REFLEXÕES ACERCA DA IMPORTUNAÇÃO SEXUAL CONTRA MULHERES EM TRANSPORTES PÚBLICOS NO CONTEXTO BRASILEIRO

Resumo

O presente estudo tem como temática a reflexão acerca da importunação sexual
contra mulheres em transportes públicos no contexto brasileiro. Possui o objetivo de analisar
o surgimento da violência sobre o corpo feminino e como a legislação brasileira se comporta
diante de tal violência. A metodologia utilizada se deu através de uma pesquisa bibliográfica e
documental, de caráter explicativo e qualitativo. Os resultados apontaram que a mulher
historicamente passa por diversos tipos de violências direcionadas ao seu corpo, que acabam
por reverberar diretamente em sua esfera sexual, prejudicando por conseguinte seu integral
exercício, concluindo também que a legislação pertinente não satisfaz de forma plena a
demanda da importunação sexual, visto que, dentro do respectivo tipo penal incriminador há
brechas para existir a benevolência para com o infrator, incidindo em um aumento do
sentimento de impunidade perante a sociedade e contribuindo negativamente para o processo
de vitimização experimentado pela vítima, bem como, trazendo à tona a importância da
criação, aplicação e disseminação das Políticas Públicas que abarcam o tema. Desse modo,
observou-se que o tema precisa ser tratado de forma multifatorial para que se busque um
ambiente menos desigual e violento com as mulheres, para que dessa maneira, se busque
viabilizar a satisfação dos direitos garantidos a todas as mulheres.

Artigo

REFLEXÕES ACERCA DA IMPORTUNAÇÃO SEXUAL CONTRA MULHERES EM TRANSPORTES PÚBLICOS NO CONTEXTO BRASILEIRO

Lívia Grecy Calado Lanate.

RESUMO: O presente estudo tem como temática a reflexão acerca da importunação sexual contra mulheres em transportes públicos no contexto brasileiro. Possui o objetivo de analisar o surgimento da violência sobre o corpo feminino e como a legislação brasileira se comporta diante de tal violência. A metodologia utilizada se deu através de uma pesquisa bibliográfica e documental, de caráter explicativo e qualitativo. Os resultados apontaram que a mulher historicamente passa por diversos tipos de violências direcionadas ao seu corpo, que acabam por reverberar diretamente em sua esfera sexual, prejudicando por conseguinte seu integral exercício, concluindo também que a legislação pertinente não satisfaz de forma plena a demanda da importunação sexual, visto que, dentro do respectivo tipo penal incriminador há brechas para existir a benevolência para com o infrator, incidindo em um aumento do sentimento de impunidade perante a sociedade e contribuindo negativamente para o processo de vitimização experimentado pela vítima, bem como, trazendo à tona a importância da criação, aplicação e disseminação das Políticas Públicas que abarcam o tema. Desse modo, observou-se que o tema precisa ser tratado de forma multifatorial para que se busque um ambiente menos desigual e violento com as mulheres, para que dessa maneira, se busque viabilizar a satisfação dos direitos garantidos a todas as mulheres.

Palavras-chave: Importunação Sexual; Transporte Público; Dignidade sexual; Mulheres.

INTRODUÇÃO

Com o natural decorrer do progresso humano e com a ascensão do reconhecimento dos Direitos Humanos, houve uma grande movimentação no sentido de proteger os direitos das minorias que sofriam com um ambiente de segregação e negativa de direitos. No que se refere a essa tutela de direitos, as mulheres passaram a ser contempladas por essa defesa, buscando assim, diminuir a gritante subjugação e hostilização contra as mesmas, que reverbera em toda sua experiência de vivência em sociedade, seja na esfera laboral, pessoal, bem como, em cima de seu exercício sexual.

Nessa perspectiva, através da histórica dominação do gênero masculino em detrimento do gênero feminino, há diversos reflexos negativos que repercutem diretamente no corpo feminino (SAFFIOTI, 2001). Nessa métrica, surge a importunação sexual contra mulheres em ambientes públicos, principalmente em transportes coletivos, visto que, o determinado local diante da fatídica realidade brasileira, se torna propício para a prática infracional, visto às questões sociais/governamentais que esbarram na realidade dos transportes públicos brasileiros (ASSUNÇÃO, 2023).

Assim, a importunação sexual contra mulheres em transportes públicos constitui uma evidente e grave violação não só da liberdade da vítima, bem como, de sua dignidade sexual. E nessa perspectiva, a busca pela efetiva tutela do tema perante a legislação brasileira se faz necessária, bem como, o suporte multidisciplinar exercido pelos órgãos públicos (BITENCOURT, 2022). Nesse sentido, o estudo acerca desse tema se mostra de alta relevância, não apenas pelo caráter de defesa dos direitos básicos inerentes a todo ser humano, expressados através da honra, liberdade, segurança e saúde, entre vários outros, mas também pelo grande apelo social em cima da busca de formas de enfrentar de forma eficaz a violência sexual contra a mulher. Dessa forma, a pesquisa contribui como meio de elucidação mais aprofundada e técnica da respectiva temática, constituindo meio de reflexão e debate sobre o tema.

Diante do exposto, o objetivo do estudo é verificar de onde nasce o ímpeto de violência contra a mulher, em especial perante seu corpo, e ainda, analisar como se porta o Estado brasileiro através de sua legislação geral e específica diante de tais violações de direitos. Trazendo considerações sobre como o instituto da impunidade atua nos casos concretos de violação da dignidade sexual e como o processo de vitimização é mais doloroso nos crimes dessa natureza.

