CONVIVÊNCIA COM A CONFLITIVIDADE NAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM TEMPOS DE PANDEMIA.

Artigo

CONVIVÊNCIA COM A CONFLITIVIDADE NAS RELAÇÕES DE TRABALHO EM TEMPOS DE PANDEMIA.

Daniele Gabrich Gueiros[1]

Tamara Clementino Anselmo[2]

Andrew dos Anjos Medeiros[3]

Beatriz Antunes Mastrange Bastos[4]

            Os tempos de pandemia decorrente do COVID-19, de calamidade pública decretada (DL 6/2020), são também tempos de reafirmar o direito do trabalho como um direito humano, a importância de suas instituições, a relevância da formação do profissional do Direito para o acesso à justiça e, portanto, louvar a instituição pela OABRJ do Programa Mentoria e a oportunidade do debate coletivo e plural entre os participantes do programa, com a abertura destas reflexões por meio da publicação desta obra coletiva.

De início, explicitamos nossa concepção de conflito, estamos com os que entendem o conflito como inerente às relações humanas, inerente à vida em sociedade. É comum que nós juristas adotemos uma visão negativa do conflito, como litígio, controvérsia, algo a ser evitado.  Mas nós podemos pensar o conflito em termos de satisfação, “uma forma de inclusão do outro na produção do novo: o conflito como “outridade”, que permita administrar com o outro (o diferente) o conflito, para produzir a diferença”(WARAT, 2004, p.61[5]).Pessoas diferentes podem dialogar e, juntas, construir a diferença no tempo e no conflito[i].

Entendemos a negociação coletiva como um dos importantes métodos de solução de conflitos existentes nas relações de trabalho.

Engana-se quem pensa que sindicatos estão voltados somente para as lutas corporativas. Nem todos tem esta orientação política. Muitos sindicatos estiveram desde sempre e ainda estão articulados com outros movimentos populares, pois as lutas dos trabalhadores não se bastam, não se fecham e não se limitam apenas às condições de trabalho – também podem ser, e muitas vezes são, abrangentes do meio ambiente e outras questões da vida: O trabalhador mora em lugares dignos ou não, muitas vezes sofre discriminações raciais, de gênero, enfrenta dificuldades com transportes, serviços públicos diversos como saneamento, fornecimento de energia, água, acesso à educação, acesso à Justiça – desafios cujo enfrentamento exige mobilização inclusive dos movimentos sindicais. Não raro acordos e convenções coletivas incluem normas negociadas sobre meio ambiente, não discriminação, combate ao assédio (mais recentemente, buscam abranger a proteção de trabalhadores autônomos) e desempenham importante função pedagógica para a melhoria das relações de trabalho, em sentido amplo. No campo estritamente trabalhista, sindicatos continuam sendo instituições importantes para a defesa do direito do trabalho e, nesse sentido, atuam com capacidade institucional complementar às demais instituições deste campo, como o Ministério Público do Trabalho, a Justiça do Trabalho, a OIT, a OAB.

Essa concepção de conflito como satisfação, que adotamos no início deste artigo, bem como com o fortalecimento e reconhecimento da representação coletiva dos trabalhadores para uma possível construção de inovações no campo dos direitos trabalhistas e sociais. (leva-nos a uma forma alternativa de solução de conflitos.)

(Todavia,) para que esse sujeito plural e coletivo ingresse na cena da autocomposição de conflitos com condições efetivas de dialogar e relacionar-se de forma menos assimétrica possível com os tomadores de serviços ou empregadores, devemos adotar o raciocínio oposto do institucionalizado pela reforma trabalhista de 2017, que suprimiu de forma abrupta a contribuição sindical obrigatória, a vedação da ultratividade e a ficção de horizontalidade na negociação entre empregadores e trabalhadores com salários diferenciados e qualificação acadêmica.

            Neste artigo pretendemos refletir, ainda, sobre a importância da atuação sindical em tempos de crise sanitária. Constatando-se a existência de opções negociadas para garantir a saúde e segurança dos trabalhadores, bem como da sobrevivência das empresas no cenário em que vivemos, e a desqualificação das entidades sindicais como sujeitos coletivos importantes para a construção de soluções para os graves problemas decorrentes do COVID-19 nas recentes medidas provisórias.

