminologia do Instituto dos Advogados Brasileiros, mestranda em Direito pela PUC-Rio, pós-graduada em Advocacia Criminal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2021), com especialização em Direito Penal Econômico pelo IBCCRIM e pelo IDPEE da Universidade de Coimbra (2021), graduada em Direito pela FGV Direito Rio (2018)

 

Resumo:

O presente artigo analisa criticamente o tratamento jurídico conferido às drogas tornadas ilícitas no Brasil, destacando a predominância do Direito Penal sobre questões que deveriam ser tratadas prioritariamente como saúde pública. A Lei nº 11.343/2006 falhou em considerar princípios fundamentais do Direito Penal, resultando em uma política criminal que perpetua desigualdades e violência contra populações marginalizadas e contribui para a superlotação carcerária. Apesar de avanços judiciais rumo à descriminalização do porte e uso medicinal da cannabis, enfrenta-se resistência política significativa. Neste contexto, este artigo se propõe a analisar criticamente a instrumentalização política do debate sobre substâncias entorpecentes no Brasil, que deveria se pautar em evidências científicas e buscar alternativas que priorizem a saúde pública e a equidade social.

Palavras-chave: política criminal; drogas; seletividade penal; descriminalização.

Introdução:

A regulamentação das drogas tornadas ilícitas no Brasil é uma questão essencialmente ligada à saúde pública, mas que foi historicamente pautada pelo Direito Penal. A Lei nº 11.343/2006 adotou uma abordagem pautada na criminalização generalizada, englobando desde o plantio até o consumo pessoal, com base em uma interpretação restritiva e pouco eficaz que desconsidera princípios fundamentais do Direito Penal, como a subsidiariedade e a fragmentariedade. Quase vinte anos após sua promulgação, o resultado é uma política criminal punitivista e seletiva, que aprofunda desigualdades e se insere no ciclo vicioso de retroalimentação do preconceito e da violência que vitimam populações vulneráveis.

A pauta de descriminalização e/ou legalização de determinadas condutas e substâncias, por sua vez, vem figurando ativamente nos trabalhos do Congresso Nacional e dos Tribunais Superiores do país – em especial, do Supremo Tribunal Federal –, sob pressões da sociedade civil e de figuras públicas cujas agendas integram um intricado campo de disputas políticas.

Neste contexto, este artigo se propõe a analisar criticamente a instrumentalização política do debate sobre substâncias entorpecentes no Brasil, destacando a brutalidade e a seletividade do Direito Penal na aplicação da Lei de Drogas. Para tanto, será analisado o embate entre saúde pública e Direito Penal na abordagem das políticas de drogas; em seguida, será explorada a seletividade penal na aplicação da Lei nº 11.343/2006, evidenciando como a criminalização afeta desproporcionalmente determinados grupos sociais e, por fim, serão discutidas perspectivas de mudança para uma reforma das políticas de drogas no Brasil.

Sequestro do conflito pelo Direito Penal

O tema da regulamentação das drogas no Brasil, precipuamente afeto à saúde pública, foi sequestrado pelo Direito Penal, ramo inadequado para a busca de concretização de direitos e incapaz de oferecer as soluções necessárias aos problemas sociais que eventualmente resultem da produção, comércio e consumo de plantas e substâncias psicotrópicas.

A chamada Lei de Drogas, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, foi aprovada sob o pretexto de prescrever “medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas” e estabelecer “normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito”. A legislação lançou mão, então, da criação de tipos penais que se inserem, segundo a exposição de motivos da lei, em “um sistema que coordena as ações, políticas e estratégias governamentais destinadas ao trato do problema [do tráfico ilícito de substâncias capazes de gerar dependência física ou psíquica]”[2].

Nesse contexto, foram “proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso” (art. 2º, caput) e tipificadas as respectivas condutas.

A criminalização de todas as atividades ligadas a quaisquer vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, tanto para uso pessoal de usuários ou dependentes (Título III, Capítulo III) quanto para fins de tráfico ilícito (Título IV, Capítulo II), é, em si, uma inadequação no emprego do Direito Penal.

