Uma proposta de Súmula Vinculante para fixar standard probatório a respeito da tipicidade do crime de tráfico de drogas

Resumo

O presente artigo aborda a necessidade de fixação de standard probatório a respeito da tipicidade do crime de tráfico de drogas, com respeito à regra do ônus da prova e da garantia da presunção de inocência, não sendo suficiente o testemunho policial e as provas a ele ancoradas, per se, exigindo-se a corroboração por elementos externos aos membros das forças estatais de segurança.

Artigo

Uma proposta de Súmula Vinculante para fixar standard probatório a respeito da tipicidade do crime de tráfico de drogas

 

Resumo

O presente artigo aborda a necessidade de fixação de standard probatório a respeito da tipicidade do crime de tráfico de drogas, com respeito à regra do ônus da prova e da garantia da presunção de inocência, não sendo suficiente o testemunho policial e as provas a ele ancoradas, per se, exigindo-se a corroboração por elementos externos aos membros das forças estatais de segurança.

 

  1. INTRODUÇÃO

 

Conforme estipula o art. 103-A, caput, da Constituição Federal (CRFB), o Eg. Supremo Tribunal Federal (STF) poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, deliberar e aprovar súmula de jurisprudência de efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

De acordo com a dicção do art. 103-A, §1º da CRFB, a súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”.

 

A existência de “controvérsia atual entre órgãos judiciários que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica” está presente na espécie, como reconhece o eminente relator do RE 635.659, Ministro Gilmar Mendes, para quem a Lei de Drogas (i) “não foi objetiva em relação à distinção entre usuário e traficante“, que (ii) há uma “zona cinzenta entre o tráfico de drogas e a posse de drogas para consumo pessoal” e que (iii) “na maioria dos casos, todos acabam classificados simplesmente como traficantes“.

Na mesma senda, o voto do eminente Ministro Luis Roberto Barroso, no referido RE 635.659, reconhece a urgência em “diminuir a discricionariedade judicial e uniformizar a aplicação da lei”, para reduzir o “impacto discriminatório que é perceptível a olho nu”: “na prática, ricos são tratados como usuários e pobres como traficantes”.

Na mesma direção, o recente voto proferido pelo Ministro Alexandre de Moraes no aludido RE, reconhece que, com a entrada em vigor da Lei nº 11.343/06, que despenalizou a conduta de portar drogas para uso pessoal “sem critérios objetivos, várias pessoas consideradas antes da alteração legislativa como usuários – e punidos criminalmente, porém com mais leveza – passaram a ser consideradas pela Polícia Judiciária como ‘pequenos traficantes’. (…) O estudo de jurimetria demonstrou estatisticamente que, por exemplo, em São Paulo (capital) e Ribeirão Preto, após a edição da nova lei, uma parte dos usuários passou a ser presa como traficante. Esse impacto também pode ser sentido, em menor escala, em Campinas, Barretos, Jundiaí e Sorocaba”. O voto do Ministro Moraes destaca a necessidade de “estabelecer critérios menos discricionários para evitar que uma  mesma conduta, dependendo do local, condição social da pessoa ou outros elementos, possa ser definida como tráfico ou como posse para uso pessoal”, alvitrando que a “fixação de critérios mais objetivos para a distinção entre traficantes e usuários levariam a diminuição da discricionariedade policial no momento da realização do flagrante e, posteriormente, a discricionariedade do Ministério Público no momento da denúncia e a judicial na tipificação final da conduta, possibilitando um tratamento mais equânime na aplicação da lei e impedindo flagrantes injustiças”.

Guilherme Nucci observa a existência de uma “abissal diferença de visões entre magistrados: para uns, carregar dois gramas de maconha é, sem dúvida, tráfico ilícito de drogas; para outros, por óbvio, é consumo pessoal; para terceiros, cuida-se de insignificância, logo, atípico. Não é preciso registrar que a primeira ideia é a franca vencedora na avaliação judicial[1], sendo certo que a quantidade de droga, na maior parte dos casos, é o único critério para tipificar a conduta do indivíduo como traficante ou usuário.

