TERCEIRO SETOR E A PRESTAÇÃO FINALÍSTICA DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA: UMA ANÁLISE DOUTRINÁRIA-NORMATIVA

Resumo

O terceiro setor consiste em relevante bloco social intermediário entre o Estado e o comércio. Basicamente, a sociedade civil, diante da paulatina insatisfação com os serviços públicos e a imediata necessidade de defender direitos, passou a agir por conta própria, independentemente do aval estatal. Com isso, as entidades setoriais acumularam uma responsabilidade irrenunciável, uma vez que passaram a complementar as atividades de interesse civil. Dentre estas áreas desenvolvidas, pode-se citar a saúde, a educação, e o meio ambiente. Porém, esse rol está longe de ser taxativo e uma atividade específica que gera curiosidades é a prestação finalística de assistência jurídica gratuita, ou seja, determinada entidade setorial presta assistência à população juridicamente, com assessoramento e ingresso de ações. Isso não se confunde, porém, com o auxílio incidental prestado por estas entidades, em que, se as atividades desenvolvidas são educacionais, é permitida a tutela destes interesses judicialmente. Assim, espera-se abordar o tema de forma geral, dada a escassez de conteúdo acadêmico.

Abstract

The third sector consists of a relevant intermediary social block between the State and commerce. Basically, civil society, faced with the gradual dissatisfaction with public services and the immediate need to defend rights, began to act on its own, regardless of state approval. As a result, the sectoral entities have accumulated an inalienable responsibility, since they started to complement activities of civil interest. Among these developed areas, one can cite health, education, and the environment. However, this list is far from being exhaustive and a specific activity that generates curiosity is the final provision of free legal assistance, that is, a specific sectoral entity provides legal assistance to the population, with advice and entry of actions. This is not to be confused, however, with the incidental assistance provided by these entities, in which, if the activities carried out are educational, judicial protection of these interests is allowed. Thus, it is expected to approach the topic in a general way, given the scarcity of academic content.

Key-words: Third sector; Free legal assistance; Control.

Artigo

TERCEIRO SETOR E A PRESTAÇÃO FINALÍSTICA DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA GRATUITA: UMA ANÁLISE DOUTRINÁRIA-NORMATIVA

Armindo Madoz Robinson[1]

 

Resumo: O terceiro setor consiste em relevante bloco social intermediário entre o Estado e o comércio. Basicamente, a sociedade civil, diante da paulatina insatisfação com os serviços públicos e a imediata necessidade de defender direitos, passou a agir por conta própria, independentemente do aval estatal. Com isso, as entidades setoriais acumularam uma responsabilidade irrenunciável, uma vez que passaram a complementar as atividades de interesse civil. Dentre estas áreas desenvolvidas, pode-se citar a saúde, a educação, e o meio ambiente. Porém, esse rol está longe de ser taxativo e uma atividade específica que gera curiosidades é a prestação finalística de assistência jurídica gratuita, ou seja, determinada entidade setorial presta assistência à população juridicamente, com assessoramento e ingresso de ações. Isso não se confunde, porém, com o auxílio incidental prestado por estas entidades, em que, se as atividades desenvolvidas são educacionais, é permitida a tutela destes interesses judicialmente. Assim, espera-se abordar o tema de forma geral, dada a escassez de conteúdo acadêmico.

 

Palavras-chave: Terceiro setor; Assistência jurídica gratuita; Controle.

Abstract: The third sector consists of a relevant intermediary social block between the State and commerce. Basically, civil society, faced with the gradual dissatisfaction with public services and the immediate need to defend rights, began to act on its own, regardless of state approval. As a result, the sectoral entities have accumulated an inalienable responsibility, since they started to complement activities of civil interest. Among these developed areas, one can cite health, education, and the environment. However, this list is far from being exhaustive and a specific activity that generates curiosity is the final provision of free legal assistance, that is, a specific sectoral entity provides legal assistance to the population, with advice and entry of actions. This is not to be confused, however, with the incidental assistance provided by these entities, in which, if the activities carried out are educational, judicial protection of these interests is allowed. Thus, it is expected to approach the topic in a general way, given the scarcity of academic content.

 

Key-words: Third sector; Free legal assistance; Control.

1 – Introdução

O Terceiro Setor participa de diversos setores públicos, como saúde, educação, assistência social, direitos humanos e meio ambiente. Os recursos necessários para o desenvolvimento de tais ações podem envolver desde o patrimônio da própria entidade, como também doação de particulares ou repasses estatais.

Mesmo possuindo autonomia de atuação, há limites impostos aos entes setoriais, a fim de evitar a prática de crimes e desvios de finalidade. A finalidade é simplesmente garantir o devido atendimento da sociedade, ou seja, evitar que ela seja prejudicada.

A atuação finalística de serviços jurídicos gratuitos não consta explicitamente como proibição em qualquer dispositivo normativo pátrio. Ao contrário, há casos em que é permitida essa possibilidade, seja finalisticamente ou incidentalmente, tudo em nome de interesses sociais.

Porém, mesmo havendo dúvidas especificamente sobre a atuação finalística, é preciso que se estabeleça um entendimento geral sobre essa possibilidade, além de se definir eventuais tipos de controle a serem realizados.

Assim, serão estudados neste trabalho o Terceiro Setor, seu contexto social e sua relação, considerando elementos normativos brasileiros, com a atuação finalística de prestação de serviços jurídicos gratuitos.

2 – Terceiro Setor e assuntos conexos: Conceito, entidades participantes e atividades privadas de interesse público

Para falar do Terceiro Setor, é preciso entender, primeiramente, que sua localização é intermediária entre o Primeiro Setor e o Segundo Setor.

O Primeiro Setor, que é o Estado, é necessário para tudo existir, pois sem Estado não há elementos mínimos de existência coletiva.

O Segundo Setor, por sua vez, representa o mercado, ou seja, as relações privadas de cunho econômico.

Já o Terceiro Setor, embora tenha esta denominação, está entre o público e o privado, pois são entidades privadas que prestam serviços de interesse público.

