A BOA-FÉ E A TEORIA DA IMPREVISÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS PÓS COVID-19

Resumo

O presente artigo busca esclarecer o cenário do direito privado frente a crise imposta pela Pandemia do Coronavírus (COVID-19) no direito privado brasileiro, através da Teoria da Imprevisão, disposto no art.317,421-A e 478, do Código Civil de 2002, com a relação dos temas da força obrigatória dos contratos junto a teoria da boa-fé contratual, decorrente do art.422, do mesmo diploma legal. Através de análise do que vem expondo a doutrina, prospectar os cenários que poderão ocorrer dentro do direito brasileiro, evitando a quebra contratual e um possível colapso dentro das relações privadas.

Abstract

This article seeks to clarify the scenario of private law against of the crisis imposed by the Coronavirus Pandemic (COVID-19) in Brazilian private law, through the Theory of Unpredictability, set out in art.317,421-A and 478, of the Civil Code of 2002, with the list of the subjects of the mandatory force of contracts together with the theory of contractual good faith, resulting from art.422, of the same legal diploma. Through an analysis of what has been exposing the doctrine, prospect the scenarios that may occur under Brazilian law, avoiding breach of contract and a possible collapse within private relations.
KEYWORDS: Theory of unpredictability. Good Faith. Prince fact. Contracts. contractual injury. Negotiation

Artigo

A BOA-FÉ E A TEORIA DA IMPREVISÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS PÓS COVID-19

 

Guilherme Valente Almeida Cardoso Guimarães[1]

Maria Carolliny Gomes Sousa[2]

RESUMO: O presente artigo busca esclarecer o cenário do direito privado frente a crise imposta pela Pandemia do Coronavírus (COVID-19) no direito privado brasileiro, através da Teoria da Imprevisão, disposto no art.317,421-A e 478, do Código Civil de 2002, com a relação dos temas da força obrigatória dos contratos junto a teoria da boa-fé contratual, decorrente do art.422, do mesmo diploma legal. Através de análise do que vem expondo a doutrina, prospectar os cenários que poderão ocorrer dentro do direito brasileiro, evitando a quebra contratual e um possível colapso dentro das relações privadas.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria da imprevisão. Boa-fé. Fato Príncipe. Contratos. Lesão contratual. Negociação.

RESUME: This article seeks to clarify the scenario of private law against of the crisis imposed by the Coronavirus Pandemic (COVID-19) in Brazilian private law, through the Theory of Unpredictability, set out in art.317,421-A and 478, of the Civil Code of 2002, with the list of the subjects of the mandatory force of contracts together with the theory of contractual good faith, resulting from art.422, of the same legal diploma. Through an analysis of what has been exposing the doctrine, prospect the scenarios that may occur under Brazilian law, avoiding breach of contract and a possible collapse within private relations.

KEYWORDS: Theory of unpredictability. Good Faith. Prince fact. Contracts. contractual injury. Negotiation.

INTRODUÇÃO

Com a pandemia tendo seu início na cidade de Wuhan, na China, e que percorrendo todos os continentes em menos de 3 meses, a humanidade, indiscutivelmente, teve que paralisar e rediscutir o conflito entre economia, trabalho, proteção de dados, saúde, dignidade humana e até a forma como se vê o direito. A pandemia também se tornou jurídica.

A disseminação do Coronavírus (COVID-19), tem como seu principal expoente a OMS (Organização Mundial de Saúde), que declarou pandemia em 11 de março de 2020 (“Coronavírus: Declaração de pandemia reforça que países precisam se organizar, diz médica”, [s.d.]) e, assim como em tempos de guerra, efeitos sobre a vida e a economia pairam sobre a sociedade como um todo. Trata-se de uma guerra contra uma doença que pouco se conhece e que sequer se tem o tratamento ou cura, até a presente data de publicação deste artigo.

Mesmo sabendo que as determinações da OMS não possuem efeitos vinculantes para os Entes Federativos (pacto federativo, art.1º, Constituição Federal da República), vem diversas controvérsias dentro da política brasileira, uma vez que não há centralização de poder no Governo Federal. Entretanto, não se pode ignorar o fato de que trata-se de um órgão criado através de sua constituição em 1948 (“History”, [s.d.]), com princípios baseados nos direitos humanos, universalidade e equidade, com profundo respeito internacional, bem como dentro de nossos tribunais.