            No capítulo 1, procura-se discutir a respeito dos seguidos eventos que demonstram a supressão do diálogo social no Brasil e dos direitos dos trabalhadores como um todo. No capítulo 2, procuramos pensar na indispensabilidade da negociação coletiva para o enfrentamento dos percalços causados pelas situações de emergência no Brasil, comentar sobre o julgamento da recente ADI 6363 a respeito da MP 936/2020 e, por fim, destacar soluções que já estão sendo postas em prática em diversos setores no país. Na conclusão, convidamos a uma reflexão acerca do papel dos juristas sobre a situação dos mais vulneráveis no cenário de crise.

Para isso, utilizamos como metodologia a análise de autores que discutem as diversas formas de resolução de conflito, e, em especial, aqueles que abordam a importância das negociações coletivas no direito do trabalho. Na análise normativa e jurisprudencial, lançamos o olhar para as Medidas Provisórias 927 e 936, as diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas por conta delas e o recente julgamento do referendo à medida cautelar deferida na ADI 6363.

  1. Construção da Diferença com a participação dos diferentes em tempos de pandemia

No ano passado, 2019, comemoramos 100 anos da Organização Internacional do Trabalho, OIT.  O Diretor Geral da OIT (Guy Ryder) diferenciava o futuro que nos espera do futuro que estamos dispostos a promover – uma decisão “entre o que pode suceder e a necessidade de ação social e política para orientar os processos de regulação sobre o trabalho”, ele tem dito que o “futuro do trabalho não está determinado, precisamos moldá-lo” (RYDER, 2016). Em sua publicação sobre o futuro do trabalho, a Comissão Mundial sobre o Futuro do Trabalho da OIT (2019): defende (e reafirma) a necessidade de garantir a representação coletiva dos trabalhadores, reivindica o diálogo social como um “bem público”[6] e como meio de orientação de respostas políticas ante as mudanças em curso (COMISSÃO, 2019, p. 12-13).

A reforma trabalhista de 2017 já havia buscado certa desqualificação das negociações coletivas, como no alterado parágrafo único do art. 444 da CLT, ao autorizar que sejam realizadas de forma individual (em caso de trabalhadores com nível universitário com salário superior a duas vezes o limite máximo da previdência social) e ao instituir uma ficção jurídica de igualdade de poder entre negociadores, a qual é concretamente inexistente.

A alteração de diversos dispositivos da CLT buscou, certamente, “desidratar” a Constituição para “destravar a economia” (expressão utilizada na fala do Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, em 2019)[7]. Isso já vinha sendo feito por meio de interpretações orientadas para a direção oposta à orientação dos dispositivos constitucionais instituidores da progressividade de direitos e da vedação do retrocesso (como a interpretação sobre a ultratividade, entre outras)[8]  (REIS, 2010, p.143-152).

Lembramos que a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987-1988 foi “palco de grandes conflitos de interesses” (PILATTI, 2008). A votação das propostas em primeiro turno, no campo dos direitos trabalhistas, assimilou as propostas do campo progressista–como a jornada de seis horas para o turno ininterrupto de revezamento, (e) a ampliação da licença maternidade para 120 dias –ambas reivindicações da CUT,o direito de greve, por sua vez, foi previsto com restrições para as atividades essenciais e serviços inadiáveis (CARDOSO, 1999, p. 213-214).

No fim dos anos 1980, o caput do art. 7º da Constituição (“melhoria das condições sociais”) parecia expressar a consolidação de um consenso difícil pela institucionalização da progressividade dos direitos sociais no país, com a abertura para adequações possíveis e excepcionais, por meio de negociação coletiva, de redução de salários e duração do trabalho, mediante contrapartidas, permitindo, portanto, o enfrentamento das situações de crise econômica e eventuais particularidades pertinentes às atividades desenvolvidas.

No entanto, desde o início da crise sanitária causada pelo COVID-19,estamos assistindo a edição de seguidas medidas provisórias que afastam o diálogo social necessário para a superação de conflitos e graves problemas sociais, como ocorre nessa pandemia.