O Terceiro Setor é conceituado pelo professor José Eduardo Sabo Paes[2] como o “conjunto de organismos, organizações ou instituições sem fins lucrativos dotados de autonomia e administração própria que apresentam como função e objetivo principal atuar voluntariamente junto à Sociedade Civil visando ao seu aperfeiçoamento”.

Então, também podem ser definidas como o conjunto de entidades privadas que exercem atividades de interesse público, mantidas com recursos privados ou públicos, podendo atuar de forma autônoma ou em parceria com a Administração Pública, porém, sem subordinação a ela.

Embora haja uma conceituação ampla na doutrina, não há, na lei, previsão explícita do termo “Terceiro Setor”, mas, apenas, menção às suas entidades, como as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, Associações e Fundações.

O intérprete deve buscar na legislação cada lei específica a fim de entender como cada entidade funciona.

Sem entrar em detalhes, pode-se afirmar que existem as seguintes entidades, exemplificativamente:

  • Associações: Código Civil (art. 44, I);
  • Fundações: Código Civil (art. 44, III);
  • Organizações Religiosas: Código Civil (art. 44, IV);
  • Serviços Sociais Autônomos: previsão normativa específica para cada organização. Pode-se citar a Lei n° 10.668/03, a qual institui o Serviço Social Autônomo Agência de promoção de Exportações do Brasil – Apex-Brasil;
  • Organizações Sociais: Lei n° 9.637/98;
  • Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público: Lei n° 9.790/99; e
  • Organizações da Sociedade Civil: Lei n° 13.019/14.

É possível diferenciar cada uma delas pela sua previsão normativa ou pela maneira como se relaciona com o Estado. Por exemplo, uma entidade será Organização da Sociedade Civil de Interesse Público se preencher os requisitos de qualificação da Lei n° 9.790/99. As Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, além da previsão na Lei n° 9.790/99, utilizam os termos de parceria para cooperarem com o Estado.

Ante tal obscuridade, questiona-se sobre a possibilidade de outras entidades pertencerem ao Terceiro Setor. Em tese, é possível, desde que seja privada e sem fins lucrativos, além de prestar atividades de interesse público.

De todo modo, a relevância social dessas entidades decorre das atividades desenvolvidas. A mobilização social tem um impacto bem maior, pois a Sociedade Civil não segue a burocratização estatal. Além disso:

O Terceiro Setor está se desenvolvendo e se diversificando na medida em que atua nas mais diversas áreas, tais como educação, saúde, cultura, meio ambiente, assistência social etc. Esse setor se inseriu como importante ator social na busca pela melhoria das condições da sociedade, pela capacidade de geração de empregos, participação democrática, exercício da cidadania e responsabilidade social[3].

Talvez o que explica a vontade popular de agir seja a solidariedade e a consciência de responsabilidade social inerente a cada indivíduo.

Destarte, a atuação privada é extremamente importante para o atendimento dos fins estatais, vez que o Estado, reconhecidamente, não é capaz de atender todas as demandas, impossibilidade essa denominada de reserva do possível.

2.1 – Atuação do Terceiro Setor e reserva do possível: a incapacidade estatal de suprir as necessidades da coletividade. A atuação do Terceiro Setor como forma de suprimento das demandas sociais

Desde o reconhecimento do status normativo da Constituição, no século XX, percebeu-se seu caráter mandamental, ou seja, as normas jurídicas constitucionais possuem comandos, ordens, não se restringindo à esfera moral[4].

Estes comandos, certamente, atendem às peculiaridades culturais de cada país, o que leva a prioridades sociais diferentes a depender de cada Constituição.

A Constituição brasileira, pelo seu viés social e programático, estabelece diversos objetivos a serem alcançados, o que não significa que serão atendidos, seja por vontade política ou por impossibilidade prática. Sobre tal situação, Barroso[5] aduz:

As ordens constitucionais devem ser cumpridas em toda a extensão possível. Ocorrendo a impossibilidade fática ou jurídica, deve o intérprete declarar tal situação, deixando de aplicar a norma por esse fundamento e não por falta de normatividade. Aí estarão em cena conceitos como reserva do possível, princípios orçamentários, separação de Poderes, dentre outros. Como já assinalado, certas normas podem ter sua aplicabilidade mitigada por outras normas ou pela realidade subjacente.

Logo, a inviabilidade prática pode fazer com que a norma constitucional deixe de ser aplicada, o que, de certo modo, esvazia o conteúdo constitucional.

A prestação estatal, nesse tipo de situação, começa a ser insuficiente, vez que, ao não conseguir executar os preceitos constitucionais, deixa a população desamparada. Este cenário gera debates sobre a viabilidade de efetivação dos direitos, questionamentos estes sintetizados no seguinte conceito:

Efetividade, em suma, significa a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social[6].

Sem entrar no mérito, o assunto é complexo, pois envolve questionamentos sobre a atuação das instituições, ativismo judicial, controle sobre a devida alocação de recursos públicos, mínimo existencial e minorias sociais.

E é neste momento que surge a ideia da reserva do possível, ou seja, a alegação do Poder Público de que “enfrenta limitações financeiras e estruturais, vez que, o acesso ao sistema é amplo e universal a todos os cidadãos, de forma que se torna impossível atender satisfatoriamente a todos”[7].

De fato, como os recursos públicos são escassos, o administrador deve escolher em qual área alocá-los. A escolha depende desde o viés político-partidário até o número de atingidos ou impacto financeiro.

O desenvolvimento de políticas geradoras de efetividade no gasto público é o verdadeiro desafio. Questões como corrupção, disputas partidárias e atraso na estrutura/funcionamento estatal são exemplos de dificuldades práticas a serem enfrentadas. Branco e Mendes[8] expõem a controvérsia da seguinte forma:

Assim, em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Tais escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem “escolhas trágicas” pautadas por critérios de justiça social (macrojustiça). É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados etc.

Enquanto uma parcela da população é beneficiada pela alocação de recursos, a outra fica desamparada. E isso é fator que gera a judicialização em massa de direitos, pois a parcela ignorada, levando em consideração o acesso à justiça (art. 5°, XXXV, CF), faz valer judicialmente seus interesses.

