PROCESSO PENAL BRASILEIRO PARA NEGROS

Resumo

Apresentação do projeto Processo Penal Brasileiro para Negros da Faculdade Nacional de Direito, o qual parte da premissa de que o processo penal brasileiro funciona como ferramenta discriminatória contra a população negra. Diante desta assertiva, busca-se a identificação de erros no sistema de justiça e a proposição de ações para promover a inclusão racial, a colocação da população negra em postos chave do sistema de justiça e a modificação de protocolos de tratamento pelos órgãos de persecução penal. A condição do negro no processo penal é analisada a partir do olhar crítico decolonial e da efetivação dos direitos civis e políticos. Ao final, aponta-se prática amplamente realizada no processo penal brasileiro que merece ser revista: o reconhecimento do suspeito por fotografias.

Artigo

PROCESSO PENAL BRASILEIRO PARA NEGROS

Nilo César Martins Pompílio Da Hora

Professor associado e autor do projeto

Processo Penal Brasileiro para Negros na

Faculdade Nacional de Direito

Francisco Ramalho Ortigão Farias

Professor adjunto e autor do projeto

Processo Penal Brasileiro para Negros na

Faculdade Nacional de Direito.

RESUMO: Apresentação do projeto Processo Penal Brasileiro para Negros da Faculdade Nacional de Direito, o qual parte da premissa de que o processo penal brasileiro funciona como ferramenta discriminatória contra a população negra. Diante desta assertiva, busca-se a identificação de erros no sistema de justiça e a proposição de ações para promover a inclusão racial, a colocação da população negra em postos chave do sistema de justiça e a modificação de protocolos de tratamento pelos órgãos de persecução penal. A condição do negro no processo penal é analisada a partir do olhar crítico decolonial e da efetivação dos direitos civis e políticos. Ao final, aponta-se prática amplamente realizada no processo penal brasileiro que merece ser revista: o reconhecimento do suspeito por fotografias.

PALAVRAS-CHAVE: processo penal, racismo, decolonial, reconhecimento fotográfico.

  1. INTRODUÇÃO

 O Processo Penal Brasileiro mantém no cotidiano forense forte preconceito em razão dos negros, notadamente quando se inviabiliza a substituição da medida pré-cautelar da prisão em flagrante por outra menos invasiva dos direitos fundamentais, situação igualmente presente nas condenações em processos criminais sem que se faça presente a recomendada razoabilidade/proporcionalidade.

            A partir da constatação acima, sobreveio a importância de um projeto de pesquisa e extensão na Universidade Pública que identificasse erros e propusesse correções estruturais no sistema de justiça, com espeque em erros judiciários concretos, para promover desde ações de inclusão racial da população negra em posições chave do sistema de justiça a protocolos para os atores integrantes do sistema que visam identificar e afastar o denominado racismo estrutural. Com este propósito, nasce o projeto Processo Penal para Negros na Faculdade Nacional de Direito.

  1. NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE A QUESTÃO DO TRATAMENTO NO PROCESSO PENAL PARA NEGROS.

O sistema de justiça criminal nacional localiza suas ações em razão de determinadas condutas, indivíduos e grupos sociais conforme apontam dados estatísticos que indicam tendência contínua e crescente de condenação criminal de negros proporcionalmente maior do que em relação aos brancos.

A referida sinalização constitui patente indicativo de que o preconceito racial se encontra presente em toda a persecução penal, seja no âmbito pré-processual ou processual, com efetivo reflexo na legitimação do direito em razão da crescente complexidade das relações sociais.

De fato, a atuação discriminatória do Poder Público em relação aos negros, principalmente no contexto de um processo criminal, desnuda total ausência de neutralidade e permite concluir que a formulação/aplicação da sanção penal tem forte apelo ideológico racial.

