Uma breve análise sobre os casos paradigmas de Justiça de Transição na Corte Interamericana de Direitos Humanos

Resumo

O presente artigo analisa os casos “Barrios Alto X Peru” e “Almonacid Arellano e outros X Chile” julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com o escopo de alcançar os resultados desejados, será utilizada a ferramenta metodológica qualitativa. Conforme se constatará, os dois casos tiveram dinâmicas distintas na Corte, visto que, no caso peruano, foi alcançada solução amistosa; já no caso chileno, registrou-se decisão judicial contrária aos interesses do país, em decorrência da defesa da manutenção de leis de auto-anistia, o que contraria a dinâmica da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Ambos os casos ainda norteiam o entendimento desta Corte sobre as violações de Direitos Humanos ocorridas durante regimes ditatoriais no continente americano.

Abstract

The paper analyzes the cases "Barrios Alto X Peru" and "Almonacid Arellano and others X Chile", judged by the Inter-American Court of Human Rights. In order to achieve the desired results, the qualitative methodological tool will be used. The two cases had different dynamics in the Court, once, in the Peruvian case, a friendly settlement was reached; However, in the Chilean case, the Court rendered a judicial decision contrary to the interests of the country, due to the defense of the maintenance of self-amnesty laws, which is contrary to the dynamics of the Inter-American Convention on Human Rights. Moreover, both cases guide the Court's understanding of the human rights violations that occurred during dictatorial regimes in the Americas.

Artigo

UMA BREVE ANÁLISE SOBRE OS CASOS PARADIGMAS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

 A BRIEF ANALYSIS OF THE LEADING CASES OF TRANSITIONAL JUSTICE IN THE INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS

  

Edson Branco Luiz[1]

Litiane Motta Marins Araújo[2]

Paola Pinheiro Branco[3]

 

Resumo

O presente artigo analisa os casos “Barrios Alto X Peru” e “Almonacid Arellano e outros X Chile” julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com o escopo de alcançar os resultados desejados, será utilizada a ferramenta metodológica qualitativa. Conforme se constatará, os dois casos tiveram dinâmicas distintas na Corte, visto que, no caso peruano, foi alcançada solução amistosa; já no caso chileno, registrou-se decisão judicial contrária aos interesses do país, em decorrência da defesa da manutenção de leis de auto-anistia, o que contraria a dinâmica da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.  Ambos os casos ainda norteiam o entendimento desta Corte sobre as violações de Direitos Humanos ocorridas durante regimes ditatoriais no continente americano.

Palavras-chave: “Corte Interamericana de Direitos Humanos”; “Justiça de Transição”; “Casos Paradigmas”; “Barrios Alto X Peru”; “Almonacid Arellano e outros X Chile”

Abstract

The paper analyzes the cases “Barrios Alto X Peru” and “Almonacid Arellano and others X Chile”, judged by the Inter-American Court of Human Rights. In order to achieve the desired results, the qualitative methodological tool will be used. The two cases had different dynamics in the Court, once, in the Peruvian case, a friendly settlement was reached; However, in the Chilean case, the Court rendered a judicial decision contrary to the interests of the country, due to the defense of the maintenance of self-amnesty laws, which is contrary to the dynamics of the Inter-American Convention on Human Rights. Moreover, both cases guide the Court’s understanding of the human rights violations that occurred during dictatorial regimes in the Americas.

Keywords: “Inter-American Court of Human Rights”; “Justice of Transition”; “Leading cases”; “Barrios Alto X Peru”; “Almonacid Arellano e outros X Chile”

Introdução

Ao se deparar com os julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte), se constatará a existência de ações sobre os mais variados tipos de violações de direitos, contudo, são poucos os casos que envolvam o julgamento de violações cometidas durante regimes políticos ditatoriais ou que façam referência a esses. Nesse sentido, existem dois casos que se tornaram paradigmas regionalmente quando se trata da discussão relacionada à justiça de transição.

O primeiro aborda o “Caso Barrios Altos”, ocorrido no Peru e decidido pela Corte em 14 de março de 2001. O último trata do “Caso Almonacid Arellano e outros”, ocorrido no Chile e deliberado pela Corte em 26 de setembro de 2006.