Para tanto, o estudo se deu através de uma pesquisa bibliográfica e documental, com abordagem explicativa e qualitativa. Em busca de realizar da melhor forma a elucidação do tema, se iniciou o trabalho através da explicação do corpo feminino diante do imaginário social, seguindo a exposição do apanhado de diplomas legais internacionais e nacionais que abarcam a temática, seguindo essa métrica, partiu-se para a análise do tipo penal específico da importunação sexual e por fim, foram feitas considerações sobre como a impunidade e o processo de vitimização incidem sobre o tema.

 

  1. O IMAGINÁRIO SOCIAL: O CORPO FEMININO COMO DOMÍNIO PÚBLICO

 

À luz dos ensinamentos de Izquierdo (1992), a concepção de gênero parte essencialmente de uma construção sociocultural, onde a manifestação da existência dos respectivos gêneros perante a sociedade reproduz preceitos equivocados que se baseiam no sexo, ou seja, aos sexos é designado um modelo de comportamento. Desse modo, a instituição de gênero traz à tona uma divisão desigual de responsabilidades em face da vivência individual de cada pessoa.

Nesse sentido, há o ambiente propício para a hierarquização do gênero, onde ocorre o enaltecimento do gênero masculino em detrimento do gênero feminino. Tal divisão surge do imaginário social sexista que compreende a figura feminina, tanto na esfera física quanto na mental, como seres indefesos e frágeis (XAVIER, 2021). Tais pensamentos se materializam até mesmo no campo da linguagem, através da expressão sexo frágil, que através de decorrência lógica leva o interlocutor a pressupor que a figura masculina, portanto, é o sexo forte.

De tal modo, através da normalização da subjugação da mulher, se prolifera o discurso machista que atua como agente legitimador da violência de gênero. Pois incute no inconsciente coletivo uma visão estereotipada da mulher como uma figura fraca, a colocando assim numa posição inferiorizada perante a evidente dominação masculina, onde por vezes é endossado a mesma ser alvo de violência (XAVIER, 2021).

A partir dessa ótica de inferiorização, não é raro se deparar com fóruns e/ou comunidades no ambiente virtual que promovem indiscriminadamente pensamentos misóginos e patriarcais, muitas vezes camuflados de coaches da masculinidade, onde é disseminado ao público a ideia da mulher como um ser vil, manipulador e sem valor. Nesse sentido:

Os homens querem que as mulheres sejam objetos, controláveis como objetos são controláveis. As mulheres que se desviam da definição masculina são monstruosas, putas, depravadas. Como todas as mulheres se desviam até certo ponto, todas as mulheres são vistas, até certo ponto, como monstruosas, putas, depravadas, com apetites que, se soltas, engoliram o homem. (DWORKIN, 2022, p. 80).

Em decorrência desse cenário, tais preceitos machistas e sexistas acabam por incidir diretamente sobre o corpo da mulher, visto que, a partir do momento que a mesma é lida como sem valor, automaticamente o seu corpo é banalizado. Historicamente o corpo feminino é hostilizado, seja pela jovem que não é mais tida como digna para contrair matrimônio pois perdeu sua virtude (lê-se, virgindade), seja a mulher assassinada por seu cônjuge em decorrência da legítima defesa da honra, bem como, entre outros exemplos, a disseminação da pornografia que tem suas raízes fincadas na prostituição.

Tal banalização tem como produto a objetificação do corpo feminino, onde homens concluem e agem como se o corpo feminino fosse de domínio público. Tal fenômeno se explica pela histórica dominação masculina sobre a mulher, onde Saffioti (2001) traz à baila da discussão o chamado projeto de dominação-exploração, sistema este que nasce do poderio masculino, que através de premissas patriarcais e sexistas incutidas na sociedade como um todo, a mulher é colocada num papel onde suas ações são previamente estipuladas/controladas e seu corpo explorado.

A autora, dentre várias outras ponderações importantes, ainda traz à tona que a ordem patriarcal de gênero não sobrevive apenas com a figura do homem como agente disseminador da dominação-exploração. Por tais preceitos já estarem totalmente arraigados na sociedade, as próprias mulheres, muitas vezes, também corroboram para a sobrevivência desse projeto, onde além de serem oprimidas pela respectiva violência, ainda atuam como propagadoras de tal, revelando assim, uma das faces mais cruéis do patriarcado e sexismo (SAFFIOTI, 2001).

Nesse sentido, a exploração da mulher, em especial de seu corpo, é um fator elementar para o processo de objetificação da mesma. A partir da ótica desse fenômeno, homens tratam o corpo feminino como um objeto a ser explorado indiscriminadamente para a satisfação de seus desejos e prazeres mais primitivos, e nessa perspectiva, acaba por ocorrer diversos desdobramentos, como, a cultura do estupro e o silenciamento de mulheres, que após sofrerem alguma violência não são ouvidas ou amparadas, apenas silenciadas.

