TEORIAS JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS E PRÁTICAS SOCIAIS

Resumo

As teorias jurídicas contemporâneas no contexto do conhecimento do direito caracterizado por uma perspectiva crítica, interdisciplinar e inspirada nas práticas sociais.

Artigo

TEORIAS JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS E PRÁTICAS SOCIAIS

 

(Texto originalmente apresentado na abertura do seminário com o mesmo título organizado pelos cursos de Mestrado e Doutorado da FND, em 29 de março de 2021 em comemoração dos 130 anos da FND)

 

 

Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca

Professora aposentada da FND

Doutora e Livre Docente da FND

Professora titular da Faculdade de Direito da UFF

Resumo: As teorias jurídicas contemporâneas no contexto do conhecimento do direito caracterizado por uma perspectiva crítica, interdisciplinar e inspirada nas práticas sociais.

Palavras chave: teoria jurídica e sua contemporaneidade, práticas sociais, interdisciplinaridade, visão crítica do direito, influência de outros saberes.

Introdução

É com grande satisfação que outra vez me vejo, mesmo que virtualmente, no ambiente da querida Faculdade Nacional de Direito que comemora, neste trágico 2021, seus 130 anos de existência. No Brasil, onde as instituições culturais não costumam ter vida longa e onde a memória do passado raramente é detectada pelo radar dos interesses, é gratificante participar das comemorações da trajetória  de uma faculdade centenária. Agradeço aos professores Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira e Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva pelo convite para participar desta mesa de abertura do seminário.

Desenvolvimento

O tema geral deste seminário me surpreende muito gratamente e me traz boas lembranças do tempo em que lecionei da FND, entre 1969 e 1995. Na verdade, as melhores recordações daquele tempo, situam-se nas décadas de 1980 e 1990, quando se passou  a dar maior importância à possibilidade de incorporar ao   pensamento sobre o  direito  uma perspectiva crítica e interdisciplinar. Criou-se inclusive, com a minha participação, um núcleo para estimular o intercâmbio entre as disciplinas dos departamentos e destas com outras áreas do conhecimento como a sociologia, a filosofia, a ciência política. E com ênfase para o intercâmbio do conhecimento jurídico com práticas sociais. O tema abrangente da proposta do Núcleo era Teoria Jurídica e Práticas Sociais. De que teoria e de que praticas sociais se tratava naquele momento?

 A expressão teoria, no singular, aceitava o pressuposto de que o ponto de referência da análise era a teoria jurídica corrente, de corte positivista. Entendia-se que era essa a teoria a ser criticada, avaliada, esquadrinhada, confrontada com relações e práticas do cotidiano da sociedade, de preferência aquelas aparentemente esquecidas cujos atores sociais, embora formalmente garantidos pelo ordenamento jurídico estavam, de fato, alijados da proteção das leis. Esse pretendido olhar crítico precisava estar, necessariamente, respaldado por conceitos e métodos que permitissem conceber o direito como um objeto de análise não estático, mas em movimento, tanto na sua produção como  aplicação.

Entendo que essa ideia está implícita no tema desta mesa: teorias jurídicas contemporâneas e práticas sociais.  Teorias jurídicas, agora no plural, e mais ainda, que sejam contemporâneas.

Li, há pouco tempo, um texto de um professor de direito que dizia que o contemporâneo no direito tem algumas dezenas de anos. Isso me levou a indagar o que é, afinal, ser contemporâneo. Para logo, lembrei-me do filósofo italiano, Giorgio Agamben que, ao refletir sobre a sucessão das fases históricas se refere aos dois deuses gregos do tempo, Chronos e Kairós.  O primeiro – Chronos – simboliza o tempo linear, cronológico, consecutivo, seqüencial; o segundo – Kairós – expressa o tempo  independente da cronologia, um tempo  que não pode ser medido: trata-se  do momento certo, oportuno. Eu aqui acrescento que as teorias, estejam em que campo do pensamento estiverem, são contemporâneas enquanto o seu conteúdo não se esgotou, enquanto Chronos não as desgastou, não as esvaziou ou envelheceu,  continuam, pois, plenas de sugestões.  Trazem elementos ainda úteis para explicar e avaliar a vida e o que nela se produz. As teorias jurídicas contemporâneas pertencem, pois, ao tempo Kairós.

