POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR: ATIVIDADES DIANTE DO CRIME DE DESERÇÃO

Artigo

POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR: ATIVIDADES DIANTE DO CRIME DE DESERÇÃO

Bárbara Ferreira dos Santos[1]

  1. INTRODUÇÃO

O Direito Militar enquanto justiça especializada, assim como as Justiças Eleitoral e do Trabalho, possui legislação especial, procedimentos específicos e formas de tratamento próprios.

Porém, no caso da referida justiça, a especialidade não se resume ao fórum, a períodos de eleição ou mesmo às controvérsias no labor de um cidadão comum que, a priori, deixa seu trabalho após o período do expediente sem ser requisitado a qualquer hora.

 A Justiça Militar e os crimes que são por ela julgados trata de penalidades impostas e existentes antes mesmo da criação da República. Seus processos não são criados a partir de reclamações ou união de provas por parte do empregado ou cassação de mandatos por pessoas tidas como inelegíveis.

Sendo uma Justiça que cuida de processar e julgar crimes propriamente militares e militares por extensão, possui certa semelhança em relação à Justiça Criminal Comum quando o processo criado advém do resultado da investigação da Polícia Judiciária Militar.

O presente artigo, sem pretensão de exaurir o assunto, deseja correlacionar o trabalho da Polícia Judiciária Militar ao crime propriamente militar de Deserção mencionando a importância de tal atividade em âmbito castrense para a comprovação e posterior julgamento do delito acima mencionado.

Apesar de não constituir, constitucionalmente, o rol das Polícias existentes do Brasil, o que dificulta sua consolidação, esta atividade policial também requer conhecimento específico: diligência investigativa, produção de provas, inquirição de testemunhas e atenção para que nenhum ato venha a prejudicar o decurso do processo que pode surgir gerando nulidade e resultando em um crime que não será devidamente julgado por falha procedimental e não pela ausência de cometimento do delito.

  1. CONCEITO BÁSICO DE CRIME E CRIME MILITAR

CRIME COMUM

Por não dispor o Código Penal de definição própria para crime, a doutrina consolidou, ao longo do tempo, um conceito analítico para o delito na tentativa de abranger aspectos formais e materiais.[2]

Sendo assim, para que haja crime, pressupõe-se uma conduta: ação ou omissão humana, externa e voluntária seguida de tipicidade: com adequação objetiva ou subjetiva materialmente formada qual seja ilícita por não conter autorização para ser praticada em norma jurídica e, por fim, culpável quando se trata do nível de censurabilidade penal da conduta (imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa).

Como tratou Greco2 em sua obra: “… o estudo desse ‘roteiro’ do crime, obrigará a análise de cada um de seus elementos, passo a passo, seguindo uma ordem lógica…”.

Na prática, a atividade policial é a responsável justamente por observar essa sequência lógica e é através do Inquérito Policial, por meio da portaria de instauração do inquérito policial ou da formalização do auto de prisão em flagrante que se inicia a investigação. É a autoridade policial a responsável por transpor, no primeiro momento, do mundo literário para o físico toda a dogmática criminal, materializando-a mediante análise técnico-jurídica dos fatos apresentados.

 

CRIME MILITAR

Embora carregue os mesmos pressupostos do crime comum para que, primeiramente seja classificado como crime, o crime militar, para ser considerado como tal, requer mais do que classificações doutrinárias e está diretamente ligado à vida castrense e ao agente praticante do delito.

Segundo Cícero Coimbra[3], o critério para a atual definição de crime militar surgiu a partir da Constituição de 1946, atualmente disposto nos artigos 124 e 125 parágrafo 4º da Carta de 1988. Em suma, tem-se: “tornou militar o crime praticado por militar da ativa contra civil, reformado ou militar da reserva, durante o período de manobra ou exercício.”.

Dentre outras questões o que torna o Direito Militar uma área peculiar do estudo jurídico não é apenas o fato de possuir seu rol de crimes e procedimentos próprios, mas áreas que a ele se correlacionam diretamente como o Direito Internacional dos Conflitos Armados e o Direito Internacional Humanitário que incluem conceitos especificamente militares.6

Com o advento da Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017, ocorreu a alteração do conceito de crime militar, atualmente mais abrangente. Crimes militares por sua vez, passam a ser os elencados no Código Penal Militar e no Código Penal Comum (ressalvando a observância do artigo 9º do CPM).