Dentro do contexto brasileiro, a violação sexual do corpo feminino é algo tão recorrente que ao longo dos anos começou a se utilizar o termo cultura do estupro, termo estadunidense que teve sua origem dentro do movimento feminista, que vem a se caracterizar pelo endosso e tolerância do corpo social perante a violência sexual cometida contra uma mulher (CAMPOS et al, 2017). Seguindo essa linha de pensamento, Dworkin (2022, p. 41) assevera que “A arrogância masculina de que as mulheres têm poder sexual (causar ereções) convenientemente protege os homens da responsabilidade pelas consequências de seus atos […] Culpa implacável – “você me provocou” – é usado para incentivar o silêncio individual e social […]”.
Dessa maneira, a mulher além de ter seu corpo objetificado e por isso, violentado a caráter sexual, ainda precisa encarar o silenciamento compulsório, onde muitas vezes sua palavra é posta à prova e violência sofrida é minimizada através do uso do pensamento patriarcal. Diante de todas essas nuances sociais, nasce a tutela por parte do Direito, buscando assim salvaguardar os direitos da mulher dentro desse cenário.

 

  1. OS DIPLOMAS LEGAIS QUE ABARCAM A TEMÁTICA DA VIOLAÇÃO DA DIGNIDADE SEXUAL

O delito da importunação sexual parte de uma violação multifatorial, nesse sentido, a vítima vem a experimentar a violência em diversas esferas de sua vida, prejudicando não só a sua liberdade sexual, como também, a sua honra, privacidade, entre outras consequências. Dessa maneira, o presente estudo objetiva realizar um apanhado dos diplomas legais que abarcam os Direitos violados através da importunação sexual, começando de uma identificação do macro para o micro.

A luz do marco histórico do reconhecimento dos Direitos Humanos após a 2° Guerra Mundial, se torna tecnicamente impossível que qualquer alteração ou chegada legislativa nacional não carregue as marcas de tal marco que reestruturou a forma de compreender o Direito. À vista disso, o ponto de partida de tais mudanças parte do cenário internacional público, com a promulgação da Carta das Nações Unidas de 1945 e posteriormente em 1948, com a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), cartas estas que sofreram o processo de internalização[2] pelo Estado Brasileiro, objetivando assim, a proteção dos Direitos inerentes a todo ser humano.

Posteriormente, ainda sob a ótica internacional mas seguindo para o nicho de Direitos da mulher, em 1979, através de aprovação pela Organização das Nações Unidas (ONU), foi promulgada a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), que foi ratificada pelo Brasil em 1984, ocupando a posição de primeiro documento internacional totalmente voltado a abordar sobre os direitos da mulher.

Tal documento, já em seu preâmbulo prevê a importância do princípio da não-discriminação, ressaltando ainda que a discriminação contra a mulher não viola apenas a sua dignidade, vindo a atuar também como impulsionador da exclusão da mesma em todas as esferas de participação em sociedade. Nesse sentido, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher de 1994, conhecida como Convenção de Belém do Pará, internalizada em 1996, em seu art. 1° alude que toda conduta, baseada no gênero, que resulte em morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher será entendido como violência contra a mesma.

Ainda no que tange aos dispositivos aludidos na Convenção de Belém do Pará, o seu art. 3°, preconiza que toda mulher tem o direito a ter uma vida sem violência, já no art. 4°, alínea b e c, é disposto que toda mulher é detentora do direito ao respeito e proteção de sua integridade física, mental e moral, sendo assegurado ainda o exercício pleno de sua liberdade e segurança pessoal. Em conformidade a tais mandamentos, em 1997, no III Congresso Mundial de Sexologia, vem a Declaração dos Direitos Sexuais, que em seu preâmbulo já elucida que os Direitos sexuais fazem parte dos Direitos Humanos, elencando ainda que tal direito se baseia nos pilares da liberdade, dignidade e igualdade, incluindo ainda a esse rol de garantias o compromisso que deve ser estabelecido em prol da proteção contra danos nessa esfera (ESPANHA, 1997).

De outro giro, já no cenário nacional, se tem inicialmente a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), que em seu art. 1°, inciso III, dispõe que a dignidade da pessoa humana constitui como um dos fundamentos da República. Já em seu art. 3°, inciso IV, elucida que um dos objetivos centrais da República é, para além de promover o bem de todos, garantir ainda uma vida sem preconceitos e discriminações de qualquer natureza. Posteriormente no art. 5°, caput e inciso I, assevera de forma clara que todas as pessoas são iguais perante a lei, se desdobrando ainda concisamente que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Ainda no mesmo artigo, no inciso X, alude que a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem são invioláveis, sendo passível a indenização por dano moral ou material quando ocorrer a violação dos mesmos (BRASIL, 1988).

Quando a temática está no campo dos Direitos da mulher, se torna tecnicamente impossível não mencionar a Lei Maria da Penha, Lei n° 11.340 de 2006. A referida lei constitui marco histórico no ordenamento brasileiro, visto que, foi a primeira lei a tipificar sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher, pauta esta que é de extrema relevância dentro do cenário brasileiro. Além de todas as disposições trazidas pela lei supracitada, é importante salientar em especial o art. 7°, que vem a versar sobre todas as formas de manifestação de violência contra a mulher, distribuindo em seus V (cinco) incisos a forma de violência e sua definição, sendo elas: a física, a psicológica, sexual, patrimonial e moral (BRASIL, 2006).

Diante desse apanhado de regramentos que enfrentam de forma multifatorial o delito da importunação sexual, percebe-se que há por parte do Estado brasileiro uma preocupação no que tange ao tratamento do crime mencionado. Visto que, a partir do momento que este se torna signatário de diversos diplomas legais que versam sobre a temática e em conjunto a isso promulga uma Constituição cidadã que busca enfrentar diretamente tais temas, nasce a obrigatoriedade por parte do mesmo de fazer valer tais direitos e garantias.

