USO EXCLUSIVO DE COISA COMUM NÃO PARTILHADA: A RELEVÂNCIA DECISIVA DA POSSE SEGUNDO O ACÓRDÃO QUE JULGOU O RESP 1.250.362/RS

Resumo

A plausibilidade de demandas reparatórias fundadas no uso exclusivo de coisa comum pendente de partilha em divórcios e dissoluções de união estável foi objeto de amplo dissídio jurisprudencial. As divergências persistiram mesmo depois de decisão uniformizadora da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, costumeiramente com ênfase ao aspecto estrutural (mancomunhão ou condomínio) da forma de exercício da copropriedade dos bens dos ex-consortes. A Segunda Seção, em novo esforço apaziguador, debruçou-se sobre o REsp 1.250.362/RS, em cujo julgamento a questão se resolveu pela via da afirmação prioritária da posse. Este julgado, mesmo sem dizer expressamente, reflete os debates havidos acerca da releitura dos institutos fundamentais de Direito Civil na literatura jurídica. Dá vazão a uma postura hermenêutica que não apenas admite a força jurígena dos fatos, como também e principalmente prestigia a função em detrimento da estrutura. O presente trabalho se propõe a analisar este acórdão, com o objetivo de chamar atenção para os sinais desta mudança de perspectiva e enaltecer seus impactos na Teoria e na Prática do Direito Civil Contemporâneo.

Artigo

Uso Exclusivo de Coisa Comum não Partilhada: A Relevância Decisiva da Posse Segundo o Acórdão que Julgou o Resp 1.250.362/RS

André Luiz Arnt Ramos[1]

RESUMO: A plausibilidade de demandas reparatórias fundadas no uso exclusivo de coisa comum pendente de partilha em divórcios e dissoluções de união estável foi objeto de amplo dissídio jurisprudencial. As divergências persistiram mesmo depois de decisão uniformizadora da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, costumeiramente com ênfase ao aspecto estrutural (mancomunhão ou condomínio) da forma de exercício da copropriedade dos bens dos ex-consortes. A Segunda Seção, em novo esforço apaziguador, debruçou-se sobre o REsp 1.250.362/RS, em cujo julgamento a questão se resolveu pela via da afirmação prioritária da posse. Este julgado, mesmo sem dizer expressamente, reflete os debates havidos acerca da releitura dos institutos fundamentais de Direito Civil na literatura jurídica. Dá vazão a uma postura hermenêutica que não apenas admite a força jurígena dos fatos, como também e principalmente prestigia a função em detrimento da estrutura. O presente trabalho se propõe a analisar este acórdão, com o objetivo de chamar atenção para os sinais desta mudança de perspectiva e enaltecer seus impactos na Teoria e na Prática do Direito Civil Contemporâneo.

PLAVRAS-CHAVE: Posse; Propriedade; Condomínio; Mancomunhão; Uso exclusivo de coisa comum não partilhada.

1            INTRODUÇÃO

              A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o Recurso Especial número 1.250.362/RS, sob relatoria do Ministro Raul Araújo, foi instada a se pronunciar a respeito do cabimento de indenização, no bojo de divórcio, por uso exclusivo de imóvel comum, cuja partilha se definiu, mas pende de ultimação. Esta resolução quanto à partilha se deu nos seguintes termos: “no que tange ao imóvel, cujas consequências do uso exclusivo pelo varão é o objeto do litígio, verifica-se que a sentença, decretando o divórcio, determinou sua divisão ‘na proporção de 50% para cada litigante’, deixando, todavia, de arbitrar indenização”. Assim, o ponto de partida é de que, ao menos desde a sentença, não havia espaço para dúvidas acerca da porção do imóvel que cabe a cada litigante, mesmo antes da ultimação da partilha.

              A temática da indenização pelo uso exclusivo de coisa comum não partilhada no bojo de divórcio já havia sido enfrentada pela Corte em diversas oportunidades, conquanto o recorte tenha sido mais amplo, vez que não necessariamente adstrito à certeza quanto à fração ideal cabível a cada ex-cônjuge. Nestas ocasiões, o problema foi arrostado segundo a qualificação jurídica da titularidade sobre a coisa.