Preferi fazer um pequeno retrospecto nas minhas memórias, rebobinando a fita para retroceder aos anos 80/90 nesta FND e lembrar quais  estruturas teóricas foram então utilizadas, pelos docentes que participaram de alguma das atividades do Núcleo Interdisciplinar de Direito e Sociedade (NIDS). Que instrumentos teóricos foram utilizados para ilustrar aulas, embasar pesquisas, sustentar trabalhos de extensão, questionar a teoria jurídica corrente que foca de preferência na forma do direito.

Naquele momento, as atenções da Universidade se voltavam para a Constituição de 1988 no que se refere à norma contida no art. 207, que prescreve a  indissociabilidade  entre o ensino, a pesquisa e a extensão como princípio  norteador das atividades acadêmicas universitárias.  O NIDS criado na FND no início dos anos 80 levou a sério esse princípio e tentou realizá-lo experimentalmente.

No contexto do curso da FND – como afinal de todos os demais cursos de direito pelo Brasil afora –  esse preceito constitucional não era de fácil realização tendo em vista as características  do ensino do direito, dividido entre a abordagem teórica e o exercício prático do direito. A parte teórica ministrada em sala de aula, pautado por uma perspectiva doutrinária positivista, de inspiração kelseniana ou dogmático-jurídica, como prefere Tércio Sampaio Ferraz e a prática, exercida nos escritórios modelo onde o aluno acompanhava processos judiciais, reais ou fictícios. Essa organização pedagógica estava voltada preferencialmente para a formação de advogados.

Sempre houve variantes do positivismo jurídico, nas diferentes áreas do direito. Contudo essas variantes mantinham fidelidade, por um lado, ao estilo dogmático nos seus desdobramentos e conclusões, inspirados de preferência, na leitura dos documentos legais; por outro lado, fiel também à abordagem disciplinar das matérias. Ou seja, o direito, acompanhando o entendimento da época – que afinal não era tão diferente do de outras áreas do conhecimento – mantinha-se separado e isolado no seu espaço próprio, sem contatos com conhecimentos outros, mesmo que reconhecidos como afins. A esse respeito, lembro-me do conselho de um dos meus professores, Haroldo Valadão, professor de Direito Internacional Privado. Logo na primeira aula, informava ele que cada disciplina e cada campo da ciência têm o seu próprio objeto e que para ser exato e pertinente era preciso respeitar os respectivos espaços científicos. Citava uma frase em francês que ele afirmava resumir perfeitamente a sua convicção: “tiens-toi a ton sujet”.

É verdade que, depois da 2ª guerra mundial, algumas teses jurídico-positivistas começaram a ser confrontadas a partir de uma matriz hermenêutica. Tornou-se corrente entre muitos autores a ideia de se buscar critérios de interpretação das leis que garantissem a realização da justiça e não apenas a aplicação mecânica do ordenamento jurídico segundo as regras da dedução.

François Geny (1861/1959) (Interprétation et sources en droit privé positif e Science et Técnique), foi dos primeiros a trazer para o campo da reflexão jurídica, mediante  o método da livre pesquisa científica,  elementos de  outras ciências como a sociologia, a economia, a filosofia, a teologia. Geny aponta a insuficiência da letra da lei para levar à solução adequada de muitos problemas e conflitos jurídicos. A exegese dos textos legais, segundo o autor, não basta. Há que se fazer apelo a elementos da realidade, como os costumes, para se chegar a uma solução jurídica aproximada do ideal. Geny foi dos primeiros juristas a discordar do antagonismo entre as categorias direito e realidade que pela via da interpretação se combinam.