Contudo, tal preocupação se atém quase que unicamente ao campo teórico, desse modo, enfrentando grandes dificuldades quando se trata de trazer tais mandamentos para o plano da concretude, sendo exemplo de tal dificuldade a própria infundada demora na edição da lei que tipifica o crime de importunação sexual. Apenas em 2018, foi editada a Lei n° 13.718, que além de outras eventuais alterações, tipifica o crime de importunação sexual e o crime de exposição pornográfica não consensual (BRASIL, 2018).

Com o advento da referida lei, casos de importunação sexual em ambientes públicos, em especial, em transportes públicos, passaram a ser amparados juridicamente. Nessa ótica, as vítimas que antes padeciam não só com a violência sofrida, como também, com descaso estatal perante essa realidade, com a edição da lei, passam a ter um respaldo jurisdicional perante seus casos concretos. Por outro prisma, já na seara cível, com base no art. 5°, inciso X, da CRFB, concorrentemente com, art. 12, do Código Civil, é passível que a vítima busque uma justa reparação pelos danos causados a sua personalidade, danos estes entendidos como todos aqueles que venham a ferir a intimidade, a imagem, a honra e a privacidade de uma pessoa.

Nessa perspectiva, a jurisprudência cível opera no sentido de reiterar o direito da vítima a indenização por danos morais advindos da violação aos direitos de personalidade da vítima, como explicita a seguir:

 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. VÍTIMA QUE SOFREU IMPORTUNAÇÃO SEXUAL DENTRO DO METRÔ. COMPROVAÇÃO DE AUTORIA, DANO, CULPA E NEXO DE CAUSALIDADE. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. 1. A conduta criminosa do réu, ao ejacular na apelada, com o objetivo de satisfazer sua própria lascívia, deve ser objeto de pronta reprimenda do Poder Judiciário, bem como da sociedade, como forma de tutelar e inibir à reiteração de assédios sofridos por mulheres, sobretudo nos meios de transporte coletivo, e como forma de protegê-las contra atos não consentidos. 2. Recurso não provido. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n° 0014248-60.2019.8.19.0208. Relator: Des. Plinio Pinto Coelho Filho. Rio de Janeiro, 23/09/2021 – Décima Segunda Câmara de Direito Privado, antiga 14ª Câmara Cível. Disponível em: https://www3.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=2020.001.56617)

No caso concreto acima demonstrado, o apelante já havia sido condenado ao pagamento de indenização por danos morais por ter ejaculado na apelada dentro de transporte coletivo e optou por interpor apelação, buscando através do recurso mudar a sentença, contudo, foi mantida a sentença formulada em 1° instância. Dessa forma, a jurisprudência resguarda o direito de parcial reparação do dano sofrido pelas vítimas de importunação sexual.

À vista de todos os regramentos internacionais e nacionais mencionados ao longo do tópico, percebe-se que há uma estrutura densa de normas e princípios que visam proteger a mulher que, porventura, venha a sofrer violência de caráter sexual, bem como, qualquer outro tipo de violência. Seguindo esse caminho do macro para o micro, será abordado no próximo tópico o art. 215-A, do Código Penal, dispositivo específico que criminaliza a importunação sexual.

  1. O CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL: ANÁLISE DO ART. 215-A DO CÓDIGO PENAL

A partir da criação do tipo penal de importunação sexual, o legislador buscou tutelar não só a dignidade sexual dos indivíduos, em especial a liberdade sexual, como também, a honra, a intimidade e a paz pública. Muito se explica a busca dessa proteção pois, como mencionado no tópico anterior, a importunação sexual constitui um delito que atravessa a vítima de forma multifatorial e que por conta de suas circunstâncias que fere o pudor, acabam por afetar a sociedade num todo.

Por conta da demasiada demora na criação do tipo e diante da desmedida importunação, principalmente contra mulheres em locais públicos, se utilizava para enquadrar os infratores ao tipo penal do ato obsceno, descrito no art. 233, do Código Penal (CP). Tal enquadramento que tem como elementar a prática do ato obsceno em local público, visando assim, a proteção da coletividade, se mostra como um tipo totalmente desadequado e desproporcional frente a importunação sexual contra alguém determinado (BITENCOURT, 2022).

No ano de 2018 essa realidade veio a mudar, com a edição da Lei n° 13.718, que incluiu ao CP o art. 215-A, que torna a importunação sexual como crime (BRASIL, 2018). Desse modo, mesmo com a flagrante mora frente a realidade fática, o legislador acertou ao atender a  determinada demanda social, saindo do plano teórico e trazendo para o plano concreto os Direitos e garantias instituídas na Magna Carta brasileira. Contudo, o legislador erra em diversas questões na construção do tipo que acabam por afetar diretamente a sua eficácia e aplicabilidade e nesse sentido, o presente estudo visa analisar o tipo penal de forma não exaustiva, focando apenas nos pontos principais.

A princípio, a primeira questão que chama a atenção é a preferência pela utilização da locução “contra alguém”, ao invés de, “na presença de alguém”, dessa forma, apenas abarcando como crime de importunação aqueles atos que forem contra pessoa determinada, excluindo portanto, várias possibilidades de condutas que são praticadas na presença da vítima, que muitas vezes sequer é estabelecido um contato físico com a mesma (BITENCOURT, 2022).