 Dessa situação constata-se que o aparato estatal repressivo atua como ferramenta de exclusão social na exata medida em que no processo penal tangencia questões que interferem diretamente no jus libertatis. Cabe destacar que os negros estão entre os maiores alvos da persecução penal em todos os seguimentos, o que permite concluir que a atuação dos órgãos comprometidos com o sistema penal ocorre de forma discriminatória em relação à população negra.

Na realidade, desde a abolição da escravatura, a normatividade penal funciona como ferramenta de controle social e segregação racial.

 Como bem destaca WALTER DE OLIVEIRA CAMPOS[1], a literatura jurídica brasileira ainda se norteia por postulados há muito impregnados na sociedade brasileira associando o negro aos altos índices de criminalidade, considerando “defeitos na educação e impulso ao alcoolismo”.

Tais conclusões indicam a inefetividade do aparato repressivo penal nacional quanto à consecução de objetivos direcionados à proteção de bens jurídicos e ressocialização dos infratores.

A escolha dos seguimentos sociais que serão alvos da persecução penal leva em conta a manutenção das relações de dominação social onde os critérios se formalizam em razão do extrato social a que pertence o indivíduo, situação econômica e notadamente a cor de sua pele.

Por outro lado, determinados bens jurídicos são combatidos com maior rigor do que o relativo ao crime de injúria racial, deixando evidente que o aparato repressivo estatal se posiciona como ferramenta na perpetuação da discriminação racial.

Observe-se que a reiterada insistência na abordagem de negros, principalmente na atualidade, é explícita frente à política de segurança desenvolvida de forma discriminatória em razão da importante representatividade da população negra.

No ambiente carcerário, a visibilidade é, igualmente, inconteste na condenação em processos criminais, deixando claro a importante incidência de negativas aos benefícios oriundos das ferramentas legais presentes na lei de execução penal.

Somam-se aos elementos apontados as inúmeras condenações criminais fortemente carregadas de termos manifestamente preconceituosos nos fundamentos aportados.

Os elementos apurados na estatística permitem concluir que a discriminação racial fortalece um aparato repressivo penal excludente e que atua de maneira discriminatória em razão dos negros no contexto dos processos criminais, tudo fortemente sugestionado por um ativismo judicial rigorosamente influenciado por um viés ideológico associado a um recrudescimento no combate da criminalidade regado pelo desprezo ao diferente.

Assinale-se, ainda, a capacidade presente no ambiente político, social e institucional para direcionar o manuseio exacerbado de prisões processuais, associado a relativização/banalização de direitos fundamentais conquistados duramente, de forma a impossibilitar a participação ativa da representatividade negra na formação e legitimação desses referidos direitos.

Nesse contexto, torna-se necessária demanda que objetive no delimitar ferramentas mais eficientes de enfrentamento ao racismo, seja pela revisão dos valores agregados ao largo do tempo por uma cultura escravagista, seja pela reconstrução de uma assistência jurídica presente e contínua, além de políticas públicas inclusivas.

Além disso, é importante manejar ferramentas/medidas judicialmente instrumentalizadas com o escopo de equilibrar, de forma a permitir paridade nas respostas defensivas estrategicamente desenhadas.

Como bem salienta SILVIO ALMEIDA[2]:

O mesmo uso estratégico do direito pode ser observado na luta antirracista contemporânea. Mais uma vez tomando como exemplo a experiência dos advogados e advogadas do Movimento pelos Direitos Civis, basta dizer que tiveram participação decisiva no desmonte do sistema normativo da segregação racial e nas conquistas de cidadania, tarefa na qual utilizaram dois argumentos jurídicos fundamentais: a promoção da pluralidade e da diversidade e a necessidade de reparação histórica às minorias.

Na visão de ACHILLE MBEMBE[3]:

O racismo consiste, pois, em substituir aquilo que é por algo diferente, uma realidade diferente. Além de uma deturpação do real e de um fixador de afetos, é também uma forma de distúrbio psíquico, e é por isso que o conteúdo recalcado volta à superfície.

