RETRATAR, REINICIAR, RETERRITORIALIZAR: AS POSSIBILIDADES DO OLHAR ESTÉTICO DO AFETO PARA UM REAL PÓS-PANDÊMICO

Resumo

Em comemoração aos 130 anos, apresentamos neste artigo o olhar estético do afeto, técnica desenvolvida pela autora durante o curso de doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito, que busca a reconfiguração da percepção social por intermédio da experiência estética, como estratégia de promoção e garantia dos Direitos Humanos. Uma proposta que oferece alternativas para enfrentar os inúmeros desafios postos em um mundo pós-pandêmico, ancorada na Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty, tanto como referencial teórico quanto metodologia de pesquisa. Um mundo de novas afetividades e múltiplas oportunidades que emerge com a vida experimentada em duplo, entre o atual e o virtual, tal como pensado por Pierre Lévy a partir do conceito de virtual e desterritorialização, e projetado pela computação afetiva desenvolvida por Rosalind Picard. Um convite para nos reterritorializarmos.

Artigo

RETRATAR, REINICIAR, RETERRITORIALIZAR: AS POSSIBILIDADES DO OLHAR ESTÉTICO DO AFETO PARA UM REAL PÓS-PANDÊMICO

Lia Beatriz Torraca

Resumo

Em comemoração aos 130 anos, apresentamos neste artigo o olhar estético do afeto, técnica desenvolvida pela autora durante o curso de doutorado em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito, que busca a reconfiguração da percepção social por intermédio da experiência estética, como estratégia de promoção e garantia dos Direitos Humanos. Uma proposta que oferece alternativas para enfrentar os inúmeros desafios postos em um mundo pós-pandêmico, ancorada na Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty, tanto como referencial teórico quanto metodologia de pesquisa. Um mundo de novas afetividades e múltiplas oportunidades que emerge com a vida experimentada em duplo, entre o atual e o virtual, tal como pensado por Pierre Lévy a partir do conceito de virtual e desterritorialização, e projetado pela computação afetiva desenvolvida por Rosalind Picard. Um convite para nos reterritorializarmos.

Palavras-chave: Estética; Percepção; Afeto; Reterritorialização; Direitos Humanos.

Uma introdução ao olhar estético do afeto

Ainda que a crise pandêmica do COVID-19 pareça portar apenas aspectos negativos, é possível enxergar um universo de novas afetividades e múltiplas oportunidades, tal como Edgar Morin (2015) percebe as alternativas insertas na complexidade do real, o que abarca o sentido de crise, da desorganização do nosso imaginar e que fazem parte da potência em tornar-se sujeito, de nos diferenciarmos e nos recriarmos, além da nossa capacidade em buscar novos sentidos para a vida, e também para a morte. Uma busca pela compreensão de um mundo que se projeta continuamente em imagens e tem como fluxo nossa organização afetiva.

A experiência estética é o medium do olhar estético do afeto, capaz de promover a síntese perceptiva tal como pensada por Maurice Merleau-Ponty (1999), responsável pela modulagem perceptiva e calibragem afetiva do sujeito, além da sua capacidade para interferir na produção de imagens, construção de realidade e configuração da percepção social. Foi diante desta concepção merleaupontyana que emergiu a técnica transdisciplinar desenvolvida durante o curso de doutorado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ), buscando oferecer uma alternativa para o enfrentamento da violência no Rio de Janeiro a partir da hipótese que esta violência espelha um padrão circular de comunicação, ou seja, a projeção de imagens rotuladas instauram um fluxo permanente de manifestações de violência entre dois territórios, entre morro e asfalto, refletindo-se na percepção social sobre essa violência. O olhar estético do afeto apresenta-se, então, como a técnica capaz de interferir nessa circularidade de violência por intermédio da experiência estética, que no caso da tese foi a experiência fotográfica. Uma técnica que pretende não só fazer visível as formas dessa violência, mas alterar a percepção sobre aquilo que é comunicado como violência, tendo como referencial metodológico a Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty.