As consequências que essa pandemia vem causando, transcende todos os âmbitos que norteiam a vida mundana. Os impactos sociais e econômicos que afetam diretamente os direitos dos cidadãos e das empresas, não encontram nenhum precedente que se adeque a esse cenário de incerteza e insegurança jurídica.

Por outro lado, é certo afirmar que o impacto econômico global será digerido por meses, principalmente no Brasil, no qual a prospecção do PIB (Produto Interno Bruno) já não era animadora e com o isolamento social e lockdown estabelecidos pelas entidades governamentais ao longo do Brasil e do mundo, agravará este quadro ora mencionado, já que vivemos em um mundo no qual a economia é globalizada, conforme preconiza o artigo coordenado pelo Professor de direito civil Flávio Tartuce, de autoria de Salomão Resedá:

Com o estabelecimento do lockdown, parte da economia sofrerá com grandes impactos tanto no que se refere à produção como à circulação de riquezas. Num patamar global, há consenso no sentido de que as nações afetadas experimentarão uma recessão mundial, sendo que, especificamente para o Brasil, a projeção não é muito animadora, haja vista a perspectiva de Produto Interno Bruto no patamar de 0,02%1 no ano de 2020 estabelecida pelo próprio governo2. Passando para a análise das Instituições Financeira de Crédito, esta projeção chega a identificar uma retração de 1% no Produto Interno Bruto nacional3.(RESEDÁ, 2020)

Desta forma, o direito é fruto de mudanças que ocorrem na sociedade, no qual o homem impõe regras – contrato social – que devem ser impostas para preservar a liberdade e a segurança (ROUSSEAU, [s.d.]).

Sendo assim, medidas são tomadas, como a do Governo Federal, através do advento da medida provisória nº 927, de 22 de março de 2020, bem como a maioria dos estados brasileiros estão adotando medidas restritivas visando a contenção dessa pandemia. A aplicação das recomendações dos órgãos de saúde, como o isolamento social e paralisação das atividades comerciais não essenciais, vem gerando a redução substancial do faturamento da economia local nas diversas cidades brasileiras.

Ainda, em meio a aparente interminável crise política instaurada no Brasil, mais uma medida provisória – MP nº 948 de 8 de Abril de 2020 – está em tramitação no Senado Federal e dispõe sobre o cancelamento de serviços de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19). (“MEDIDA PROVISÓRIA No 948, DE 8 DE ABRIL DE 2020”, [s.d.]).

Desta forma, as consequências da Covid-19 possuem efeitos que afetam o direito privado ora conhecido, produzindo uma insegurança social e uma instabilidade no meio jurídico. O Judiciário está adotando soluções intercorrente em meio à crise. Entretanto, se faz necessário que a atenção seja direcionada ao futuro, buscando preparar um ambiente jurídico adequados pós COVID-19. Afinal, é certo, que o status quo ante bellum, não será possível, em sua integralidade, pelo menos não de imediato.

As relações jurídicas encontram-se diretamente abaladas com as possíveis mudanças que virão, uma vez a atuação de boa-fé aos contratos, dialogando com a parte adversa, serão fundamentais para se buscar a equidade, resgatando, assim, a teoria da imprevisão, já adotada no Código Civil de 2002 em seus art.317 e 478 e, agora com a lei de liberdade econômica, acrescentando o art.421-A, do mesmo diploma legal. (“Código Civil de 2002”, [s.d.])

Imprescindível observar questão importante quanto ao enriquecimento sem causa, que pode assombrar os contratos firmados antes do fato do príncipe imposto pelo Estado. Segue abaixo a citação do artigo de autoria de Rodrigo da Guia Silva:

Com vistas à elucidação e à superação desse equívoco conceitual, afigura-se fundamental a advertência no sentido de que a disciplina da vedação ao enriquecimento sem causa não tem por vocação definir abstrata e previamente as causas legítimas de atribuição patrimonial4. A esse mister destinam-se setores e comandos normativos os mais diversos no ordenamento jurídico, aos quais o direito restitutório certamente não tem pretensão de se sobrepor. Não incumbe ao regramento do enriquecimento sem causa, por exemplo, definir a ocorrência da frustração do programa contratual por culpa do devedor inadimplente, tampouco a abusividade de cláusulas insertas em contratos de consumo, mas sim disciplinar os efeitos da ausência superveniente da causa de atribuição patrimonial (in casu, por força da resolução do contrato ou da pronúncia judicial da invalidade das suas cláusulas, exemplos de que se cogitará na sequência deste estudo). (DA GUIA SILVA, [s.d.])