              O enfrentamento da questão por este ângulo foi a tônica do acórdão recorrido, no qual o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul rechaçou a pretensão reparatória, com fundamento na sucessão, relativamente à titularidade dos bens, dos estados de mancomunhão e de condomínio. Assim: “enquanto não realizada a partilha dos bens conjugais, o que implica apenas na mancomunhão do acervo (…), e não em condomínio, (…) descabe o pagamento de locativos ou indenização (…) pela ocupação exclusiva”.

              A reparação seria devida, portanto e segundo o acórdão recorrido, somente após o trânsito em julgado da homologação da partilha. Esta passagem contrasta com a então prevalente orientação da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça a respeito do assunto, externada, por ocasião do julgamento do Recurso Especial número 983.450/RS, nos seguintes termos:

[E]nquanto não dividido o imóvel, a propriedade do casal sobre o bem remanesce sobre as regras que regem o instituto do condomínio. (…) se apenas um dos condôminos reside no imóvel, abre-se a via da indenização àquele que se encontra privado da fruição da coisa.

              Esta divergência é que abriu as portas para a escalada do Recurso Especial, especialmente à luz da informação, consignada pelo Ministro relator, de que a Segunda Seção, no julgamento dos Embargos de Divergência 130.605/DF, já teria apaziguado a questão, ao cravar a possibilidade, por parte do ex-cônjuge alijado da fruição de coisa comum não partilhada, de exigência de indenização fundada no uso exclusivo pelo outro. É que, não obstante a existência de orientação uniformizadora e peremptória, registrou-se uma latente controversão da matéria “pois outros julgados consignam a possibilidade de arbitramento da indigitada indenização somente depois da ocorrência da partilha”, sempre com ênfase no regime de bens e nas regras do condomínio.

              O julgamento do Recurso Especial 1.250.362/RS, objeto deste comentário, tem impacto decisivo e imediato sobre a disciplina jurídica dessa temática, na precisa medida em que afasta a causa da inconstância antes verificada nas sucessivas decisões do próprio STJ. Assim: “não obstante as ponderáveis razões que arrimam uma e outra orientação, (…) a solução para casos como este deve ser atingida a despeito da categorização civilista da natureza jurídica dos bens comuns do casal que (…) ainda não formalizou a partilha do patrimônio”. O que importa, então e a rigor, é a posse, e não tanto a propriedade. Esta mudança de enfoque, a qual condiz com um maior prestígio à função que à estrutura, representa encaminhamento decisivo a uma mais segura e consentânea abordagem do problema, que o cotidiano vê se repetir com frequência.

2           ESTRUTURA E FUNÇÃO NO GOVERNO JURÍDICO DAS TITULARIDADES: A PRIMAZIA DA POSSE

              A mancomunhão e o condomínio designam modos do exercício do direito de propriedade. Esta, como de sabença, é “um direito complexo, se bem que unitário, consistindo num feixe de direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto”[2]. Os indigitados modos de exercício se referem, ambos, às relações entre sujeito e objeto desde o prisma abstrato e estrutural. Guardam, ademais, relação de significativa proximidade, diferenciando-se quanto a origem e regime jurídico.

              Há condomínio sempre que “a mesma coisa pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma delas igual direito, idealmente, sobre o todo e cada uma de suas partes”[3]. A chamada propriedade de mão comum, por seu turno, corresponde ao condomínio existente entre cônjuges ou companheiros sujeitos a regimes comunais (comunhão universal e comunhão parcial de bens), no qual impera a indivisibilidade até a cessação de sua causa. Isto é: até o divórcio ou a dissolução da união estável – conquanto a separação de fato, como de sabença, seja também fato jurídico com eficácia extintiva do regime de bens[4]. É o que explicita, sinteticamente, Veloso (1997, p.136):

Estabelece-se entre os cônjuges um condomínio, valendo alertar que se trata de um condomínio especial, peculiar, decorrente do regime matrimonial de bens, e diverso, em sua origem, conteúdo e efeitos, do condomínio que resulta do Direito das Coisas. Embora condôminos, nenhum cônjuge pode dispor de sua fração ideal, nem requerer a divisão dos bens que integram o patrimônio comum, não se aplicando os arts. 623, III, e 629, caput, do Código Civil [de 1916].