Nesse tocante, à luz do princípio da proporcionalidade, princípio este que assevera que a punição deve ser proporcional à infração cometida, o legislador inicialmente acerta ao determinar a pena de reclusão, visto que, de acordo com o caput do art. 33, do CP, às penas de reclusão admitem seu cumprimento em regime fechado, todavia, erra de forma gravosa quando comina a pena em 1 (um) a 5 (cinco) anos, pois com essa escolha o legislador coloca a cominação do tipo no patamar da alternatividade.

Tal alternatividade se constitui pois, de acordo com o art. 33, §2°, alínea “b” e “c”, do CP, o agente que for condenado em pena superior a 4 (quatro) e não maior que 8 (oito) anos, que não seja reincidente, poderá iniciar o cumprimento de sua pena em regime semiaberto e, aquele que também não for reincidente e receber sua pena igual ou inferior a 4 (quatro) anos poderá iniciar o cumprimento em regime aberto. Ou seja, todos os agentes que não forem reincidentes, serão contemplados por tais normas (BRASIL, 1948).

Nessa mesma linha de pensamento, o art. 44, inciso I, do CP, dispõe que os crimes que não forem cometidos com violência e grave ameaça e não tiverem a pena superior a 4 (quatro) anos, poderão ser substituídos pelas penas restritivas de direitos. Dessa forma, o preceito secundário do delito de importunação perde, de certa forma, sua essência e não atende ao princípio da proporcionalidade, pois não pune o importunador de maneira proporcional a violência por ele cometida.

No que tange a questão das circunstâncias em que se deu o crime, o dispositivo em nenhum momento remete a circunstância de grave ameaça que muitas vezes constitui o delito por si só. De acordo com Foureaux (2020), para se analisar a existência da grave ameaça no caso concreto, é necessário verificar três aspectos: de quem parte a ameaça proferida; quem sofre a respectiva ameaça e por fim, quais as circunstâncias que ocorreram a ameaça. A partir dos casos de importunação sexual contra mulheres em transportes públicos há diversas condicionantes a serem pontuadas, como será exposto a seguir:

 

Quadro 1 – Aspectos relevantes da grave ameaça

 

Aspectos gerais da grave ameaça em casos de importunação sexual contra mulheres em transportes públicos

 

Quem pratica a ameaça

 

a) Em sua maioria são homens;

b) Muitas vezes, mesmo sem sequer tocar a vítima, apenas pelo olhar e/ou gestos já colocam a vítima em um estado de temor consideravelmente acentuado.

 

Quem sofre a ameaça

 

a) Em sua maioria são mulheres;

b) Por estarem em um transporte coletivo, acreditam estar minimamente seguras e por isso se permitem descansar ou acabam por se distrair durante a viagem.

 

Circunstâncias em que ocorre a ameaça

 

a) O importunador se beneficia das perspectivas sociais patriarcais benéficas para a realização do ato, como, a evidente dominação masculina frente a mulher e a cultura do estupro, onde o corpo feminino figura como um objeto que pode ser tocado indiscriminadamente;

b) Os infratores se beneficiam também das circunstâncias do transporte coletivo, se está vazio, a vítima se sente tão amedrontada a ponto de não conseguir reagir, se está cheio, a vítima também não consegue fugir da situação pois pela quantidade numerosa de pessoas os infratores alegam que a apalpada/encochada foi sem querer.

c) Por ser um delito que viola a esfera íntima da vítima e por estarem tomadas pelo fator surpresa ou pelo intenso temor gerado pela iminência do crime, as mesmas muitas vezes se sentem envergonhadas e por isso, assumem uma postura passiva diante da violência, entrando em um estado de choque.

Outros fatores específicos a serem analisados através de cada caso concreto
a) Questões físicas do agente e da vítima;

b) Como ocorreu a abordagem;

c) Se o transporte estava vazio ou cheio;

d) Se o agente se utilizou de algum mecanismo para tornar sua ameaça mais convincente e diminuir a resistência da vítima, exemplo: mãos escondidas por debaixo da blusa dando a entender que está com posse de algo que pode vir a ferir a vítima;

e) entre outras circunstâncias específicas de cada caso concreto.

Fonte: Elaborado pela autora (2023).

Diante dos esclarecimentos demonstrados no quadro acima, é possível perceber que em muitos casos o crime revela o emprego da grave ameaça. Desse modo, o legislador perdeu a oportunidade de criar um aumento de pena para os casos que se amoldam a configuração da grave ameaça, que vem a ser definido por Bitencourt (2022, p. 306) como:

Constitui forma típica da “violência moral”, é a vis compulsiva, que exerce uma força intimidativa, inibitória, anulando ou minando a vontade e o querer do ofendido […] A violência moral pode materializar-se em gestos, palavras, atos, escritos ou qualquer outro meio simbólico. […]

Ainda nessa perspectiva, de acordo com Cohen e Figaro (1996), os indivíduos que cometem crimes sexuais, muitas vezes, são detentores de alguma parafilia, que são compreendidas como transtornos de preferência sexual. Os autores apontam ainda que os indivíduos parafílicos são, em sua maioria, os responsáveis pelos crimes sexuais repetitivos e nesse sentido asseveram:

[…] os indivíduos portadores de uma parafilia se caracterizam por possuírem uma personalidade sexualmente imatura, por terem pensamentos compulsivos e por executarem atos sexualmente agressivos que podem ou não envolver contato físico com o outro, tendo mais chances de repetirem um delito sexual justamente pela presença de pensamentos compulsivos. […]. (COHEN; FIGARO, 1996, p. 154)