A Sociedade Civil, diante de tal cenário trágico, começou, com o tempo, a agir para mitigar o impacto gerado por tal descaso. A atuação do Terceiro Setor, então, decorreu da solidariedade social, a qual surge devido a cenários de crise, como guerras, catástrofes ambientais e pela má gestão pública[9].

Cenários que envolvem catástrofes naturais ou humanas favorecem o desenvolvimento da sociedade no sentido de despertar uma consciência crítica em favor da responsabilidade social.

Esta, assim, pode ser definida como o compromisso assumido pela pessoa natural ou jurídica de que atuará conforme o interesse da coletividade, de forma responsável e levando em conta os valores e a cidadania daquela sociedade[10].

Ela é manifestada através, por exemplo, de movimentos sociais, práticas religiosas de interesse social e até mesmo serviços voluntários.

Principalmente devido à ineficiência do Estado, as instituições do Terceiro Setor, com o tempo, passaram a atuar de forma mais abrangente, envolvendo as mais diversas áreas, tapando parcialmente o vácuo estatal e auxiliando as pessoas concretamente, aumentando a efetividade dos direitos constitucionais.

A atuação setorial, além de fazer valer os direitos previstos na Constituição, ajuda a desburocratizar a Administração Pública e economizar valores tipicamente aplicados na atuação estatal direta.

Por fim, pode-se citar, como exemplo de atuação setorial, a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED, entidade privada sem fins lucrativos, cujos objetivos englobam a articulação e atuação para efetivar a política de proteção às crianças e adolescentes e demais direitos inerentes. A atuação dessa instituição é paralela aos órgãos públicos de proteção à criança e ao adolescente, como o Ministério Público, Vara da Infância e da Juventude e o Conselho Tutelar.

2.2 – O Terceiro Setor como um meio de eficácia da atuação estatal

Dentre os princípios da Administração Pública, previstos no caput do artigo 37 da Constituição Federal, o da eficiência é o mais novo.

Acrescentado pela Emenda Constitucional n° 19/98, a eficiência passa a ideia de economia. Economia esta empregada não no sentido jurídico, mas no sentido econômico[11], ou seja, a intenção é se obter os melhores resultados na prestação estatal empregando o menor esforço econômico.

Daí se fala em licitação (seleção das propostas mais vantajosas para a Administração Pública), concurso público (candidatos mais qualificados ingressam no serviço público) e até mesmo prestação de contas (controle orçamentário).

Tudo isso demonstra o atual entendimento de que a Administração Pública assume um papel gerencial[12], ou seja, de resultados.

Uma das formas de se obter o melhor resultado possível é através da descentralização, inclusive com a delegação de serviços públicos a particulares e parcerias realizadas.

O Terceiro Setor possui um papel não apenas filantrópico, constitucional e institucional, mas também, de resultado, pois, ao prestar atividades de interesse público, além de efetivar políticas públicas, aumenta a eficiência da prestação de serviços públicos, como a saúde e educação.

Assim, a Administração Pública se vale, a fim de atender a eficiência, dos meios disponíveis para a melhor prestação estatal, dentre eles, parcerias com entidades privadas sem fins lucrativos, como afirmado por Max Brito Repsold[13]:

Sob a orientação deste princípio, dirige-se a atividade estatal pela busca de uma prestação eficiente de serviços públicos, a ser obtida por meio de uma gestão gerencial, pela transferência a organizações privadas qualificadas como sociais, de certas atividades que, exercidas pelo Poder Público, se apresentam como possíveis de serem realizadas de forma mais completa, econômica e rápida, pelo setor privado, sem necessidade dos instrumentos de concessão ou permissão de serviço público.

Porém, de nada adianta se descentralizar ou criar mecanismos de parceria se não houver uma garantia mínima da efetiva prestação das atividades de interesse público e da sua qualidade.

O controle finalístico das atividades deve ser realizado como garantia, além do cumprimento da lei e do interesse público, da eficiência.

Para isso, as entidades parceiras se submetem ao controle do Poder Público, seja pelo órgão estatal cuja área de atuação seja semelhante com as atividades prestadas, seja pela prestação de contas ao respectivo Tribunal de Contas.

Carvalho Santos, citado por José Eduardo Sabo Paes[14], elenca três possibilidades de se exercer o controle de fundações públicas, supervisão esta, logicamente, possivelmente extensível a todas as outras entidades do Terceiro Setor:

  1. Controle político, que decorre da relação de confiança entre os órgãos de controle e os dirigentes da entidade controlada (estes são indicados e nomeados por aqueles);
  2. Controle administrativo, pelo qual a Administração Direta fiscaliza se a fundação está desenvolvendo atividade consoante com os fins para os quais foi instituída; e
  3. Controle financeiro, exercido pelo Tribunal de Contas, tendo a entidade o encargo de oferecer sua prestação de contas para a apreciação por aquele Colegiado (arts. 70 e 71, II, da CF).

Essas formas de fiscalização, embora não sejam as únicas, são as mais recorrentes e, embora haja previsão desse controle na lei de cada entidade, isso não garante, entretanto, a inexistência de desvios e corrupção.

Sem entrar no mérito, destaca-se dois agentes essenciais para o controle e combate à corrupção: o Ministério Público e a população.

O primeiro é encarregado constitucionalmente de exercer uma das funções essenciais à justiça, defendendo a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme o disposto no caput do art. 127, CF/1988.

Uma das formas da atuação fiscalizatória ministerial ocorre por meio de visitas in loco realizadas por uma equipe de assistentes sociais e estagiários de serviços sociais[15], os quais coletam informações sobre o funcionamento real das entidades parceiras para o Ministério Público, dando-lhe condições de agir conforme o caso, seja promovendo ações ou fazendo recomendações.

Quanto ao controle populacional, é evidente a sua relevância, seja pela comunicação de irregularidades à polícia ou demais canais de denúncia, seja pela cobrança de transparência em relação aos gastos públicos envolvendo entidades do Terceiro Setor.