Philip Heck, 1858/1943, é o principal nome da corrente  alemã jurisprudência de interesses, contraposta à jurisprudência de conceitos. Essa linha de pensamento tem base nas críticas ao positivismo legalista instalado na Alemanha da primeira metade do século XX. Naquele momento, um movimento de juristas propugnou por um viés teleológico e sociológico na indagação do sentido do direito e da função dos juristas.   Philip HECK, sob a influência da perspectiva finalista de Ihering, afirmou que a função da atividade judicial é a satisfação das necessidades e desejos em conflito, que ele chama de interesses. Garantir os interesses é função do direito, enquanto norma e enquanto interpretação das normas. A lei, diz Heck, deve ser interpretada teleologicamente dirimindo conflitos entre interesses e garantindo que os interesses mais valiosos estejam sempre preservados. No El Problema de la Creación del Derecho aborda o tema da harmonização entre os valores da segurança e da justiça mediante a metodologia que se foi construindo a partir das afirmações da jurisprudência de interesses.

Carlos Maximiliano (1873/1960) em Hermenêutica e Aplicação do Direito, editada em 1941, afirmou a interpretação do direito como arte ou técnica merecedora de uma metodologia específica. Propunha a hermenêutica como um conjunto de critérios para a criação de uma jurisprudência judicial sintonizada com as mudanças sociais históricas que determinavam inovações no campo do direito.

São apenas três os exemplos aqui trazidos, mas significativos da reflexão da época sobre a importância de resgatar os vínculos entre direito e vida social, superando o método da subsunção do caso à lei.  Contudo, mesmo que a interpretação do direito, com laivos inovadores, tenha entrado no rol das matérias integrantes das disciplinas jurídicas, a abordagem dos temas ainda era predominantemente descritiva.  As propostas no campo da hermenêutica jurídica não foram sempre entendidas como caminho adequado para superar os excessos do formalismo jurídico. Os autores mais contestadores da década de 50 temiam que essas estratégias tivessem sido utilizadas como instrumentos de legitimação das atrocidades dos regimes políticos autoritários vigentes na Europa do entre guerras.

Os cursos de direito no Brasil nos anos 50, 60 eram indiscutivelmente ricos em informações técnico-jurídicas e históricas, ministrado por professores eruditos e muitos deles fascinantes, como alguns dos meus professores na PUC-Rio de fins dos anos 50, início dos anos 60. Contudo, não se discutia, em qualquer das disciplinas, a insuficiência do ordenamento vigente e da teoria jurídica de corte positivista para incorporar formas novas de reivindicações. Isso significa que, muitas práticas, movimentos e reivindicações sociais ou eram ignorados ou, em certos casos, vistos como perigosos e atentatórios à ordem e a segurança sociais.

Não me lembro de ouvir nas aulas, entre fins de 50 e inícios de 60, referências às questões relativas aos trabalhadores rurais que desde 1930 vinham ganhando visibilidade no cenário nacional. No ano de 1932 criou-se o Sindicato dos Cortadores de Cana em Campos dos Goytacazes. Em 1945, por um decreto lei, os sindicatos de patrões e de empregados se separaram. A reforma agrária após a II Guerra Mundial passou a ser uma demanda em todo o território nacional, mediante protestos e até greves.  Enfim, eram temas que levariam certamente à discussões, questionamentos sobre a qualidade da legislação para atender a esses novos movimentos sociais e sobre as supostas limitações  da teoria jurídica de corte positivista para a reflexão e encaminhamento de soluções para os conflitos que se alastravam. Esse tipo de discussão sobre problemas sociais agudos eram considerados predominantemente políticos, não cabia no âmbito do estudo do direito.   

A expressão movimento social passou a ser usada a partir de 1950 por sociólogos e historiadores como Eric Hobsbawn (1917/2020).  Esse historiador foi dos primeiros a fazer alusão às mudanças sociais. Mas havia reação contra tais movimentos, entendidos como ameaçadores do modo tradicional de vida. Um exemplo desse tipo de agir no Brasil, é a reação contra a Campanha de Canudos nos últimos anos do século XIX, no período entre a queda da monarquia e a instalação da república.