Entender a violência por intermédio da estética é perceber como a violência ganha formas, como é comunicada e significada. Uma comunicação que estrutura as relações em uma cidade conhecida mundialmente como maravilhosa, que sempre cultivou esta imagem apesar de se permitir dividida entre espaços de inclusão e outros marginalizados. Uma segregação que reflete a própria circularidade de violência, tal como Paul Watzlawick descreve o padrão de interdependência comunicativa (1991, p. 93), entre o racismo escamoteado, a aporofobia (CORTINA, 2017) despercebida, e outras formas de violência que acabaram normalizadas. Esta dinâmica comunicativa se reflete no comportamento do sujeito, o qual determina e é determinado pelo comportamento do outro, conforme observado por Watzlawick (1991, p. 93). A ordem é, então, fixada sob uma comunicação de ameaça constante e recíproca entre os moradores do morro e do asfalto, uma percepção disseminada pela mídia e pelo estado através do discurso da guerra e do terror, e assimilada pela sociedade, que passa a exigir mais proteção e segurança, legitimando medidas de contenção e controle que retroalimentam a circularidade da violência, potencializada em ambos os espaços. Até mesmo a paz se apresenta como face da violência da cidade, pois aquilo que é percebido como segurança está representado pela imagem da polícia através de emblemas associados à violência. Se a percepção social sobre o que é violência fosse outra, não continuaríamos a questionar sobre quantas mortes ainda teremos que assistir, pois vidas seriam percebidas como iguais, seja no asfalto ou no morro, merecendo igual tratamento e segurança, refletindo nosso comprometimento com a vida do outro, um outro diferente. Uma percepção decisiva para o nosso agir!

Para construir o olhar estético do afeto, a “Fenomenologia da Percepção”, de Maurice Merleau-Ponty, foi não só o principal referencial teórico sobre estética, mas se tornou a metodologia da pesquisa. A fenomenologia merleaupontyana é um método para descrevermos nossa percepção sobre o mundo a partir do nosso mundo interior, pretendendo uma descrição direta da nossa experiência – vivida e diária, daquilo que nos afeta, das sensações, das imagens mentais e das lembranças, localizando o observador do sujeito perceptivo como um sujeito perceptivo, oferecendo a oportunidade para reconfigurar sua percepção e estabelecer outro olhar, gerar outros afetos, construir outras realidades.

O método merleaupontyano é um convite aquilo que é essencial na percepção: sair de si e abrir-se a um outro, dispondo o corpo no centro desta relação com o mundo. O mundo percebido é aquele revelado a partir da experiência do sujeito. Minha experiência é uma projeção daquilo que entendo como mundo, o que se reflete na percepção sobre um mundo que não é Lego, não se encaixa perfeitamente e cada vez mais é virtualizado.

A fenomenologia merleaupontyana oferece um método de abordagem que nos dá o ser presente e vivo, aplicável à relação do homem, seja com o próprio homem ou com os mais diversos campos da vida e do sensível. Uma metodologia focada na experiência perceptiva e não no objeto da percepção, o que justifica a importância dada à perspectiva, decisiva para a percepção e não para o objeto percebido, permitindo o desvelar do invisível nesta observação. Um método que se impõe como potencial crítico por ampliar o sentido de percepção, liberando o pensamento de perceber fundando na experiência. É a ampliação do meu campo de visão a partir do outro, de como o outro vê, pois é através da percepção de outrem que eu posso me encontrar posto em relação com um outro eu; uma percepção realizada a partir de outra subjetividade. É a partir desta experiência perceptiva que se estabelece aquilo que Merleau-Ponty entende como comunicação verdadeira, fundada nos elementos de uma descrição do mundo percebido, da síntese de um mundo fotografado.

Para Merleau-Ponty, a Fotografia se apresenta como um meio para descrever a experiência perceptiva, capaz de modificar a percepção sobre uma imagem comunicada como realidade e produzir outra realidade mediada pelo afeto. A Fotografia carrega a potência desta experiência perceptiva transformadora, que converte o ver em olhar a partir de outra perspectiva, capaz de afetar e fazer agir através do afeto; afinal, a Fotografia, nos lembra Ariella Azoulay (2008), age fazendo com que os outros atuem. De acordo com a fenomenologia merleaupontyana, a percepção é minha porta para questionar e refletir sobre a estrutura daquilo que vejo, para que eu possa (re)construir o olhar, projetar novas imagens e produzir outras realidades.