Isso porque o objetivo declarado deste ramo do Direito é a proteção dos bens jurídicos, bens inestimáveis para a vida humana individual e em sociedade que tenham relevante e imprescindível valor social e, por isso, devem receber uma proteção especial[3]. A definição dos bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal deve ser norteada pela Constituição, de forma que a lesão a estes bens signifique verdadeiro impedimento, ou o risco de impedimento, à existência e desenvolvimento individual e social do ser humano. Essa seleção criteriosa acarreta a utilização do Direito Penal como ultima ratio, sob orientação dos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade[4].

A persecução penal deve se limitar a comportamentos expressivos, que sejam contrários e nocivos ao interesse púbico. A aplicação do Direito Penal, nessa perspectiva, pressupõe o não enquadramento típico quando for possível resolver a questão plenamente através da atuação de outro ramo do Direito. Nesse ponto, irretocáveis as observações do professor Nilo Batista:

A subsidiariedade do direito penal, que pressupõe sua fragmentariedade, deriva de sua consideração como remédio sancionador extremo, que deve, portanto, ser ministrado apenas quando qualquer outro se revele ineficiente; sua intervenção se dá unicamente quando fracassam as demais barreiras protetoras do bem jurídico predispostas por outros ramos do direito[5].

O postulado é usualmente atrelado ao Poder Legislativo, que deve selecionar de maneira adequada os interesses jurídicos a serem protegidos pelo Direito Penal e tutelá-los através da criação de leis, sob pena de sobrecarregar o Poder Judiciário de problemas oriundos da má escolha de bens jurídicos protegidos:

A ausência de uma política criminal definida espelha um ordenamento penal desconexo, repleto de falhas, lacunas e contradições, acarretando ao Poder Judiciário maior volume de trabalho, em particular, buscando interpretar coerentemente as leis penais para evitar erros e injustiças[6].

O cenário atual da produção legislativa no Brasil afasta-se dos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade e elege o Direito Penal como primeira resposta à resolução de conflitos e à proteção de bens jurídicos que poderiam ser atendidos por outros meios.

Especialmente no que se refere às condutas estritamente individuais, a política criminal de drogas brasileira é um exemplo de desrespeito aos aludidos princípios. O porte ou armazenamento de substâncias psicotrópicas, assim como variações aplicáveis ao usuário de drogas, não devem ser enfrentadas na seara penal, pois possuem nenhuma ou baixíssima repercussão coletiva e não afetam gravemente o bem jurídico da saúde pública.

Defensores da penalização da conduta fundamentam seus argumentos na estrutura química das substâncias ilícitas, com o objetivo de fazer prevalecer a ideia de que a proibição está alicerçada na própria essência da substância, que seria intrinsicamente maléfica. No entanto, os que sustentam tal posição deixam de considerar que outras drogas, como o álcool e o tabaco, também possuem estruturas químicas que podem ser prejudiciais à saúde, não sendo, no entanto, proibidas[7].

Sob a perspectiva de banalização da criminalização, chama-se atenção para o fato de que o artigo 33 da Lei nº 11.343/2006, que define os crimes relacionados à prática do tráfico ilícito de drogas, elenca mais de dezoito condutas, inserindo-se no fenômeno que Zaffaroni designou como “multiplicação dos verbos”[8], o que por si só destoa da noção subsidiária e fragmentária do Direito Penal, bem como da sua própria essência limitadora do jus puniendi.

Sobre o tema, Luís Carlos Valois entende que o objetivo da técnica legislativa é a criação de um crime de fácil apuração e condenação, que mimetiza a política norte-americana da guerra às drogas, relativiza a necessidade de comprovação do dolo e amplia o número de verbos do tipo penal para facilitar a atividade policial de captura de qualquer envolvido com substâncias tidas como ilícitas[9]. A respeito:

A ideia de uma lei penal funcionando como uma espécie de contenção do poder do Estado em face dos cidadãos, limitando, por intermédio do princípio da legalidade, as condutas puníveis àquelas estritamente e claramente previstas em lei, fazendo do Código Penal uma verdadeira “Magna Charta libertatum”, é praticamente abandonada com a entrada nos ordenamentos jurídicos da figura do tráfico de drogas. (…)

Todos esses verbos, a generalização do texto definidor do crime, a preocupação do legislador em dizer que basta a pessoa possuir drogas em desacordo com a determinação legal, ou seja, retirando a necessidade de se provar qualquer desígnio do possuidor, são resultados do uso do direito penal como medida de polícia, afastando completamente a legislação penal da ideia de instrumento de garantia contra o poder punitivo do Estado[10].