  1. Desafios de agora. A negociação coletiva como meio de equacionamento de conflitos emergenciais como os decorrentes da Pandemia

A situação excepcional vivenciada por todos em razão da pandemia não afasta a Constituição, ao contrário, com mais razão devem as medidas normativas observar os direitos fundamentais e as normas constitucionais. A crise sanitária decorrente do COVID-19 (coronavírus) vem gerando impactos em diferentes dimensões da vida e não tem sido diferente com as relações de trabalho individuais e coletivas.

Aos trabalhadores é assegurado o direito de recusa de trabalhar com finalidade de proteger sua integridade física e psicológica, isso porque o mais importante é a defesa da vida (art. 9º da Constituição, art. 3º, 7.1, c, 16, 17, 18, Convenção 155 da OIT).

As trabalhadoras e trabalhadores, por meio do sindicato de sua categoria profissional, são protagonistas do diálogo com a empresa, para negociações que envolvem temas não somente de interesse corporativos, mas podem abranger todo um grupo social, ou mesmo toda a sociedade, como no caso de questões que envolvam meio ambiente, a exemplo do que vem ocorrendo neste período de crise sanitária.

No sentido oposto ao incentivo do diálogo social necessário para a superação de conflitos de forma pacífica, a MP 927/2020 buscou excluir o protagonismo de trabalhadoras, trabalhadores e seus sindicatos, deixando a critério unicamente do empregador a prorrogação das normas coletivas, pelo prazo de 90 dias após o término de sua vigência (art. 30[9]), assim também a MP 936/2020, que faz previsão de acordo individual para suspensão de contrato de trabalho ou redução de salários com redução de duração do trabalho.

A MP 927/2020 teve o dispositivo que previa a suspensão do contrato de trabalho revogado pela MP 928/2020. Quanto à MP 936/2020, foi ajuizada a ADI 6363 afirmando que os dispositivos da MP ferem os artigos 7º, VI, XIII,e 8º, III da CRFB/1988, entre outros. Nesta ADI foi proferida decisão de deferimento em parte da cautelar postulada, a qual determinou a comunicação ao sindicato, “para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes” (o inteiro teor da ação é disponibilizado pelo SFT no site www.stf.jus.br).

Na mesma perspectiva se manifestou o Ministério Público do Trabalho, para quem as medidas de intervenção do Estado na legislação trabalhista devem refletir a preservação de emprego e renda sem violar preceitos protetivos: “a Instituição se mantém firme e ao lado do esforço de todos os entes no combate à pandemia, voltando seus olhos para o diálogo social, preservação de emprego e renda e do direito social”[10].

Os inúmeros pedidos de ingresso na ação na qualidade de amicus curiae dão conta da relevância e da intensidade das divergências que a normativa gerou: mais de 21, dos quais 12 foram deferidos.  Dentre estas, foram habilitados muitas entidades sindicais e não sindicais, entre as quais as seis centrais sindicais brasileiras – Central Única dos Trabalhadores (CUT), União Geral dos Trabalhadores (UGT), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), a Força Sindical (FS), a Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB) e a Nova Central Sindical dos Trabalhadores (NCST) – e a Associação Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA)[11].

As medidas adotadas para o enfrentamento do período de pandemia, sem qualquer diálogo social, foram objeto de outras Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Dentre aquelas que questionam a MP 927/2020, a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho – ANPT – ajuizou a ADI 6375, em que aduz a ausência de razoabilidade no dispositivo que autoriza a antecipação de férias do empregado sem que o período aquisitivo tenha sido completado (art. 6º, §1º, da MP), bem como a autorização para que o empregador possa pagar a remuneração correspondente até o 5º dia útil do mês seguinte, como dispõe o art. 9º da MP. A ADI também questiona o fato de que, nos termos da MP, o trabalhador que atua sob o regime de teletrabalho não tem direito às horas extras.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores em turismo e Hospitalidade – CONTRATUH – ajuizou a ADI 6377, em que alega a inconstitucionalidade do dispositivo da MP que permitem a preponderância dos acordos individuais sobre as negociações coletivas a critério exclusivo do empregador.

