REFLEXÕES SOBRE AS DISCRIMINAÇÕES DA POPULAÇÃO TRANS NO MEIO AMBIENTE DE TRABALHO

Resumo

O artigo retrata o acesso e permanência de pessoas transexuais e travestis, objetivando refletir sobre a importância de políticas públicas para a promoção de um meio ambiente de trabalho equilibrado, eliminando barreiras e entraves à carreira, com tratamento respeitoso, equidade e liberdade. A pesquisa é exploratória, qualitativa e fundamentada no levantamento documental e bibliográfico. Conclui-se que o mercado de trabalho é discriminatório e impõe barreiras para a inserção e permanência de travestis e transexuais, sendo necessárias políticas públicas para eliminá-las, em especial, no que concerne à afirmação da identidade de gênero.

Abstract

The purpose of this article is to reflect on the access and permanence of transvestites and transgender people in the labor market. The importance of public policies for the promotion of a balanced work environment is defended, eliminating barriers and obstacles to the career, with respectful treatment, equity and freedom. The research is exploratory, qualitative and based on documental and bibliographic survey. It is concluded that the labor market is discriminatory and imposes barriers to the insertion and permanence of transvestites and transsexuals, requiring public policies to eliminate them, especially with regard to the affirmation of gender identity.
Keywords: Transvestites, transsexuals, working environment.

Artigo

XVII ENCONTRO LUSO-BRASILEIRO DE JURISTAS DO TRABALHO – JUTRA –

Grupo de Trabalho: (1) TRABALHO E IDENTIDADE

REFLEXÕES SOBRE AS DISCRIMINAÇÕES DA POPULAÇÃO TRANS NO MEIO AMBIENTE DE TRABALHO

REFLECTIONS ON DISCRIMINATION OF THE TRANS POPULATION

IN THE WORK ENVIRONMENT

 

 

 

Bruna Santos Aguiar1

Saulo Monteiro Martinho de Matos2

Instituição do(s) autor(es):Universidade Federal do Pará (UFPA)

Endereço para correspondência:Bella citta, Q2, L10, T7, AP 104. 67208-135, Marituba. Trav. Rui Barbosa , 656, Apart 101. 66053-260, Belém.

Fone: (91) 98136-7620. (91) 99290-1504

E-mails do(s) autor(es):[email protected] [email protected]

Resumo: O artigo retrata o acesso e permanência de pessoas transexuais e travestis, objetivando refletir sobre a importância de políticas públicas para a promoção de um meio ambiente de trabalho equilibrado, eliminando barreiras e entraves à carreira, com tratamento respeitoso, equidade e liberdade. A pesquisa é exploratória, qualitativa e fundamentada no levantamento documental e bibliográfico. Conclui-se que o mercado de trabalho é discriminatório e impõe barreiras para a inserção e permanência de travestis e transexuais, sendo necessárias políticas públicas para eliminá-las, em especial, no que concerne à afirmação da identidade de gênero.

Palavras-chave: Travestis, transexuais, meio ambiente de trabalho.

 

The purpose of this article is to reflect on the access and permanence of transvestites and transgender people in the labor market. The importance of public policies for the promotion of a balanced work environment is defended, eliminating barriers and obstacles to the career, with respectful treatment, equity and freedom. The research is exploratory, qualitative and based on documental and bibliographic survey. It is concluded that the labor market is discriminatory and imposes barriers to the insertion and permanence of transvestites and transsexuals, requiring public policies to eliminate them, especially with regard to the affirmation of gender identity.

Keywords: Transvestites, transsexuals, working environment.

1.  INTRODUÇÃO

 A travestilidade e a transexualidade são identidades de gênero. Como no campo das ciências jurídicas, tais conceitos ainda carecem de uma recepção adequada pela dogmática jurídica e não podem ser considerados ainda um senso comum teórico entre operadores do direito, é importante partir de uma definição bastante difundida dos conceitos fundamentais de orientação sexual, identidade de gênero e sexo:

 Uma definição elementar e bastante difundida: a orientação sexual é o direcionamento da atração física/romântica/sexual a um gênero ou independente de gênero, bem como a ausência de atração; a identidade de gênero é auto percepção de gênero do indivíduo, é como a pessoa expressa seu gênero para a sociedade; e, por fim, sexo é sobre características cromossômicas, gonodais, fisiológicas, morfológicas e genitais da pessoa, que não se correlaciona com nenhum dos conceitos anteriores, pois cada um coexiste de maneira independente (QUINALHA, 2022, p. 22).