Mesmo na hipótese de se considerar o Direito Penal necessário para a resolução de determinados conflitos no âmbito do “combate às drogas”, há que se buscar um critério de negatividade social das situações conflituais da vida coletiva capazes de determinar as situações merecedoras de tipificação, ou seja, respeitar o conceito de bem jurídico como critério de criminalização e objeto de proteção penal fragmentária e subsidiária[11].

Seletividade penal na aplicação da Lei nº 11.343/2006

A “guerra às drogas” é uma guerra contra pessoas e, no Brasil, o alvo preferencial de tal política criminal são os traficantes das favelas e aqueles que, pobres e marginalizados, a eles se assemelham. Nas palavras de Maria Lucia Karam:

A “guerra às drogas” não é propriamente uma guerra contra as drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Como quaisquer outras guerras, é sim uma guerra contra pessoas: os produtores, comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas. Mas, não exatamente todos eles. Os alvos preferenciais da “guerra às drogas” são os mais vulneráveis dentre esses produtores, comerciantes e consumidores das substâncias proibidas. Os “inimigos” nessa guerra são os pobres, não brancos, os marginalizados, desprovidos de poder[12].

Salo de Carvalho explica que a escolha de determinados sujeitos como alvos dessa política brutal tem origem na ideologia da Segurança Nacional, proveniente dos EUA na década 1960 e que, baseada na polarização mundial instaurada na guerra-fria, gera a necessidade de combater um inimigo. Ao ser transportada às demais nações, tal ideal maniqueísta impactou na divisão de sua própria população também em dois polos: “os fiéis cumpridores da lei e aqueles que a corrompem”[13], estes últimos considerados inimigos. Salo de Carvalho aponta que o conceito de traficante, na América Latina, é uma evolução do conceito de inimigo interno da ideologia da Segurança Nacional[14].

No Brasil, essa importação passou a integrar o sistema penal durante a ditadura militar, quando a polícia militar foi treinada segundo a referida ideologia e passou a redirecionar a sua atuação a indicadores sociais. Luiz Eduardo Greenhalch afirma que as polícias militares inventaram um outro inimigo, determinado por fatores socioeconômicos. Segundo Greenhalch, “os inimigos ou suspeitos eram os negros, os mais pobres, as prostitutas, os favelados. Ou seja, aqueles que estão mais marginalizados, mais afastados do processo produtivo e de seus benefícios”[15].

Essa visão dos grupos marginalizados como inimigos é perpetuada até hoje através da influência da mídia que, seletivamente, expõe esses grupos sociais como suspeitos e criminosos. A esse respeito, explica o professor E. Zaffaroni:

O sistema penal atua sempre seletivamente e seleciona de acordo com os estereótipos fabricados pelos meios de comunicação de massa. Estes estereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada, deixando de fora outros tipos de delinqüentes (delinqüência de colarinho branco, dourada, de trânsito etc.)[16].

A mencionada “multiplicação de verbos” do tipo do tráfico de drogas também contribui para esse processo. Em razão desse fenômeno, igualam-se “mulas”, traficantes famélicos e até mesmo usuários à imagem de um criminoso cruel. Nesse sentido, Nilo Batista indica que a lógica de guerra “abstrai toda a fragilidade daqueles personagens, transformando-os magicamente em inimigos temíveis”[17].

A população à margem da sociedade, que está mais suscetível à criminalização secundária, é vista como o inimigo construído no traficante. Essas ideologias e práticas constituem a política criminal de drogas na América Latina e a alicerçam na seletividade penal[18].

Nesse sentido, considera-se que a força motriz das normas criminalizantes, que legitimam a política de “guerra às drogas”, é a persecução da população negra. Como nos EUA – em que negros constituem de 15% a 20% dos usuários, mas representam de metade e dois terços das pessoas presas com drogas –, o Brasil não adota essa política apesar de atingir massivamente a população negra. Não se trata de efeito colateral ou derivação, mas da própria causa da escolha político-criminal[19].