A necessidade de fixação de standard probatório nessa matéria já foi reconhecida anteriormente. No Habeas Corpus n.º 123.121/SP, a 2ª Turma do STF determinou a expedição de ofício “ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para que fomente a uniformização de procedimentos e a conscientização dos órgãos envolvidos na persecução penal acerca da importância da verificação, em todas as fases do procedimento, da justa causa para enquadramento mais gravoso – tráfico –, em lugar do mais benéfico – uso de drogas”. Confira-se:

A pequena apreensão de droga (1,5g de maconha) e a ausência de outras diligências investigatórias, no meu entender, apontam que a instauração da ação penal com consequente condenação representa medida nitidamente descabida. (…) Por fim, vislumbro indicativos de que a mudança de tratamento promovida pela Lei 11.343/06, que aboliu a pena privativa de liberdade para usuário (art. 28), provocou uma reação inesperada e indesejável: fatos limítrofes, anteriormente registrados como uso, passaram a ser tratados como tráfico de drogas. Conforme dados do Infopen, em 2006, houve 47.472 prisões por tráfico de drogas. A Lei 11.343/06 entrou em vigor em outubro de 2006. No ano seguinte (2007), foram registradas 65.494 prisões por tráfico, um aumento de 38%. E essa escalada prosseguiu. Em 2010, foram 106.491 prisões. Tendo isso em vista, proponho seja oficiado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para que fomente a uniformização de procedimentos e a conscientização dos órgãos envolvidos na persecução penal acerca da importância da verificação, em todas as fases do procedimento, da justa causa para enquadramento mais gravoso – tráfico –, em lugar do mais benéfico – uso de drogas. Presidente, tenho a impressão de que é necessário que algo mais seja feito no sentido de uma atividade de coordenação, de organização, tendo em vista que, pelos indícios que nós temos, essa lei que aparentemente veio para abrandar a aplicação penal e, claro, tratar mais rigorosamente o traficante, sobretudo aquele que atua em organização criminosa, parece que está contribuindo densamente com o aumento da população carcerária.

O Brasil tinha, até pouco tempo, quinhentos e cinquenta mil presos; agora, parece que já gravita em torno de setecentos, setecentos e cinquenta mil presos, tudo indica, associados ao tráfico de drogas. (…) O que imagino é que, hoje, por exemplo, seria de pensar em casos determinados – e, talvez, pudesse se começar com a questão do tráfico de drogas e crimes afins –, com aquilo que é prática na Europa, de apresentação do preso ao juiz, porque, infelizmente, o testemunho que permite a qualificação, a caracterização do tráfico é dado pelo policial, quer dizer, sem uma avaliação. Em geral, essas pessoas já estão recolhidas, portanto, por ordem, prisão em flagrante, depois convertida em prisão provisória. Quer dizer, talvez, uma discussão e uma tentativa de harmonização e procedimentos. Onde passa a linha lindeira entre o tráfico e o consumo? Quais são os casos? Em suma, tentar discutir isso de maneira aberta para que nós pudéssemos ter um encaminhamento. O fato é que esta é uma lei que vem com um espírito aparentemente de abertura, mas que provoca, ao revés, um encarceramento mais intenso do que era planejado. O próprio Tribunal já declarou a inconstitucionalidade de medidas restritivas da liberdade nesse caso, mas, ainda assim, veja que está aumentando significativamente. (…) O fato é que, claro, podemos fazer uma pesquisa muito mais precisa, mas, pelo número de habeas corpus que nós tratamos e pelos incidentes que temos hoje em relação a esta lei, que ainda é bastante nova, nós vemos o significado que isso tem. Em geral, nós sabemos que os juízes acabam já decidindo o caso com o réu preso, porque se trata de tráfico, de pessoas presas em flagrante. Portanto, já convolam a prisão em prisão provisória. Então, é o que me ocorre, pelo menos no momento, no sentido de tentar dar um encaminhamento” (STF, 2ª T., HC n.º 123.121, rel. Min. Gilmar Mendes, 28/10/2014, v.u. – grifos da reprodução).

Trata-se de constitucionalizar a aplicação da Lei de Drogas, no sentido de expungir do cenário jurídico a “zona gris de alto empuxo criminalizador na qual situações plurais são cooptadas pela univocidade normativa[2], explicitando a prevalência da presunção de inocência e do ônus da prova.