              Não obstante a valia desta diferenciação de sentidos desde o prisma estrutural, a afirmação peremptória da função social da propriedade, quiçá a maior das rupturas de seu discurso moderno, torna problemática sua invocação como chave para a resolução de casos concretos que respeitam às consequências do uso exclusivo de coisa comum após a separação de fato de um casal. Isto pela razão de que este expediente traduz prestígio menos à função que à estrutura, o que contraria a releitura[5] dos fundamentos, dinâmica e finalidade[6] dos institutos fundamentais de Direito Civil havida no bojo da afirmação paulatina do modelo de Estado Constitucional, inaugurado formalmente no Brasil pela promulgação da Constituição de 1988. Essa releitura permite que se vislumbre, naqueles, a função de promoção de liberdade(s), em seus plúrimos perfis, com ênfase no aperfeiçoamento de conjuntos capacitatórios elementares à realização da dignidade da pessoa, conforme elucidado por Pianovski Ruzyk:

É daí que pode emergir a função como liberdade(s), a (re)definir um sentido possível da função dos institutos jurídicos do Direito Civil: sendo eles vinculados à intersubjetividade travada entre particulares, podem ser eles instrumentos de exercício e de promoção da(s) liberdade(s), assim compreendidas como possibilidades de auto-constituição intersubjetiva – o que pode importar, inclusive, a responsabilidade recíproca entre os indivíduos pela liberdade dos outros. Essas possibilidades se inserem na rede complexa da sociedade, com suas convergências e seus conflitos, mas não se confundem nem com ‘O’ interesse coletivo sem face (ou que recebe a face que aquele que exerce o poder político pretende a ele impor) nem com particulares atomizados, que excluem o indivíduo da rede social[7].

              Uma afirmação assim não-autoritária da função dos institutos fundamentais de Direito Civil – mormente da propriedade – franqueia espaço a “[u]ma contemporânea visão do direito [que] procura tutelar não apenas estas figuras pelo que elas representam em si mesmas, mas deve tutelar certos valores tidos como merecedores de proteção: a última ratio do direito é o homem e os valores que traz encerrados em si”[8]. Nesta ordem de ideias, ganha densidade a constatação de que: “O contrato, a propriedade, a empresa, a família, a responsabilidade civil e a sucessão causa mortis devem estar permeados pela tensão constante entre a liberdade e a solidariedade”[9], em prol da afirmação autêntica da dignidade humana. Daí ser, a função, “um elemento essencial definidor do próprio direito de propriedade, e não uma técnica jurídica limitativa do exercício dos poderes proprietários”[10], sem cujo cumprimento é inadequado falar em proteção jurídica da propriedade.

              É voz corrente na teoria e na prática do governo jurídico das relações interprivadas que os direitos subjetivos, sobretudo os de índole patrimonial, são vivificados por seu exercício – o que não poderia ser mais consentâneo com a noção de função social, tal qual operativamente delimitada acima. Nesta esteira: “os direitos subjectivos são, por definição, espaços de liberdade jurídica individual, cujo concreto modo de desfrute não é passível de redução normativa, apenas se desvendando com o próprio exercício, que os vivifica permanentemente”[11]. A posse, como direito subjetivo de índole patrimonial consistente no exercício de fato de todos ou qualquer dos poderes inerentes à propriedade, configura, pois, o suporte no qual se pode vislumbrar a adequação funcional do exercício do direito subjetivo. É, então, preciso o diagnóstico de que “a função social é mais evidente na posse e muito menos evidente na propriedade”[12]. Daí porque, no elucidativo parecer de Gonçalves:

Adaptando-se, destarte, às demandas sociais conectando-se ao preceito da proteção proprietária, emerge a proteção possessória como garantia constitucional autônoma que tem como fito, dentro de seu escopo de atuação, a realização da dignidade humana.

(…)

A autonomia da posse em relação ao fenômeno proprietário emerge da própria natureza fática desta, que se diferencia do modelo individual de aquisição de bens no qual é calcada a propriedade[13].

             Nesta ordem de ideias e muito embora a textualidade dos enunciados normativos pertinentes à matéria revelem uma inclinação maior à defesa da propriedade que da posse, câmbios de perspectiva são levados a efeito pela comunidade jurídica, quer por via da literatura, quer por intermédio da prática dos Tribunais. Estas transformações foram severamente potencializadas pela maior assimilação do fenômeno da constitucionalização do Direito (Civil)[14], especialmente com a ênfase enunciada por Pianovski Ruzyk, à ideia de função como liberdade(s). Assim e novamente pela pena de Gonçalves:

[A] aptidão dos bens para a satisfação concreta de necessidades, sejam elas pertinentes, de modo imediato, à manutenção da subsistência, ou, ainda, à produção de novos bens que permitam a ampliação dos ‘funcionamentos’ que alguém pode realizar, somente se materializa como realidade no exercício da posse[15].