Assim, a identidade de gênero pode ser compreendida como uma autopercepção, podendo ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento. Essa simples definição/reivindicação de identidade de gênero para pessoas transgêneras possui um impacto significativo para a progressiva erosão do sistema tradicional de ordenação social e sexual em nossas sociedades. Isso porque a identidade transgênera coloca em xeque a relação entre o sexo atribuído/imposto no momento do nascimento e ao modo como a pessoa se percebe na trama das normas que definem o que é ser homem ou ser mulher em nossa sociedade. Na esteira das definições até aqui apresentadas, “se a pessoa não possui uma identidade de gênero que corresponda ao sexo atribuído no nascimento, ela pode ser definida como uma pessoa trans, que pode ser binária (caso se identifique como homem ou como mulher), ou ainda não binária.” (QUINALHA, 2022, p. 37).

Ainda no campo das delimitações conceituais preliminares, as pessoas transgêneras podem ser classificadas como mulher trans (pessoa que não se identifica com o sexo atribuído no nascimento e que se identifica como mulher); travesti (pessoa que não se identifica com o sexo atribuído no nascimento e que se identifica como mulher travesti); homem trans (pessoa que não se identifica com o sexo atribuído no nascimento e que se identifica como homem); e não-binare (pessoa que não se identifica com o sexo atribuído no nascimento e que não se identifica como mulher ou homem)

Para fins deste estudo, não existe diferenciação entre travestis e mulheres transexuais, ambas são identidades de gênero feminina. A escolha por uma ou outra terminologia parte da autodeclaração de cada pessoa. A palavra travesti é marginalizada pela sociedade, uma rabeira para onde essas pessoas é destinada compulsoriamente.

Os espaços são negados historicamente para pessoas TT, como chamaremos aqui as travestis e pessoas transexuais. No mercado de trabalho enfrentam discriminação, problema que também caracteriza sua vida escolar. Poucas estão nas universidades, sendo a escolaridade baixa, uma de suas características. A exclusão escolar, em muitos casos, se deve ao fato de que muitas travestis e mulheres transexuais são expulsas de casa pelos pais em torno dos 13 anos de idade. Com deficiência na qualificação profissional, enfrentam, também, uma maior dificuldade para inserção e permanência no mercado formal de trabalho.

Nessa perspectiva, o problema de pesquisa aqui enfrentado é: como se caracteriza o mercado de trabalho para pessoas TT? Como questões norteadoras das discussões tem-se: quais discriminações são vivenciadas? Qual a importância de políticas públicas para a promoção de um meio ambiente do trabalho equilibrado, eliminando barreiras e entraves vivenciados por pessoas TT? A discriminação sistematiza a exclusão sequencial de pessoas TT das escolas, universidades e consequentemente do acesso a qualificação e ao mercado de trabalho, contribuindo sistematicamente à marginalização dessas pessoas.

O estudo é de abordagem qualitativa, mas sempre que pertinente são trazidos dados quantitativos e evidências empíricas para fundamentar a discussão. As fontes consultadas são  bibliográficas e documentais, sendo a pesquisa de natureza exploratória.

O texto está dividido em quatro seções. Após essa introdução, a seção dois evidencia o diagnóstico da violência e o preconceito nas escolas. Na seção três analisam-se o mercado de trabalho e as dificuldades para pessoas TT, trazendo exemplos de políticas públicas e defendendo sua importância.

2.    DIAGNÓSTICO DA VIOLÊNCIA E O PRECONCEITO NAS ESCOLAS: UMA ANTECIPAÇÃO DE PROBLEMAS QUE SERÃO VIVENCIADOS NO MERCADO DE TRABALHO.

 Dentre os importantes documentos que versam sobre os fatores que colaboram com o ostracismo social dessa comunidade, cita-se a pesquisa divulgada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), elaborada em parceria com algumas universidades públicas, no Dossiê “Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras”. O trabalho apresenta um levantamento de informações sobre os assassinatos e as violências contra pessoas trans brasileiras frente à necessidade desse tipo de informação, para que sejam pensadas políticas públicas de enfrentamento e erradicação da transfobia.