Caso “Barrios Altos X Peru”

Sobre “Barrios Altos X Peru”, é possível sintetizar que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) apresentou a referida demanda à Corte em 8 de junho de 2000, questionando se houve violação por parte do Estado peruano sobre o ‘Direito à Vida’ de 15 (quinze) vítimas e desrespeito ao ‘Direito à Integridade Pessoal’ de 4 (quatro) pessoas. Além disso, questionou se houve violação das ‘Garantias Judiciais’, ‘Proteção Judicial’ e ‘Liberdade de Pensamento e de Expressão’ contempladas na Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), e por fim, ventilou a existência de anistias, o que poderia estar violando os direitos indicados.

Foi solicitado pela CIDH que a Corte ordenasse ao Peru: o desarquivamento da investigação do ocorrido, a concessão de reparação integral em face dos danos materiais e morais aos familiares das vítimas executadas, bem como dos sobreviventes, revogar as leis de anistia, conferidas aos componentes das forças militares, policiais e civis, assim como, pagar valores relacionados às custas, gastos e honorários advocatícios.

O caso pode ser sintetizado da seguinte forma: no dia 3 de novembro de 1991, à noite, seis pessoas encapuzadas e fortemente armadas invadiram um imóvel na região denominada Barrios Altos. No local, acontecia uma festa para arrecadação de fundos para reparação do prédio. Os invasores chegaram em automóveis contendo luzes e sirenes policiais, renderam as pessoas que lá se encontravam,  mandaram deitar no chão e atiraram . Com essa ação, mataram 15 (quinze) pessoas e feriram gravemente 4 (quatro) pessoas. Os suspeitos fugiram nos automóveis com as sirenes ligadas.

            Os relatos midiáticos e as investigações demonstraram que os suspeitos “trabalhavam para a inteligência militar, eram membros do Exército peruano vinculados ao Sistema de Inteligência Nacional, que atuavam no ‘esquadrão de eliminação”, chamado ‘Grupo Colina’, que realizava seu próprio programa antissubversivo” (CIDH, 2006, p.3) como represália a possíveis integrantes do grupo subversivo Sendero Luminoso.

O caso ganhou proporções e, em menos de duas semanas, já ocupava a pauta do Congresso peruano com a aprovação de Comissão Senatorial investigativa, instalada em 27 de novembro de 1991; contudo, não houve conclusão da investigação em face da dissolução do Congresso pelo Presidente Alberto Fujimori através do seu “Governo de Emergência e Reconstrução Nacional”, iniciado em 5 de abril de 1992. Posteriormente, o Congresso Constituinte Democrático, eleito em novembro de 1992, não deu continuidade à investigação, e nem tampouco externou as evidências alcançadas pela Comissão anterior.

Somente em abril de 1995, foi iniciada investigação pela devida Promotoria Penal, que denunciou cinco oficiais do Exército pelo ocorrido em Barrios Altos, contudo, houve uma longa e atravancada discussão judicial sobre a autoridade competente para receber e julgar o referido caso, chegando tal questão à Corte Suprema; porém, antes da referida Corte deliberar, o Congresso peruano aprovou a Lei nº 26.479, lei de anistia, “que excluía a responsabilidade de militares, policiais, e também civis, que houvessem cometido violações de direitos humanos ou que tivessem participado nessas violações entre 1980 e 1995” (CIDH, 2006, p.4). Cabe assinalar que a lei teve aprovação célere perante o Congresso; basta esclarecer que foi encaminhado ao Legislativo no dia 14 de junho de 1995 e já no dia seguinte encontrava-se com a sanção presidencial e em vigor.

O efeito prático da lei determinou o arquivamento definitivo das investigações e isentou de responsabilidade penal dos autores do massacre. A anistia conferida

a todos os integrantes das forças de segurança e civis que foram objeto de denúncias, investigações, procedimentos ou condenações, ou ainda àqueles que estavam cumprindo sentenças em prisão, por violações de direitos humanos.  As escassas condenações impostas a integrantes das forças de segurança por violações de direitos humanos foram deixadas sem efeito imediatamente.  Em consequência, os oito indivíduos detidos em razão do caso conhecido como “La Cantuta”, alguns dos quais estavam sendo processados no caso Barrios Altos, foram postos em liberdade. (CIDH, 2006, p.4).