Dessa maneira, há o entendimento de que são pessoas que estão propensas a praticarem o delito reiteradas vezes e por isso, enquanto não for instituído um tratamento eficaz nos mesmos, tais indivíduos não irão conseguir manter uma vivência harmônica em sociedade, tal fator parafílico, combinado ainda com uma cultura machista em que há a promoção da satisfação de humilhar e subjugar a mulher, se torna realidade suficiente para que esses determinados agentes não sejam detentores do patamar de alternatividade. Nessa ótica, já existe jurisprudência no sentido de entender tal infrator como pessoa inapta para o convívio em social:

 

HABEAS CORPUS. ART. 215-A DO CP. IMPORTUNAÇÃO SEXUAL PRATICADA NO INTERIOR DE COLETIVO. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA. GRAVIDADE DA CONDUTA E PERICULOSIDADE DO PACIENTE. Custódia que se mostra necessária para a garantia da ordem pública, diante da conduta praticada pelo paciente, consistente em importunação sexual, dentro de um veículo de transporte urbano ¿ ônibus ¿ tendo o paciente se debruçado sobre a vítima, com a calça aberta, revelando sua cueca, enquanto esta dormia no coletivo, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia. O risco à ordem pública não foi reconhecido só pela gravidade do fato denunciado contra esta vítima, mas também por reiteradas condutas semelhantes praticadas pelo paciente no interior do coletivo contra diversas outras pessoas, pois inicialmente segurou a cintura de outra passageira, tendo em seguida importunado outro passageiro e após deitado por sobre a vítima. O paciente mostra-se como pessoa inadaptada ao meio social, já que não consegue conter sua lascívia. Sua conduta contra diversos passageiros dentro de um coletivo, de forma pública, demonstra risco efetivo de reiteração caso concedida a liberdade provisória. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Habeas-corpus n° 0042638-82.2019.8.19.0000. Relator: Des(a). Antonio Carlos Nascimento Amado. Rio de Janeiro, 03/09/2019 – Terceira Câmara Criminal.)

Diante disso, se faz necessário não só o afastamento desses infratores do convívio social, como também, a disponibilidade de tratamento médico para que os mesmos voltem a se tornar aptos para a vida em sociedade. É de suma importância a compreensão e resolução de caráter multifatorial dessa demanda, tanto na ótica da vítima, como na do infrator, o legislador perde a oportunidade de criar um tipo penal que realmente gerasse uma punição efetiva e desse modo, não causasse o sentimento de impunidade perante a vítima e a sociedade.

Nessa linha de pensamento, também deixou de ser valorado pelo legislador a questão do tratamento médico necessário para as pessoas que cometem o respectivo crime, não sendo eficaz apenas o encarceramento desse infrator, visto que, como elucidado, o importunador vem a padecer da compulsividade e portanto, sem a realização do tratamento necessário, o mesmo irá reiteradamente realizar atos libidinosos para satisfazer a própria lascívia. Por tais omissões durante a valoração do tema por parte do legislativo, o tipo penal de importunação sexual acaba por enfrentar diversos pontos que prejudicam sua eficácia e aplicabilidade. Por isso, muitas vezes o fato não chega nem ao conhecimento da autoridade policial, reforçando mais ainda a sensação de impunidade e o processo de vitimização, pontos que serão abordados no próximo tópico.

  1. A IMPUNIDADE COMO ESTIMULANTE DA PRÁTICA DELITUOSA E O PROCESSO DE VITIMIZAÇÃO

A impunidade, instituto mencionado algumas vezes ao longo do presente estudo, é conceituado como:

Impunidade significa falta de castigo. Do ponto de vista estritamente jurídico, impunidade é a não aplicação de determinada pena criminal a determinado caso concreto. […] Do ponto de vista político, o significado é mais amplo. Fala-se em impunidade […] quando a própria lei e/ou magistrado que a aplica são considerados benevolentes para com determinado ato criminoso. (FILHO, 2004. p. 181).

Contudo, nem sempre a impunidade irá se manifestar através da literal não aplicação da pena criminal ou pela benevolência da lei/magistrado para com o infrator, muitas vezes a impunidade parte de outras brechas e/ou aspectos sociais. No que se refere ao próprio dispositivo que tutela a importunação sexual, a sensação de impunidade não surge pela ausência de pena e sim, pela maneira que o legislador escolheu trabalhar a temática, tanto nas escolhas das palavras do dispositivo até a escolha em relação a punição, conforme trabalhado no tópico anterior.

Seguindo essa linha de pensamento, quando se parte para a esfera da complacência perante a infração cometida, é necessário a observância da respectiva temática perante a sociedade. Quando o assunto se trata de violação da dignidade sexual no contexto brasileiro, a expressão do patriarcado, sexismo e misoginia se tornam determinantes para a ocorrência desenfreada do delito e se reproduzem em todas as esferas da vida da mulher, em especial, na esfera sexual.

Nesse tocante, o quadro a seguir demonstra o levantamento feito em 2022, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), sobre casos de estupro no Brasil:

 

 

Figura 1 – Levantamento de casos de estupro no Brasil

Fonte: DIEST/Ipea (2022).