Os objetivos declarados do Direito Penal, que incluem a proteção de bens jurídicos relevantes, produzem uma aparência ilusória de neutralidade do Sistema de Justiça Criminal e encobrem os reais objetivos do discurso jurídico, que são a garantia das estruturas materiais em que se baseia a existência das classes sociais e a manutenção da realidade social desigual das sociedades contemporâneas[20].

O rigor com o qual se pune as atividades equiparadas ao tráfico de substâncias tornadas ilícitas ilustra “a funcionalidade mítica da droga para o exercício do controle social penal máximo sobre as classes marginalizadas, cujos filhos são recrutados para trabalhar nos arriscados estágios da produção e comercialização de um produto cujo mercado está condicionado por sua criminalização”[21]. Segundo essa perspectiva crítica, a função da criminalização é a manutenção do status quo.

Sob o pretexto de proteger o bem comum, se vale o poder público de normas penais para proteger interesses dos grupos sociais hegemônicos e estabelecer, de antemão, quem são os indivíduos suscetíveis à estigmatização da sanção penal, que vêm a ser aqueles pertencentes a grupos sociais vulneráveis, especialmente os que se encontram à margem do mercado de trabalho e do consumo social[22].

Impactos da criminalização no sistema carcerário brasileiro

Em consonância com a constatação da seletividade do encarceramento e da persecução penal no âmbito da “guerra às drogas”, pesquisas indicam que a Lei de Drogas brasileira (Lei nº 11.343/06) encarcera majoritariamente jovens, normalmente pobres, primários e que portam pouca quantidade de drogas. Ocorre que, uma vez enquadrados como traficantes, grande parte destes indivíduos é cautelarmente segregada, responde ao processo sob custódia e permanece encarcerada, pois dificilmente consegue escapar de condenação[23].

Segundo Relatório de Informações Penais (RELIPEN) disponibilizado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública em 2023[24], o Brasil possuía, entre janeiro e junho do referido ano, uma população de 644.305 pessoas encarceradas – considerando apenas o contingente sob custódia em celas físicas –, das quais 397.427 autodeclaradas pretas e pardas e 193.542 presas por crimes relacionados a drogas ilícitas, o que corresponde a mais de 30%. Tudo isso em estabelecimentos prisionais com um total de 481.835 vagas, totalizando déficit de 162.470 vagas.

Vale sublinhar que desde setembro de 2015 o Supremo Tribunal Federal reconheceu, no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, o estado de coisas inconstitucionais das prisões brasileiras, consubstanciado na violação massiva e generalizada de direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade e na persistência da omissão das autoridades competentes[25].

A escolha política pela criminalização possibilita, nesse contexto, a perpetuação dessa trágica situação, especialmente em relação à população negra e pobre, conforme observa Marcelo Semer:

Para os efeitos do encarceramento brasileiro, portanto, o modelo ilumina, sobretudo, a centralidade e a seletividade da guerra às drogas como forma de definir o perfil populacional. Tais fatos também decorrem de nossas estatísticas que relacionam o crime de drogas e crescimento do encarceramento. A formatação do perfil prisional é, de certa forma, também captada por nossa pesquisa de sentenças: a seletividade demonstrada nos processos pesquisados é consequência direta da opção preferencial pelo pobre, evidenciado, sobretudo, pela desproporcional atuação policial na repressão a partir da vigilância da rua. O aumento das penas e um maior engajamento policial na guerra às drogas também vem tornando o encarceramento brasileiro paulatinamente mais feminino – mantendo e aprofundando, todavia, a sobre representatividade negra nos cárceres[26].

As prisões brasileiras estão repletas, sobretudo de indivíduos negros e pobres, mantidos em situação deletéria, pelo envolvimento com atividades ligadas a substâncias entorpecentes. Ainda segundo Semer, a situação concreta faz pouca diferença para a escolha dos magistrados pelo encarceramento: muitas vezes são réus primários, que cometeram a conduta sozinhos, não respondem por outros crimes e não se encontravam armados, o que não impede a determinação pelo cárcere. A lógica adotada pelos julgadores é de que “o tráfico de drogas é algo tão perigoso socialmente, tão fundante da criminalidade organizada, tão nocivo às famílias, ao trabalho, à sociedade, ao mundo, e o traficante um ser tão pessoalmente desprezível (…) que o aprisionamento cautelar e definitivo se apresenta absolutamente indispensáveis”[27].