              Aqui é que se insere a desimportância do aspecto formal (estrutural) do regime proprietário vis-à-vis o efetivo e fático exercício de poderes sobre a coisa, em particular para a resolução de problemas concretos que se reportam ao uso exclusivo de coisa comum ainda não partilhada no contexto de divórcio ou dissolução de união estável. Isto inclusive para que se possa, segundo as circunstâncias do caso, afastar (derrotar) a regra geral de primazia da posse, na eventualidade de seu exercício se revelar disfuncional – o que se faz mediante juízo de merecimento de tutela[16].

3 IRRELEVÂNCIA DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DA TITULARIDADE PARA ATRIBUIÇÃO DO DEVER DE INDENIZAR PELO USO EXCLUSIVO DE COISA COMUM

              A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao abordar o caso em análise, buscou aniquilar o contraste então existente entre duas orientações conflitantes existentes em seu acervo de julgados: a de que é possível falar em indenização pelo uso exclusivo de coisa comum não partilhada mesmo antes da formalização da partilha, pela conversão da mancomunhão em condomínio, e a de que não é possível fazê-lo, pela persistência da primeira. Isto sob a constatação de que “admitir a indenização antes da partilha tem o mérito de evitar que a efetivação dessa seja prorrogada por anos a fio, relegando para um futuro incerto o fim do estado de permanente litigio que pode haver entre os ex-cônjuges”.

              Sucede que, em vez de cravar a prevalência de uma orientação sobre a outra, a Corte houver por bem arrostar o caso “a despeito da categorização civilista da natureza jurídica dos bens comuns do casal que, apesar de separado, ainda não formalizou a partilha do patrimônio”. Assim, embora não com uma robusta e aprofundada fundamentação no estado da questão, consignou-se que:

[O] que importa no caso não é o modo de exercício do direito de propriedade, se comum ou exclusivo (‘mancomunhão’ ou condomínio), mas sim a relação de posse mantida com o bem, se comum do casal ou exclusiva de um dos ex-cônjuges. Ou seja, o fato gerador da indenização não é a propriedade, mas sim a posse exclusiva do bem no caso concreto.

Logo, o fato de certo bem comum aos ex-cônjuges ainda pertencer indistintamente ao casal, por não ter sido formalizada a partilha, não representa empecilho automático ao pagamento de indenização pelo uso exclusivo por um deles, sob pena de gerar enriquecimento ilícito.

(…)

Nessa toada, propõem-se as seguintes afirmações: a) a pendência da efetivação da partilha de bem comum não representa automático empecilho ao pagamento de indenização pelo seu uso exclusivo, desde que a parte que toca a cada um dos ex-cônjuges tenha sido defendida por qualquer meio inequívoco, sempre suscetível de revisão judicial e fiscalização pelo Ministério Público; e b) o indigitado direito à indenização também não é automático, sujeitando-se às peculiaridades do caso concreto sopesadas pelas instâncias de origem.

              Esta tomada em conta das circunstâncias do caso concreto remete à verificação não apenas das peculiaridades do conflito quanto à partilha e de sua eternização por um ou por outro ex-consorte, mas também à qualificação (ou não) do uso exclusivo da coisa como alimentos in natura. E mais (sem embargo de se estar a dizer o óbvio): se houver prestação de alimentos entre os ex-consortes, ela poderá ser impactada pela fixação da indenização pelo uso exclusivo de coisa comum não partilhada, haja vista os impactos que esta tem na necessidade do alimentado. A indenização – prossegue o julgado – é devida desde a ciência do pedido do alijado da posse da coisa comum pendente de partilha.

              O julgamento, todavia, não foi unânime. O Min. Raul Araújo inaugurou dissidência, à qual aderiram os Ministros Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro. Em robusto voto, anotou que:

[O] ilustre relator deixa de aplicar os institutos da mancomunhão ou do condomínio (artigos 1.314, 1.315, 1.319 e 1.322 do Código Civil de 2002) para entender pela eventual possibilidade de pagamento de indenização por uso exclusivo de bem objeto de partilha por um dos cônjuges, configurando a mera posse um enriquecimento ilícito.

