A EFETIVIDADE DA GESTÃO POSITIVA DE CONFLITOS EM TEMPOS DE CRISE

Artigo

A EFETIVIDADE DA GESTÃO POSITIVA DE CONFLITOS EM TEMPOS DE CRISE

 

 Célia Regina Pereira Dantas[1]

 

 INTRODUÇÃO

 Gestão Positiva de Conflitos (GPC) é a adoção de métodos e técnicas que primam pela autodeterminação na solução de demandas. A expressão designa a utilização de ferramentas interdisciplinares e complementares que podem auxiliar a prevenir e resolver uma controvérsia sem animosidade e beligerância.

A terminologia – com esse escopo específico – foi desenvolvida com a finalidade de unir todas as formas de solução e transformação de controvérsias que tenham como base a atuação direta dos interessados na solução construída.

O que a GPC pretende demonstrar é a existência de abordagens múltiplas para um mesmo problema, unindo os interesses e necessidades de todos os envolvidos, inclusive dos advogados, para que se encontre o desfecho que envolva não só a menor perda, mas principalmente o maior ganho conjunto.

Nesse conseguinte, falar de GPC é falar dos métodos adequados de solução de conflitos, assim entendidos a negociação, a conciliação, a mediação e a arbitragem, bem como das técnicas aliadas, como o Direito Sistêmico, as Práticas Colaborativas, a Educação Jurídica e outras que porventura existam ou venham a existir.

Destaca-se que a positividade aliada ao conceito de gestão de conflitos não se encerra em uma solução consensual de todas as controvérsias, ela reflete com muito mais propriedade uma  forma de manusear o arcabouço disponível para encontrar a solução para aquele momento, aproveitando-se de todos os recursos. É positivo ver os interessados utilizarem ferramentas na construção de opções de ganhos mútuos ao invés de aniquilarem recursos para a obtenção de perdas impostas.

A efetividade da GPC em tempos de crise perpassa pela nossa visão de justiça, pelo nosso entendimento de conflito e pelo compromisso social com a solução pacífica de controvérsias, como veremos no decorrer desse dissertar.

JUSTIÇA E GESTÃO POSITIVA DE CONFLITOS

Justiça como entendimento social está basilada por normas, doutrinas e estipulações comuns. Já como conceito pessoal passará necessariamente pelo crivo da nossa realidade, nossas vivências, experiências e conhecimentos.

            Esse senso de justiça (relativo e pessoal) é o que nos move na direção de uma demanda judicial. O entendimento de que não conseguiremos construir uma solução conjunta que atenda aos nossos anseios, seja por impossibilidade de diálogo seja por entendermos que não há interesse a coadunar com alguém que nos causou algum mal, nos leva transferir essa responsabilidade para um terceiro que decidirá sobre algo que, por vezes, nos compete gerir como cidadãos conscientes das normas sociais estabelecidas e seres dotados de senso de coletividade.

            E então, como transformar essa realidade entregando ao judiciário somente o que lhe compete? Em outras palavras, dando a César o que é de César? Entendemos que a resposta sobrevém de uma questão simples: o exercício do senso de colaboração. O dever de colaboração (ou cooperação) não é algo abstrato ou idealista, ele está positivado no nosso ordenamento jurídico, e embora especificamente no nosso diploma processual ele tenha seu início com a formação da relação ali estabelecida, é um paradigma de muito valor a ser adotado em todos os momentos da conexão social.

            Alia-se a esse entendimento de cooperação como princípio regedor das relações, a visão do compromisso social com a solução pacífica das controvérsias, o qual se apresenta no preâmbulo da nossa Constituição Federal:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”[2].(grifo nosso)

Embora cite-se que a amplitude da expressão da carta Magna se refira a conflitos maximizados, percebemos que se é compromisso maior para o Estado, com muito mais propriedade o é para os seus cidadãos.

A beligerância não encontra respaldo como compromisso em nenhum contexto social, no entanto foi construída como característica de determinadas relações.  Assim aconteceu, por exemplo, com a advocacia, onde sempre foi valorizada.