O olhar estético do afeto busca promover a ampliação do campo perceptivo por intermédio da experiência estética, permitindo ver a partir de outras lentes e outros corpos. A câmera fotográfica seria um outro corpo capaz de produzir outra forma de ver, transformar o ver em olhar, o olhar em agir. A câmera fotográfica porta a capacidade de interferir na nossa percepção sobre a realidade, sobre aquilo que entendemos de mundo, possibilitando construir outras realidades, imaginar outros mundos. Lévy (2007) defende a câmera fotográfica como ferramenta da memória, uma máquina de perceber que funciona no nível direto e estende o alcance para transformar a natureza de nossas percepções. Quando acoplada ao virtual, em sua dimensão indireta, Lévy (2007) acredita que a câmera fotográfica seria responsável por modificar nossa relação com o mundo, com o espaço e com o tempo em um nível que não é possível dizer se elas transformam o mundo humano ou nossa maneira de percebê-lo (2007, p. 97).

Entender o mundo por intermédio da experiência estética é, principalmente, promover a emancipação do ver. Esta emancipação representa uma estratégia de resistência em um mundo cada vez mais virtualizado e fundado nas modulagens perceptivas e calibragens afetivas que são capazes de realinhamentos políticos a partir da reconfiguração da percepção social, como foi possível observar no trânsito do sentido do escatológico, do repulsivo ao sagrado, responsável por permitir a construção de um mito e sua eleição à presidência[1] na forma de um salvador, articulado pela estética da fé (TORRACA, 2017), tal como Ernest Cassirer (2013) apontou o fenômeno mítico como forma de regeneração representativa de uma determinada camada da sociedade. A emancipação do ver permitiria enxergar a falsificação imagética para a configuração deste “mito”, em especial a narrativa ideológica compreendida pelo conceito de mito político de Henry Tudor (1972) e a relação estabelecida entre mitos de fundação e mitos escatológicos, que faz parte da dramatização de alguns eventos com o objetivo de introduzi-los no sistema político ressignificando o sentido de caos a partir do afeto do desejo. Uma articulação apontada por Cassirer (2003) ao explicar a relação entre as emoções e as construções teóricas em torno do mito, ou seja, “uma massa de ‘ideias’, de representações, de crenças e juízos teóricos” (Ibid., p. 42) localizados no campo do sensível. Vale ressaltar que mitos são produtos da fantasia, como ressalta Tudor (1972, p.40-41), onde “encontramos desejos reprimidos representados como sendo realizados” (Ibid., p.40-41 livre tradução), mas que são produtos coletivos, ainda que as emoções sejam individuais, porém, reconhecidamente comum a todos (Ibid.).

O olhar estético do afeto e as possibilidades de reterritorialização

A experiência estética tem na síntese perceptiva merleaupontyana o medium capaz de promover a conversão da contemplação em ação a partir dos espaços de aparência, tal como Hannah Arendt (2007) imaginou a relação entre o espaço público e o agir político, possibilitando não só o rompimento de padrões circulares, mas subsidiando novas formas de resistência, encetando o caminho para a reterritorialização do sujeito e de suas relações. A síntese perceptiva oferece a chance de (re)configurar a percepção do sujeito por intermédio da projeção de imagens em diversas configurações espaço-tempo, instigando o trânsito da empatia à simpatia, ou seja, o receptor da imagem passa do “colocar-se no lugar do outro” para efetivamente sentir-se no lugar do outro e, em razão desta experiência de quase presença passa a se comprometer com este outro, com o outro espaço. Possibilidade que há muito fora observada por Auguste Comte (1978) no tocante à capacidade afetiva, de síntese e de sinergia na relação entre indivíduo e o coletivo; diferenciação resgatada por Adela Cortina em seu livro Aporofobia (2017). Uma experiência de sensibilização preconizada por Augusto Boal em sua Estética do Oprimido (2009), ancorada na experiência estética.

A experiência estética programada pode despertar no receptor da imagem uma emoção capaz de relocalizá-lo em relação ao outro, provocando seu comprometimento com o outro, com a vida e o espaço deste outro, além de estimular a emancipação do ver. A experiência estética virtual se apresenta como o medium para a reterritorialização do sujeito, apoiada nos conceitos de desterritorialização, formulado por Pierre Lévy (2007), e computação afetiva, desenvolvido por Rosalind Picard (1997). De acordo com Lévy, a desterritorialização dos corpos fundada na virtualização, seja do sujeito ou do objeto, abre a possibilidade de erigir quadros coletivos de sensibilidade, o que é essencial no processo de reterritorialização do sujeito e suas relações.