Assim, para além de declarar a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei n.º 11.343/06, impõe-se que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 635.659, pela via da Súmula Vinculante (CRFB, art. 103-A, §1º),  defina o standard probatório necessário à caracterização do crime de tráfico de drogas, em qualquer de suas modalidades (art. 33, caput e §1º, incisos I a IV, da Lei de Drogas), de modo a que sejam respeitadas a regra do ônus da prova e o postulado da presunção de inocência, para solucionar a controvérsia atual entre órgãos judiciários a respeito do tema que acarreta grave insegurança e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

Senão vejamos.

 

  1. CONSIDERAÇÕES SOBRE DISTINÇÃO ENTRE USO E TRÁFICO

 

Conforme expressamente previsto no art. 28, § 2º da Lei nº 11.343/2009, para determinar se a droga se destinava a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

É, nesse sentido, um roteiro para a distinção entre a situação de porte para consumo pessoal e a de tráfico de drogas.

Ao comparar as elementares dos artigos 28 e 33 da Lei de Drogas, Salo de Carvalho identifica que “em relação aos elementos objetivos do tipo, ou seja, às circunstâncias que permitem identificar empiricamente a conduta para que se estabeleça o juízo prévio de incriminação, existe espantosa similitude, quando não plena correspondência.  Processo idêntico em relação aos verbos nucleares (…). Vê-se absoluta correlação dos verbos do art. 28 com as hipóteses previstas no art. 33. O diferencial entre as condutas incriminadas, o que será o fator que deflagrará radical mudança em sua forma de processualização e punição, é exclusivamente o direcionamento/ finalidade do agir (para consumo pessoal), segundo as elementares subjetivas do tipo do art. 28. Propõe-se, portanto, como critério interpretativo de correção da desproporcionalidade no tratamento punitivo de condutas objetivamente idênticas, mas díspares no que tange à ofensividade ao bem jurídico, a necessidade de especificação dos elementos subjetivos de ambos os tipos penais, seja do art. 33 como do art. 28 da Lei n. 11.343/06. O raciocínio deve ser realizado de forma negativa, invertendo-se os rumos tradicionais da doutrina e jurisprudência dominantes durante a vigência da Lei n. 6.368/76. Dessa forma, em havendo especificação legal do dolo no art. 28 da nova Lei de Drogas (especial fim de consumo pessoal), para que não ocorra inversão do ônus da prova e para que se respeitem os princípios constitucionais de proporcionalidade e de ofensividade, igualmente deve ser pressuposto da imputação das condutas do art. 33 o desígnio mercantil. Do contrário, em não havendo essa comprovação ou havendo dúvida quanto à finalidade de comércio, imprescindível a desclassificação da conduta para o tipo do art. 28. (…) por si sós, os dados externos da conduta não revelam nada se não estiverem apoiados por dados subjetivos minimamente reveladores. (…) quantidade elevada, acon­dicionamento em embalagens distintas, antecedentes, entre outras inúmeras circunstâncias fáticas, podem revelar tanto situação de mercancia como de uso própriov.g., sujeito preso em flagrante com quantidade elevada de droga, disposta em recipientes distintos, gera apenas indício de comércio, não podendo ser descartada, de plano, a hipótese de porte para consumo, visto o fato de poder ter adquirido o produto exatamente nessas condições. O problema não está, frise-se, vez mais, nos dados externos da conduta, mas no aspecto cognitivo e volitivo do agir”.[3]

 

Vale destacar, uma vez mais, trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do RE 635659/SP, leading case do tema de repercussão geral 506, que trata da tipicidade do porte de droga para consumo pessoal:

“A interpretação dos fatos com elevada carga de subjetividade pode levar ao tratamento mais rigoroso de pessoas em situação de vulnerabilidade – notadamente os viciados. À falta de critérios objetivos, a avaliação judicial rigorosa das cir¬cunstâncias da prisão afigura-se imperativa para que se dê o correto enquadramento aos fatos. A prática mostra, no entanto, fragilidade na pronta avaliação de casos relativos a drogas. A norma do art. 28 da Lei n. 11.343/2006 é construída como uma regra especial em relação ao art. 33. Contém os mesmos elementos do tráfico e acrescenta mais um – a finalidade de consumo pessoal. Disso resulta a impressão – falsa – de que a demonstração da finalidade é ônus da defesa. À acusação não seria necessário demonstrar qualquer finalidade para enquadramento no tráfico pela singela razão de que o tipo penal não enuncia finalidade. Em verdade, a legislação usou a forma mais simples de construir as figuras, do ponto de vista linguístico, mas não a que permite sua mais direta interpretação. A presunção de não culpabilidade – art. 5º, LVII, da CF – não tolera que a finalidade diversa do consumo pessoal seja legalmente presumida. A finalidade é um elemento-chave para a definição do tráfico. A cadeia de produção e consumo de drogas é orientada em direção ao usuário. Ou seja, uma pessoa que é flagrada na posse de drogas pode, muito bem, ter o propósito de consumir. Seria incompatível com a presunção de não culpabilidade transferir o ônus da prova em desfavor do acusado nesse ponto. Dessa forma, a melhor leitura é de que o tipo penal do tráfico de drogas pressupõe, de forma implícita, a finalidade diversa do consumo pessoal. Sua demonstração é ônus da acusação. A finalidade – circunstância íntima ao agente –, via de regra, não pode ser provada de forma direta, sendo avaliada com base nos indicativos dados pelas circunstâncias do caso. Por isso, a própria lei diz que a avaliação deve ser feita de acordo com os indícios disponíveis. Assim, é ônus da acusação produzir os indícios que levem à conclusão de que o objetivo não era o consumo pessoal. Essa circunstância deve ser alvo de escrutínio pelo juiz”

 

  • TRÁFICO DE DROGAS PRESSUPÕE, DE FORMA IMPLÍCITA, FINALIDADE DIVERSA DO CONSUMO PESSOAL. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO ART. 33, CAPUT, E § 1º, I A IV, DA LEI DE DROGAS.

Em uma ordem normativa democrática, só pode haver acusa­ção de tráfico de drogas quando houver coeficiente probatório mínimo nesse específico sentido, não sendo permitida a imputação lastreada apenas em presunção. A leitura conforme à Constituição Federal do art. 33, caput, e § 1º, da Lei n. 11.343/2006 afasta por completo a possibilidade de imputação desse delito com base na presunção de tráfico. Nada justifica tratar mero usuário como se traficante fosse. Segundo o art. 156, caput, do Código de Processo Penal, a prova da alegação incumbirá a quem a fizer.[4]

Daí porque a inversão do ônus da prova, decorrente da presunção de traficância, importa interpretação ilegal e inconstitucional da Lei nº 11.343/2006. Confira-se, a esse respeito, a jurisprudência do C. STF e STJ abaixo colacionada:

Ementa – “SENTENÇA – ENVERGADURA. Ante o fato de o Juízo ter contato direto com as partes envolvidas no processo-crime, o pronunciamento decisório há de merecer atenção maior. PROCESSO-CRIME – PROVA. Cabe ao Ministério Público comprovar a imputação, contrariando o princípio da não culpabilidade a inversão a ponto de concluir-se pelo tráfico de entorpecentes em razão de o acusado não haver feito prova da versão segundo a qual a substância se destinava ao uso próprio e de grupo de amigos que se cotizaram para a aquisição.”

(…) A toda evidência, inverteu-se a ordem processual quanto à prova, atribuindo-se aos pacientes o dever de demonstrar que seriam usuários. Ora, isso não se coaduna com o Direito Penal. Ao Estado-acusador incumbia comprovar a configuração do tráfico e este não ocorre pela simples compra do entorpecente. Afinal, o usuário sempre adquire a droga e, nem por isso, deixa de ser usuário”

(STF, 1ª T., HC n. 107.448, rel. Ricardo Lewandowski, rel. para acórdão Marco

Aurélio, j. 18.06.2013)

Ementa – “HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. DESCLASSIFICAÇÃO PARA A CONDUTA DE PORTE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE PARA CONSUMO PRÓPRIO. POSSIBILIDADE. EXCEPCIONALIDADE DO CASO DOS AUTOS. ORDEM CONCEDIDA.”

“(….)

  1. A Lei n. 11.343/2006 não determina parâmetros seguros de diferenciação entre as figuras do usuário e a do pequeno, médio ou grande traficante, questão essa, aliás, que já era problemática na lei anterior (n. 6.368/1976).