O Dossiê revela, por exemplo, que o Brasil segue, pelo décimo quarto ano consecutivo, sendo o país que mais mata travestis e transexuais, segundo dados da ONG Transgender Europe (TGEU):

 Do total de 4.639 assassinatos catalogados pela TGEU entre 2008 e setembro de 2022, 1.741 ocorreram no Brasil. Isto é, sozinho, o país acumula 37,5% de todas as mortes de pessoas trans do mundo. Enquanto México tem 649 (14%) e o EUA 375 (8%) no mesmo período.

Dados da ANTRA ainda mostram que, no ano de 2022 ocorreram 131 assassinatos de pessoas trans, sendo as principais vítimas, as travestis e mulheres transexuais, somando 130 homicídios, os homens trans corresponderam a 1 caso.

Outro dado preocupante é que pelo menos 58% dos assassinatos vitimaram travestis e mulheres trans profissionais do sexo, estigmatizadas, muito expostas à violência direta. Essa violência segue na política, com parlamentares TT eleitos sofrendo ameaças, constantemente.

Uma consequência de tanta violência pode ser visualizada nos dados do “Censo Trans”, que mostram que apenas 0,3% das pessoas TT chegam à terceira idade, índice baixo, muito por conta do fator violência.

Somado ao contexto de violência apresentado, tem-se a discriminação nas escolas e no mercado de trabalho. Em pesquisa realizada pelo projeto Além do Arco-íris/Afroreggae, divulgada no Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2021, constatou-se que apenas 0,02% das travestis e transexuais estão nas universidades. A pesquisa mostra, também, que 72% não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental.

Essa situação de exclusão escolar se deve ao fato de que muitas travestis e mulheres transexuais são expulsas de casa pelos pais em torno dos 13 anos de idade, como mostra o Dossiê “Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras” do ano de 2022.

O dossiê também traz dados da pesquisa desenvolvida pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) que mostra que crianças trans que possuem um ambiente familiar acolhedor, que respeite seus pronomes apresentam até 71% menos sintomas de depressão, pensando 34% menos em suicídio. Com um ambiente familiar transfóbico, somado à exclusão social, tem-se uma maior dificuldade, também, de inserção no mercado formal de trabalho e deficiência na qualificação profissional.

Muitas vezes a escola é um ambiente hostil, onde pessoas TT são obrigadas a permanecer desde que iniciam a construção de sua identidade de gênero, resultando no fato de que poucas pessoas TT conseguem concluir os estudos elementares. Resta-lhes a educação das ruas, da marginalidade e da prostituição (FRANCO; CICILINI, 2015).

Segundo a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), o grupo mais afetado com o preconceito nas escolas são travestis e transexuais, estimando- se a evasão escolar em 73%. Essa evasão é involuntária e ocorre por conta da discriminação, destaca Luma de Andrade, a primeira travesti a se doutorar no Brasil, reivindicando políticas públicas que dêem subsídios para a permanência dessas pessoas nas escolas. Tal fato contribui significativamente à limitação de acesso aos espaços que podem lhes proporcionar algum progresso social (ANDRADE, 2015).

Nesse mecanismo, o processo é sequencial, iniciando desde a infância e adolescência, sendo a escola um espaço de reprodução do heteroterrorismo, enfatiza (BENTO, 2011). Faz- se necessário, então, avaliar os processos que segmentam essa comunidade à marginalização. Luma de Andrade identificou alguns elementos da escola que interferem na permanência ou ausência das travestis no espaço escolar, estando duas alinhadas com as questões do mercado de trabalho: o não reconhecimento do nome feminino da travesti no momento da frequência e a limitação de acesso ao banheiro feminino.

Adicionalmente, o trabalho de Dayana dos Santos, “Cartografias da transexualidade:

a experiência escolar e outras tramas”, traz importantes relatos sobre essa prática de exclusão, descrevendo como problemas mais frequentes a utilização do nome social, do banheiro, na aula de educação física e na relação com professores e outros profissionais da escola.