Percebe-se que, em ambos os casos, há uma cobrança pela regularidade da parceria, envolvendo também a busca pela eficiência.

Por fim, é interessante mencionar o instrumento de controle previsto no artigo 58, § 2° da Lei n° 13.019/14, lei que trata da parceria realizada entre a Administração Pública e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil, cuja fiscalização ocorrerá, também, por meio de pesquisa de satisfação com os beneficiários do plano de trabalho para aquelas atividades exercidas por tempo superior a um ano.

Com isso, percebe-se que o Terceiro Setor é importante para o desenvolvimento de uma eficiente atividade de interesse público, vez que a descentralização administrativa permite um alcance social muito maior.

Além disso, o controle das parcerias realizadas é uma das principais preocupações a fim de se manter a eficiência da prestação dessas atividades.

2.3 – A judicialização e as duas perspectivas do Terceiro Setor

A judicialização é um fenômeno estudado principalmente sob a ótica constitucional, se tratando de reação do cidadão frente ao descaso estatal em cumprir a Constituição.

Como o próprio nome indica, o Poder Judiciário é o principal responsável por analisar as demandas, sendo incumbido de decidir sobre a existência de déficit estatal ou não. Isso é um indicativo, inclusive, de que os Poderes Executivo e Legislativo falharam em suas atuações ou se mostraram insuficientes.

A judicialização é vista sob a ótica do julgador, e não das partes, ou seja, não se observa o fenômeno como causado pela parte, mas sim pela solução dada pelo juiz, implementando políticas públicas e efetivando direitos. Por isso, é entendida como um processo, considerando vários fatores ao longo do tempo.

Essa prática possui alguns desdobramentos, como o ativismo judicial e a análise dos limites da repartição e da harmonia entre os poderes, bem como do sistema de freios e contrapesos.

Luís Roberto Barroso[16] afirma que a judicialização possui três grandes causas, a serem analisadas abaixo.

A primeira delas foi a promulgação da Constituição de 1988, vez que houve o reestabelecimento das garantias dos magistrados, capaz de prezar pelo fiel cumprimento da Constituição; um maior nível de informação e de consciência de direitos; a expansão da atuação do Ministério Público, o qual atuava predominantemente em demandas penais; e a presença cada vez maior da Defensoria Pública. Tudo isso gerou o fortalecimento do Poder Judiciário e da demanda por justiça na sociedade.

A segunda grande causa foi a gigantesca abrangência constitucional, tratando de matérias que extrapolam a clássica Constituição Liberal, a qual contém matérias tipicamente constitucionais, como a separação e equilíbrio entre os poderes (organização estatal), a tutela jurisdicional dos direitos do estado (direitos fundamentais) e o parlamentarismo[17].

A nossa Constituição de 1988, por tratar de assuntos que não são tipicamente constitucionais, é analítica, contendo traços programáticos/dirigentes. Por exemplo, no artigo 218, caput, a Constituição impõe ao Estado o dever de incentivar o desenvolvimento científico. Logo, é possível pleitear judicialmente o cumprimento deste artigo, cabendo ao Poder Judiciário analisar se houve omissão estatal, bem como determinar medidas corretivas.

A terceira grande causa é o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, pois junta os sistemas europeu (concentrado/principal/abstrato) e americano (difuso/incidental/concreto). Afeto a isso, no controle concentrado, há um abrangente direito de propositura (art. 103, CF/1988), o qual alcança diversos órgãos e entidades, sejam públicos ou privados. Com isso, praticamente qualquer demanda pode ser analisada pela Corte de Cúpula do Poder Judiciário brasileiro.

É interessante mencionar especificamente a inafastabilidade de jurisdição, prevista no art. 5°, XXXV, CF/1988, também chamada de princípio do acesso à justiça. Tal princípio preconiza o “direito de invocar a atividade jurisdicional, como direito público subjetivo”[18], ou seja, todos possuem o direito de obter uma resposta do Poder Judiciário, seja concessiva ou não.

Pela lógica, quanto mais fácil se acessar a justiça, maior será a demanda. Para se ter ideia, foi realizado um estudo comparando o sistema judicial do Brasil e dos Estados Unidos, citando-se, dentre várias, as seguintes informações:

É relevante comparar o estoque de processos nos sistemas. Os Estados Unidos conseguiram manter um número de casos em estoque, em 2018, muito semelhante ao de casos novos (diferença de 71,8 para 66,6 milhões), enquanto o Brasil tem um estoque vasto esperando julgamento (78,7 milhões de casos em estoque e 28,1 milhões de novos). Isso não informa a respeito do ano de 2018, mas significa que os Estados Unidos tiveram sucesso em não deixar acumular casos ao longo de anos anteriores. O Brasil precisaria julgar praticamente três vezes mais casos do que os iniciados em 2018 para zerar seu estoque e os gráficos mostram que essa diferença só tem aumentado com o passar dos anos, com uma crônica incapacidade de se ajudar ao aumento de casos recebidos. O aumento do número de casos veio acompanhado de esforço na capacidade de julgar[19].

Surpreendentemente, os índices brasileiros são parecidos com os estadunidenses, em certa medida. Porém, se tratam de números assustadores. Pensar que o Judiciário brasileiro possui dezenas de milhões de processos transmite a ideia de que o brasileiro é altamente litigante.

Parte dessa litigância ocorre justamente pela insuficiência estatal. Muitas vezes, entretanto, se tratam de questões tão delicadas, mas, ao mesmo tempo, tão recorrentes, que o próprio Estado não consegue lidar. Imagine o Terceiro Setor.

Há casos em que a Sociedade Civil não consegue resolver prontamente, mas por meio de Assistência Judiciária, ou seja, mesmo não ajudando diretamente, fornece meios para o assistenciado acessar à justiça, sejam ações individuais ou coletivas.

O exemplo mais claro é a demanda judiciária gerada pelo fornecimento de medicamentos de alto custo, cuja dificuldade estatal encontra balizas organizacionais e financeiras. Uma organização social que presta auxílio na área da saúde, obviamente, não conseguirá fornecer medicamentos caros, mas pode pleitear na justiça, em nome do necessitado, para que o Estado o faça.