Mas, foi por volta de 70/80, que começou-se a abrir espaço, no contexto do estudo teórico, para a compreensão   das reivindicações, a respeito, por exemplo,  do uso da terra, levado a efeito  pelo  Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (1984), o mais expressivo movimento de organização social no Brasil. No âmbito urbano destacou-se a reivindicação do direito à moradia, envolvendo ocupações ilegais de prédios abandonados e as construções de lajes sobrepostas às construções base, nas favelas. Ricardo Pereira Lira, professor da UERJ, foi dos primeiros a refletir sobre o “direito de laje”, hoje regulado por lei de 2017, antes por Medida Provisória. O direito de laje passou a integrar o rol dos temas do curso de direito da UERJ, listado, dentre outros, sob a rubrica “Direito da cidade”: “a cidade não é só de quem é proprietário, mas de quem vive nela”. Implantou-se na pós-graduação em direito da UERJ uma linha de pesquisa intitulada “Direito das Cidades” para analisar a função social da cidade.

 Portanto, em fins de 70 e inícios de 80, a sugestão principal contida no tema Teoria Jurídica e Práticas Sociais era de se tentar indagar sobre os possíveis limites do ordenamento jurídico vigente, e também da teoria jurídica que lhe dá sustentação, para acolher práticas, reivindicações sociais e conflitos emergentes que, aparentemente extrapolavam as figuras legais.  A proposta era de uma reflexão crítica partindo do levantamento de dados de realidade, conflitos e demandas.   O modo de abordagem e de análise seria interdisciplinar, com o auxílio, de preferência, da   sociologia.

O ponto de partida para essa empreitada foi à observação de uma sociedade cada vez mais fragmentada e mais desiludida com as instituições jurídicas e políticas. Não era muito difícil verificar o afastamento entre o direito vigente e as demandas sociais.  Pressuposto dessa reflexão era a suposição de que, nas próprias demandas sociais, seria possível encontrar o cerne da solução jurídica ou pelo menos, uma inspiração certeira.

Na verdade, naqueles anos, eram duas as vertentes da pesquisa. A primeira, explorava a interpretação do direito, em especial das leis procurando interstícios que levassem à apreciação e atendimento das demandas sociais que permaneciam à margem das regras jurídicas vigentes. A segunda investiu na articulação entre direito e sociologia visando à construção de uma metodologia sócio-jurídica. Essa segunda visão não repercutia no ensino jurídico no Brasil, salvo em alguns cursos de direito, como o da UNB. Ali criou-se, em 1986, o  projeto Direito Achado na Rua, coordenado até hoje, pelo professor José Geraldo de Sousa Junior e inspirado nas ideias de Roberto Lyra Filho (O que é Direito; Desordem e Processo; Para um Direito sem Dogmas). Lira Filho buscava construir um paradigma político-epistêmico em substituição ao liberal-metafísico, como moldura para as pesquisas.

Na verdade, a reflexão crítica do direito, no Brasil, mas também em outros países, chegava com um intervalo de quase 50 anos. A sua matriz se encontra no Instituto para Pesquisa Social, que ficou conhecido como Escola de Frankfurt, criado em 1924, transferida para Genebra em 1933 e em 1935 para a cidade de Nova York, onde se  incorporou  à Universidade de Columbia. Só voltou para a Alemanha e 1953.  Seus integrantes eram cientistas sociais de formação marxista.

Teorias jurídicas contemporâneas

 Dentre as teorias jurídicas contemporâneas eu destaco, desde logo, duas que cabem no contexto da teoria da argumentação e da interpretação de meados do século XX.

Uma delas é a Tópica-problemática de Theodor Vieweg (1907/1988) uma teoria da argumentação que busca critérios seguros para fundamentar decisões. Th. Vieweg, filósofo alemão era juiz daí a sua atenção voltada para a solução de casos concretos que chegam ao Poder Judiciário.

 A tópica é uma técnica de pensar problemas. Duas afirmações de Vieweg são importantes. A primeira é a de que no direito não há certezas absolutas. A segunda, corolário da anterior, afirma que o direito é um sistema aberto à reflexão, partindo sempre do provável. Trata-se de um sistema dialético de re-compilação de pontos de vista (topos) em permanente movimento.  Parte do simples, do especifico para o geral: “a arte de pensar problemas”, na expectativa de uma solução justa. Busca critérios racionais para fundar decisões a partir de conflitos concretos, com o intuito de romper com o modo sistemático e dedutivo de raciocinar.