Por fim, como aponta Luís Carlos Valois, a opção pelo encarceramento como suposta solução para a questão das drogas implica o envio de dependentes químicos e outros envolvidos com substâncias ilícitas para locais que não apenas são insalubres e violentos, mas nos quais há grande circulação de drogas[28], de forma que o problema se retroalimenta e se aprofunda cada vez mais.

Perspectivas

Apesar do preconceito que envolve o tema, determinadas demandas de descriminalização vêm recebendo atenção dos Tribunais Superiores que, em grande medida, vêm se mostrando atentos aos direitos dos jurisdicionados.

Em especial quando acionado para atuar na garantia ao direito à saúde, por meio do acesso a produtos elaborados com cannabis, o Poder Judiciário se posiciona de forma majoritariamente favorável. Recentemente, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu, por unanimidade, decisões paradigmáticas a respeito do tema no bojo do Recurso em Habeas Corpus (RHC) nº 147.169/SP, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, e do Recurso Especial (REsp) nº 1.972.092/SP, de relatoria do Ministro Rogerio Schietti, cujos Acórdãos garantiram salvo conduto para o cultivo da planta com a finalidade de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem o risco de repressão por parte da polícia e do Judiciário. Em ambos os casos, o colegiado concluiu que a produção artesanal do óleo com fins terapêuticos não representa risco de lesão à saúde pública ou a qualquer outro bem jurídico protegido pela legislação antidrogas.

Os Acórdãos foram paradigmáticos ao reafirmar que o Direito Penal é conformado pelo princípio da intervenção mínima e de seus consectários da fragmentariedade e da subsidiariedade e, dessa forma, que o uso medicinal e científico não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares, pois o cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade. No caso, a intenção do cultivo não é atentar contra a saúde pública, mas sim promovê-la a partir da extração de produtos medicamentosos.

Vale registrar, ainda, que está em trâmite o Recurso Extraordinário (RE) nº 635.659/SP, com repercussão geral reconhecida (Tema 506) pelo Supremo Tribunal Federal, que trata da total descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal quando inexiste finalidade médica ou terapêutica, com ênfase no exame da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Após o voto favorável de Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber, o placar pela descriminalização do porte pessoal de maconha está em 5 a 1, faltando um voto para formar maioria. Cristiano Zanin, único ministro a se manifestar contrariamente à tese, concordou com a necessidade de que a Corte fixe um critério capaz de distinguir quem é usuário de quem é traficante, de forma que já há maioria de 6 a 0 formada nesse sentido.

É certo que o cenário ainda está distante da descriminalização de todas as drogas – originalmente sustentada no primeiro voto do Ministro Gilmar Mendes no bojo do RE nº 635.659/SP, posteriormente reformado. No entanto, há sinalização de que a Corte Suprema recebe, com atenção, muitas das formulações ventiladas no presente artigo, no tocante aos princípios norteadores do Direito Penal, seletividade da aplicação da Lei de Drogas e mazelas sociais decorrentes da política criminal da “guerra às drogas” em curso.

Contudo, enfrenta-se considerável resistência política. No dia 14 de setembro de 2023, em meio ao julgamento do Tema 506 pelo STF, o Senador Rodrigo Pacheco apresentou a PEC nº 45/2023 ao Senado Federal, com o intuito de tornar constitucional a previsão de criminalização da posse e do porte de entorpecentes, independentemente da quantidade, mediante inserção da seguinte previsão ao artigo 5º da Constituição Federal: “a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. A justificativa apresentada no texto original da Proposta a qualifica como medida apta a “conferir maior robustez à vontade do constituinte originário”, que estaria sendo desafiada pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito do Recurso Extraordinário 635.659/SP.

A iniciativa não é isolada e se soma, pelo menos, a mais uma Proposta de Emenda à Constituição apresentada à Câmara dos Deputados em 2023 por um grupo de 176 Deputados Federais. Com motivações políticas e consequências jurídicas semelhantes, a PEC nº 34/2023 “inclui dispositivos nos artigos 3º e 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, estabelecendo o combate às drogas ilícitas como princípio fundamental e vedando expressamente a descriminalização do tráfico e a legalização de novas drogas recreativas”.