Oportuno fazer compreender a questão tão discutida e amplamente dita em relação ao fato do príncipe, nos ensinamentos da obra Direito Administrativo Descomplicado, de Marcelo Alexandre e Vicente Paulo

Fato do príncipe é toda determinação estatal geral, imprevisível e inevitável, que impeça ou, o que é mais comum, onere substancialmente a execução do contrato, autorizando sua rescisão, na hipótese de tornar-se impossível seu cumprimento. (grifo do autor). (ALEXANDRINO; PAULO, 2017)

Sendo assim, o presente artigo estabelecerá a conexão entre o Coronavírus, às medidas tomadas pelas entidades públicas nas relações privadas, com a dissecação da teoria da imprevisão que deverá caminhar junto a boa-fé objetiva.

A TEORIA DA IMPREVISÃO

A teoria da imprevisão era comumente relacionada ao direito administrativo, no qual tem-se tradicionalmente um descumprimento total ou parcial de cláusulas contratuais de um contrato administrativo, caracterizando assim o inadimplemento por uma das partes por motivos imprevisíveis. Ocorre que, esta teoria vem sendo amplamente discutida na esfera privada, tendo em vista o advento da Lei de Liberdade Econômica e a pandemia do coronavírus, com a inexecução sem culpa dos contratos, pressupondo uma justificativa para o inadimplemento em razão da imprevisibilidade gerada.

Destaque deve ser feito a ampla discussão em relação ao fato do príncipe, pelo qual, de acordo com o art.65, “d”, da lei 8.666/1993, estabelece critérios para que o ente público, pela determinação estatal imposta, apresente situações ensejadoras de revisão ou resolução contratual.

Podemos observar que o fundamento desse dispositivo é o mesmo que embasa a revisão por fato do príncipe. Somente é preciso aqui observar que não trata de hipótese desse §5º, exatamente de fato do príncipe, pois não se exige que a modificação decorrente de ato geral do estado torne a execução do contrato extraordinariamente onerosa, ou seja, o dispositivo é ainda mais benéfico ao contrato do que a merda aplicação da teoria da imprevisão como tradicionalmente descrita.(ALEXANDRINO; PAULO, 2017)

Cabe salientar, ainda, que a teoria da imprevisão não deve ser confundida com a lesão disciplinada no art.157, do Código Civil, já que o primeiro está relacionado a um contrato válido, ou seja, possui sua origem com o devido equilíbrio contratual, porém, por motivos alheios, não pode ser mantido em sua forma original ou até mesmo rescindido, por estar onerosamente excessivo para uma das partes. Por outro lado, a lesão traz um contrato invalido em sua origem, visto a desproporcionalidade para uma das partes, tendo onerosidade excessiva em sua origem e sendo causa de anulabilidade do contrato quando se refere a relação civil e nulidade absoluta em relação de consumo.

Conforme já mencionado, as relações humanas dão origem ao direito e sua modificação, via de regra, ocorre de forma a posteriori, ou seja, o legislador (em nosso sistema Civil Law) reage a determinadas situações após o surgimento da lide.

Neste campo de discussão, por conta do desequilíbrio contratual gerado pelo vírus, a exemplo das instituições de ensino, muito vem sendo discutido quanto a redução do valor da mensalidade paga, já que as aulas estariam sendo a distância (“PORTARIA No 343, DE 17 DE MARÇO DE 2020 – PORTARIA No 343, DE 17 DE MARÇO DE 2020 – DOU – Imprensa Nacional”, [s.d.]) e os gastos com o ensino para o prestador de serviço estariam sendo reduzidos. Entretanto, a prestação de serviços educacional possui um contrato regido pelo direito civil brasileiro e, conforme art.22, da Constituição Federal da República de 1988, em seu inciso I, é competência privativa da União legislar sobre matéria de direito civil.

Neste ínterim, os contratos cíveis dentro de direito privado que deveriam ser legislados pela União, estão sendo objeto de câmaras legislativas pelos Estados e Municípios, sendo motivo de debate no STF, através da ADI 1.007/PE e na ADI 1.042/DF. Não podem (ou não poderiam) os Estados ou Municípios legislarem em matérias que não possuem competência.