Entretanto, há que se destacar a capacidade das mídias sociais para formatarem a experiência estética do usuário, além de interferirem na atualização da realidade e conectarem múltiplas crises. A maneira como compartilhamos e reagimos às imagens no espaço virtual é uma experiência afetiva, e a plataforma de mídia social que escolhemos molda nossa experiência. Cumpre ressaltar que a maneira como compartilhamos e reagimos às imagens no espaço virtual é uma experiência afetiva, e as plataformas de mídias sociais são responsáveis pela formatação da nossa experiência estética virtual, sob protocolos desconhecidos pelo usuário comum, gerando ainda mais complexidade e também novas vulnerabilidades, além de atualizar o sentido de incerteza que porta a palavra crise. Neste sentido, minha pesquisa atual busca desenvolver experiências estéticas (auto)programadas que permitam deslocar o foco da percepção, sensibilizando o ver e educando o olhar. Experiências que carregam a possibilidade de influência do afeto surpresa como um afeto reiniciador e sua potência descolonizadora, considerando-se que a experiência estética imposta pelas mídias sociais imprime uma atualização do sentido de colonização, de acordo com o conceito de data colonialismo desenvolvido por Couldry e Mejias (2019).

A experiência estética pensada a partir da tese de doutorado é a tradução da potência radical do afeto: “fazer agir” e “agir sobre”. É a partir desta perspectiva que o real deve ser descrito e não (re)construído ou (re)constituído, conforme recomenda a fenomenologia merleaupontyana. A experiência fotográfica permitiria descrever este real complexo, como enxerga Morin, focada na reflexão sobre uma imagem complexa, conforme defende Català Domènech (2005). Desde essa descrição seria possível modificar a percepção de uma imagem comunicada como realidade e produzir outra realidade mediada pelo afeto. Essa é a síntese de um mundo fotografado. Um mundo visto por outro corpo. A câmera fotográfica pode ser este outro corpo. Uma experiência que torna possível a reconfiguração dos padrões de comunicação a partir da ativação do sensível.

Um mundo reimaginado, fundado no visual e no afeto. O punctum na Fotografia é o afeto, observado tanto por Walter Benjamin (2013; 2017) como por Roland Barthes (2015). O afeto é a essência do ato perceptivo. É o punctum que desperta a emoção e pode produzir a afetação do corpo. Entretanto, as emoções refletem igualmente uma cultura visual que acaba modulando nossa percepção e calibrando nossos afetos. A sociedade, como também as mídias sociais, impõem filtros particulares sobre aquilo que vemos, controlando, limitando e restringindo a potência do nosso olhar. O olhar estético do afeto busca liberar nossa potência estética, aquela que reúne a potência perceptiva e a potência afetiva. É a possibilidade de emancipação do ver e da elaboração do olhar, essenciais à promoção e proteção daquilo que entendemos como Direitos Humanos. Uma proposta transdisciplinar, como devem ser encaradas as estratégias para garantia dos Direitos Humanos, compreendido em toda sua complexidade, tal como sugere Hilton Japiassu, Edgar Morin, Adela Cortina, entre tantos autores que propõem alterações nos padrões comunicativos e, assim, provocar interferências e mudanças no sistema social a partir de diferentes perspectivas. Uma abordagem fundamentada nos estudos sobre percepção, afeto e imagem.

Educar o olhar é um caminho para enfrentar a atualização do que se mostra como uma estética colonizadora impressa pelas mídias sociais. Para investigar a hipótese do afeto surpresa como um resetting affect, capaz de reiniciar nossa experiência estética virtual, permitindo construir novas imagens e relações, além de interferir no regime colonizador imposto pelas mídias sociais, proponho uma nova perspectiva utilizando a Teoria do Afeto de Silvan Tomkins, que buscou entender a relação entre consciência e emoções, a regência dos afetos nos comportamentos e na formulação de padrões comunicativos. O afeto surpresa é o elemento introduzido nesta relação capaz de interferir nas configurações perceptivas e nas calibragens afetivas. O afeto surpresa seria uma espécie de lente descolonizadora do olhar estético do afeto. O resetting affect é a possibilidade da quebra de estereótipos e da formulação de outras imagens a partir do afeto surpresa inserto em uma experiência estética programada, capaz de promover a reterritorialização das relações sociais. Esta é a potência do espanto inserta nesta proposta formulada a partir do tripé imagem, percepção e afeto, ancorada nos estudos sobre afeto e percepção.