Por fim, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) e a Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE) ajuizaram a ADI 6380, que questiona o art. 3º, inciso VI, da MP, que autoriza a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho. Como argumentam as autoras, a disposição contraria frontalmente as normas professadas pelas autoridades sanitárias e de saúde, que valem tanto para os trabalhadores quanto para os pacientes, além do fato de que ignora que a própria Constituição Federal, que assegura o direito social à saúde e à segurança.

Diante das medidas provisórias editadas, cumpre ressaltar que, mesmo por “acordo individual”, nossa legislação considera inadmissíveis contratos em que as cláusulas deixem as decisões sobre as condições de trabalho apenas a critério do empregador (Art. 122 do Código Civil).

O STF, por maioria, negou referendo à medida cautelar anteriormente concedida em parte pelo Ministro Ricardo Lewandowski à ADI 6363. Mas as controvérsias sobre a matéria permanecem e, em que pese à divergência ter sido vencedora[12], cumpre destacar argumentos expressos pelos votos vencidos em defesa da Constituição:

Na hipótese sob exame, o afastamento dos sindicatos das negociações entre empregados e empregadores, com o potencial de causar prejuízos a estes últimos, contraria a própria lógica subjacente ao direito do trabalho, que parte da premissa da desigualdade estrutural entre os dois polos da relação laboral. Não obstante, o combate aos efeitos deletérios da pandemia entre nós e todo o mundo exige imaginação e flexibilidade, sem que se passe ao largo das recomendações emitidas por organismos internacionais especializados, como a Organização Internacional do Trabalho, que tem sido adotadas por outros países. A OIT recentemente veiculou a orientação na qual reconhece que todas as empresas, independentemente de seu porte, mas particularmente as pequenas e médias empresas, estão enfrentando sérios desafios para sobreviverem, havendo significativas perspectivas reais de declínio, das insolvências e redução do nível de emprego. Nós não ignoramos isso. Nesse mesmo cenário, a OIT entende que o diálogo social tripartite envolvendo governos, entidades patronais e organizações de trabalhadores constitui ferramenta essencial para o desenvolvimento e implantação e soluções sustentáveis, desde o nível comunitário até o nível global. Enfatiza ainda a OIT que a recomendação sobre emprego e trabalho(…) consigna que as respostas às crises devem garantir o respeito aos direitos humanos fundamentais, sobretudo os decorrentes das relações de trabalho, e também levar em consideração o papel vital das organizações de empregadores e empregados na construção de respostas às crises. (LEWANDOWSKI, 2020)[13] G.N.

 A participação dos sindicatos é imperativa, consoante a ordem constitucional. E traduz a negociação coletiva ferramenta do mundo do trabalho e do emprego para a própria formulação da política de trabalho e para definir prioridades, planejamentos e estratégias de promoção do próprio emprego. A emergência internacional reconhecida pela Organização Mundial da Saúde não implica nem muito menos autoriza outorga de discricionariedade sem controle ou sem os contrapesos típicos do Estado Democrático de Direito. Para melhor definir o conteúdo desta norma, especialmente em um cenário grave de contração econômica, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos propôs em seu relatório sobre as medidas de austeridade nos direitos humanos que as medidas sejam avaliadas com base em 5 critérios: (i) interesse genuíno do Estado; (ii) necessidade razoabilidade, temporariedade e proporcionalidade das medidas de austeridade; (iii) exaustão de leis alternativas e menos restritivas; (iv) não discriminação; (v) da proteção autêntica ao mínimo existencial acrescentando-se ainda mais a participação genuína dos grupos afetados.A proporcionalidade não se aprecia em abstrato, mas em concreto. E evidentemente, deve ser temporária apenas durante o período de crise, mas ao lado das atividades legítimas e que devem ser preserváveis e que devem ser estimuladas.Das atividades empresariais, que almejam também legítimo lucro, soma-se a função social. Do equilíbrio desses dois vetores, é que se deve verificar a adoção de uma política da menor restrição possível evitando-se mais graves violações. (FACHIN, 2020)[14] G.N.