A juíza Antonia Saquicuray, que remetera o caso à Corte Suprema para saber a autoridade competente para julgar os envolvidos no caso “Barrios Altos”, fundamentada pela Constituição peruana, aplicou a interpretação de não utilização das leis contrárias às disposições da Constituição, uma vez que a Lei nº 26.479 “violava as garantias constitucionais e as obrigações internacionais que a Convenção Americana impunha ao Peru” (CIDH, 2006, p.4).

Apesar desse país ter assinado a Convenção em 1977, ratificado em 1978, e aceitado a jurisdição da Corte IDH em 1981, a Procuradora-Geral da Nação Blanca Nélida Colán expôs, horas depois da decisão da juíza, que a fundamentação da magistrada estava equivocada e que o caso “Barrios Altos” já estava findado, vez que a Lei de Anistia tinha respaldo constitucional e que eventual descumprimento da lei por juízes e promotores poderia gerar processos por prevaricação; todavia, o debate ganhou novas proporções, o que levou o Promotor Superior Carlos Arturo Mansilla Gardella a defender a interpretação conferida pela juíza Saquicuray.

Em decorrência da interpretação conferida pela juíza, o Congresso aprovou outra Lei de Anistia, Lei nº 26.492, que “declarou que a anistia não era ‘passível de revisão’ em sede judicial e que era de aplicação obrigatória”, e ainda ampliou os efeitos da Lei 26.479 “concedendo uma anistia geral para todos os funcionários militares, policiais ou civis que pudessem ser objeto de processos por violações de direitos humanos cometidas entre 1980 e 1995, mesmo que ainda não houvessem sido denunciadas.” (CIDH, 2006, p.5). Ficava claro que o Legislativo queria impedir o Judiciário de decidir sobre os crimes com motivação política.

 E, no primeiro momento, conseguiram tal entendimento, uma vez que o Tribunal Superior responsável entendeu que o caso deveria ser arquivado definitivamente; deliberaram ainda que a Lei não era incompatível com a Constituição e Tratados Internacionais de Direitos Humanos, que os magistrados deveriam aplicar a separação dos poderes, e por fim, ordenaram a investigação da Juíza Saquicuray pela corregedoria.

A dinâmica regional teve o seguinte andamento: ainda no dia 30 de junho de 1995, a Coordenadora Nacional de Direitos Humanos apresentou denúncia contra o Peru em face dos assassinatos e feridos no caso ‘Barrios Altos’. Foram solicitadas medidas cautelares, no dia 10 de julho de 1995, para a não aplicação da Lei nº 26.479 ao caso e garantir a integridade pessoal e o direito à vida da advogada das vítimas; o pleito foi acolhido pela CIDH, que no dia 14 de julho de 1995 solicitou ao Estado peruano a adoção de medidas adequadas para garantir condições de integridade pessoal e à vida dos sobreviventes, familiares e demais envolvidos.

A CIDH deu andamento ao caso no dia 28 de agosto de 1995, solicitando informações no prazo de 90 dias ao Estado-parte, que respondeu em 31 de outubro de 1995, o que gerou mais algumas respostas pelos envolvidos; contudo, outras três entidades, a saber, Associação Pró-Direitos Humanos, Comissão de Direitos Humanos da Coordenadoria Nacional de Direitos Humanos e Fundação Ecumênica para o Desenvolvimento e a Paz da Coordenadoria Nacional de Direitos Humanos, denunciaram, entre os meses de janeiro a setembro de 1996, em favor dos familiares e sobreviventes do incidente em ‘Barrios Altos’. Em 12 de fevereiro de 1997, a Comissão Regional reuniu as denúncias apresentadas.