Tais números, que se consideram alarmantes, muito se explicam pela ausência de suporte do Estado diante dessa realidade, ou seja, a falta do ensino de educação sexual, ausência de políticas públicas voltadas para a temática, bem como, o silenciamento das vítimas, colaboram para um cenário de normalização do estupro e criam um ambiente propício para a impunidade, que resulta diretamente na acentuação do processo de vitimização. O estupro configura a esfera máxima de violação da dignidade sexual, mas tais influências e fatores se estendem a outros crimes que ferem a dignidade sexual, inclusive o delito foco do presente estudo.
No que se refere a educação sexual, muitas meninas/mulheres sofrem uma violência sexual e nem sequer tem noção de que estão sofrendo um abuso. A aplicação desse ensino atuaria fortemente em duas frentes: ensinando mulheres a entenderem seus respectivos corpos, absorvendo os limites do que é permitido ou não perante seu corpo e ensinando homens a também entenderem seus corpos e acima de tudo, respeitar os corpos alheios, já que os mesmos diante da cultura patriarcal e sexista brasileira, aprendem desde muito novos a banalizar o corpo feminino.

Partindo para o cenário das Políticas  Públicas, há algumas medidas que já são adotadas pelo Poder Público que, mesmo ainda muito pequenas diante dos números, já corroboram para o enfrentamento da violência contra a dignidade sexual. Em primeiro momento, é importante mencionar a caráter nacional, a Lei n° 10.714 de agosto de 2003, que veio a ser implementada no ano de 2005, lei esta que regula a criação da Central de Atendimento à Mulher, uma linha telefônica destinada unicamente a receber denúncias de qualquer tipo de violência contra a mulher, composto por apenas três números (180) e dispondo ainda, a total gratuidade no serviço telefônico (BRASIL, 2005).

Já seguindo para o cenário Estadual e Municipal do Estado do Rio de Janeiro, existe a iniciativa por parte da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), que através de sua Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, criou a Sala Lilás, sala 2320, onde é prestado atendimento especializado às mulheres vítimas de qualquer tipo de violência, contando ainda com o número 0800-282-0119, conhecido como o SOS Mulher, que além de promover o acolhimento da vítima, oferece ainda serviço jurídico para as mesmas.

Na esfera municipal, com foco em casos de importunação e assédio sexual, existe a Lei n° 6.415 de 2018, de autoria da vereadora Marielle Franco. Tal lei prevê a criação de uma campanha de caráter permanente em prol da conscientização e enfrentamento da violência sexual no âmbito do município do Rio de Janeiro, tendo como um do objetivos principais o enfrentamento da violência sexual nos ambientes públicos e transportes coletivos, através da divulgação das informações sobre a temática; disponibilização de telefones para denúncia e acolhimento da vítima; disseminação de programas educacionais; criação de cartilhas; formação dos servidores e prestadores de serviço, entre outros meios (RIO DE JANEIRO, 2018).

Posteriormente, foi criada a Lei n° 7.269 de 2022, de autoria dos vereadores Veronica Costa, Eliel do Carmo e Teresa Bergher. A referida lei cria um programa de combate voltado para assédio (importunação) sexual em transportes públicos no município do Rio de Janeiro, onde objetiva a criação de campanhas educativas para incentivar a denúncia, a disseminação dos altos números de importunação dentro de transportes coletivos, bem como, a criação de uma ouvidoria para o recebimento de denúncias e encaminhamento para as autoridades competentes, entre outros meios de combate da temática (RIO DE JANEIRO, 2022).

Visto isso, destaca-se a importância dessas Políticas Públicas dentro do cenário brasileiro, pois impulsionam cada vez mais a denúncia por parte das mulheres que, porventura, se tornam vítimas. Fomentando não só da possibilidade de denúncia, mas também do pós denúncia, visto que, a iniciativa da ALERJ conta com um acolhimento multifatorial, visando cuidar dessa respectiva vítima, que precisa não só buscar a satisfação de seus Direitos através de auxílio jurídico, como também, auxílio psicológico após o evento traumático.

Como mencionado anteriormente, as Políticas Públicas adotadas ainda se mostram pequenas diante dos vultosos números, mas ainda assim, configuram um avanço perante a temática, pois em um mesmo país que em sua história recente legitimava o estupro de meninas, desde que, o estuprador contraísse matrimônio com a mesma, hoje, ser o país que criminaliza tais atos e cria políticas de enfrentamento, se torna inegável o avanço obtido nesse sentido. Mas, é necessário ainda a observância e melhora das políticas públicas voltadas ao tema, pois a não aplicação das mesmas em um plano concreto, nos remonta a um ambiente propício para a impunidade.

Em retomada aos dados elucidados pela pesquisa do IPEA (2022), apenas 8,5% dos casos de estupro são notificados a autoridade policial, isso ocorre não só pelo sentimento de vergonha que nasce na vítima, mas também por conta do silenciamento que mulheres sofrem perante a sociedade. Ao sofrer uma violência sexual, seja estupro, importunação ou qualquer outro crime, mulheres automaticamente são julgadas e deslegitimadas, não é raro que ao chegar na delegacia, vítimas sejam desencorajadas a registrar ocorrência, ou mesmo, já em fase de instrução processual, serem constrangidas e silenciadas durante o julgamento.

Tais circunstâncias levam a impunidade, já que através deslegitimação as mesmas não notificam a ocorrência do crime e portanto, ocorre a não aplicação da punição ao infrator, como também levam a vítima a experimentar de forma acentuada o que a criminologia chama de processo de vitimização, que parte de um estudo feito a partir da ótica da vítima, onde compreende três fases: a) vitimização primária, que é o próprio efeito de se tornar vítima em decorrência da violência sofrida; b) vitimização secundária ou revitimização: quando os órgãos do Estado agem de forma a impulsionar o sofrimento da vítima; c) vitimização terciária: quando no ambiente sociofamiliar a vítima é segregada por conta da violência sofrida (BRASIL, 2022).