              No fundo e a rigor, o voto prevalente, malgrado tenha privilegiado a posse, não olvidou da existência de uma relação proprietária, à qual aquela se reconduz. E isso por uma razão bastante singela: sem co-propriedade, seja na modalidade condomínio, seja na mancomunhão, a coisa não seria comum. Via de consequência, descaberia falar na antijuridicidade de seu uso, de fato, exclusivo. A problemática, então e do ponto de vista estrutural-operativo, remeteria à (im)possibilidade de individuação das frações ideais dos comunheiros nesta última. Assim, quanto ao aspecto formal, o voto prevalente elegeu o condomínio, inclusive em prestígio (não declarado) à histórica orientação do STJ segundo a qual a separação de fato faz cessar o regime de bens.

              O ponto em que se instaurou, com maior evidência, a discórdia entre os votos, respeita à causa (ou ao ‘fato gerador’, na dicção do voto prevalente) da pretensão reparatória pelo uso exclusivo de coisa comum não partilhada. É o que se verifica na seguinte passagem do voto dissidente:

De fato, se um dos comunheiros impedir, injustamente, que o outro usufrua de imóvel comum (…) é possível vislumbrar a possibilidade de pagamento de uma indenização, correspondente à metade da renda de um presumido aluguel pelo uso excludente da propriedade comum.

É a conduta típica por parte do possuidor exclusivo que faz nascer o direito do outro cônjuge. Por exemplo, se o possuidor proibir a entrada do outro cônjuge no imóvel, trocando as fechaduras das portas, ameaça-lo por meio de violência física ou verbal, tornando o ambiente inseguro inclusive para eventual prole, ou convidar terceiros para coabitar no imóvel, impondo convívio insuportável, entendo ser possível a fixação dos aluguéis sub judice.

              Assim, descaberia falar em indenização quando houvesse abdicação deliberada ao uso de coisa comum por qualquer dos ex-cônjuges. Isto mesmo na “circunstância de as partes não coabitarem no imóvel até a ultimação da partilha (…), já que ninguém é obrigado a conviver com o outro”. Seria necessário, neste prisma, a ocorrência de conduta ilícita, consistente no impedimento direto ou indireto do exercício da posse sobre a coisa comum ainda não partilhada, para que, sob os auspícios da vedação ao abuso do direito, o ex-consorte alijado possa reclamar reparação com chances de sucesso. Nesta linha (e segundo as circunstâncias fáticas do caso), o voto assentou que:

(…) compulsando detidamente os autos, verifica-se que o ex-cônjuge varão utiliza o imóvel, de boa-fé, para fins comerciais, além de moradia. E, no caso, não se afere do conjunto fático-probatório dos autos nenhuma atividade ilícita do cônjuge varão em relação à ex-mulher, motivo pelo qual reputo incabível o arbitramento de indenização.

              Na sequência, a Ministra Nancy Andrighi proferiu voto-vista, no qual registrou que:

Os institutos jurídicos que definem situações e circunstâncias fáticas, embora sirvam de Norte para se fixar corolários legais, merecem vagar em sua aplicação, mormente nas ocasiões em que as ficções jurídicas não absorvem toda a dinâmica social, razão pela qual, sob pena de se enjambrar a realidade para ‘caber no molde legal’, não raras vezes se impõe ao Estado-Juiz a necessidade de equilibrar as fórmulas que derivam de um conceito legal, ao fato social sob escrutínio.

              Nesta esteira, ao enfatizar a insuficiência da mancomunhão para resolver o problema discutido, a Ministra aderiu ao voto do Relator, para, à parte a discussão quanto “ao instituto aplicável à espécie”, firmar a suficiência da posse para averiguação da plausibilidade de demanda reparatória por uso exclusivo de coisa comum não partilhada.

              Finalmente, a Ministra Isabel Galotti proferiu voto-vista em que ofereceu razões justificadoras de sua aquiescência ao voto do Relator, das quais se destaca o seguinte excerto:

Compartilho do entendimento de que, em razão da vedação ao enriquecimento sem causa, se apenas um dos ex-cônjuges utiliza o bem de forma exclusiva, impedindo de forma concreta ou prática o usufruto comum do bem, independentemente de estar submetido ao estado de manconunhão ou de condomínio, em face de já se ter operado a partilha ou não, surge o direito do outro de ser ressarcido, sob pena de enriquecimento ilícito (…).