Segundo Silvan Tomkins (1962; 1963), o que é percebido conscientemente é imageria, criada pelo próprio organismo. O mundo percebido é, segundo Tomkins, aquele apreendido a partir de um roteiro não escrito pelo sujeito que percebe. Todo o querer e não querer do sujeito, seja positivo ou negativo, seu relatório de propósitos, ou seja, sua Imagem, de acordo com Tomkins, são principalmente experiências estéticas, repercutindo no seu comportamento e no ambiente. Tomkins dividiu sua teoria entre afetos positivos, negativos e neutro. Surpresa é o único afeto neutro, atuando como um reset button, capaz de reiniciar nossas experiências afetivas para criar outras experiências e formular novas imagens, produzir outra realidade. Essas experiências comprovariam o poder da imagem como resistência através da imersão mente-corpo na imagem, quando a imagem fluida perde o referencial e acaba substituindo a própria realidade sobreposta, conforme defende Català Domènech (2005; 2011).

A experiência fotográfica pode ser o medium dessa nova forma de perceber e conceber imagens de forma complexa, deslocando o foco perceptivo e transcendendo a representação. A experiência fotográfica permite “relocalizar” o sujeito diante do outro, do outro espaço. Uma relocalização daquilo que vê, daquilo que passa a olhar. Um olhar transformado e transformador. A experiência fotográfica é a projeção do mundo olhado pelo outro. A partir desta projeção é produzida uma nova realidade, é possível imaginar um novo mundo. Um mundo que, segundo Lévy, é o próprio sujeito, “com a condição de estender-se por este termo tudo o que o afeto envolve”; o sujeito, portanto, “é um mundo banhado de sentido e de emoção” (2007, p. 107).  O sujeito localizado no virtual é um sujeito afetivo que “se desdobra para fora do espaço físico” (Ibid., p. 107), e pode ter alterada sua percepção. Segundo o autor, os afetos seriam responsáveis por atualizar o virtual. Esta atualização provocaria a eclosão de novos tipos de afetos, o que poderia ser considerada uma inventividade afetiva e que autorizaria processar a reterritorialização a partir da técnica do olhar estético do afeto.

O virtual, portanto, se constitui em uma rede de afetos, configurada por uma nova estética espaço-temporal. Nossa organização afetiva é projetada no virtual através do nosso comportamento, estimulado por novas formas de imaginar. O imaginar na concepção spinoziana é a afirmação da existência do corpo, considerando o afeto como ponto de referência da relação observação x tempo, aspecto essencial no plano virtual. É o canal perceptivo que nos permite afetar e sermos afetados, oferecendo a oportunidade de romper com algumas imagens e criar novas imagens ao provocar nossa imaginação, abrindo a possibilidade para estabelecer novos padrões comunicativos. Nossa organização afetiva reflete as imagens que construímos a partir da nossa percepção sobre o outro, e nosso comportamento é uma projeção dessa organização. De acordo com Spinoza (2017), é nossa percepção que atribui um valor negativo ou positivo, somos nós que depositamos ou debitamos valor sobre as coisas, que consideramos se as coisas são más ou boas conforme nossa percepção.

É sobre esta projeção que o olhar estético do afeto pode agir, reprogramando a percepção sobre a imagem construída a partir da nossa percepção sobre o outro, sobre o ambiente. Esta reprogramação nos permite modificar os afetos sobre a imagem projetada, sobre os valores que depositamos ou debitamos em relação ao outro. Essa reprogramação pode ser subsidiada pela computação afetiva desenvolvida por Rosalind Picard, que desde 1995 busca a construção de um padrão afetivo benéfico na relação humano e computador. Uma inteligência artificial afetiva capaz de observar e interpretar as emoções humanas e produzir uma nova afetividade – positiva, o que se refletiria nas relações sociais, permitindo imaginar e produzir outros retratos. Essa nova afetividade permitiria nossa reterritorialização a partir de experiências estéticas (auto)programadas.