No entanto, pondera a autora, não se pode pensar em uma relação causal, advertindo sobre o perigo de generalizações e análises reducionistas sobre a questão:

 No tocante à experiência transexual e à escola, evidenciaram-se os processos de exclusão, tanto nas entrevistas, quanto no grupo de discussão. Entretanto, não foi possível pensar sobre isso como uma relação causal. Existiram outras interpretações, pois nem todas as narrativas evidenciaram o preconceito e a discriminação como motivos do abandono da escola. Em algumas, a questão dos recursos financeiros e de alteração nos rumos da própria existência familiar importaram mais. Em outras, ainda, pode-se perceber que a escola não se constituía em uma prioridade, principalmente por ser o lugar da normalização da identidade e do corpo. Dessa perspectiva, pode-se compreender como os reducionismos e as generalizações podem ser perigosos (SANTOS, 2010, p. 190).

Com isso, Dayana dos Santos chama atenção para a complexidade do tema e para a importância de pensar a presença de transexuais e travestis como fazer intelectual, sendo a sala de aula um espaço estratégico para além da política educacional. Assim, essa presença deve ser um acontecimento desejável e vetor de possibilidades de libertação, razão pela qual políticas de inclusão na escola e no trabalho são fundamentais.

3.       O MERCADO DE TRABALHO E AS DIFICULDADES PARA PESSOAS TRANSEXUAIS E TRAVESTIS: NECESSIDADE E EXEMPLOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS.

 

Ressalta-se a aprovação dos 31 princípios orientadores sobre empresas e direitos humanos (POs), na Organização das Nações Unidas (ONU), visando nortear as relações de trabalho englobando a diversidade, sem estigmatizar. Essa agenda foi elaborada por John Ruggie, secretário das Nações Unidas, estando pautada em 3 fundamentos: proteger, respeitar e reparar.

Depois disso, outras iniciativas vêm sendo adotadas para assegurar a pessoas TT o direito a trabalhar e o direito ao meio ambiente de trabalho equilibrado, eliminando barreiras e entraves à carreira, com tratamento respeitoso, equidade e liberdade para se expressar sem violências e constrangimentos.

No entanto, essas barreiras ainda são grandes, seja no acesso ou na manutenção do emprego: “É difícil para a mulher entrar no mercado de trabalho e ter as mesmas condições trabalhistas e salariais do homem, o desafio aumenta para a travesti” (NASCIMENTO, 2003). Outra barreira para pessoas TT serem inseridas no mercado de trabalho está na falta de adequação ao nome apresentado em documento oficial de identificação, pela apresentação de transição incompleta e por dificuldades em acessar os procedimentos necessários como o processo de hormonização, como revela a pesquisa PRIDE, da Organização Internacional do

Trabalho (OIT).

Observando essas vivências torna-se importante mencionar que algumas pessoas TT são identificadas automaticamente. Porém, tem-se, também, pessoas TT que possuem o que chamamos de passabilidade cis, ou seja, quando uma pessoa TT não é identificada prontamente, possuindo características físicas mais próximas da sua identidade de gênero. Essas estão “adequadas” ao padrão da imagem normativa e, por isso, vivenciam a experiência pautada em uma abordagem e em um comportamento respeitoso.

No entanto, tais atitudes são modificadas quando a transexualidade é percebida. Assim, o recorte da vivência TT é evidenciado, se alinhando com a transfobia, identificada pelo olhar inconveniente, desnecessário e violento.

Outro ponto é que pessoas TT com passabilidade cis possuem maiores chances de conseguir um emprego formal por conta da sua imagem. Nesse processo, os homens transexuais possuem maiores índices de passabilidade, pois utilizam a testosterona para terapia hormonal, hormônio que possui uma ação mais significativa e “agressiva” nas mudanças físicas, enquanto as mulheres trans e travestis buscam reduzir a “agressividade” da testosterona e inserir o estrogênio sistematizando mudanças físicas progressivas.

A questão da passabilidade cis foi apontada no estudo intitulado “Trabalho e saúde na população transexual: Fatores associados à inserção no mercado de trabalho no estado de São Paulo”, que revela que o índice de ocupação formal de pessoas TT está associado à identidade de gênero do homem transexual, com 12 anos de escolaridade e que nunca tenha sido preso. A ocupação entre as mulheres transexuais e travestis é menor, tendo os homens transexuais uma chance nove vezes mais alta.