(…)

  1. Ao funcionar como regra que disciplina a atividade probatória, a presunção de não culpabilidade preserva a liberdade e a inocência do acusado contra juízos baseados em mera proba¬bilidade, determinando que somente a certeza, além de qualquer dúvida razoável (beyond a reasonable doubt), pode lastrear uma condenação. A presunção de inocência, sob tal perspectiva, impõe ao titular da ação penal todo o ônus de provar a acusação, quer a parte objecti, quer a parte subjecti. Não basta, portanto, atribuir a alguém conduta cujas compreensão e subsunção jurídico-normativa decorram de avaliação pessoal de agentes do Estado e não dos fatos e das circunstâncias objetivamente demonstradas.”

(STJ, 6ª T., HC n. 681.680, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 21.09.2021).

Ementa – “RECURSO ESPECIAL. PENAL. TRÁFICO DE DROGAS (ART. 33, CAPUT, DA LEI N. 11.343/2006). EXCEPCIONAL AFASTAMENTO DA IMPUTAÇÃO MINISTERIAL (ART. 33 DA LEI DE DROGAS). DESCLASSIFICAÇÃO. RECONHECIMENTO, DE OFÍCIO, DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. EXTINTA A PUNIBILIDADE, DE OFÍCIO.”

(…)

  1. Concluir que as instâncias ordinárias não se valeram do melhor Direito na condenação do Recorrente não implica reavaliar fatos e provas, mas apenas reconhecer que, no caso, não estão descritos os elementos do tipo do art. 33 da Lei de Drogas. No sistema acusatório, repita-se, constitui ônus estatal demonstrar de forma inequívoca a configuração do fato típico.”

(STJ, 6ª T., RESP 1.915.287, rel. Laurita Vaz, publicação. 14.09.2021).

Por sua vez, para além do ônus da prova não poder ser invertido (i.e., por meio da presunção de traficância), o tráfico de drogas pressupõe, de forma implícita, finalidade diversa do consumo pessoal. A interpretação de que os crimes previstos no art. 33, caput e §1º, incisos I a IV, da Lei de Drogas, não exigem a demonstração quanto ao fim de comercialização do entorpecente, está em desconformidade com a Constituição, em especial no que diz com a garantia da presunção de inocência e a regra do ônus da prova. Nesse sentido, todas as condutas previstas no art. 33, caput e §1º, incisos I a IV, pressupõem ânimo de lucro, e a sua prova é ônus da acusação.[5]

Merece destaque a precisa doutrina de Salo de Carvalho: (…) quantidade elevada, acondicionamento em emba­lagens distintas, antecedentes, entre outras inúmeras circunstâncias fáticas, podem revelar tanto situação de mercancia como de uso própriov.g. sujeito preso em flagrante com quantidade elevada de droga, disposta em recipientes distintos, gera apenas indício de comércio, não podendo ser descartada, de plano, a hipótese de porte para consumo, visto o fato de poder ter adquirido o produto exatamente nessas condições. O problema não está, frise-se vez mais, nos dados externos da conduta, mas no aspecto cognitivo e volitivo do agir. (…) cabe ao agente acusador o ônus da prova de que as circunstâncias empíricas são congruentes com o animus de comércio em caso de imputação de tráfico e entorpecentes[6].

  1. DA JURISPRUDÊNCIA DO STF SOBRE A NECESSÁRIA PROVA DA FINALIDADE DA MERCANCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS É ÔNUS DA ACUSAÇÃO.[7] 

 

Em relação à interpretação dada ao crime de tráfico de drogas, em todas as suas modalidades (artigo 33, caput e §1º, incisos I a IV, da Lei nº 11.343/06), a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal assentou entendimento no sentido de ser necessária a prova da finalidade da mercancia para que reste configurado o crime em referência.

São representativos desse entendimento os seguintes julgados:

“Habeas corpus. 2. Prescrição retroativa. Não ocorrência. Não há que se falar de prescrição retroativa ou intercorrente antes do trânsito em julgado para a acusação. 3. Tráfico de drogas na figura do transporte. Necessidade de comprovação da mercancia. Precedente: HC 98.664, rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, decisão unânime, DJe 26.3.2010. 4. Habeas corpus deferido.”