Saliente-se que a condição de observador participante no cenário alvo da colheita dos dados, permite, sem dúvida, efetiva busca através de postura ética e científica destinada a uma melhor compreensão da discriminação racial no aparato repressivo penal utilizado intensamente como ferramenta de exclusão.

Para GILBERTO VELHO[4]:

[…] viver e conviver com os universos pesquisados, participando de suas finalidades e dramas, por períodos de tempo mais extensos, representava, de saída, um esforço para não ficar preso ao senso comum, estereótipos e preconceitos, estudando situações em que matizes, ambiguidades e contradições são características inescapáveis.

Segundo ROBERT K. YIN[5], “[…] o estudo de caso contribui, de forma inigualável, para a compreensão que temos dos fenômenos individuais, organizacionais, sociais e políticos”. Para ele “[…] o estudo de caso permite uma investigação para se preservar as características holísticas e significativas da vida real…”.

Com isso, é fundamental compreender o papel dos negros no contexto do aparato estatal repressivo, tudo norteado por amplo levantamento de dados colhidos no seguimento em questão.

Nesse contexto, é crucial avaliar o tratamento adotado em razão da representatividade negra no âmbito dos processos criminais, delimitando toda a legislação brasileira manejada, inclusive a aplicada no direito comparado.

Com efeito, na assistência jurídica em processos criminais que envolvem negros deve-se aferir maior visibilidade e participação de todos os atores envolvidos, notadamente daqueles que procedem abusivamente tangenciando comportamentos que se aperfeiçoam na Lei de Abuso de Autoridade vigente.

Nessa ordem de ideias, o manejo adequado de medidas judiciais naturalmente vai objetivar melhor visibilidade e resultado.

A rigor, a partir da individualização de metodologia envolvendo o cotejo de dados localizados no universo do cotidiano forense pretende-se efetivamente identificar como a banalização do cidadão negro consolida a sua exclusão.

Na verdade, a significância do tema vai de encontro a sua contribuição para a construção do conhecimento e sua utilidade para a prática profissional, ressaltando-se a lacuna que será preenchida.

Por isso mesmo, para a compreensão da questão, a vivência e convivência com esse universo, participando de suas dificuldades e dramas, vão identificar situações em que matizes, ambiguidades e contradições são características inescapáveis.

A constatação da discriminação racial, especialmente em face da população negra brasileira, pelo sistema de justiça criminal, demanda uma ação de toda da Universidade, principalmente a Pública, a partir do seu dever de troca de saberes e experiências com a sociedade, bem como de zelar pela promoção e igualdade social, para identificar os gargalos seletivos e atuar para a transformação do próprio sistema de justiça.

Por esse motivo, deve a Universidade contribuir com sua atuação transformadora principalmente na assistência jurídica direta em casos concretos, individuais ou coletivos, que tenham inegável conotação de discriminação racial, bem como na proposição perante os poderes do Estado (assistência jurídica indireta), de correções estruturais dos sistema de justiça, fundadas em erros judiciários concretos, desde ações de inclusão racial da população negra em posições chave do sistema de justiça a protocolos para os atores integrantes do sistema que visam identificar e afastar o denominado racismo estrutural, dentre outras necessidades identificadas no projeto de pesquisa.

 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Recentemente constata-se que o reconhecimento fotográfico feito, inicialmente, na fase inquisitorial e, sem qualquer outro elemento de corroboração pelas demais evidências agregadas no decorrer da investigação criminal, tem se prestado como ferramenta odiosa a justificar a incidência açodada de medidas cautelares encarceratórias grosseiramente decretadas ou determinadas.

É de observar que parcela da prática irresponsável dessa ferramenta tem origem na frágil visibilidade que o tema se coloca, principalmente porque a clientela real desse instrumento duvidoso é composta por negros.

Além disso, assevere-se que é possível ainda colher do acervo jurisprudencial do STF a compreensão de que o cumprimento do procedimento para o reconhecimento delimitado no artigo 226 do CPP é facultativo, de forma que o não atendimento às formalidades nele previstas não é suficiente, per se, para gerar a nulidade do ato, exigindo-se a comprovação do prejuízo causado por essa “irregularidade”[6].