Até pouco tempo, o advogado que não utilizasse o seu poder de “força” em uma demanda não teria exercido sua função adequadamente . A afirmação de que o advogado deveria defender os interesses do seu cliente desviou-se muitas vezes entre os entendimentos de ‘defesa de interesses’ e ‘confronto aos interesses de outrem’.

 O termo defender significa antes de tudo preservar, abrigar, resguardar. E nenhuma dessas ações é antagônica ao dever de cooperação ou à solução pacífica de controvérsias.

A Gestão Positiva de Conflitos vem apresentar uma abordagem que coaduna o nosso senso de justiça e com o compromisso de solução pacífica das controvérsias, exercitando nosso dever de cooperação e desfocando do antagonismo para focar em reduzir riscos e viabilizar soluções.

  

CRISE E CONFLITO

Como descrito na obra “Mediação de Conflitos para iniciantes, praticantes e docentes” [3] (2016. p.275):

O conflito se constrói pela dificuldade de entendimento entre os sujeitos e não em razão dos fatos em si. Muitas vezes, a intenção que determinou a conduta reativa recebe uma interpretação totalmente diferente, inclusive em razão de uma leitura equivocada da linguagem não-verbal. A incompreensão gerada pela dissonância entre motivação e impacto percebido dá margem a reações adversas, deflagradoras de um processo de escalada do conflito e de polarização dos sujeitos.

Com vistas a transformação desse cenário, refletimos que é nossa responsabilidade trabalharmos uma arquitetura positiva que atenda às necessidades reais. Nesse âmbito destaca-se a lição contida na obra de Jonh Paul Lederach:[4]

“Transformação de conflitos é visualizar e reagir às enchentes e vazantes do conflito social como oportunidades vivificantes de criar processos de mudanças construtivos que reduzem a violência e aumentam a justiça nas interações diretas e nas estruturas sociais, e que respondam aos problemas da vida real dos relacionamentos humanos”

Em períodos de crise, os conflitos se avolumam em forma e direção. A dinâmica estabelecida para períodos de calmaria não é a dinâmica estabelecida para períodos de tormenta. A crise nos apresenta batalhas muitas vezes inimagináveis, como a que estamos enfrentando no mundo no momento da redação desse artigo,  minando qualquer possibilidade de reação imediata e se ramificando por diversas áreas. Nesse contexto caótico só uma possibilidade existe: a de revisitar e remodelar conceitos com vista à transformação e encontro de novas soluções.

A estratégia usada em tempos de tranquilidade, conforme já dito, não é possível de ser aplicada. Em tempos de paz, o tempo pode ser aliado na  resolução de uma demanda, em tempos de crise não sabemos se haverá amanhã e a necessidade de celeridade permeia todas as nossas ações.

Não há outra alternativa senão a de buscar novas soluções para os fatos, já que os caminhos anteriores estão indisponíveis. Ter uma modelagem de resolução e transformação de conflitos eficaz é tratar a divergência de forma autorresponsável, mensurando, valorando seus elementos, e resgatando para a consciência os interesses que permeiam a questão.

A GPC NO CENÁRIO ATUAL

            Neste momento, todas as áreas de convivência social são cruelmente atingidas pela crise sanitária mundial. A revista VEJA apresentou artigo jornalístico com a visão do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres para esse momento:

 “É a combinação de uma doença ameaçadora para todo o mundo e de um impacto econômico que conduzirá a uma recessão sem precedentes”, argumenta Guterres para explicar porque essa pandemia é o pior momento desde que as Nações Unidas foram criadas, há 75 anos.

“A combinação dos dois fatores e o risco de uma instabilidade acumulada, de violência acumulada, de conflitos acumulados” fazem desta crise o maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial. “É a crise que exige a resposta mais forte e mais eficaz”, adverte. Segundo Guterres, isso só pode acontecer “pela solidariedade e por um esforço comum”. .[5]

A solução aventada com base em um esforço comum para solucionar a questão de saúde mundial não trata de uma visão romantizada, mas sim de vislumbrar caminhos que levem a soluções diversas das que já obtivemos e que já não se mostravam eficazes.

 Sem desvio, podemos trazer essa aplicação para a forma de resolução de conflitos que adotamos até então: a de transferência de responsabilidade total para o judiciário. Principalmente em razão da imensa sobrecarga que o atingirá, a exemplo do que já acontece com o sistema de saúde.