E aqui se encontram as duas perspectivas do Terceiro Setor: a atividade de interesse público exercida, sendo de caráter prestacional/principal, e a judicialização em nome do assistenciado, de caráter assistencial/complementar, caso frustrada a primeira.

Com isso, as entidades do Terceiro Setor, quando se mostrarem impossibilitadas de realizar suas finalidades típicas, podem, legitimamente e em nome do interessado, pleitear na justiça o direito pretendido, inclusive em ações de controle concentrado de constitucionalidade, quando for o caso.

Essa atuação setorial é normal, pois há um interesse público detrás deste patrocínio que, geralmente, é gratuito.

Porém, é possível, dentre as finalidades comumente exercidas, que as entidades do Terceiro Setor desenvolvam alguma que preste assistência jurídica gratuita, como ocorre com a defensoria pública? O questionamento desconsidera a proposição de demandas cuja relação esteja ligada com as finalidades institucionais já exercidas pela entidade.

Por exemplo: uma entidade relacionada com serviços de educação pode promover ações individuais e coletivas que estejam relacionadas com a educação. Porém, é possível uma OSCIP ou Associação exercer atividade finalística de assistência jurídica gratuita, independente da matéria? Tal questionamento será analisado nos tópicos seguintes.

3 – Prestação de serviços jurídicos por entidades do Terceiro Setor: Considerações iniciais

O desenvolvimento de atividades jurídicas por pessoas jurídicas de direito privado já não surpreende há muito.

Estas atividades envolvem desde o patrocínio de interesses de classe, até a promoção de ações de interesse coletivo, como ações civis públicas e ações diretas de constitucionalidade.

Percebe-se, então, que os serviços jurídicos também fazem parte das atividades desenvolvidas pelas entidades do Terceiro Setor. Porém, essa assistência está relacionada com as suas finalidades constitutivas, impedindo que se desvie da área de atuação.

A assistência jurídica gratuita como finalidade deve ser analisada sob o aspecto constitucional e legal, além de se estabelecer como serão exercidas essas atividades, quais são as entidades e as formas de controles, analisados a seguir.

3.1 – Previsões constitucionais

A ideia aqui é trazer os principais institutos constitucionais que possibilitariam o exercício finalístico de assistência jurídica gratuita por entidades do Terceiro Setor. As previsões que tratam da assistência jurídica complementar sustentam indiretamente a possibilidade do exercício principal, não sendo, contudo, analisadas.

Basicamente, a controvérsia envolve os direitos de acesso à justiça e garantias anexas (devido processo legal, proibição de tribunais de exceção, independência e imparcialidade do juiz), denominados por José Afonso da Silva de “Princípio da Proteção Judiciária”[20].

O princípio da inafastabilidade do poder judiciário (art. 5°, XXXV, CF/1988), também conhecido como direito de ação, preconiza a impossibilidade de se excluir da análise do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direitos.

Isso significa que qualquer direito poderá ser levado ao Judiciário para ser analisado e, se for o caso, concedido, ainda que não exista lei o prevendo. Por si só, a inafastabilidade de jurisdição causa conflitos entre os Poderes da República, pois como um juiz aplicará a lei e solucionará o litígio se, por exemplo, não houver qualquer embasamento legal? É a partir desse tipo de situação que surgem, além das demais fontes do direito, mecanismos como o ativismo judicial.

Além disso, é possível se falar em monopólio de jurisdição. Isso significa que só quem exercerá a jurisdição é o Poder Judiciário[21].

Não vige no direito brasileiro, assim, a jurisdição dual, ou seja, a esfera administrativa é capaz de produzir coisa julgada definitiva/imutável[22].

Com o tempo, a doutrina passou a questionar sobre a suficiência do acesso à justiça para atender direitos. Questões como a morosidade estatal e a efetividade na resolução de conflitos passaram a ser preocupações consideradas.

A preocupação com a qualidade da Justiça, como defendida por Boaventura de Sousa Santos[23], é no sentido de que não basta uma Justiça ágil se ela não for mais cidadã.

Porém, como visto, percebe-se que, na atual conjectura, não é suficiente a previsão constitucional de determinadas garantias sem o seu efetivo cumprimento.

Fala-se, então, da efetividade das previsões constitucionais, de forma a respeitar não somente os preceitos em si, mas também a sua realização prática.

Para que ela ocorra, é preciso adotar mecanismos previstos na própria Constituição, como o princípio da duração razoável do processo (art. 5°, LXXVIII), e também implícitos, além de meios alternativos de resolução de conflitos.

Atualmente, existem instrumentos bastante inovadores para o aumento da qualidade da prestação jurisdicional, como o Juízo 100% Digital e o Balcão Virtual. Todo esse aparato contribui com o aumento da qualidade da prestação jurisdicional.

Tudo isso justifica a atuação do Terceiro Setor como contribuinte ao acesso à Justiça, por meio da assistência jurídica gratuita. Além de patrocinar diretamente o interessado, também poderá atuar no assessoramento e como agente conciliador e mediador.

Outro direito aplicado ao caso é o da legalidade (art. 5°, II, CF). A Constituição, ao prever que somente a Lei poderá obrigar ou proibir alguém de fazer algo, permite a atuação livre do particular, desde que não viole nenhuma lei.

Sobre o assunto, Alexandre de Moraes[24] afirma que “o princípio da legalidade é mais amplo, constituindo verdadeira regra de liberdade de conduta individual em um Estado de Direito, direcionada diretamente ao particular em face do poder público”. O autor ainda aduz que:

Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. Só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral. Com o primado soberano da lei, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei.

O poderio estatal é tamanho que deve ter sua atuação estritamente regulada. A atuação livre do Estado já não ocupa espaço atualmente, o que demonstra a conquista histórica do indivíduo em ser livre.