Th Vieweg vai buscar em Aristóteles e na prática jurídica dos pretores romanos elementos do pensar tópico solucionando conflitos de forma casuística com base na opinio communis. A justiça entre os romanos se formava assim: da opinio communis se extraiam princípios que serviriam de fundamento para novas decisões. Em Th. Vieweg, a argumentação é uma ferramenta na busca da melhor decisão.

A tópica retórica de Th. Vieweg foi muito criticada, por exemplo, pelo espanhol Manuel Atienza (1951) (As razões do Direito) e Robert Alexy (1945) alemão (Teoria sobre os Direitos Fundamentais). Entendem esses autores que a teoria é ingênua e pouco precisa. Arrisca desprestigiar a leis sem substituí-la por algo mais seguro. Contudo, reconhecem que as idéias de Th. Vieweg trazem sugestões importantes para o enfrentamento do tema da interpretação nos dias de hoje.

Outra importante teoria jurídica contemporânea é a do jurista e filosofo do direito Herbert Hart (1907/92). Esse autor, embora considerado um representante do positivismo jurídico, ou da teoria analítica do direito, é um inovador do pensamento jurídico do século XX e, até certo ponto, abre espaço para se refletir sobre o que é o direito para além das estruturas do próprio positivismo jurídico.

 A compreensão do conceito de direito, da teoria da interpretação judicial, da responsabilidade do juiz diante da sua tarefa de intérprete das leis e dos casos numa democracia são temas discutidos por Hart, cujo interesse permanece intacto hoje. Segundo Hart a maioria das leis permite interpretações e soluções judiciais diferentes. O juiz escolhe entre sentidos alternativos das leis. A leitura de Hart é útil e mesmo necessária, porque esse autor não é um positivista clássico, no sentido de John Austin cuja teoria é objeto da sua crítica. Seu pensamento é bastante original e inspirador de reflexões sobre as mudanças sociais e como repercutem no direito.

No campo da sociologia, vale destacar Jurgen Habermas (1929). Conta 91 anos. Pertence à 2ª. Geração da Escola de Frankfurt. Sua teoria critica vincula-se ao pragmatismo contemporâneo. Dois conceitos são fundamentais para o desenvolvimento do pensamento habermasiano: o conceito de razão comunicativa oposta à razão instrumental que, segundo Jurgen Habermas, teria desencadeado o holocausto judeu, a lógica da barbárie; e o conceito de esfera pública, espaço de interação e discussão.

Dois dentre os muitos livros de Habermas, são especialmente importantes para os objetivos de uma abordagem jurídica crítica: Teoria da Ação Comunicativa e Inclusão do Outro. Nesses escritos o autor afirma o reconhecimento da pluralidade como requisito para a formação de sociedades republicanas democráticas.

Habermas propõe–se superar o conceito de racionalidade instrumental da ciência e da técnica – que toma conta dos espaços institucionais da sociedade – ampliando o conceito de razão e chegando ao conceito de razão comunicativa. A razão comunicativa, segundo Habermas, é a que se utiliza na prática do discurso, que através da linguagem, busca o consenso.

No seu livro de 1996, A Inclusão do Outro, Habermas insiste na ideia de que a política e o direito numa democracia dependem de propostas inclusivas sem preconceitos de qualquer ordem. Para o êxito da inclusão, digo eu, o instrumental jurídico é de fundamental importância. As instituições jurídicas, como a lei e o judiciário precisam estar atentos para que, tal como imagina Habermas, o respeito recíproco prevaleça entre todos: iguais e distintos, conhecidos e estranhos entre si.

Discutiu-se na literatura jurídica brasileira, desde inícios de 80, as vantagens e mesmo a necessidade de se forjar um pensamento crítico sobre a realidade social e jurídica no Brasil.  Luiz Fernando Coelho, professor da Universidade Federal do Paraná,  publicou em 1982 o livro Teoria Crítica do Direito. Mais adiante, em 1995, Antonio Carlos Wolkmer, professor da Unisinos no Rio Grande do Sul, publicou uma Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. Em 2003 Edson Fachin publicou a Teoria Critica do Direito Civil: à luz do novo código civil brasileiro. A essa mesma linha de pensamento pertencem às publicações sobre o Direito Alternativo.  No contexto da proposta alternativa vale lembrar aqui a revista Contradogmáticas dirigida pelo jurista Luís Alberto Warat, as publicações do IAJUP – Instituto de Apoio Jurídico Popular, dirigido por Miguel Pressburger e as publicações do projeto O Direito achado na Rua.