Assinale-se que essa ferramenta fortemente carreada pelo inconteste apelo discriminatório e incriminatório sempre se reveste de irregularidades compostas pela ausência do nome do reconhecedor, no auto é informado que a vítima descreveu os sinais característicos da pessoa reconhecida e, no entanto, não há referência a quais sinais característicos seriam esses, não há menção ainda, ao fato de que, após a descrição dessas características, o reconhecedor teria sido encaminhado para um local onde se encontravam várias pessoas[7], para se proceder a formalidade que o momento impõe.

Por isso, cabe finalizar louvando-se a mudança radical de paradigma adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, a partir do habeas corpus nº 598.886 – SC  (2020/0179682-3) – Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz – 6ª Turma – STJ, quando norteado por linguagem fortemente carreada de interdisciplinaridade, o prestigiado julgado consolidou que o reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase inquisitorial será apenas apto para identificar o réu e fixar a autoria delitiva quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando consubstanciado por outras provas colhidas na fase judicial, sob a batuta do contraditório e da ampla defesa.

Para o Julgador, em consonância aos estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações que ao longo do tempo pode se fragmentar, tornando-se inacessível para a reconstrução do fato. Por isso, o valor probatório do reconhecimento possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletério e muitas vezes irreversíveis.

Disse também, o reconhecimento de pessoa por meio fotográfico é ainda mais problemático, máxime quando se realiza por simples exibição ao reconhecedor de fotos do conjecturado suspeito extraídas de álbuns policiais ou de redes sociais, já previamente selecionadas pela autoridade policial.

Tal modificação representa novo viés de entendimento dos Tribunais na compreensão dessa tenebrosa questão de cunho preconceituoso em razão das nefastas consequências da atipicidade procedimental do ato de reconhecimento formal de pessoas.

Sem dúvida, o processo penal para negros deve-se revestir de um formato efetivamente garantista eivado de garantias constitucionais arduamente conquistadas e que também clama por presença na vida dessa fundamental parcela de brasileiros.

  1. BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019;

CAMPOS, Walter de Oliveira. A Discriminação do Negro no Sistema Penal: Poder Judiciário e Ideologia. Dissertação de Mestrado. Jacarezinho (PR), 2009. Disponível em 07/10/2021 em: https://uenp.edu.br/pos-direito-teses-dissertacoes-defendidas/direito-dissertacoes/1911-walter-de-oliveira-campos/file.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra.3ª ed. São Paulo: N-1, 2019;

habeas corpus, nº 630.949 – SP – Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz – Sexta Turma – j. 23/03/2021, dje 29/03/2021.

IBCCRIM, Boletim, n° 343 p. 31-32.

WHYTE, William Foote. Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005;

YIN, Robert k. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2001.

Notas:

[1] CAMPOS, Walter de Oliveira. A Discriminação do Negro no Sistema Penal: Poder Judiciário e Ideologia. Dissertação de Mestrado. Jacarezinho (PR), 2009. Disponível em 07/10/2021 em: https://uenp.edu.br/pos-direito-teses-dissertacoes-defendidas/direito-dissertacoes/1911-walter-de-oliveira-campos/file.

[2] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019, p. 150.

[3] MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. 3ª ed. São Paulo: N-1, 2019, p. 69.

[4] Apresentação da edição brasileira do livro “Sociedade de esquina” de WILLIAN FOOTE WYTE. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 13.

[5] YIN, Robert k. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2001, p. 21.

[6] Comentário realizado no caderno de jurisprudência junho de 2021 – Boletim IBCCCRM N° 343 p. 31-32.

[7] Ementa do habeas corpus nº 630.949 SP – Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz – Sexta Turma – j. 23/03/2021, dje 29/03/2021.

Palavras Chaves

processo penal, racismo, decolonial, reconhecimento fotográfico.