Ou seja, as disparidades de gênero também são mantidas no eixo de pessoas trans. Essas sistemáticas da passabilidade interferem nas relações interpessoais de pessoas TT e nos possíveis processos seletivos para uma vaga no mercado de trabalho, sendo necessário ressaltar que isso não elimina o preconceito contra essas pessoas, mas que os processos acontecem de maneira diferente entre quem tem ou não a passabilidade cis.

Nesse mecanismo, é importante lembrar Michel Foucault, para quem as normas sociais atuam como dispositivo de poder, regulando a população por meio das condições físicas e biológicas dos sujeitos, denominados de “biopoder”. Suas estruturas objetivam estipular uma hierarquia pautada na manutenção de poder.

Com o exposto, observa-se uma desvalorização da diversidade no mercado de trabalho, o que contribui para desequilíbrios no meio ambiente de trabalho de pessoas TT, apesar da proteção jurídica.

Consta no caput do art. 6° da Constituição Federal que o trabalho é considerado um direito social. Porém, no Brasil, observamos os padrões cis-hétero-normativo constituindo as identidades de pessoas TT como inferiores e desumanizadas.

Para Seligmann-Silva (2011), em consequência, o mercado de trabalho transforma-se em um ambiente conturbado, no qual fragilidade emocional impede tais indivíduos de enfrentarem a estigmatização e a discriminação. Essa precariedade social sinaliza para prováveis geradores de desgaste mental, sofrimento e adoecimento dos trabalhadores, alinhados por injustiças, exclusões, conflitos, preconceitos, desigualdades sociais e desrespeito aos direitos humanos e de cidadania, afetando a identidade e as perspectivas.

Nesse sentido, é necessário que haja uma proteção segmentada nas especificidades dos trabalhadores TT, que suas demandas sejam cumpridas por empregadores e funcionários no ambiente de trabalho, visto que o respeito à identidade de gênero de pessoas transexuais é crucial para sua permanência nele, afastando o preconceito, o medo e o isolamento no local de trabalho.

Países como Portugal, Bélgica, Estados Unidos e Espanha fizeram alterações em suas leis trabalhistas, promovendo o direito à identidade de gênero de pessoas transexuais. Porém, a maioria dos países não possui legislação para proteção da identidade de gênero (ROCHA,2019).

Essa proteção no meio ambiente de trabalho, com práticas que promovam uma postura mais inclusiva e respeitosa aos direitos humanos dessa parcela da população discriminada, é importante e, apesar da falta de uma legislação para tal, nada impede as empresas de agirem com esse fim. Faz-se necessário delinear claramente responsabilidades e expectativas dos supervisores, colegas e outros empregados, assegurando respeito e apoio. (ROCHA, 2019)

Uma boa ilustração dessas práticas é trazida pelo estudo da Human Rights Campaign Foundation, segundo a qual 93% das empresas da Fortune 5003 reconhecem os direitos de pessoas TT e possuem políticas que colaborem com o acolhimento dessa comunidade. Facebook, Netflix e Google são algumas dessas empresas. (CONFEDERATION OF DANISH INDUSTRY, 2022).

Essas propostas vão ao encontro da apresentada por Cecília Almeida e Victor Vasconcellos:

Finalmente, questionamos às entrevistadas o que poderia ser feito para mudar o cenário de desemprego na população trans. Na perspectiva das representantes das entidades, seria importante (i) a aprovação de uma lei de cotas; (ii) a capacitação de Recursos Humanos de empresas e constante sensibilização das funcionárias; e (iii) o respeito à identidade de gênero, por meio do respeito ao nome social e ao uso de banheiro, vestiário e uniformes conforme o gênero com o qual a pessoa se identifica (ALMEIDA; VASCONCELLOS, 2018, p. 324).

Tais propostas são muito importantes, pois a falta de representatividade TT nos ambientes socialmente comuns para pessoas cisgêneras e negados historicamente para comunidade TT, criam a narrativa de que pessoas TT ocupam um papel secundário e até nenhum na construção social.