Considerações finais

A primeira grande crise pandêmica do século XXI evidenciou uma atualidade regida por um novo regime estético, imposto por outra relação espaço-temporal que tornou ainda mais complexa a maneira como lidamos com as imagens, com aquilo que imaginamos. Essas novas formas de produzir imagens a partir da desterritorialização do sujeito abrem novos quadros de vulnerabilidade. Apesar do aparente domínio das novas tecnologias que configuram a vida virtualizada, o usuário das mídias sociais encontra-se submetido a uma experiência estética capaz de modular sua configuração perceptiva e calibrar sua organização afetiva sem que seja possível acessar os protocolos destas programações algorítmicas, quiçá os objetivos dessa interferência. A experiência estética imposta pelas mídias sociais expõe uma nova forma de controle social e expõe uma atualização da estética colonizadora.

Se nossa relação com as imagens já se mostrava precária, a vida nas mídias sociais confirma a urgência de uma “alfabetização visual”, de acordo com Josep Català Domènech (2011). A educação do olhar torna possível o desenvolvimento de nossa potência estética: a capacidade de perceber, afetar e afetar-se. É o desenvolvimento da nossa potência estética que possibilita erigir uma resistência à interferência obscura das programações algorítmicas impostas pelas mídias sociais e seu efeito colonizador. É a partir do despertar da sensibilidade que o sujeito pode formar e desenvolver sua capacidade crítica e proteger sua configuração perceptiva e sua organização afetiva. Aprendizagem que se articula a partir do sensível e dos conhecimentos que estruturam as imagens, capazes de conduzir os processos reflexivos, como observa Català Domènech (2011), permitindo esclarecer e propor ideias. Os processos reflexivos podem ser instituídos por intermédio da síntese perceptiva merleaupontyana, responsável por promover a transformação do ver em olhar e provocar o trânsito da contemplação em ação, o que implicaria na produção de novas imagens e a possibilidade de (re)constituir as relações sociais. Um processo potencializado pela experiência estética virtualizada (auto)programada, que oferece novas formas de construir realidade e criar afetividades.

É a partir do tripé afeto, imagem e percepção que o padrão comunicativo é estabelecido, responsável pela produção das imagens do marginal, do cidadão de bem, entre tantas imagens que fazem parte do nosso repertório social. Imagens que podem promover estigmatizações e mi(s)tificações. Educar o ver, portanto, é estratégia de resistência, de promoção de práticas democráticas e que se faz possível por intermédio da experiência sensorial, aquela que oferece outra perspectiva para imprimir novos padrões de comunicação e gerar outros afetos. Uma interferência na minha imagem de mundo. Um mundo que na concepção merleaupontyana não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; e, agora, aquilo que eu vivo virtualmente. Minha experiência estética é a projeção da minha percepção sobre o mundo. Segundo Merleau-Ponty, esta experiência reflete a imagem que temos do mundo.

É preciso atentar para o fato que as projeções de nossos padrões afetivos retroalimentam essas cadeias virtuais de programações perceptivas que fazem parte de uma conexão modulada por interesses, privados ou públicos, capazes de calibrar nossa organização afetiva, revelando-se como uma atualização do colonialismo, o data colonialism (COULDRY, MEJIAS, 2019), responsável por capturar regimes democráticos e imprimir um novo alinhamento mundial, a partir de experiências estéticas programadas e regidas por protocolos ainda obscuros para a maioria dos usuários e que colonizam nosso ver. Considerando que os algoritmos não rompem padrões e as programações algorítmicas são em grande medida projeções de nossos comportamentos, reprogramá-los poderia gerar novos padrões de comunicação, especialmente nas mídias sociais, integradas por uma complexa conexão de dados e redes de afetos, responsáveis por imprimir uma estética colonizadora. É nesse contexto que emerge a hipótese do afeto surpresa como um resetting affect, capaz de interferir em nossa configuração perceptiva e organização afetiva, oferecendo a possibilidade de reconfiguração perceptiva social e a descolonização por intermédio de uma computação afetiva. Educar o olhar é estratégia de resistência, tal como preconizara Paulo Freire, Jean Piaget, Augusto Boal, como tantos outros defensores de uma educação afetiva, talvez a única saída contra a autodestruição da sociedade.

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Notas:

[1] Referência à eleição de Jair Messias Bolsonaro à presidência da República Federativa do Brasil, em 2018.

Palavras Chaves

Estética; Percepção; Afeto; Reterritorialização; Direitos Humanos.