No estado do Pará, a Assembleia Legislativa aprovou no dia 8 deste mês o Projeto de Lei nº 74/2020, que determina a redução de, no mínimo, 30% no valor das mensalidades pertinentes à prestação de serviços educacionais da rede privada (educação infantil, ensino fundamental, médio e superior) enquanto perdurarem as medidas de enfrentamento da Covid-19. O projeto aguarda sanção ou veto do governador. (“ConJur – Sarah Mesquita: Mensalidades escolares e a Covid-19”, [s.d.]).

Ainda, amplamente debatido e recentemente ampliado no Código Civil de 2002, através da lei de liberdade econômica (“L13874”, [s.d.]), ora mencionado anteriormente neste artigo, a Teoria da Imprevisão traz situações em que será possível a revisão ou a resolução contratual, por conta de eventos imprevisíveis e inevitáveis, como por exemplo o Coronavírus – COVID-19.

Ponto importante a ser desmistificado e compreendido encontra-se na não necessidade de diferenciação de caso fortuito e força maior. O legislador não transcorreu sobre seus conceitos, vide art.393, do Código civil, colocando-os com a mesma intenção jurídica, ficando a cargo da doutrina sua distinção.

Por outro lado, mesmo o entendimento de que a pandemia pode ensejar a resolução contratual, o aplicador do direito (aqueles que integram a relação processual) deve observar a força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda). O Judiciário deve se blindar e diferenciar o contrato que realmente não tem condições de se manter, seja pela modificação fática relacionada ao negócio em si, seja pela inviabilidade do negócio jurídico por novos hábitos, ou seja, pela perda objeto do contrato.

A intervenção estatal somente deve ocorrer quando houver uma desigualdade contratual que fuja de uma expectativa ordinária de ambas as partes, ou seja, o resultado não poderia ser previsto. Desta maneira, deve-se evitar a configuração de oportunismos frente a posição jurídica da outra parte contratante.

A intervenção estatal somente pode ocorrer no contrato se “houver uma mudança objetiva que provoque desigualdade, o magistrado deve perquirir sobre se a mudança é ínsita, ou não, ao risco normal do contrato. Se for, não se justifica sequer a intervenção, devendo-se prestigiar a vontade das partes. Por outro lado, ao aferir objetivamente que há desigualdade e ela é manifesta, fora do risco ordinário ou regular da contratação que se esteja analisando – portanto a situação gerou uma desigualdade manifesta – cabe então a intervenção nos limites da igualdade material”.(“REDUÇÃO DAS MENSALIDADES ESCOLARES DE INSTITUIÇÕES DE ENSINO PRIVADAS COMO EFEITO DA CÂMARA LEGISLATIVA DO DISTRITO FEDERAL”, [s.d.])

É certo afirmar que o direito, com o advento do capitalismo como um todo, tem sua origem para garantir a propriedade privada e, ignorar essa vinculação do contrato não seria coerente com a história e feriria o princípio da previsibilidade que rege o direito privado.

Naturalmente, cabe sobretudo aos interessados burgueses exigir um direito inequívoco, claro, livre de arbítrio administrativo irracional e de perturbações irracionais por parte de privilégios concretos: direito que, antes de mais nada, garanta de forma segura o caráter juridicamente obrigatório dos contratos e que, em virtude de todas essas qualidades, funcione de modo calculável.(BARBOSA; BARBOSA; COHN, 1999)

Por fim, o Judiciário não poderá ignorar a força obrigatória dos contratos, devendo observar a boa-fé (objetiva) nas relações privadas. A probabilidade de se injetar no Judiciários diversas demandas quanto a rescisão de contratos, na visão subjetiva de viabilidade do contrato ou revisão, será alta, devendo ser motivo de extrema atenção pelos aplicadores do direito, já que não será todo e qualquer tipo de causa que poderá ser revisada com única e exclusiva justificativa da pandemia.

 

BOA-FÉ

Um dos corolários do direito brasileiro, no âmbito da boa-fé, é o dever de negociar (“Os desafios da negociação: notas sobre habilidades necessárias à prática contratual (não apenas) em tempos de crise – Migalhas Contratuais”, [s.d.]). O intuito, aqui apresentado, é buscar a consciência das partes afim de evitar a sobrecarga no Judiciário relativa ao número de demandas propostas.