Após o devido andamento processual, a Comissão se reuniu em 7 de março de 2000 aprovou relatório que recomendou ao Peru:

  1. […] deixe sem efeito toda medida interna, legislativa ou de outra natureza, que vise impedir a investigação, julgamento e punição dos responsáveis pelos assassinatos e lesões resultantes dos fatos conhecidos como operação “Barrios Altos”. Com esse fim, o Estado peruano deve deixar sem efeito as leis de anistias Nos. 26.479 e 26.492.
  2. […] conduza uma investigação séria, imparcial e efetiva dos fatos, com o objetivo de identificar os responsáveis pelos assassinatos e lesões cometidos neste caso; dê continuidade ao julgamento dos senhores Julio Salazar Monroe, Santiago Martín Rivas, Nelson Carbajal García, Juan Sosa Saavedra, e Hugo Coral Goycochea; e puna, pela via criminal correspondente, os responsáveis por estes graves delitos, de acordo com a lei.
  3. […] outorgue uma reparação plena, concedendo a correspondente indenização às quatro vítimas que sobreviveram e aos familiares das 15 vítimas mortas, pelas violações dos direitos humanos indicados neste caso.

Igualmente, a Comissão decidiu:

transmitir este relatório ao Estado peruano e outorgar-lhe um prazo de dois meses para dar cumprimento às recomendações formuladas.  O referido prazo será contado a partir da data de transmissão do presente relatório ao Estado, o qual não estará facultado a publicá-lo. Além disso, a Comissão decide notificar os peticionários sobre a aprovação de um relatório de acordo com o artigo 50 da Convenção. (CIDH, 2006, p.7).

O Estado peruano respondeu que as leis de anistias eram medidas excepcionais realizadas pelo Estado para combater o terrorismo. Alegou ainda que a Corte Suprema declarou improcedente a ação de inconstitucionalidade sobre as duas leis de anistia, contudo; foi exposta a existência de ações de reparação civil em favor dos familiares ou vítimas do evento. Mediante isso, a CIDH submeteu o caso à Corte em 10 de maio de 2000.

A Corte recebeu a demanda no dia 8 de junho de 2000 e conferiu o devido andamento processual. Já em 24 de agosto de 2000, plenipotenciário da Embaixada peruana junto à Costa Rica compareceu à Corte e entregou nota da Embaixada, datada do mesmo dia, que continha a aprovação da retirada do reconhecimento da Competência Contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, expondo que ainda, em 9 de julho de 1999, o Governo peruano depositou na Secretaria Geral da OEA a denúncia, informando que os efeitos seriam imediatos a partir da data aplicados a todos os casos não contestados pelo país. Ao final, sublinhou que a Corte não tinha competência para conhecer as causas contra o país.

A CIDH apresentou, em 19 de outubro de 2000, solicitação à Corte para que fosse rechaçada tal pretensão do Estado-parte e que fosse dada continuidade ao processo. A Corte emitiu nota ao Secretário-Geral da OEA, no dia 12 de novembro de 2000, assinada por todos os juízes, informando a situação de demandas contra o Estado peruano, apontando ser inadmissível tal pleito do país contra a Corte e refutou veementemente tal pretensão.

Em 23 de janeiro de 2001, a Embaixada peruana acreditada à República da Costa Rica remeteu cópia de Resolução Legislativa de 18 de janeiro de 2001, na qual informou a anulação da Resolução anterior, restabelecendo plenamente a competência da Corte em face do Estado peruano. Vale destacar que essa mudança não aconteceu por acaso, vez que Alberto Fujimori[4], Presidente peruano, renunciou ao cargo em novembro de 2000, assumindo o cargo, Valentín Paniagua, uma vez que era o Presidente do Congresso Nacional.

Regularizados os representantes do Governo peruano, que no dia 19 de fevereiro de 2001 apresentaram informações na qual reconheciam a responsabilidade internacional do país sobre o referido caso, foi realizada audiência pública com a participação da CIDH e os representantes do Estado-parte no dia 14 de março de 2001.