Esse fato, certamente, não é a realidade. Lynn Conway, mulher transexual, é uma referência para mulheres da área de tecnologia. Nascida em 1938, ela é parâmetro na área de arquitetura de computadores com suas pesquisas sobre circuitos, sendo pioneira na pesquisa sobre sistemas VLSI – Very Large-Scale Integration, base dos microprocessadores e chips de memória que usamos hoje em dia.

Nesse sentido, os movimentos LGBTQIA+4 foram criando mecanismos de intervenção, protestos e inserção da diversidade nos espaços. Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera são o símbolo da resistência da Revolta de Stonewall, que ocorreu em 1969, acontecimento que iniciou o levante de lutas pelos direitos LGBTQIA+.

Pode-se, ainda, citar personalidades que colaboraram significativamente com a luta pelos direitos fundamentais TT no Brasil. João Nery é pioneiro na causa trans, Roberta Close, Mulher trans cuja relevância foi levar o debate para as massas.

Mais recentemente, tem-se a militância trans representada pela travesti Maria Clara Araújo, mestranda em educação pela Universidade de São Paulo (USP), que lançou recentemente o livro “Pedagogias das travestilidades”. Ana Flor, pedagoga formada pelo Instituto de Educação da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), a casa de Paulo Freire. Bárbara Pastana, fundadora do movimento LGBTQUIA+ do Pará e da ONG GRETTA, Erica Malunguinho, a primeira deputada estadual travesti e negra de São Paulo, assim como a deputada federal Erika Hilton e a vereadora Benny Briolly.

É muito relevante identificar pessoas TT sistematizando novas possibilidades de existência por meio de suas vivências, militâncias e produções de pesquisas, contribuindo de

forma extremamente relevante para o fim da estigmatização. Elas colaboram para uma sociedade diversa, sendo muito importante ressaltar que todas as travestis e mulheres transexuais citadas do período recente são negras. O atravessamento e recorte racial é essencial para o debate, o inquietamento parte da opressão. Nesse sentido, travestis e transexuais negras, sendo as mais violentadas no sistema racista, patriarcal, machista, cis e normativo, reverberam seus discursos sistematicamente buscando resoluções relevantes e necessárias.

Em consequência, alguns projetos surgiram a partir da iniciativa de pessoas TT. Um deles é o projeto “Travessia”, que se constitui em um Observatório Nacional de Violações de Direitos de Pessoas Trans, vinculado à Rede Trans Brasil. O projeto visa mapear a aplicabilidade da Lei Maria da Penha nos casos de violência doméstica contra mulheres trans e travestis, visto que o Superior Tribunal de Justiça (STF), no ano de 2022, incluiu as identidades de mulheres T e travestis na referida lei.

A Rede Trans Brasil é, desde 2011, a única rede afiliada à Rede LAC Trans, a única rede para discussão do tema na América Latina e Caribe. A Rede Trans Brasil teve sua fundação e registro no ano de 2009, na cidade do Rio de Janeiro, sistematizando instrumentos de expressão e de problematização dos processos que marginalizam pessoas TT, buscando colaborar com as agendas de políticas públicas para garantia dos direitos fundamentais. Em junho de 2022, divulgou o “Censo Trans”, realizado em algumas capitais brasileiras segmentando na identificação das especificidades desse eixo populacional, uma vez que as pessoas TT não estão identificadas nos instrumentos de coleta de informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Outra iniciativa importante foi a criação da Associação Brasileira de Trangêneros (ABRAT), fundada por Maite Schneider (Grupo Esperança), Laerte Coutinho (cartunista), Márcia Rocha (advogada travesti) e a psicanalista Letícia Lans. Seu objetivo é sistematizar o acesso de pessoas TT à educação.

Posteriormente, compreendendo a necessidade de inclusão de travestis e transexuais no mercado de trabalho, em 2013 foi criada a TransEmpregos pela articulação da empresária que é transexual Márcia Rocha e de outras pessoas ativas na militância pelo direito de pessoas

  1. A TransEmpregos consiste em um projeto de empregabilidade para pessoas trans, que serve de vitrine, mantendo parceria com empresas que estão alinhadas com a diversidade e inserção de pessoas TT no mercado de trabalho. Ela disponibiliza, ainda, orientação para desenvolvimento de currículos.