É indiscutível afirmar que o estudante de direito, no caminhar de sua faculdade, é orientado a apontar erros e ver o poder Judiciário como único meio eficaz de solução de problemas, tendo implantado em si a cultura do litígio. Há de se entender que existem meios alternativos de solução de problema como a mediação e arbitragem, porém o poder do Estado possui um status diferente frente ao cliente.

A negociação, principalmente em tempos de crise, como estamos enfrentando neste momento, torne-se fundamental para a solução de qualquer lide, seja no âmbito extrajudicial, seja por meio judicial, apresentando ao Juiz, na figuro de Estado, que houve boa-fé ao caso em questão.

Uma das mudanças inseridas pelo Código Civil de 2002 corresponde ao princípio da boa-fé contratual, que se apresenta de forma expressa, em seu texto jurídico, o que não constava na cifragem de 1916. A boa-fé, anteriormente, tinha uma ligação contínua com a vontade do sujeito de direito, sendo classificada como boa-fé subjetiva, já que possui uma relação direta com a intenção do agente e se contrapondo a má-fé.

Entretanto, mesmo nas primícias do Direito Romano, mostrava-se necessária outra boa-fé, que possuísse relação direta com a conduta das partes, especialmente nas relações contratuais. Conforme preconiza a obra: Manual de Direito Civil. Volume Único, 8ª edição, do Professor de direito civil Flávio Tartuce:

Com o surgimento do jusnaturalismo, a boa-fé ganhou, no Direito Comparado, uma nova faceta, relacionada com a conduta dos negociantes e denominada de boa-fé objetiva. Da subjetivação saltou-se para objetivação, o que é consolidado pelas codificações privadas europeias. (p. 668, 2018) (TARTUCE, [s.d.])

O autor continua a delinear, sobre o tema ao se referir que:

Nosso atual código civil, ao seguir essa tendência, adota a dimensão concreta da boa-fé, como já fazia o Código de Defesa do Consumidor em seu art. 4.º, III, entre outros comandos, segundo o qual “a Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito á sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (…) III- harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores” (destacado). Quanto a essa confrontação necessária entre o Código Civil de 2002 e o CDC, prevê o Enunciado n. 27 do CJF/STJ que: “Na interpretação da clausula geral da boa-fé objetiva, deve-se levar em conta o sistema do CC e as conexões sistêmicas com outros estatutos normativos e fatores metalúrgicos”. Um desses estatutos é justamente a Lei 8.078/1990, ou seja, deve ser preservado o tratamento dado à boa-fé objetiva pelo CDC.  (p. 668, 2018) (TARTUCE, [s.d.])

O princípio normativo da boa-fé objetiva possui uma dinamicidade e elasticidade capaz de adaptar-se aos novos tempos, garantindo aos instrumentos jurídicos uma proximidade com a ética. É uma ferramenta eficaz e flexível no combate das condutas desleais. Demostra-se sempre necessário para conduzir qualquer conduta humana, sendo primordial nas relações sociais, não importa qual a sua natureza.

Desta forma, o intuito da boa-fé possui como escopo pautar as condutadas das partes, nas fases que antecedem a negociação, no momento em que se pratica o ato negociatório em si e na fase pós-contratual, conforme já observado neste artigo. Nada obstante, é crucial destacar que mesmo utilizando a boa-fé objetiva em todas essas etapas contratuais, não se gera um dever de resultado, ou seja, de concluir o aditivo, mas traz consigo, dever de meio, para que possam renegociar com lealdade relativa ao tipo de negócio, de modo que a boa-fé atuará como um modelo de comportamento devido, ajustando eventual ilicitude no modo do exercício da renegociação. Importante frisar o que vem disposto no art. 187, do Código Civil de 2002:

Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Neste diapasão, devemos observar o princípio da equivalência material que busca trazer harmonização nas relações jurídicas como um todo, ou seja, preservar o real equilíbrio do contrato antes, durante e na execução, conforme já mencionado.

Enfim, a pandemia e as medidas sanitárias decorrentes deteriorou a vida de relação e, por conseguinte, a utilização da coisa pelo lojista durante o fechamento do shopping center para ficarmos apenas nesse exemplo, perdeu a função. Por ser uma situação temporária, não há que se falar em frustração do fim do contrato a ensejar a resolução contratual por tal fundamento, mas imperioso se mostra que as partes rediscutam a relação contratual, tocando como premissa o equilíbrio contratual. (“Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19 – Migalhas Contratuais”, [s.d.])