Em texto publicado no sítio da revista A Tribuna, a Vice-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio de Janeiro, Dra. Ana Tereza Basílio, alerta para o número de demandas a serem propostas no pós-pandemia:

“As graves repercussões da pandemia já alcançaram, com grande impacto, a esfera jurídica de milhões de brasileiros. Vários conflitos de interesses já surgiram e tem sido objeto de decisões judiciais, como disputas relativas ao pagamento de alugueis, descumprimentos contratuais, rescisão de negócios jurídicos, embates de natureza trabalhista, dentre outros. De igual modo, já é expressivo o número de leis, decretos e medidas provisórias, que tem por objeto regular as relações sociais diante do cenário de crise econômica, social e de saúde pública, que regulam, de forma diferenciada, o período peculiar em que o Brasil e o resto do mundo foram assombrados por milhares de mortes e milhões de pessoas contaminadas.
Nesse contexto, é previsível que milhares, quiçá milhões de demandas judiciais venham a ser propostas a respeito de litígios decorrentes da pandemia perante o já assoberbado do Poder Judiciário. E uma avalanche de processos judiciais, esperada para o período pós-pandemia, possivelmente será superior àquelas decorrentes, no passado, de planos econômicos, que até hoje transitam pelos Tribunais”[6].

 Com essa visão, o Conselho Nacional de Justiça tem a pretensão de ofertar aos tribunais, em parceria com a iniciativa privada, uma nova plataforma para que sejam realizadas sessões de mediação e conciliação, sendo um meio de distribuição de possibilidades para evitar o sufocamento da atividade judiciária com tais demandas[7].

Estamos tratando especificamente do momento atual, no entanto esse pensamento pode ser aventado para todo e qualquer momento onde ânimos, expectativas e previsões de contextos estejam alterados por uma crise, seja ela de que área for, porquanto fazemos parte de um sistema interdependente onde o que afeta a parte afeta o todo.

EFETIVIDADE – DESENVOLVENDO SOLUÇÕES

Avaliando o histórico da mudança paradigmática sofrida no nosso ordenamento jurídico a partir da Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça e, posteriormente, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, pode-se aventar o destaque à diversidade de soluções e o foco em perscrutar interesses – elementos capazes de desenhar ou desconstruir o conflito – objetivando exatamente uma atuação apartada do antagonismo acirrado, e oferecendo o tratamento adequado para esses interesses.

Acelerada pelo processo pandêmico, a adoção de métodos de GPC, em especial a mediação e a conciliação vêm sendo não só incentivada como, em alguns casos, determinada pelo poder público. Notícias recentes demonstram que não se trata mais de algo alternativo ou complementar e sim de uma opção primária.

A título exemplificativo destaca-se as notícias a seguir:

“O ministro Vieira de Mello Filho, vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e coordenador da Comissão Nacional de Promoção à Conciliação, recomendou, nesta quarta-feira (25), a adoção de diretrizes excepcionais para o emprego de instrumentos de mediação e conciliação de conflitos individuais e coletivos no contexto da pandemia do novo coronavírus.

A medida, prevista na Recomendação CSJT.GVP 1/2020, leva em consideração a adoção de ações restritivas de preservação da saúde pública e a preservação dos serviços públicos e atividades essenciais da Justiça do Trabalho, como as ações de mediação e conciliação de dissídios individuais e coletivos”[8].

“A Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo (CGJ) editou, em 17 de abril de 2020, o Provimento CG nº 11/2020, que cria o projeto-piloto de conciliação e mediação pré-processuais para disputas empresariais decorrentes dos efeitos da Covid-19, destinado a empresários, sociedades empresárias e demais agentes econômicos, desde que envolvidos em negócios jurídicos relacionados à produção e circulação de bens e serviços.

Busca-se, em suma e entre outros propósitos, minimizar a judicialização em massa das disputas envolvendo contratos empresariais e demandas societárias diretamente relacionadas à pandemia, tendo em vista o impacto da Covid-19 nas atividades empresariais de produção e circulação de bens e serviços, a desencadear uma série de consequências negativas para a economia, como, por exemplo, perda de postos de trabalho, inadimplemento das obrigações contratadas e redução da arrecadação de tributos”[9].