Por se referir ao particular, percebe-se que as entidades do Terceiro Setor, por serem privadas, também gozam dessa liberdade ampla no desenvolvimento de suas atividades. Suas restrições estão limitadas às proibições legais e aos termos do seu ato constitutivo.

Por isso, se não existe lei proibindo a assistência jurídica gratuita por essas pessoas, presume-se, então, que é plenamente possível.

Uma das formas que as entidades do Terceiro Setor podem se revestir é como associações, se submetendo, quando for o caso e de forma geral, aos preceitos dos incisos XVII a XXI do artigo 5º da Constituição Federal, in verbis:

XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

XIX – as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;

XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;

XXI – as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente;

Todos esses dispositivos constituem o direito associativo, ou seja, as normas constitucionais que tratam, de forma geral, das associações.

O que nos interessa é a liberdade de se associar, independentemente de autorização do Estado, e o meio eleito para extinguir ou suspender as atividades de uma associação: decisão judicial. As implicações decorrentes desse bloco associativo são várias, merecendo análise própria.

Cabe destacar, entretanto, que, assim como a pessoa natural, à associação é dada a liberdade de exercer quaisquer atividades não defesas por lei.

Vigora aqui, novamente, a plena liberdade, derivada do princípio da legalidade, só que específica para as associações. Estas nada mais são do que a própria Sociedade Civil se organizando a fim de realizar determinadas finalidades lícitas.

Tamanha é a liberdade que suas atividades só poderão ser suspensas ou extintas através de decisão judicial, sendo que, na segunda, exige-se trânsito em julgado.

Assim, uma entidade setorial que visa fornecer serviços jurídicos gratuitos, ao menos em relação aos dispositivos constitucionais analisados, poderá não somente desempenhar tais atividades, mas também pleitear judicialmente a liberdade de as exercer.

3.2 – Casos anexos: Lei da OSCIP e Sindicatos

Há no direito brasileiro algumas entidades privadas sem fins lucrativos que atuam promovendo a assistência jurídica gratuita.

A primeira delas é a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, prevista na Lei n° 9.790/99. O artigo 3º, X da referida lei prevê como finalidade permitida a promoção e construção de direitos e a assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar.

Como a lei não traz a forma com que esses direitos serão promovidos e nem as proibições a serem aplicadas, deduz-se que eles poderão ser garantidos judicial ou extrajudicialmente, vez que a atuação das entidades privadas só será restrita pela lei. Essa possibilidade existe ainda que na forma de assessoria suplementar, ou seja, direitos anexos ao objeto principal da assessoria.

Situação semelhante é a dos Sindicatos profissionais. Previstos, entre outros, na Consolidação das Leis do Trabalho (arts. 515 ss) e no Decreto-Lei n° 1.042/39, os sindicatos são tidos como associações profissionais (art. 1° deste Decreto), a fim de desenvolver estudos, defesa e coordenação de seus interesses profissionais.

A assistência é dirigida a qualquer espécie de empregado, empregador, trabalhador de todo o tipo ou profissões conexas.

As entidades sindicais, embora espécies de associações, se diferem em parte das outras, conforme afirmado pelo professor Maurício Godinho Delgado[25]:

É associação, sem dúvida, e nesta medida aproxima-se de qualquer outra modalidade de agregação permanente de pessoas. Na linha das associações existentes na Sociedade Civil (em contraponto ao Estado), é também entidade de natureza privada, não se confundindo com organismos estatais. Distancia-se, porém, das demais associações por ser necessariamente entidade coletiva, e não simples agrupamento permanente de duas ou de algumas pessoas. Distancia-se mais ainda das outras associações por seus objetivos essenciais estarem concentrados na defesa e incremento de interesses coletivos profissionais e econômicos de trabalhadores assalariados (principalmente estes, na história do sindicalismo), mas também outros trabalhadores subordinados, a par de profissionais autônomos, além dos próprios empregadores.

Os interesses profissionais são comumente defendidos judicialmente, como por meio de reclamações trabalhistas, mas não se restringem a elas, pois a atuação também ocorre extrajudicialmente, por exemplo, através da resolução consensual de litígios.

De todo modo, embora a sociedade brasileira esteja acostumada com a atuação dos sindicatos, quando se questiona sobre a possibilidade de promoção desse tipo de assistência por outras instituições setoriais, como as fundações particulares, parece haver dúvidas.

Tal contexto gera questionamentos sobre a atuação assistencial das entidades do Terceiro Setor e seus limites, o que faz com que os possíveis controles a serem aplicados à assistência jurídica gratuita exercida por essas entidades devam ser estudados.

3.3 – Controle das atividades jurídico-assistenciais

Primeiramente, é importante destacar que o exercício finalístico de assistência jurídica gratuita prestada por entidades do Terceiro Setor não as torna uma sociedade advocatícia. Essa diferenciação é pertinente de se fazer.

Embora não possam funcionar como sociedades empresariais (art. 16, Lei n° 8.906/94), as sociedades de advogados recebem honorários como contraprestação.  Além disso, devem registrar seus atos constitutivos no Conselho Seccional da OAB que tiver sede (art. 15, § 1°). É preciso também que as sociedades advocatícias tenham como sócios, logicamente, advogados devidamente inscritos, cujos nomes (ao menos de um) devem formar a razão social da sociedade (art. 16, § 1°). Por fim, é vedado a essas sociedades o exercício de atividade que não seja de advocacia (art. 16, § 3°).

Já as entidades setoriais prestadoras de assistência jurídica gratuita, embora possam ser de vários tipos, seguem uma lógica comum. Não cabe aqui diferenciar uma entidade de outra, mas, apenas, elencar possíveis pontos em comum.

Por exemplo, para sua formação, tanto uma associação quanto uma fundação devem possuir algum ato de instituição, seja um estatuto, no primeiro caso, ou uma escritura pública especificando os fins a que a dotação patrimonial se destina, no segundo.

 Tendo isso em vista, percebe-se que, para o emprego das atividades estudadas neste trabalho, não é necessário figurar, como presidente da entidade, um advogado. Ao contrário, as entidades podem ter funcionários ou voluntários para contribuir com as suas finalidades, podendo conter, dentre eles, advogados. A denominação, além disso, não precisa conter os nomes dos diretores ou voluntários, mas deve se referir a finalidade constitutiva.