Releio os dispositivos da nossa Constituição que se dizem violados. O STF, por expresso comando, é oseu guardião. Art. 7º, inciso VI, art. 8º, inciso III. (…)Estes são pilares do direito do trabalho e a MP em exame, ao dispor sobre medidas trabalhistas complementares, os afastam, ainda que temporariamente, em função da pandemia do novo coronavírus, e com relação a um grupo de trabalhadores. (…) Como adotar no caso concreto solução jurídica que implique excluir do debate a participação de entidades política e socialmente relevantes, no caso, os sindicatos? As entidades sindicais, justamente a quem cabe, diante da desigualdade estrutural entre as partes na relação de emprego, na tentativa de reequilibrar os pratos da balança, a representação dos trabalhadores? Como excluí-las desse debate, em momento em que tanto se apregoa mobilizados todos os atores sociais para pensar soluções? (ROSA WEBER, 2020)[15] G.N.

Mesmo que os votos vencidos tenham sido cirúrgicos no sentido de ressaltar a imprescindibilidade da participação das entidades sindicais para a construção de soluções efetivas no cenário em que vivemos, a decisão final mantém a necessidade de comunicação aos sindicatos, mas não mais vincula a validade dos acordos individuais a esta comunicação, desprestigiando as negociações coletivas.

Vale menção também à sustentação como amicus curiae de representantesde instituições extremamente relevantes para o debate acerca da negociação coletiva, como as 6 centrais sindicais – CUT, UGT, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, FS, CSB eNCST, representadas pelo advogado José Eymard Loguércio, que destacou como ponto central de sua fala as recomendações da OIT sobre diálogo social no período de crise. Pedro Gordilho, representante da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, chamou atenção para o fato de que os sindicatos “representam elemento de equalização entre o poder econômico e o debilitado empregado”.

Ainda a favor do referendo da medida cautelar, a Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas – ABRAT – foi representada pela advogada Alessandra Camarano Martins, que destacou a posição de vulnerabilidade dos empregados ao celebrarem acordos individuais com os empregadores, situação mais gravosa, em especial, para as mulheres. Também argumentou que os direitos humanos devem prevalecer sobre qualquer outro princípio normativo sob discussão.

A Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho – ANPT – e o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – SINAT – foram representados pelo advogado Rudi Cassel, que sustentou no sentido de demonstrar a violação à isonomia dos trabalhadores por conta das diferenças nas reduções de jornada dos trabalhadores a partir de sua faixa salarial. Também chamou atenção para o fato de que para trabalhadores que recebem até R$ 3.135,00 não há sequer negociação coletiva.

No sentido contrário ao referendo, representando a Confederação de Associações Comerciais e Empresariais do Brasil, o advogado Rafael Freitas Machado procurou trazer o ponto de vista do patronato e destacar que neste momento inexistira diferenciação na situação do empregado e do empregador, pois estariam todos numa situação “caótica”. Argumentando que o debate não mais deveria residir nessa dicotomia “clássica”, lembrou que “sem emprego não há empregado” e que as empresas também estão passando por grandes dificuldades.

Por fim, no mesmo sentido falou a Confederação Nacional da Indústria – CNI-representada pela advogada Fernanda de Menezes Barbosa, que defendeu a manutenção dos postos formais de trabalho e que o direito não pode ignorar uma realidade como essa. O discurso também foi adotado pela Advocacia Geral da União, representada pelo PGR André Mendonça que ressaltou a importância da manutenção do emprego e da renda do trabalhador, e que não se busca retirar, mas garantir os direitos do trabalhador por meio da MP 936/2020.

Entendemos que a MP 936/2020 contrariou também a Convenção 154 da OIT[16], que prevê o compromisso com o estímulo às negociações coletivas (sem que esteja previsto na referida convenção a redução de direitos por meio de negociação coletiva). Mas não só. O art. 7º da Convenção 154 estabelece que “as medidas adotadas pelas autoridades públicas para estimular o desenvolvimento da negociação coletiva deverão ser objeto de consultas prévias e, quando possível, de acordos entre as autoridades públicas e as organizações patronais e as de trabalhadores”, situação que não ocorreu com a reforma trabalhista, e vem sendo afastada pelas medidas provisórias editadas até a presente.

As soluções negociadas com as entidades sindicais poderiam assegurar direitos para além do mínimo fixado nas medidas provisórias, com melhores contrapartidas.