Tal vitimização muito se explica pela própria natureza do crime, em crimes contra o patrimônio, a título de exemplo, o delito de furto do art. 155, do CP, o processo de vitimização é muito mais brando por vários motivos: a) Muitas vezes a vítima nem percebe imediatamente que o crime ocorreu, o que ameniza o impacto da violência sofrida; b) Por ser um crime que tange o patrimônio, o bem material, não afeta substancialmente a sua dignidade como pessoa; c) Sua experiência de vivência em sede de delegacia para o registro de ocorrência e até na fase processual carrega um caráter procedimental normal, ou seja, muito provavelmente essa vítima não irá experimentar a revitimização, pois sua palavra não vai ser posta à prova em decorrência de seu gênero ou das circunstâncias morais patriarcais em que ocorreu o delito.
Por esses fatores, as vítimas de crimes contra a dignidade sexual acabam por serem violentadas reiteradamente, pois além de todo o constrangimento sexual que as tornaram vítimas, ainda vivenciam o silenciamento compulsório por parte dos agentes de segurança pública e do judiciário, bem como, por parte da sociedade manifestadas através do contexto sociofamiliar, onde além de sofrerem com a segregação, ainda precisam lidar com a sua idoneidade sendo posta à prova.

Portanto, o instituto da impunidade, seja qual for sua forma de manifestação perante a realidade fática, funciona como um impulsionador da prática delituosa pois reafirma no inconsciente coletivo que tal atitude é banal e não um grave ferimento da dignidade sexual e da liberdade da vítima, e nesse sentido, acaba por repercutir diretamente no processo de vitimização, tornando todo o percurso pós violência ainda mais custoso e traumático para a vítima.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das divisões desiguais de gênero construídas historicamente pela sociedade, há por conseguinte a hierarquização do gênero, em que o gênero feminino é destinado a ocupar um espaço de subjugação, onde o patriarcado e o sexismo que partem da dominação masculina atuam como impulsionadores da hostilização do corpo feminino, que se manifestam através do sistema de dominação-exploração, sistema este que além de exercer controle sobre a mulher, busca ainda explorar seu corpo de todas as formas, em especial, a caráter sexual, deslegitimando ainda qualquer manifestação feminina que busque contrariar tais preceitos.

Desse modo, levando em consideração o grande marco do reconhecimento dos Direitos Humanos perante o cenário global e da realidade de violência sofrida pelas mulheres, nasce a necessidade de tutelar os Direitos básicos das mesmas. No contexto brasileiro, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, cria-se através dos Direitos Fundamentais um arcabouço de direitos e garantias para as mulheres, onde em consonância a isso, há por parte do Estado brasileiro a manifestação de se tornar signatário das grandes Cartas de Direitos Humanos, o que torna o Brasil um país que, pelo menos no plano teórico, busca erradicar a violência de gênero.

Destarte, diante de todas as exposições feitas ao longo do estudo, conclui-se que a objetificação e banalização do corpo feminino de forma reiterada ao longo da história explica substancialmente de onde surge o ímpeto de violência contra a mulher. Percebe-se que mesmo com uma estrutura densa de direitos e garantias dispostos pela Magna Carta brasileira e leis infraconstitucionais, ainda assim, quando se trata da temática da violência contra à mulher, principalmente em delitos contra sua dignidade sexual, existe um grande desafio por parte do Estado brasileiro.

Tal desafio se alicerça sobretudo na dificuldade de trazer tais mandamentos legislativos para o plano concreto, na inconsistente elaboração por parte do legislador do tipo penal específico para a demanda de importunação sexual, na ausência de investimento na área da educação sexual visando ensinamentos multidisciplinares acerca das expressões dos corpos perante a sociedade e da desconstrução da visão patriarcal e sexista em cima da mulher, bem como, a tardia criação de campanhas de combate a prática delituosa, seja em ambiente público, seja em transportes coletivos.

De outro giro, apesar da tardia implementação das Políticas Públicas voltadas para a temática, as mesmas constituem grande iniciativa frente ao desafio de combater os numerosos casos concretos de importunação sexual em coletivos. Iniciativas estas que criam um ambiente mais acolhedor para mulheres, pois encoraja as vítimas a realizar a denúncia, como também, colocam a sua disposição um serviço de acolhimento multifatorial que busca cuidar dessa vítima no pós violência.

Portanto, se torna de caráter fundamental que o Estado brasileiro, através de seus representantes legitimados, busque efetivamente se debruçar sobre a temática da violência contra a dignidade sexual da mulher, dando a atenção devida aos numerosos casos de importunação sexual contra mulheres em transportes coletivos, buscando dessa forma fazer valer os direitos garantidos as mesmas, para que dessa forma o Brasil se torne um país mais justo e menos violento com as mulheres.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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[1] Bacharelanda em Direito pela Universidade Estácio de Sá – UNESA, pesquisadora iniciante.

Email: [email protected]

Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/0230318521284564

[2] Conforme o artigo 5°, §3°, da CRFB. Os tratados internacionais de Direitos Humanos são incluídos ao ordenamento jurídico brasileiro mediante aprovação em cada Casa legislativa, em dois turnos, com quórum qualificado e receberão por conseguinte, status equivalente a emenda constitucional.

Palavras Chaves

Importunação Sexual; Transporte Público; Dignidade sexual; Mulheres.