Sobre a cobrança de valores, eles podem ser cobrados quando relativos ao mantimento das atividades, o que não se confunde com lucro e nem com honorários advocatícios. Porém, podem também exercer atividades gratuitas.

Essa possibilidade se justifica, pois, o “olhar não é o lucro e sim o bem comum, ainda que isto não signifique deixar de cobrar pelos serviços prestados, ou pagar funcionários, investir em equipamentos etc.”[26].

Como qualquer outra entidade, o ato constitutivo expõe o caminho a se seguir, sendo proibido a entidade dele se desviar, sob pena de ilegalidade. É o estatuto da entidade que constará quóruns de reunião e de decisões, destinação dos bens em caso de desfazimento ou encerramento das atividades.

A diferenciação exposta expõe uma forma de controle na atuação das entidades setoriais que prestam serviços jurídicos gratuitos: a proibição de captação de clientela.

Por prestar serviços jurídicos, não pode a entidade que os realizar se valer da sua influência para captar clientes.

Embora não sejam sociedades advocatícias, inevitavelmente deverão respeitar determinados limites impostos pelo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil – EOAB (Lei n° 8.906/94), como a já mencionada proibição de captar causas, o dever de sigilo profissional e as demais condutas que consistem em infrações disciplinares, previstas no artigo 34 do EOAB.

Por conter uma finalidade social, a entidade deve ser o mais transparente possível em sua atuação, sendo honesta, justa, evitando desperdícios financeiros e de tempo. O sigilo em relação aos assistidos, entretanto, deve ser mantido, a fim de evitar constrangimentos.

O controle a ser realizado nas entidades que se relacionam com a Administração Pública é mais visível do que o realizado em entidades puramente privadas.

Isto, pois, no primeiro caso, aplica-se o regime público de fiscalização, como prestação de contas, fiscalização direta realizada pela própria administração, nomeação de diretores e controladores, atuação preventiva do Ministério Público etc. Pode-se citar, também, os já mencionados controles administrativos, políticos e financeiros, expostos por Carvalho Santos, citado por José Eduardo Sabo Paes[27].

Nesse contexto, é possível afirmar que dentro desse controle público, o atendimento aos princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública (art. 37, CF) é um dos requisitos mais importantes, pois trilha de forma geral como o poder público, em toda a sua complexidade (inclusive as entidades parceiras), deve atuar.

É o que afirma a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro[28], in verbis:

A finalidade do controle é a de assegurar que a Administração atue em consonância com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, como os da legalidade, moralidade, finalidade pública, publicidade, motivação, impessoalidade; em determinadas circunstâncias, abrange também o controle chamado de mérito e que diz respeito aos aspectos discricionários da atuação administrativa.

Porém, quando se fala de entidades privadas que não possuem qualquer vínculo específico com o poder público, o controle é mais restrito por justamente se tratar da esfera privada, local onde o poder público deve atuar com menor intensidade.

O âmago da fiscalização privada é saber se a entidade está efetivamente cumprindo os fins para os quais foi criada. Daí se falar em controle finalístico. Destaca-se que este não ocorre somente no âmbito privado, mas, aqui, é uma das formas mais eficazes de controle.

Além da atuação fiscalizatória ministerial, a fiscalização realizada ordinariamente em pessoas jurídicas sem relação com o poder público é a mesma para os indivíduos, ou seja: a fiscalização decorrente do poder de polícia.

Este pode ser entendido como a forma com que a Administração Pública intervém “no exercício das atividades individuais suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura prevenir”[29].

Logo, em prol do interesse público, é possível haver, por exemplo, controles sanitários, ambientais e consumeristas, todos eles relacionados com direitos e liberdades individuais.

Além disso, há diversas previsões espalhadas pela legislação no sentido do controle exercido pela própria entidade aos seus membros, como a realização de assembleias ou a responsabilidade contábil.

Há que se falar também do controle feito pela população e pelos assistidos. No primeiro caso, a fiscalização ocorre por meio dos cidadãos através de canais de denúncias, constatadas quaisquer irregularidades. No segundo caso, porém, se diferencia pelo controle ser voltado à atuação finalística da entidade, ou seja, a prestação efetiva de serviços e com qualidade.

Os agentes envolvidos na prestação jurídico-assistencial também são responsáveis por realizar o controle de atuação. Logo, figura como fiscal o advogado da parte adversária, o juiz da causa e o Ministério Público (quando atuar no processo), não se restringindo a eles (conciliadores e mediadores quando presidirem audiências, oficiais de justiça no exercício de suas atribuições etc.).

Por exemplo, determinada entidade, ao patrocinar um assistido, procura diretamente a parte contrária para realizar acordo extrajudicial, mesmo sabendo quem é seu advogado. Este, ao se deparar com tal situação, comunica à OAB a prática de infração disciplinar (art. 34, VIII, EOAB). Neste caso, houve controle exercido pelo causídico da parte contrária, cabendo ao respectivo tribunal de ética julgar o caso.

Com isso, independente do aparato fiscalizatório ser público ou privado, é plenamente possível a realização de controle das atividades de assistência jurídica gratuita, o que permite o atendimento à finalidade pública pretendida.

4 – Conclusão

Buscou-se com este trabalho encontrar fragmentos sociais e jurídicos que sustentem a atuação assistencial jurídica e gratuita das entidades do Terceiro Setor.

Conclui-se que sim, é possível as entidades setoriais fornecerem esse tipo de serviço, com base nas considerações a seguir expostas, as quais arrematam o raciocínio exposto anteriormente.

Primeiramente, é preciso ter em vista que a legitimidade em atuar na prestação jurídico-assistencial decorre não só da análise legal e constitucional, mas também da perspectiva fática (social) e democrática.