Trata-se, portanto, de um campo marcado por intensas disputas políticas e ideológicas, onde se confrontam interesses políticos, econômicos e sociais, exigindo um debate amplo e plural sobre os rumos das políticas de drogas no Brasil.

Conclusão

Em um contexto marcado pela seletividade do Direito Penal e pela superlotação do sistema carcerário brasileiro, é crucial repensar a abordagem das políticas de drogas no país. A criminalização indiscriminada das condutas ligadas às drogas tem impactos desproporcionais sobre populações marginalizadas, sobretudo negras e pobres, perpetuando um ciclo de exclusão e violência.

Embora haja avanços judiciais em direção à descriminalização do porte e ao reconhecimento do uso medicinal da cannabis, ainda se verificam resistências políticas significativas. O debate sobre as políticas de drogas no Brasil deve ser amplo, plural e embasado em evidências científicas, visando promover políticas mais justas, eficazes e orientadas pela saúde pública. É fundamental repensar o papel do Direito Penal nesse contexto e buscar alternativas que priorizem a prevenção, a redução de danos e a promoção da equidade social.

 

[1] O presente artigo resulta de reflexões originadas em Parecer elaborado no âmbito do Instituto dos Advogados Brasileiros, em coautoria com Ladislau Porto, sobre o Projeto de Lei nº 399/2015. Cf.: ARRUTI, Ana Heymann; PORTO, Ladislau. Parecer da Comissão de Criminologia do IAB sobre o Substitutivo ao Projeto de Lei nº 399/2015 (Marco Regulatório da Cannabis ssp. no Brasil). 2022.

[2] Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2006/lei-11343-23-agosto-2006-545399-exposicaodemotivos-150201-pl.html. Acesso em 16/08/2022.

[3] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 6ed., ampl. e atual. Curitiba: ICPC Cursos e Edições, 2014, p. 5.

[4] Idem, ibidem.

[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 11 ed., 2007, pp. 86/87.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 14ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 56.

[7] BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Discursos sediciosos, v. 3, n. 5-6, 1998, p. 144.

[8] ZAFFARONI, Raul E. La legislación antidrogras latino-americana: sus componentes de derecho penal autoritário, in Fascículos de Ciências Penais, v. 3, n. 2, P. Alegegre: Fabris, 1990 apud BATISTA, Nilo. Op. cit., 1998.

[9] VALOIS, Luís Carlos. O Direito Penal da Guerra às Drogas. 3ª ed. São Paulo: D’Plácido, 2020, p. 424.

[10] VALOIS, Luís Carlos. Op. cit., p. 424-425.

[11] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Op. cit., pp. 16/18.

[12] KARAM, Maria Lucia. Drogas: dos perigos da proibição à necessidade da legalização. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 63, p. 9, out./dez/, 2013.

[13] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil (do discurso oficial as razões da descriminalização). Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre, UFSC, 1996., p. 175.

[14] CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 181.

[15] GREENHALCH apud CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 182.

[16] ZAFFARONI, Em Busca Das Penas Perdidas, p. 130. apud CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 188.

[17] BATISTA, Nilo. Op. cit., 1998, p. 145.

[18] CARVALHO, Salo de. Op. cit., p. 192.

[19] SEMER, Marcelo. Op. Cit., p. 97.

[20] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Op. cit., pp. 7-11.

[21] BATISTA, Nilo. Op. cit., 1998, p. 143.

[22] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Op. cit., p. 11.

[23] Cf. Boiteux, Luciana et al. “Relatório de pesquisa tráfico e constituição”. Pensando o direito. Brasília/ Rio de Janeiro: Ministério da Justiça, 2009; e Prisão provisória e lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2011.

[24] BRASIL. Relatório de Informações Penais RELIPEN. Período Janeiro a junho de 2023. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/relatorios/relipen/relipen-1-semestre-de-2023.pdf. Acesso em 01 fev. 2024.

[25] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347, Plenário do Supremo Tribunal Federal, Brasília, DF, 09 set 2015.

[26] SEMER, Marcelo. Op. cit., p. 311.

[27] SEMER, Marcelo. Op. cit., p. 313.

[28] VALOIS, Luís Carlos. Op. cit., p. 22.

Palavras Chaves

direitos fundamentais; direitos sociais; previdência social; fortalecimento da democracia; mínimo existencial; reserva do possível.