Durante a audiência, os representantes do Estado peruano reiteraram sua responsabilidade internacional, propuseram “medidas integrais de atenção às vítimas em relação a três elementos fundamentais: o direito à verdade, o direito à justiça e o direito a obter uma justa reparação” (CIDH, 2006, p.11); houve proposta ainda de realizar solução amistosa aos peticionários. A CIDH em suas alegações parabenizou o Estado demandado pela mudança de postura ao combater a impunidade. Expuseram ainda que o

Sistema Interamericano tem cumprido um papel fundamental na consecução da democracia no Peru.  A Comissão Interamericana e a Corte Interamericana de Direitos Humanos foram líderes dentro da comunidade internacional na condenação das práticas de horror, de injustiça e de impunidade que ocorreram sob o Governo de Fujimori (CIDH, 2006, p.13).

            A Corte acatou a solicitação do Estado, cessando a controvérsia e fixou as reparações e indenizações correspondentes; decidiu ainda sobre a incompatibilidade das Leis de Anistia com a Convenção Interamericana, garantiu o direito à verdade e garantias judiciais, consentiu que as reparações fossem feitas em comum acordo entre o Estado, a CIDH, vítimas e familiares em um prazo de 3 meses e, caso o valor não esteja em conformidade, a Corte determinaria o valor das reparações.

            Como visto acima, o caso Barrios Alto foi o primeiro julgado sobre a questão da justiça de transição pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, cujo ponto nodal se encontra na existência de Leis de Anistia domésticas, conflitando com os tratados internacionais e outras disposições incorporadas pela República do Peru, que, como mencionado anteriormente, aceitou a jurisdição da Corte Interamericana ainda em 1986.

Caso “Almonacid Arellano e outros X Chile”

            A segunda situação a ser tratada neste artigo é o caso “Almonacid Arellano e outros X Chile”. Em algumas palavras, pode-se sintetizar os fatos que levaram o caso ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Luiz Alfredo Amonacid Arellano, casado com Elvira do Rosário Gómez Olivares, teve três filhos: Alfredo, Alexis e José Luis Almonacid Gómez. O Sr. Almonacid Arellano era “era professor de ensino básico, militante do Partido Comunista, candidato a vereador pelo mesmo partido, secretário provincial da Central Única de Trabalhadores e dirigente sindical do Magistério (SUTE)” (CIDH, 2001, p.26). Em 16 de setembro de 1973, o Sr. Almonacid Arellano foi detido em seu domicílio por soldados carabineiros, que efetuaram disparos contra ele, na presença da sua família, vindo a falecer no dia seguinte.

            Cabe destacar que, alguns dias antes, ou seja, dia 11 de setembro de 1973, o General Augusto Pinochet e seus liderados realizaram golpe militar contra o Presidente eleito Salvador Allende. Rapidamente, toda a dinâmica política-constitucional foi remodelada para os interesses ditatoriais de Pinochet, suprimindo direitos e garantias fundamentais individuais e coletivas.

            O Tribunal Penal competente iniciou investigação em 3 de outubro de 1973 pela referida morte; contudo, tal procedimento administrativo sofreu uma série de arquivamentos e desarquivamentos, mantendo-se arquivado temporariamente desde 4 de setembro de 1974. Em 18 de abril de 1978, o governo Pinochet expediu o Decreto-Lei n° 2.191, conferindo anistia nos seguintes termos:

Concede-se anistia a todas as pessoas que, em qualidade de autores, cúmplices ou encobridores tenham incorrido em fatos delituosos, durante a vigência da situação de Estado de Sítio, compreendida entre 11 de setembro de 1973 e 10 de março de 1978, sempre que não se encontrem atualmente submetidas a processo ou condenadas. (CIDH, 2001, p. 29).

 Assim, a norma interna dispunha da anistia aos crimes realizados no período. Além disso, no cenário regional, o Chile assinou a Convenção em 22 de novembro de 1969, ratificando-a somente trinta anos depois, em 10 de agosto de 1990, e aceitou a competência da Corte Interamericana no dia 21 de agosto de 1990. Contudo, em 4 de novembro de 1992, a senhora Gómez Olivares apresentou Queixa Criminal e solicitou o desarquivamento do processo investigativo.