Quanto à justificativa normativa, percebe-se que, dentre os direitos previstos pela Constituição Federal, a liberdade privada é uma das garantias fundamentais mais essenciais, o que permite, se restringindo a uma avaliação constitucional, às entidades setoriais exercerem praticamente quaisquer atividades, incluindo a prestação de serviços jurídicos.

Além disso, através de permissão legislativa explícita, existem entidades congêneres que podem realizar essas atividades, como é o caso dos sindicatos e das OSCIP’s constituídas para esse fim.

Porém, a autorização para a prestação jurídica não decorre apenas da interpretação sistêmica de dispositivos constitucionais ou legais.

O Estado possui como funções básicas atender as demandas da coletividade, seja organizando-a ou prestando serviços. Faticamente, é impossível haver uma atuação satisfatória pela Administração Pública, motivo esse que gerou a sua descentralização e o surgimento do Terceiro Setor. Com isso, a mera instituição de um regime de proteção de direitos não é suficiente para a sua efetiva realização.

Como forma de compensar a ineficiência estatal, essas entidades filantrópicas dão efetividade aos direitos previstos na Constituição e na legislação infraconstitucional, sendo a prestação jurídica apenas mais uma área de atuação.

Área que, inclusive, já é consagrada no direito brasileiro. A representação classista possui sua relevância, pois facilita o acesso à justiça de determinada categoria ou grupo social. Basta pensar em qualquer associação ou fundação de saúde que pleiteia judicialmente o fornecimento de medicamentos de alto custo pelo Estado.

A diferença reside apenas nessa atuação ser finalisticamente prevista nos atos constitutivos da entidade. Aqui, a atuação jurídica não depende de uma área específica de atuação. Observa-se que a atuação não se limita à promoção de ações, mas abrange todos os serviços jurídicos permitidos, como assessoramento e resolução amigável de conflitos.

Pelo fato de surgir diariamente interesses a serem preservados, a atuação abrangente é mais uma das formas de se garantir o acesso à justiça.

Logicamente, deverão ser impostas algumas balizas de atuação, de forma a se evitar desvios. Dentre elas, a previsão no estatuto social da atuação jurídica gratuita como finalidade principal e a proibição de haver captação de clientela para advogados. Os demais controles foram expostos em capítulo próprio.

Com isso, a sociedade estaria amparada em mais um meio de promoção de direitos, o que permite o desenvolvimento social em vários aspectos.

Referências Bibliográficas

 

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Notas:

[1] Advogado. Membro da Comissão de Processo Civil da OAB/DF. Especialista em Processo Civil. Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Professor da Estácio. Professor visitante da Faculdade CET. Pesquisador da FAP/DF.

[2] PAES, José Eduardo Sabo. Fundações, associações e entidades de interesse social: aspectos jurídicos, administrativos, contábeis, trabalhistas e tributários. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 189.

[3] SANTOS, Suely Xavier dos. Organização do Terceiro Setor. Natal: EdUnP, 2012. p. 19.

[4] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. Ed. 2. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 256.

[5] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. Ed. 2. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 257.

[6] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. Ed. 2. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 258.

[7] GUZZO, Eleonara Barreto. O direito à saúde frente à reserva do possível. Revista Discente UNIFLU. Rio de Janeiro. v. 2, n. 1, p. 31-50, jan./jun., 2021. p. 37.

[8] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 1 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 642-643.

[9] RIBEIRO, Rinaldo Aparecido. A contratualização entre a Administração Pública e o Terceiro Setor: a Lei n. 13.019 e instrumentos congêneres. In: PAES, José Eduardo Sabo; MAGALHÃES, Juliana Aparecida (Coord.). Terceiro Setor e Tributação. v. 9. São Paulo: Elevação, 2016. p. 112-113.

[10] PAES, José Eduardo Sabo. Fundações, associações e entidades de interesse social: aspectos jurídicos, administrativos, contábeis, trabalhistas e tributários. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 193.

[11] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 671.

[12] ALEXANDRINO, Marcelo, PAULO, Vicente. Direito administrativo descomplicado. 25. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. p. 143-144.

[13] REPSOLD, Max Brito. O contrato de gestão com as organizações sociais como instrumento de uma Administração Pública eficiente no Estado Democrático de Direito. In: PAES, José Eduardo Sabo; MAGALHÃES, Juliana Aparecida (Coord.). Terceiro Setor e Tributação. v. 9. São Paulo: Elevação, 2016. p. 159.

[14] PAES, José Eduardo Sabo. Fundações, associações e entidades de interesse social: aspectos jurídicos, administrativos, contábeis, trabalhistas e tributários. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 383.

[15] PAES, José Eduardo Sabo. Fundações, associações e entidades de interesse social: aspectos jurídicos, administrativos, contábeis, trabalhistas e tributários. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 907.

[16] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista Atualidades Jurídicas. n. 4. Brasília: OAB Editora, 2009. Disponível em:  <http://www.oab.org.br/editora/revista/ users/revista/ 1235066670174218181901.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2022. p. 3-4.

[17] FIORAVANTI, Maurizio. Constituición: de la antigüedad a nuestros días. Traducción de Manuel Martínez Neira. Bologna: Editorial Trotta, 1999. p. 152.

[18] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 431.

[19] FELONIUK, Wagner. Brasil e Estados Unidos da América: comparação quantitativa de sistemas judicias (2018). Revista Latino-Americana de Relações Internacionais. Rio Grande. V. 3, n. 1, p. 155-178, Jan.-Abril 2021. p. 174-175.

[20] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 430.

[21] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 431.

[22] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 31. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2017. p. 569.

[23] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2008. p. 44.

[24] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 51.

[25] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 18. ed. São Paulo: LTr, 2019. p. 1616-1617.

[26] SANTOS, Suely Xavier dos. Organização do Terceiro Setor. Natal: EdUnP, 2012. p. 47.

[27] PAES, José Eduardo Sabo. Fundações, associações e entidades de interesse social: aspectos jurídicos, administrativos, contábeis, trabalhistas e tributários. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 383.

[28] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 970.

[29] CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais de direito administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 339.

Palavras Chaves

Terceiro setor; Assistência jurídica gratuita; Controle.