(HC 95626, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-34 DIVULG 15-02-2012 PUBLIC 16-02-2012)

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS – CABIMENTO. A decisão mediante a qual inadmitido habeas corpus equipara-se a pronunciamento denegatório, sendo suscetível de sofrer impugnação por meio de recurso ordinário. TRÁFICO DE ENTORPECENTES – ABSOLVIÇÃO – DESCLASSIFICAÇÃO – INVIABILIDADE. A demonstração da finalidade mercantil do entorpecente inviabiliza a absolvição e a desclassificação para a conduta versada no artigo 28 da Lei de Drogas. PENA – CAUSA DE DIMINUIÇÃO – TRÁFICO DE ENTORPECENTES – ATIVIDADE CRIMINOSA – DEDICAÇÃO. Ante a dedicação a atividades criminosas, surge inadequada a observância da causa de diminuição de pena prevista no artigo 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006. PENA –CUMPRIMENTO – REGIME. O regime de cumprimento da pena é definido ante o patamar da condenação e as circunstâncias judiciais.”

(RHC 189709, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 13/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-258 DIVULG 26-10-2020 PUBLIC 27-10-2020)

 

Há de se destacar que o entendimento assente na jurisprudência do STJ não dispensa tratamento diferenciado a um ou outro verbo do tipo penal descrito no caput, tampouco a qualquer das condutas equiparadas previstas no § 1º do art. 33 da Lei nº 11.343/06.

Outrossim, tanto na doutrina quanto na jurisprudência do STF, prepondera o entendimento de que os delitos previstos no § 1º do art. 33 da Lei nº 11.343/06 têm caráter subsidiário, de modo que sua incidência só é possível se o agente não for punido por qualquer das figuras previstas no caput[8], aplicando-se o princípio da consunção às ações elencadas no § 1º do art. 33 da Lei nº 11.343/06, quando praticadas no mesmo contexto fático de uma ou mais figuras constantes do caput do mesmo dispositivo e desde que comprovado o intento mercantil do agente. Confira-se, neste sentido, a jurisprudência do STF:

“HABEAS CORPUS. CRIMES DE POSSE E GUARDA DE MAQUINÁRIO E DE ESTOCAGEM DE MATÉRIA-PRIMA DESTINADOS À MANUFATURA DE ENTORPECENTES (ARTS. 12, § 1º, I, e 13 DA LEI Nº 6.368/76, ATUALMENTE PREVISTOS NOS ARTS. 33, § 1º, I, e 34, DA LEI Nº 11.343/06). CONDUTAS TÍPICAS QUE CONSTITUEM MEIO NECESSÁRIO OU FASE NORMAL DE PREPARAÇÃO OU EXECUCÃO DE DELITO DE ALCANCE MAIS AMPLO (FABRICAÇÃO DE ENTORPECENTE). PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO RECONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O princípio da consunção em relação aos crimes de posse e guarda de maquinário e de estocagem de matéria-prima destinados à manufatura de substâncias entorpecentes pode ser aplicado, uma vez que ditas condutas constituem meio necessário ou fase normal de preparação ou execução de delito de alcance mais amplo, no caso, a fabricação de entorpecente. 2. Conclui-se que o intuito do legislador foi i) punir, por exemplo, o agente que constrói um laboratório para refino de cocaína, independentemente da sua efetiva produção, ainda que a posse das máquinas e dos objetos em questão não seja, isoladamente, considerada ilícita (tais como, no caso em exame, de baldes e de um liquidificador); ou ii) sancionar aquele que mantém em depósito matéria-prima destinada ao refino ou à produção de drogas, mesmo que a estocagem dessa, por sua natureza, não constitua, per se, crime (no caso concreto, de solução de baterias, livremente revendida com fim específico de regeneração de cargas elétricas em baterias, e de barrilha, utilizada no tratamento de água para piscinas e para outras finalidades lícitas). 3. No caso em exame, pelo que se vê da denúncia, tanto a posse da matéria-prima, como a dos maquinismos/objetos, visava a um fato único: a produção de entorpecente (merla) pelo paciente naquele local, para posterior comercialização da droga. 4. Está patente nos autos a existência de uma estrutura destinada ao tráfico de drogas, na modalidade de fabricação. 5. Ordem concedida.”