A ultimação formal da partilha, ato que, em geral, é o mais controvertido e demorado, sendo postergado para discussão após a concordância mútua quanto à inevitabilidade do divórcio (…) não é fundamento relevante para a definição do direito à indenização pelo uso exclusivo de imóvel comum.

              O recurso, então, foi provido, para reformar o acórdão atacado e cravar a primazia da posse sobre a forma de exercício da copropriedade como chave para a atribuição de responsabilidade pelo uso exclusivo de coisa comum pendente de partilha no contexto de divórcio ou dissolução de união estável.

              Em que pese a acalentada divergência entre os votos colidentes, uma leitura detida conduz à verificação de que eles não são assim tão diversos. Isso porque, no ponto nodal do embate, as razões da dissidência caberiam na ressalva que o voto prevalente fez às circunstâncias fático-jurídicas da causa. Seja como for e malgrado de modo tácito, a Segunda Sessão do Superior Tribunal de Justiça acabou por ratificar as discussões havidas na literatura a respeito da funcionalização da posse e da releitura multidimensional dos institutos fundamentais de Direito Civil. Com isso, abre-se, inclusive, espaço para um controle axiológico e funcional de merecimento de tutela, no qual têm vez as razões da dissidência, sem comprometimento da unidade do julgamento uniformizador.

4            CONCLUSÃO

              O acórdão pelo qual a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial número 1.250.362/RS ofereceu solução diversa daquela usualmente referendada pela Corte Suprema ao problema da indenização pelo uso exclusivo de coisa comum pendente de partilha no contexto de divórcio ou dissolução de união estável. Se antes a tônica recaía sobre a sucessão dos estados (estruturais) de mancomunhão e de condomínio comum, com essa decisão passa a estar no exercício e da privação da posse, sujeita a avaliação circunstanciada e de viés funcional.

              O julgado passado em revista exprime deliberação dividida, mas os votos prevalente e dissidente não são inconciliáveis entre si. Isso porque a ressalva feita pela divergência acerca da averiguação da antijuridicidade da conduta do ex-consorte que priva o outro do uso de coisa comum pendente de partilha bem poderia se enquadrar no condicionamento da solução prescrita pelo voto prevalente às peculiaridades do caso. Assim e em homenagem à função singularmente unificadora dos julgamentos da Segunda Seção, poder-se-ia ter discutido a adoção de caminho garantidor de unanimidade, a qual daria mais peso ao precedente.

              Sem embargo disso e muito embora o diálogo com os debates havidos na literatura jurídica brasileira não esteja evidente na fundamentação do acórdão, a Segunda Seção atingiu resultado consentâneo com o estado da arte do Direito Civil Contemporâneo, em especial quanto à primazia da função sobre a estrutura. À comunidade especializada compete, sem prejuízo de enaltecer (para bem ou mal) o resultado alcançado pelo Superior Tribunal de Justiça neste caso, cobrar, agora, maior clareza na delimitação do caminho a ele conducente.

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Notas de Rodapé:

[1] Doutorando e Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Pesquisador visitante junto ao Instituto Max Planck para Direito Comparado e Internacional Privado. Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico (UFPR). Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná. Professor e Advogado em Curitiba-PR.

[2] GOMES, O. Direitos Reais. 21ª Ed. Atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2012,

p.104.

[3] PEREIRA, C. M. S. Instituições de Direito Civil. V. 4: Posso. Propriedade. Direitos Reais de Fruição. Garantia e Aquisição. 13ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.130.

[4] Esta eficácia é objeto de sequência histórica de decisões do Superior Tribunal de Justiça, deflagrada por acórdão da Terceira Turma, relatado pelo Min. Carlos Alberto Menezes Direito e publicado em junho de 2000, do qual consta que “Não integram o patrimônio, para efeito da partilha, uma vez decretado o divórcio direto, os bens havidos após a prolongada separação de fato” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 40.785. Relator: Ministro Carlos Menezes Direito. Terceira Turma. Revista eletrônica de jurisprudência. Brasília, 2000. [online]. Disponível na Internet via: < https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/documento/mediado/?num_registro=199300319574&dt_publicacao=05-06-2000&cod_tipo_documento=>. Última consulta em 04.09.2017).