  1. CRIMES PROPRIAMENTE MILITARES

De forma simples, o crime propriamente militar é todo aquele previsto apenas no Código Penal Militar[4].

Sendo assim, passa-se ao estudo do crime proposto pelo presente artigo:

DESERÇÃO

Para tratar da Deserção, breves conceitos de crime permanente e crime instantâneo devem ser previamente esclarecidos. O primeiro é caracterizado pelo prolongamento do delito no tempo e o último requer uma consumação imediata, ou seja, após consumado não se prolonga. Neste caso, o bem jurídico tutelado é instantaneamente afetado. Esta classificação diz respeito à forma de ação do crime.[5]

Há várias classificações para os delitos penais, porém, não é possível enquadrá-los ao duas vezes na mesma categoria. Segundo a doutrina majoritária, a deserção é crime permanente. Uma vez completado o oitavo dia de ausência injustificada do militar, ocorre a consumação do crime que se prolonga no tempo e não pode mais ser cessada ao contrário do furto, por exemplo, que pode ser atenuado com a devolução do bem.5

Trata-se de crime de mão própria: somente o desertor pratica, concluindo que apenas ao militar é dada a possibilidade de desertar. Não admite o concurso de pessoas. Caso vários militares decidam desertar, cada um responderá por seu “próprio” crime, isoladamente.

O núcleo da conduta é “ausentar-se” e não se limita a deixar de estar no local devido pelo militar que se encontra no interior da área militar, incluindo o militar que não retorna de licença, ou seja, sua dispensa foi lícita, mas sua permanência fora da unidade, findo o prazo concedido, não.3

O período de graça começa no primeiro dia em que o militar deveria voltar as suas atividades e vai até o oitavo dia. Durante esse período não há crime, apenas o cometimento de transgressão disciplinar. Após o oitavo dia, começa a ocorrência do crime de deserção.

No delito em questão, o bem jurídico tutelado é o serviço militar, atingido quando seu cumprimento é comprometido pelo desertor. Segundo Cícero Coimbra: “Protegem-se ainda o dever militar, o comprometimento, a vinculação do homem aos valores éticos e funcionais da caserna e de sua profissão.”3

No presente artigo não serão tratadas as condições de procedibilidade e “prosseguibilidade” bem como suas controvérsias por se tratar de tema específico, que extrapola a atuação da Polícia Judiciária Militar, foco da obra em questão.

  1. ATUAÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR

PROCEDIMENTOS

Seu trabalho é relevante por ser responsável pela condução do procedimento de forma técnica e por zelar pelos meios de prova. A lavratura do Termo de Deserção pela autoridade militar pode resultar na contrapartida da restrição da liberdade de quem foi desertor sem a necessidade de prévia autorização judicial.[6]

Porém, é superficial e um tanto irresponsável afirmar que é apenas nesta hora que o trabalho da Polícia Judiciária se inicia. Todos os procedimentos que precede o referido termo devem ser eivados de legalidade, nas mais “simples” tarefas como em uma revista administrativa ou abordagem pessoal. Repete-se: tarefas simples, mas que, se não forem tecnicamente bem-feitas, anulam todo o processo.

Majoritariamente o oficial designado para a apuração da autoria e materialidade de um crime militar não possui suporte jurídico. As Polícias Civil e Federal, além de possuírem em seu escopo profissionais formados em Direito, contam com apoio de institutos de criminalística para a realização de exames forenses. Isso não é observado nas Forças Armadas.[7]

Por mais ilógico que possa parecer, os oficiais designados como encarregados do IPM, caso possuam formação jurídica, pode-se dizer que foi mera concepção do acaso pois este não é requisito para a composição da Polícia Judiciária Militar.

No caso do crime acima retratado, a própria contagem do crime de deserção sofreu mudanças significativas durante os anos e ainda hoje gera dúvidas. Um corpo especializado, conhecedor das técnicas e atualizado sobre suas modificações doutrinárias reflete a segurança jurídica que o processo penal militar necessita para discorrer, sobretudo, dentro da legalidade.

A consumação da deserção é de responsabilidade do comandante da unidade. A ele é dada a prerrogativa de lavrar o Termo de Deserção que serve como instrução provisória, elemento fundamental para a posterior persecução penal.

Além do comandante, a autoridade superior imbuída de poder de polícia judiciária também poderá lavrar o Termo acima mencionado.