(HC 100946, Relator(a): LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 25/10/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-039 DIVULG 24-02-2012 PUBLIC 27-02-2012 RTJ VOL-00224-01 PP-00483).

Há uma disfunção na aplicação prática da Lei de Drogas, uma busca frenética e ilegal pela “repressão máxima[9], uma tendência sistemática de responsabilização penal  objetiva que busca justificar o enquadramento do tráfico mesmo diante da ausência de prova de intento mercantil, interpretação esta que não se coaduna com as garantias do ônus da prova e da presunção de inocência, consagradas na Constituição Federal.

A interpretação conforme a Constituição do crime de tráfico de drogas, em todas as suas modalidades (artigo 33, caput e §1º, incisos I a IV, da Lei nº 11.343/06), exige a adoção de standard probatório assentado em duas premissas básicas: (1) o crime de tráfico tem como pressuposto finalidade diversa do consumo pessoal e (2) compete à acusação o ônus de provar a existência de interesse negocial (ânimo mercantil) do autor do crime, eis que a sua ausência resulta na presunção de “consumo pessoal”.

Sem prejuízo da fixação de critérios objetivos diferenciadores[10], apresenta-se proposta para edição de Súmula Vinculante objetivando sanar a controvérsia atual entre órgãos judiciários que acarreta grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre o standard probatório necessário para a caracterização do crime de tráfico de drogas, nos seguintes termos:

O crime de tráfico de drogas, em todas as suas modalidades (artigo 33, caput e §1º, incisos I a IV, da Lei nº 11.343/06), pressupõe finalidade diversa do consumo pessoal, sendo ônus da acusação a prova do intento mercantil”.

Evidentemente, o testemunho policial, bem como as provas a ele ancoradas, por si sós, não são suficientes para caracterizar o crime de tráfico de drogas, exigindo-se elementos de corroboração externos aos agentes estatais que atuam na repressão ao crime[11].

Cristiano Avila Maronna, advogado, mestre e doutor em direito penal pela USP, autor de “Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade” (Ed. Contracorrente, 2022), é diretor da Plataforma Justa, membro da Rede Reforma e do Coletivo Repensando a Guerra às Drogas. Coordenador do Núcleo de Drogas e Saúde Mental da Comissão de Direitos Humanos da OABSP, membro consultor da Comissão do Direito do Setor da Cannabis Medicinal da OABRJ e da Comissão Especial de Direito da Cannabis do Conselho Federal da OAB.

[1] NUCCI, Guilherme de Souza, “A droga da Lei de Drogas”, http://www.conjur.com.br/2016-nov-04/nucci-nao-nada-comemorar-10-anos-lei-drogas.

[2] CARVALHO, Salo de A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei n. 11.343/06, 8ª ed. rev. e atual., São Paulo, Saraiva, 2016, p. 269/270.

[3] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei n. 11.343/06. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 263, 270, 273 e 276/277.

[4] MARONNA, Cristiano Avila, Lei de Drogas interpretada na perspectiva da liberdade, São Paulo: Ed. Contracorrente, 2022, p. 644.

[5] MARONNA, Cristiano Avila, Op. Cit, p. 658.

[6] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei n. 11.343/06. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 276/277, grifos da reprodução.

[7] Este tópico teve como base estudo desenvolvido pela Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, em abril de 2023, de autoria da consultora legislativa Paola Martins Kim, elaborado a requerimento da Deputada Federal Sâmia Bomfim.

[8] Nesse sentido: LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 2ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2014, p. 731.

[9] PRADO, Daniel Nicory. Crítica ao controle penal das drogas ilícitas. Salvador: Juspodium, 2013, p. 27.

[10] A respeito da fixação de critérios objetivos diferenciadores baseados no peso e na natureza de cada substância, conferir SOARES, Milena Karla et al. “Critérios objetivos no processamento criminal por tráfico de drogas: natureza e quantidade de drogas apreendidas nos processos dos tribunais estaduais de Justiça comum”, IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Relatório de Pesquisa (publicação preliminar), Brasília, 2023.

[11] MARONNA, Cristiano. ‘Ganhou, playboy!’: O standard probatório no crime de tráfico de drogas, Conjur, 8/9/23, https://www.conjur.com.br/2023-set-08/ganhou-playboy-standard-probatorio-trafico-drogas.