Torna- se necessário dizer que o programa TransEmpregos possibilita que pessoas TT sejam analisadas pelo RH sem que suas identidades de gênero estejam em pauta, possibilitando o processo isento de transfobia. Desse modo, são criados mecanismos na plataforma para facilitar o acesso da comunidade TT às vagas disponíveis nas empresas parceiras.

Para além das mobilizações desenvolvidas por pessoas TT para a articulação e fortalecimento de suas jornadas, apresentadas nesse artigo, é importante mencionar algumas políticas públicas do Estado brasileiro com esse fim.

O projeto Transcidadania, criado no município de São Paulo durante a gestão de Fernando Haddad (2013-2016) é um exemplo. Seu objetivo era incentivar o término do ensino médio e a participação de travestis e transexuais em cursos técnicos. Para tal, concedia uma bolsa de estudos. Apesar da importante iniciativa, no entanto, dados divulgados pela pesquisa “Uma nova porta se abre: A inserção de travestis e transexuais no mercado de trabalho formal após o programa Transcidadania” evidenciam que, das entrevistadas, somente 33% possuíam vínculo empregatício formal em 2021.

Algumas ações afirmativas em universidades públicas também são importantes, a exemplo do que ocorre na Universidade Federal do ABC (UFABC), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e Universidade Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), com vagas no vestibular destinadas para pessoas travestis e transexuais, e recentemente o Instituto de Ciências Jurídicas (ICJ) da Universidade Federal do Pará (UFPA) criou ações afirmativas para o ingresso de pessoas TT nos seus programas de pós-graduação.

Essas políticas públicas são extremamente necessárias, mas ainda muito pontuais e não reverberam de forma significativa pelo país.

4.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

  Verificam-se alguns avanços nas pesquisas e nas políticas públicas para pessoas TT, sobretudo nos últimos anos, como evidenciou-se neste trabalho. Tal fato ocorreu, sem dúvidas, por conta da articulação e protestos de pessoas TT em busca de respeito à identidade de gênero e aos direitos fundamentais.

Ainda assim, é urgente a necessidade de mecanismos de mapeamento das agendas de travestis e transexuais no Brasil para além dos índices de violência, visto que os marcadores deste eixo populacional sequer constam no IBGE. Por meio do levantamento das informações de pessoas TT, torna-se possível esmiuçar e concretizar políticas públicas relevantes,

promovendo acesso aos espaços negados historicamente. Nesse aspecto, identificando os dados e pesquisas para alguns estados brasileiros, percebe-se a inexistência de pesquisas e dados direcionados às possibilidades socioeconômicas e de empregabilidade de pessoas travestis e transexuais, sinalizando a urgência de parâmetros para esmiuçar políticas públicas para a humanização dessas vivências nas várias regiões e cidades brasileiras.

O texto refletiu sobre os dados mundiais e do Brasil, mostrando que as travestis e transexuais são muito discriminadas no mercado de trabalho, demonstrando a institucionalização da transfobia. A ausência dessas pessoas nas escolas e universidades se reflete na falta de qualificação e, com isso, de oportunidades no mercado de trabalho. Convive-se com altos índices de violência, prostituição e o direcionamento aos subempregos, além da limitação econômica, segmentando pessoas TT para existências desumanizadas.

Compreendendo essa realidade, é imprescindível que o Estado desenvolva políticas públicas pautadas nas etapas dessas vivências, partindo de um alinhamento sequencial para repercutir significativamente na trajetória dessas pessoas, sendo necessária a esquematização, interesse e debates segmentados na problematização dos processos que segmentam travestis e transexuais à marginalização, sinalizando e promovendo a criação e ampliação de políticas públicas para esse eixo populacional.

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TRANSEMPREGOS. Site oficial na Internet. Disponível em: https://www.transempregos.com.br/quemsomos . Acesso em: 16 set. 2022.

Notas de Rodapé:

1 Economista e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito e Desenvolvimento na Amazônia (PPGDDA) da Universidade Federal do Pará (UFPA).

2 Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente, exerce a função de coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPA (PPGD-UFPA) e do projeto de pesquisa “Emprego, Trabalho e Renda Trans”. Membro da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo da UFPA.

3 Lista da revista Fortune com as 500 empresas dos Estados Unidos que possuem os maiores faturamentos anuais.

4 Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais.

Palavras Chaves

Travestis, transexuais, meio ambiente de trabalho.