É a partir da falta injustificada do militar que a ação da polícia judiciária militar instantaneamente inicia e deve ser feita de forma precisa. Nada obsta que, observada a ausência do militar, fosse acionada a Delegacia da PJM para que tal fato fosse apurado e as diligências da Instrução Provisória de Deserção (IPD) fossem realizadas nesta delegacia que encaminharia, ao final, a remessa do Termo de Deserção ao Ministério Público, via Auditoria, facilitando também a requisição de diligências por parte do órgão Ministerial que disporia de um rol específico de unidades da PJM ao contrário das inúmeras organizações militares existentes em território nacional.

INSTITUCIONALIZAÇÃO

A institucionalização da PJM é forma adequada de enquadrar o oficial das Forças Armadas que está à frente de investigações e, no cenário atual, não é destacado somente para a resolução do IPM. Segundo o Manual de Polícia Judiciária Militar elaborado pelo Ministério Público Militar em conjunto com os demais órgãos de Defesa:

O Encarregado do IPM poderá solicitar ao escalão superior onde existir Núcleo de Polícia Judiciária Militar (N-PJM), Pelotão de Investigação Criminal, Assessoria jurídica ou equivalente, auxílio na condução do IPM, em especial no que se refere à realização de perícias em geral, bem como orientação ao Ministério Público Militar, que é o destinatário do IPM e titular do Controle Externo da Atividade Policial. Nesta condição, aliás, o MPM poderá acompanhar qualquer procedimento de polícia judiciária militar por iniciativa própria, sempre que entender necessário. Todas as solicitações externas determinadas pelo Encarregado serão feitas por meio de ofício por ele assinado e juntado aos autos em ordem cronológica.

Desta forma, reforça-se a necessidade de implementação da Delegacia da PJM, facilitando o decurso do Inquérito e diminuindo as solicitações externas motivadas por falta de assessoria adequada ou meios de realização de perícias, as trocas existentes passariam a somar no processo, pois seriam tecnicamente realizadas.

Outro argumento que reforça a tese para a criação de uma Polícia Judiciária Militar “fixa” ocorre após o deferimento do arquivamento do inquérito pelo Juiz Federal da Justiça Militar a pedido do membro do parquet. Uma vez arquivado, somente ocorre o desarquivamento ou oferecimento de nova denúncia pelo Ministério Público Militar, por observância de novos fatos que realmente tenham possibilidade de mudar o resultado anteriormente fixado, não conhecidos à época do cometimento do ato delituoso. Ora, sem uma “delegacia” de Polícia Judiciária Militar, com a troca constante de oficiais no processo investigativo, voltando as suas atividades militares normais e até mesmo com as constantes transferências, novos fatos são mais difíceis de serem compilados e associados ao ato passado. Um departamento especializado tem a possibilidade de organizar, arquivar e rever toda a documentação dos inquéritos com maior assertividade e rapidez.

  1. INCIDÊNCIA DO CRIME DE DESERÇÃO NA JUSTIÇA MILITAR

Tabela 2.2: Ações Penais distribuídas na 1ª instância por assunto em 2022

Assunto Jan Fev Total
Posse ou uso de entorpecente ou substância de efeito similar 18 9 27
Ø  Deserção 13 9 22
Furto 6 6 12
Estelionato 3 4 7
Abandono de posto 4 2 6
Importunação sexual 2 2 4
Crimes do sistema nacional de armas 3 0 3
Maus tratos 0 3 3
Peculato-furto 1 2 3
Receptação 2 1 3
Desobediência 2 0 2
Falsificação de documento 1 1 2
Ingresso clandestino 0 2 2
Lesão 1 1 2
Uso de documento falso 2 0 2
Violência contra inferior 0 2 2
Ameaça 1 0 1
Apropriação indébita 0 1 1
Assédio sexual 0 1 1
Ato libidinoso 1 0 1
Outros 12 5 17
Total 72 51 123
Fonte: e-Proc/JMU[8]

 

CONCLUSÃO

O resultado da falta de composição certa e permanente da Polícia Judiciária Militar são inúmeros, dentre eles: lavraturas de Termos com garantias constitucionais inexistentes e vícios procedimentais causadores até mesmo de processos posteriores contra a União, para a reparação moral e/ou monetária das ilicitudes e ilegalidades sofridas.