 Atualmente não acompanho, ou apenas esporadicamente, essa linha de investigação. Mas, o que é certo, é que as críticas do Direito e também do Estado nunca chegaram a construir teorias. Tratou-se, como ainda se trata, de uma permanente atenção e reflexão em torno das limitações do direito institucionalizado diante das sempre crescentes e diversificadas e mutáveis demandas sociais, oriundas de muitos setores da sociedade. Obviamente, que a perspectiva crítica do direito sempre esteve comprometida com as demandas dos segmentos mais destituídos da sociedade tanto no setor rural como na cidade.

Hoje essas questões aparecem imbricadas com o problema da proteção ambiental. A expulsão dos índios, por madeireiros e grileiros, das áreas ocupadas pelas tribos é um exemplo contundente da necessidade de uma ação jurídica mais eficaz.  O intuito é derrubar matas para a criação de gado. As leis garantem aos índios a posse permanente das terras da União e o usufruto dos rios, lagos e riquezas do solo. Contudo, em face da ausência de demarcação ou demarcação não adequada as populações indígenas sofrem com a poluição dos rios causada pela presença de usinas hidrelétricas dentre outras intervenções em suas terras, tornando sua vida impossível e expulsando-os para outros lugares. O que fazer juridicamente?

 Recentemente, com a pandemia que assola o mundo, aqui no Brasil os óbitos ocorrem de preferência nas populações mais pobres. O estarrecedor é que as instituições políticas, mas também as jurídicas, não respondem satisfatoriamente aos problemas que se acumulam como a falta de condições do SUS e a fome das famílias que perderam suas fontes de renda por causa do isolamento. Os auxílios emergenciais são ridículos, mas o que está ao alcance das instituições jurídicas fazer?

Na análise, supostamente substituta da teoria jurídica de corte dogmático, se questionava a necessidade de reavaliar conceitos,   discutir as chances de se abrir,  no âmbito  teórico-jurídico, espaço para a  discussão  em torno da possível recepção pela  teoria jurídica dos  conceitos e  métodos de outras ciências, principalmente, da sociologia, com o intuito de  torná-lo um instrumento mais rico e eficaz de compreensão das relações sociais. Tratava-se de inicio de explorar a possibilidade de abrir brechas na teoria jurídica existente de forma a torná-la permeável às práticas sociais de segmentos sociais mais desfavorecidos.

Já havia alguns anos autores juristas vinham tentando incorporar ao conhecimento jurídico elementos do pensamento crítico, de inspiração marxista e também kantiana.  Um dos expoentes dessa linha teórica é o francês Michel Mialle. Sua Introdução Crítica ao Direito (1975) foi muito festejada aqui no Brasil onde ele esteve alguma vez. Entre os autores nacionais se destacam, como foi dito acima, Roberto Lira Filho, da Universidade de Brasília, de formação marxista, como também autores que começaram a debater o direito alternativo a partir de 1970. No Rio de Janeiro o Instituto de Apoio Jurídico Popular (IAJUP) liderado por Miguel Pressburger foi pioneiro nessa reflexão e na formação de advogados para o movimento popular.  O tema Teoria Jurídica e Práticas Sociais foi inaugurado, pois, sob a égide da reflexão crítica e interdisciplinar, muitas vezes de inspiração marxista, mas não sempre. Há outras influências teóricas relevantes que merecem ser ainda exploradas.