Uma mostra disso é o recente estudo publicado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE – sobre como os acordos negociados pelas entidades sindicais podem ser fundamentais para o enfrentamento da pandemia[17]. Com o objetivo de identificar soluções para preservar a saúde dos trabalhadores e a redução dos prejuízos causados pelo vírus, o estudo informa que no setor da saúde, por exemplo, em Alagoas houve acordo firmado pelo Sindicato dos Enfermeiros de Alagoas e o município para que este crie imediatamente um rodizio de profissionais, enquanto durar a pandemia. No setor de transportes e armazenagem, em Salvador, foi firmado acordo com o consorcio de empresas de ônibus em que ficou estabelecido o esquema de revezamento dos trabalhadores e a manutenção do tíquete alimentação.

            Merecem destaque, ainda, as soluções adotadas pelo setor de construção na cidade no Rio de Janeiro, em que o Sintraconstr-Rio firmou acordo no sentido de garantir que o trabalhador tenha direito a receber 50% dos dias não trabalhados na interrupção eventual do trabalho nas empresas. O valor será considerado como banco de horas ou descontado das férias ou 13º. O sindicato conseguiu ainda acordar com as empresas que o horário de início e fim da jornada deve ser alterado para evitar que os trabalhadores sejam obrigados a utilizar o transporte público. (DIEESE, p. 7, 2020)

            No setor aeroviário, em São Paulo, a American Airlines firmou acordo propondo férias imediatas para quem já tem o direito adquirido e licença não remunerada com indenização de 50% do salário mensal bruto, garantindo os benefícios médicos e odontológicos e o vale-alimentação para seus empregados. No setor metroviário, a partir de 24 de abril apenas 30% da frota estará em circulação e os trabalhadores receberão salários e benefícios de forma integral. Já os trabalhadores afastados receberão metade dos salários líquidos – sem desconto – além de cesta básica, convenio médico e a 50% do vale-refeição.

            Por fim, para o setor metalúrgico em São Paulo, as soluções adotadas pela Scania, Volkswagen e Mercedes foram no sentido de conceder férias coletivas aos empregados, que voltarão em 13/04, 30/04 e 02/05 respectivamente. A Toyota procedeu no sentido de suspender o contrato temporariamente (layoff), após realização de assembleia virtual. O ACT previu que trabalhadores com remuneração inferior a R$3.115,00 não terão redução salarial, já aqueles que ganham até R$ 7.000,00, a redução deve ser de 5%.

  1. Conclusão

Diante dos grandes desafios colocados pelo COVID-19 e outros tantos, que escolhas (individuais, coletivas e institucionais) faremos? Já entendemos que o neoliberalismo é “um regime geopolítico implacavelmente hostil ao trabalho” (EVANS[ii], 2015), um dos difíceis desafios contemporâneo, dos que sonham viver em um mundo melhor,é o exercício da solidariedadee o uso das novas tecnologias de forma contrahegemônica, de modo a favorecer movimentos assistenciais de reação à mercantilização da vida. Após 100 anos de criação da OIT, é nossa tarefa lembrar e buscar efetivar o antigo consenso de outrora, expresso no Preâmbulo de sua Constituição (1919): “A paz social só pode ser estabelecida se for baseada na Justiça”.

“Viver é muito perigoso, mesmo”, como alertava Riobaldo (ROSA, 2002), sobretudo para os oprimidos, aqueles em situação de sujeição, os vulneráveis nos sertões reais e simbólicos desse mundo. A atitude mínima possível do jurista contemporâneo é a de interpretar nas normas de acordo com a Constituição e as Convenções Internacionais.

Referências

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[1] Toffoli diz ser preciso “desidratar” a Constituição para destravar a economia. Jusbrasil. Publicado em agosto de 2019. Disponível em: https://audienciabrasil.jusbrasil.com.br/noticias/743843324/toffoli-diz-ser-preciso-desidratar-a-constituicao-para-destravar-a-economia. Acesso em 21/04/2020.

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Voto da Ministra Rosa Weber na ADI nº 6363. 2020. 17 abril 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ONpu8U3zM_4. Acesso em 21/04/2020.

Notas de Rodapé:

[1]Advogada, Conselheira da OABRJ, Membro do Programa deMentoriada OABRJ,Membro da Comissão de Direitos Humanos da OABRJ, Professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUCRJ.