CONCLUSÃO

Ante todo o exposto, ressalta-se que a adoção da GPC em todos os momentos da dinâmica relacional, tendo por base o axioma do compromisso com a solução pacífica das controvérsias e com o dever de colaboração que a vida em sociedade nos apresenta, fortalece um novo senso de justiça e amplia possibilidades para uma sociedade até então extremamente dependente da atuação estatal,

A transformação de arquiteturas de relacionamento não mais funcionais e a adequação de soluções autodeterminantes para as demandas, entregando ao judiciário o que lhe compete, auxilia o fortalecimento de relações sociais e jurídicas e entrega efetividade para quem a busca, principalmente em momentos de crise. Esse é o propósito do caminho apresentado pela Gestão Positiva de Conflitos.

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, Tania. Mediação de Conflitos: para iniciantes, praticantes e docentes / Coordenadores Tania Almeida, Samantha Pelajo e Eva Jonathan. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.

 

BACELO, Joice. CNJ lançará plataforma on-line para conflitos relacionados à covid-19. Disponível em <https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/05/11/cnj-lancara-plataforma-on-line-para-conflitos-relacionados-a-covid-19.ghtml > acesso em 16 de maio de 2020.

 

BASÍLIO, Ana Tereza. A mediação e a conciliação em tempos de pandemia. Disponível em <https://www.atribunarj.com.br/a-mediacao-e-a-conciliacao-em-tempos-de-pandemia/> acesso em 16 de maio de 2020.

LEDERACH, Jonh Paul. El Pequeno Libro de Transformación de Conflictos. Bogota, Colombia: Iglesia Cristiana Menonita de Colombia, 2009.

 

PORTAL SECOVI.  Mediação em tempos de Pandemia. Disponível em <http://www.secovi.com.br/noticias/mediacao-em-tempos-de-pandemia/14734> acesso em 16 de maio de 2020.

 

PORTAL TST. Disponível em <http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/id/26067052> acesso em 16 de maio de 2020.

 

PORTAL VEJA . Pandemia é o maior desafio desde a 2ª Guerra Mundial, alerta ONU. Disponível em <https://veja.abril.com.br/mundo/pandemia-e-maior-desafio-desde-a-2a-guerra-mundial-alerta-onu/ > acesso em 16 de maio de 2020.

Notas de Rodapé:

[1] Mentora do Programa de Mentoria para Advogados da OAB RJ. Presidente da Comissão de Gestão Positiva de Conflitos da ABA Rio de Janeiro.  Mediadora de Conflitos. Advogada Colaborativa. Especialista em Gestão Jurídica e Processo Civil pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais – IBMEC.  Pós-Graduanda em Gestão de Negócios com foco em competências Comportamentais pelo BBI Chicago e Faculdade Celso Lisboa. Tutora em ambiente de ensino a distância pelo Instituto de Logística da Aeronáutica – ILA.Cofundadora do canal de informações @Juri_DICAS. Sócia fundadora do escritório CR Dantas Advogados.

[2] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Preâmbulo.

[3] ALMEIDA, Tania. Mediação de Conflitos: para iniciantes, praticantes e docentes / Coordenadores Tania Almeida, Samantha Pelajo e Eva Jonathan. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.

[4] LEDERACH, Jonh Paul. El Pequeno Libro de Transformación de Conflictos. Bogota, Colombia: Iglesia Cristiana Menonita de Colombia, 2009.

[5] <https://veja.abril.com.br/mundo/pandemia-e-maior-desafio-desde-a-2a-guerra-mundial-alerta-onu/> acesso em 16 de maio de 2020.

[6] <https://www.atribunarj.com.br/a-mediacao-e-a-conciliacao-em-tempos-de-pandemia/> acesso em 16 de maio de 2020.

[7]<https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2020/05/11/cnj-lancara-plataforma-on-line-para-conflitos-relacionados-a-covid-19.ghtml > acesso em 16 de maio de 2020.

[8] <http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/id/26067052> acesso em 16 de maio de 2020.

[9] <http://www.secovi.com.br/noticias/mediacao-em-tempos-de-pandemia/14734> acesso em 16 de maio de 2020.