Na existência de lacunas contratuais, é necessário que o contrato seja interpretado, de acordo com o que prevê o art. 113, § 1º, II, CC, sobretudo pelo parâmetro da boa-fé objetiva, da racionalidade e realidade econômica. Sobre a racionalidade, é analisado o comportamento que as partes adotariam se pudessem prever a pandemia.

Lembram Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald que é nas obrigações duradouras que se encontra o caráter integrativo da boa-fé, haja vista a situação de confiança criada pelo credor no cumprimento futuro da obrigação. “A integração do conteúdo contratual pela boa-fé respeitará a “ética da situação”. Haverá constante mutação dos deveres de conduta no tempo e no espaço, pois sua concretização respeitará o sentido do contrato conforme aferição casuística dos fins comuns.(“Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil”, [s.d.])

Entretanto, debitar na calamidade pública a um inadimplemento sem nexo de causalidade com a pandemia, é agir de má-fé. Faz-se necessário que se tenha cautela redobrada pelos operadores e, especialmente, dos magistrados brasileiros na verificação dessa relação causal. O Enunciado 443 do CJF 13 nos auxilia nessa interpretação:

O caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida. (Enunciado 443 do CJF 13)

Essa clausula geral da boa-fé objetiva encontra-se implícita ou explicitamente em toda relação humana. Estabelecendo inúmeros deveres que não necessitam estar expressos no negócio jurídico. São os chamados direitos anexos, ou laterais de conduta. De acordo com o doutrinador, Flávio Tartuce, em sua obra Manual do Direito Civil, 8ª edição:

São considerados deveres anexos, entre outros: o dever de cuidado em relação à outra parte negocial; dever de respeito; dever de probidade e lealdade; dever de agir com honestidade; dever de informar a outra parte sobre o conteúdo do negocio; dever de agir conforme a confiança depositada; dever de colaboração ou cooperação; dever de agir conforme a razoabilidade, equidade e a boa razão. (p. 669, 2018) (TARTUCE, [s.d.])

Continuando o pensamento do autor:

A quebra desses deveres anexos gera a violação positiva do contrato, com responsabilização objetiva daquele que desrespeita a boa-fé objetiva. Essa responsabilização independente de culpa está amparada igualmente pelo teor do Enunciado n. 363 do CJF/STJ, da IV jornada, segundo o qual “Os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, estando a parte lesada somente obrigada a demonstrar a exigência da violação”. (p. 669, 2018)

Além da relação com esses deveres anexos, decorrentes de construção doutrinaria, o Código Civil de 2002, em três dos seus dispositivos, apresenta três funções importantes da boa-fé objetiva.

1.°) Função de Interpretação (art. 113 do CC) – eis que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os seus usos do lugar da sua celebração. Nesse dispositivo, a boa-fé é consagrada como meio auxiliador do aplicador do direito para a interpretação dos negócios, da maneira mais favorável a quem esteja de boa-fé. Essa função de interpretação, repise-se, também parece estar presente no Novo CPC, no seu art. 489, § 3.°, devendo o julgador ser guiado pela boa-fé das partes ao proferir sua decisão.

2.°) Função de Controle (art.187 do CC) – uma vez que aquele que contraria a boa-fé objetiva comete abuso de direito (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”). Vale mais uma vez lembrar que, segundo o Enunciado n. 37 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, a responsabilidade civil que decorre do abuso de direito é objetiva, isto é, não depende de culpa, uma vez que o art. 187 do CC adotou o critério objetivo-finalístico. Dessa forma, a quebra ou desrespeito à boa-fé objetiva conduz ao caminho sem volta da responsabilidade independentemente de culpa, seja pelo Enunciado n. 24 ou pelo Enunciado n. 37, ambos da I Jornada de Direito Civil. Não se olvide que o abuso de direito também pode estar configurado em sede de autonomia privada, pela presença de cláusulas abusivas; ou mesmo no âmbito processual.

3.°) Função de Integração (art. 422 do CC) – segundo o qual: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua exceção, os princípios de probidade e boa-fé”. Relativamente à aplicação da boa-fé em todas as fases negociais, foram aprovados dois enunciados doutrinários pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. De acordo com o Enunciado n. 25 do CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil, “o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual”. Nos termos do Enunciado n. 170 da III Jornada, “A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”. Apesar de serem parecidos, os enunciados têm conteúdos diversos, pois o primeiro é dirigido ao juiz, ao aplicador da norma no caso concreto, e o segundo é dirigido ás partes do negócio jurídico. (p. 670, 2018) (TARTUCE, [s.d.])