[2] Estudante, aluna da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUCRJ.

[3] Advogado, Mentorado do Programa de Mentoria da OABRJ, Pós-Graduando em Direito do Trabalho e Previdenciário.

[4] Advogada, Participação no Programa de Mentoria da OAB/RJ

[5]WARAT. Luiz Alberto. O Ofício do Mediador. Surfando na Pororoca. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 11-218

[6] “Assegurar a representação coletiva de trabalhadores e empregadores através do diálogo social, enquanto bem público, promovido ativamente através de políticas públicas”.

[7] Toffoli diz ser preciso “desidratar” a Constituição para destravar a economia. Jusbrasil. Publicado em agosto de 2019. Disponível em: https://audienciabrasil.jusbrasil.com.br/noticias/743843324/toffoli-diz-ser-preciso-desidratar-a-constituicao-para-destravar-a-economia. Acesso em 21/04/2020.

[8] Art. 7º, caput, e art. 4º, II e 5º, §2º e 3º, art. 60, §4º da Constituição.

[9]Ofício Circular do Ministério da Economia, Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, Subsecretaria de Relações de Trabalho, de 24/03/2020, formalizou orientações às unidades responsáveis pelo registro de instrumentos coletivos de trabalho (acordos e convenções) “que flexibilizem a exigência de ata de assembleia, como condição para o registro de instrumentos pactuados durante o período de isolamento social decorrente da pandemia”. Quanto às eleições sindicais, 524, § 5º da CLT estabelecia que “não sendo atingido o coeficiente legal para eleição, o Ministério do Trabalho, Industria e Comercio declarará a vacância da administração, a partir do término do mandato dos membros em exercício, e designará administrador para o Sindicato, realizando-se novas eleições dentro de 6 (seis) meses”. Mas estes dispositivos da CLT não foram recepcionados pela Constituição (cf. entre muitos Homero Batista Mateus da Silva, in CLT Comentada. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2019), nenhuma regulamentação própria foi editada neste período, logo, será questão a ser enfrentada de acordo com os estatutos dasrespectivas entidades sindicais (art. 8º, I da Constituição) ou, caso o estatuto não tenha previsão para a solução do problema, poderá ser aplicado o Código Civil.

[10](Cf. https://mpt.mp.br/pgt/noticias/mpt-divulga-nota-a-imprensa-sobre-a-mp-93. Acesso em 04/04/2020).

[11] (Cf. https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/29583-nota-publica-5. Acesso em 04/04/2020).

[12]Nesse ínterim, são válidos e legítimos os acordos individuais celebrados na forma da MP 936/2020, os quais produzem efeitos imediatos, valendo não só no prazo de 10 dias previsto para a comunicação ao sindicato, como também nos prazos estabelecidos no Título VI da Consolidação das Leis do Trabalho, agora reduzidos pela metade pelo art. 17, III, daquele ato presidencial. Ressalvo, contudo, a possibilidade de adesão, por parte do empregado, à convenção ou acordo coletivo posteriormente firmados, os quais prevalecerão sobre os acordos individuais, naquilo que com eles conflitarem, observando-se o princípio da norma mais favorável. Na inércia do sindicato, subsistirão integralmente os acordos individuais tal como pactuados originalmente pelas partes. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6363. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. 17/04/2020. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5886604. Acesso em 18/04/2020.

[13]Voto do Ministro Ricardo Lewandowski na ADI nº 6363. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HzFHfxZTE0M. Acesso em 21/04/2020.

[14]Voto do Ministro Edson Fachin na ADI nº6363. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ONpu8U3zM_4. Acesso em 21/04/2020.

[15]Voto da Ministra Rosa Weber na ADI nº 6363. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ONpu8U3zM_4. Acesso em 21/04/2020.

[16]CONVENÇÃO N. 154 da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_236162/lang–pt/index.htm. Acesso em 20/8/2019

[17] DIEESE. Acordos negociados pelas entidades sindicais para enfrentar a pandemia de coronavírus – COVID-19. Nº 91. Publicado em 16 abril 2020. Disponível em: Acesso em 18/04/2020.