Uma das linhas de pensamento válida para se pensar criticamente o direito é a da argumentação e retórica iniciada por Chaim Perelman, polonês (1912/84). Na Belgica, onde viveu a maior parte da vida, Perelman publicou o Traité de l’argumentation – La nouvelle rethorique, escrito em parceria com  Lucie Olbrechts-Tyteca.  O seu livro sobre o direito é Lógica Jurídica, traduzido e publicado pela editora  Martins Fontes. Hoje, mais do que em tempos passados, a lógica aplicada à argumentação jurídica é um instrumento de suma importância em face das tormentosas questões jurídicas com as quais se enfrentam os tribunais. Casos jurídicos que apresentam aspectos não perfeitamente assimilados pelas leis (informática e outras tecnologias, como a das áreas biomédicas e neuropsicológicas, etc), colocam em evidência situações para as quais o argumento convincente em prol da melhor decisão nem sempre tem apenas na lei o ponto de partida.

Zigmunt Bauman, sociólogo e filósofo polonês, (1925/2017), com seu conceito de modernidade liquida contribui para se refletir sobre o modo como ocorrem as relações sociais atualmente. As questões prediletas desse autor giram em torno da globalização, da ética, da política, da comunicação. Seu mote é a constante transformação da modernidade que ele denomina “líquida”. “A mudança é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza”. Temas para a pauta da reflexão jurídica: como fica a teoria e a prática jurídicas diante das afirmações de Baumant sobre as mudanças constantes do conceito de cidadania e de direitos humanos, por exemplo? Que respostas político-jurídicas oferecer às oposições gritantes como igualdade versus desigualdade, muros versus pontes? Em Vidas Despedaçadas, livro de 2003, Baumant coloca para a reflexão dos juristas o tema da sobrevivência de contingentes humanos de destituídos que vagam pelo mundo, sem leis que os protejam, alijados do sistema de produção. Qual o destino essas massas? O que as teorias jurídicas têm a dizer sobre esses fenômenos contemporâneos?

Cito aqui ainda, com a liberdade de escolha que me atribuo, outro autor que considero deva ser incorporado aos teóricos do tempo Kairós. Trata-se do sociólogo do direito Boaventura de Sousa Santos, português, natural de Coimbra. Esse autor, considerado um sociólogo dos mais eminentes da atualidade, traz sugestões interessantes para se pensar o direito e a sociedade do século XXI. A matriz das ideias de Boaventura do Sousa Santos é crítica e interdisciplinar. A sua mais recente proposta é de construção do que denominou Epistemologias do Sul. Trata-se de um conjunto de procedimentos que visa a validar o conhecimento nascido na luta contra males que impactam negativamente a vida social, de modo particular nas sociedades democraticamente frágeis como a nossa. Esses males são o colonialismo, o capitalismo e o patriarcado.

Boaventura de Sousa Santos toca no cerne do tema da justiça/injustiças do nosso tempo – questão magna do direito – quando confronta a democracia com o sistema econômico  capitalista. Também quando discute a questão das “fronteiras invisíveis” entre seres humanos e seres sub-humanos que não merecem os direitos dos humanos. Sousa Santos coloca como pauta de reflexão graves dimensões da injustiça social para todas as áreas do conhecimento social, mas o tema tem repercussões especialmente importantes no campo do direito.

Desde meados do século XX, juristas, filósofos, sociólogos, aos quais, neste início do século XXI, se acrescentam os cientistas da área da saúde física e mental, os pedagogos, os ambientalistas, os escritores, os cineastas, etc, trazem sugestões, a partir de diferentes pontos de vista, para se (re)pensar o direito. Como abarcar formas diferentes de luta que eclodem no meio de grupos sociais que se multiplicam; como validar, sem preconceitos, conhecimentos que extrapolam o conhecimento hegemônico; como reconhecer como práticas culturais legítimas aquelas que transbordam das fôrmas dos modelos tradicionais de agir e de pensar; como enfrentar a violência e a insegurança nas sociedades cada vez mais tumultuadas e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos individuais?

Diante dessas e de outras questões preocupantes, as novas teorias e seus insights e sugestões se juntam a outras mais antigas, mas ainda contemporâneas, na busca de equacionamentos jurídicos apropriados. Pertencem todas ao tempo Kairós.

 

Palavras Chaves

teoria jurídica e sua contemporaneidade, práticas sociais, interdisciplinaridade, visão crítica do direito, influência de outros saberes.