Efetivamente para a apreciação contratual é primordial para as relações privadas agir com os preceitos ora invocados acima, no qual as partes busquem antes mesmo da negociação, ter uma atuação com a mais absoluta boa-fé, ou seja, sem buscar vantagem e dentro dos ditames previstos de comportamento que se espera tradicionalmente.

 

CONCLUSÃO

A grande discussão no meio jurídico que se apresentou e se apresenta, tendo em vista as questões supramencionadas, será a busca incansável pela segurança jurídica, evitando a instabilidade nas decisões que porventura vierem do judiciário.

Não obstante esclarecer que a teoria da imprevisão, aliada a teoria da onerosidade excessiva, acarretará inúmeras demandas judiciais e o operador do direito, bem como a parte, deverá estar atenta as questões pertinentes a atuação com a mais absoluta boa-fé (objetiva).

É certo que os julgadores, na falta de legislação – até a presente data de publicação deste artigo – irão julgar as causas com base na analogia, costumes e princípios gerais do direito, contidos no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o que dará brecha para diversas interpretações.

Isso posto, iremos nos deparar com julgamentos imprevisíveis e inseguros, sendo necessário ao legislador garantir, através da lei, dando parâmetros de coerência decisória para os aplicadores do direito, com o intuito de evitar um colapso no regime contratual brasileiro já teoricamente pacificado.

Portanto, o julgador, neste momento de incertezas, deverá encontrar um ponto de equilíbrio nas relações jurídicas, com o intuito de estancar a possível sangria em relação as rescisões contratuais como fórmula de escape, sejam para contratantes, ou para contratados que não possuem mais o interesse na relação jurídica, se escusando na crise ocasionada pela pandemia.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

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Os desafios da negociação: notas sobre habilidades necessárias à prática contratual (não apenas) em tempos de crise – Migalhas Contratuais. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/325146/os-desafios-da-negociacao-notas-sobre-habilidades-necessarias-a-pratica-contratual-nao-apenas-em-tempos-de-crise>. Acesso em: 23 abr. 2020.

Por uma lei excepcional: Dever de renegociar como condição de procedibilidade da ação de revisão e resolução contratual em tempos de covid-19 – Migalhas Contratuais. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/325543/por-uma-lei-excepcional-dever-de-renegociar-como-condicao-de-procedibilidade-da-acao-de-revisao-e-resolucao-contratual-em-tempos-de-covid-19>. Acesso em: 27 abr. 2020.

PORTARIA No 343, DE 17 DE MARÇO DE 2020 – PORTARIA No 343, DE 17 DE MARÇO DE 2020 – DOU – Imprensa Nacional. Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376>. Acesso em: 21 abr. 2020.

REDUÇÃO DAS MENSALIDADES ESCOLARES DE INSTITUIÇÕES DE ENSINO PRIVADAS COMO EFEITO DA CÂMARA LEGISLATIVA DO DISTRITO FEDERAL. . [s.l: s.n.]. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais>. Acesso em: 7 maio. 2020.

RESEDÁ, S. TODOS QUEREM APERTAR O BOTÃO VERMELHO DO ART. 393 DO CÓDIGO CIVIL PARA SE EJETAR DO CONTRATO EM RAZÃO DA COVID19, MAS A PERGUNTA QUE SE FAZ É: TODOS POSSUEM ESSE DIREITO? 2020.

ROUSSEAU, J. J. O Contrato Social. [s.l: s.n.].

TARTUCE, F. Manual de Direito Civil. Volume Único. 8a edição ed. [s.l: s.n.].

Todos querem apertar o botão vermelho do art. 393 do Código Civil. Disponível em: <https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/830003908/todos-querem-apertar-o-botao-vermelho-do-art-393-do-codigo-civil>. Acesso em: 29 abr. 2020.

Dados dos autores

[1] Advogado, sócio proprietário do Escritório Valente & Mourão Advogados Associados e Mentor do projeto de mentoria da OAB/RJ.

[2] Advogada e mentorada do projeto de mentoria da OAB/RJ.

Palavras Chaves

Teoria da imprevisão. Boa-fé. Fato Príncipe. Contratos. Lesão contratual. Negociação.