[5] Tal revisão se insere no bojo da reconstrução do Direito Civil, tornada inevitável pelo progressivo advento do Estado Constitucional no segundo pós-Guerra: “De qualquer sorte, nesses tempos de reconstrução do direito civil a partir das profundas modificações pelas quais passa sociedade ocidental, notadamente em relação aos valores para cuja proteção a ordem jurídica é chamada, vale refletir sobre o conteúdo do direito civil” (CORTIANO JUNIOR, E. As quatro fundações do Direito Civil: ensaio preliminar. RFDUFPR. Curitiba, v.45, pp.99-102, 2006, p.99).

[6] Este movimento, decerto impulsionado pelos ventos soprados da virada copernicana anunciada há quase vinte anos, não cessa de se renovar e a se reapresentar como uma sísifica opera in fieri: “A releitura de estatutos fundamentais do Direito Privado é útil e necessária para compreender a crise e a superação do sistema clássico que se projetou para o contrato, a família e o patrimônio. A complexidade desse fenômeno apresenta, neste momento, um interessante banco de prova que se abre em afazeres epistemológicos que acolhem as novas demandas da juridicidade. Assim nos alimentamos do tormento de saber pouco e por isso não temos o direito de viver em paz. Sabemos, porém, que o Direito (como um todo, e o Direito Civil, em particular) não é somente isso que está aí)” (FACHIN, L. E. “Virada de Copérnico”: um convite à reflexão sobre o Direito Civil brasileiro contemporâneo. In: FACHIN, L. E. (Coord.). Repensando os fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p.319).

[7] PIANOVSKI RUZYK, C. E. Institutos Fundamentais de Direito Civil e Liberdade(s): Repensando a dimensão funcional dos contratos, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2011, p.199.

[8] CORTIANO JUNIOR, E. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: RAMOS, C. L. S., FACHIN, L. E. (Coord). Repensando os fundamentos do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p.32.

[9] TEPEDINO, G. Prefácio a NEVARES, A. L. M. A função promocional do testamento: tendências do Direito Sucessório. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.5.

[10] CORTIANO JUNIOR, E. O Discurso Jurídico da Propriedade e suas Rupturas: uma Análise do Ensino do Direito de Propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.184.

[11] ATAÍDE, R. P. C. M. Sobre a distinção entre posse e detenção. [online]. Disponível na Internet via: < https://www.oa.pt/upl/%7B4513b71a-245e-4bdd-ac4a-8c64a6757bc4%7D.pdf>. Última consulta em: 30/08/2017. O autor português, logo após o excerto transcrito, afirma que “a imposição de funções, ditas sociais ou económicas, cercearia essa liberdade, submetendo o exercício a bitolas prévias”. Esta colocação, conquanto se justifique se tomada a função no viés (totalizante, coletivista e autoritário) de fator determinante da subserviência do indivíduo a uma coletividade sem face, perde sustentação diante de sua tomada no sentido de promotora de liberdade(s), formulado por Pianovski Ruzyk, em obra já citada, e aqui abertamente adotado.

[12] FACHIN, L. E. A função social da posse e a propriedade contemporânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: SAFE, 1988, p.19.

[13] GONÇALVES, M. A. R. A posse como direito autônomo: teoria e prática no Direito Civil brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p.225.

[14] “É justamente a porta aberta da constitucionalização, somada à realização de condições vitais materiais, que torna possível o tratamento da posse como um direito fundamental autônomo” (GONÇALVES, M. A. R. A posse como direito autônomo…, pp.231-232).

[15] PIANOVSKI RUZYK, C. E. Institutos fundamentais de Direito Civil e Liberdade(s)…, p.246.

[16] “[A] noção de merecimento de tutela representa justamente o reconhecimento de que a eficácia de certa conduta particular é compatível com o sistema e, por isso, deve ser protegida; trata-se, como se vê de uma consequência necessária da constatação de que certo ato é lícito do ponto de vista estático ou estrutural e, em perspectiva dinâmica ou funcional, não é abusivo (não constitui o exercício disfuncional de uma situação jurídica” (NUNES DE SOUZA, E. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no Direito Civil. In: GUERRA DE MORAES, C. E. e LODI RIBEIRO, R. (Coords). Direito Civil. Rio de Janeiro: UERJ, 2015, p.74). O juízo de merecimento de tutela, a rigor, não se restringe a esta dimensão negativa, conforme ressalva o autor citado e se verá adiante.

Palavras Chaves

Posse; Propriedade; Condomínio; Mancomunhão; Uso exclusivo de coisa comum não partilhada.