De forma mais branda e não menos importante, as falhas na fase do IPM geram morosidade para o processo penal militar e a devolução, por parte do Ministério Público Militar, do processo para a complementação de informações e requisição de diligências adicionais, fase que poderia ser encurtada ou não existir caso a investigação inicial fosse feita por um profissional da área jurídica além de conhecedor (e “vivenciador”) da vida castrense.

Conclui-se que é de suma importância a criação de uma delegacia de Polícia Judiciária Militar conforme a demanda de cada localidade, como ocorre na esfera civil, de forma a organizar, adequar juridicamente e mesmo evitar que crimes sejam tratados como transgressões por despreparo do comando ou pelo cometimento de outro crime (quando há o fato delitivo e a autoridade militar decide não punir seu subordinado).

  REFERÊNCIAS

ASSIS, Jorge Cesar de. UM EXAME MINUCIOSO SOBRE A NATUREZA DO CRIME DE DESERÇÃO. JusMilitaris. Disponível em: <jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/minuciosodesercao.pdf>. Acesso em: 12 mai de 2022.

BRASIL. MINISTÉRIO DA DEFESA. Livro Branco da Defesa Nacional. Brasília: Ministério da Defesa, 2020.  Disponível em: https://www.defesa.gov.br/arquivos/estado_e_defesa/livro_branco/livrobranco.pdf  Acesso em: 11 mai. 2022.

BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008. Aprova a Estratégia Nacional de Defesa, e dá outras providências. Brasília, 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6703.htm>. Acesso em: 15 out. 2020.

BRITTO, Cláudia Aguiar Silva; GORRILHAS, Luciano Moreira. A INVESTIGAÇÃO NOS CRIMES MILITARES: ASPECTOS LEGAIS, DOUTRINÁRIOS. CASOS CONCRETOS. Porto Alegre: Núria Fabris, 2021.

CASTRO, C. O espírito militar: um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

GRECO, Rogério. CURSO DE DIREITO PENAL. 17ª edição. Rio de Janeiro: Impetus, 2015.

NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. MANUAL DE DIREITO PENAL MILITAR. Volume Único. São Paulo: JusPodivim, 2021.

SARAIVA, Alexandre José de Barros Leal. MANUAL BÁSICO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2022.

Notas:

[1] Advogada. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRJ. Pós-graduanda em Direito Militar pela UERJ. Pós-graduanda em Direito Civil com Ênfase em empreendedorismo Jurídico pelo IPROJUDE. Editora Jurídica do Portal Habeas Data. Membra Consultiva da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UFRJ. Pesquisadora do Centro de Pesquisa de Jurisdição Constitucional (CPJC) – UNIRIO. Secretária-geral da Comissão de Direito Militar da ABA/RJ. Membra da Comissão de Direito Militar da OAB/RJ. Associada do Instituto Brasileiro de Estudo e Pesquisa de Direito Militar – INBRADIM.

[2] GRECO, Rogério. CURSO DE DIREITO PENAL. 17ª edição. Rio de Janeiro: Impetus, 2015.

[3] NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. MANUAL DE DIREITO PENAL MILITAR. Volume Único. São Paulo: JusPodivim, 2021.

[4] DECRETO-LEI Nº 1.001 DE 21 DE OUTUBRO DE 1969.

[5] ASSIS, Jorge Cesar de. UM EXAME MINUCIOSO SOBRE A NATUREZA DO CRIME DE DESERÇÃO. JusMilitaris. Disponível em: <jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/minuciosodesercao.pdf>. Acesso em: 12 mai. de 2022.

[6] SARAIVA, Alexandre José de Barros Leal. MANUAL BÁSICO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2022.

[7] BRITTO, Cláudia Aguiar Silva; GORRILHAS, Luciano Moreira. A INVESTIGAÇÃO NOS CRIMES MILITARES: ASPECTOS LEGAIS, DOUTRINÁRIOS. CASOS CONCRETOS. Porto Alegre: Núria Fabris, 2021.

[8] PROCESSOS DISTRIBUÍDOS NA 1ª INSTÂNCIA. Disponível em: https://www.stm.jus.br/boletim_estatistico/fev-2022/%C2%AA-inst%C3%A2ncia.html#processos-distribu%C3%ADdos-na-1%C2%AA-inst%C3%A2ncia . Acesso em: 11 de maio de 2022.