O juiz penal responsável pelo caso declarou-se incompetente para conhecer e julgar a causa; houve apelação da senhora Gómez e a Corte de Apelações deferiu, em 11 de outubro de 1994, a apelação, uma vez que entendeu não ter sido esgotada a investigação e por não existir certeza sobre as qualificações profissionais dos envolvidos no assassinato. O juiz reviu sua decisão; já no dia 8 de fevereiro de 1995 concluiu o inquérito e em 15 de fevereiro de 1995 arquivou definitivamente o inquérito com fundamento na Lei de anistia. A Corte de Apelação revogou tal arquivamento e mandou prender os dois suspeitos.

O Tribunal Militar competente se dirigiu ao Tribunal Penal do caso e solicitou a abstenção sobre os dois suspeitos, uma vez que “à data dos fatos, encontravam-se em serviço ativo, estando sujeitos ao foro militar”(CIDH, 2001, p.32). Além disso, o Tribunal Militar expôs que, na ocorrência dos fatos, encontrava-se em vigência o Decreto-Lei que declarava Estado de sítio, justificado pela comoção interna.

O Tribunal Penal negou o conflito de competência porque não seria possível constatar se os acusados encontravam-se em serviço no momento do assassinato. O conflito chegou à Corte Suprema chilena, que, em 5 de dezembro de 1996, decidiu ser o Tribunal Militar o órgão competente para conhecer e julgar o caso. Esse Tribunal, em menos de dois meses, no dia 28 de janeiro de 1997, determinou o arquivamento total e definitivo do caso, aplicando o Decreto-Lei n° 2.191.

A senhora Gómez Olivares apelou da decisão em 26 de fevereiro de 1997 à Corte Marcial, que, em 25 de março de 1998, manteve a decisão do Tribunal Militar. Recorreu novamente à Corte Suprema, que ainda no dia 16 de abril de 1998, decidiu que não tinha cabimento tal demanda, vindo a solicitar posteriormente o arquivamento dos autos.

Cabe destacar que, logo após a queda de Pinochet, o Presidente Aywlin Azocar editou o Decreto Supremo n° 355, que estabelecia a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação; suas atribuições compreendem:

  1. a) Estabelecer um quadro, o mais completo possível, sobre os graves fatos referidos, seus antecedentes e circunstâncias;
  2. b) Reunir antecedentes que permitam individualizar suas vítimas e estabelecer seu destino ou paradeiro;
  3. c) Recomendar medidas de reparação e reivindicação que entendam como justas; e
  4. d) Recomendar as medidas legais e administrativas que, a seu juízo, devem ser adotadas para impedir ou prevenir a ocorrência dos fatos a que este artigo se refere. (CIDH, 2001, 37).

            O Decreto conferia ainda o entendimento das graves violações as lesões “em que apareça comprometida a responsabilidade moral do Estado por atos de seus agentes ou de pessoas a seu serviço, como também os sequestros e os atentados contra a vida de pessoas cometidos por particulares sob pretextos políticos.” (CIDH, 2001, p. 37)

             A Comissão da Verdade entregou o relatório, que foi produzido de forma unânime entre seus membros, ao Presidente Azocar no dia 8 de fevereiro de 1991; este fez a devida divulgação à sociedade no dia 4 de março de 1991, vindo a pedir perdão aos familiares das vítimas.  Foi criada um ano depois a Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação com o objetivo de promover as condições necessárias para o cumprimento das sugestões estabelecidas pela Comissão. Entre outras situações, ficou estabelecida pensão mensal em favor dos familiares das vítimas indicadas no relatório, concessão de alguns benefícios médicos, benefícios educacionais e a possibilidade dos filhos das vítimas não realizarem serviço militar obrigatório.

            O Caso “Almonacid Arellano” ganhou proporção regional em 11 de julho de 2005, quando a CIDH submeteu à Corte a denúncia realizada na data de 15 de setembro de 1998 conferida na Secretaria da Comissão. Foi alegado que o Estado chileno violou as garantias judiciais e proteção judicial contempladas na Convenção Interamericana em face dos familiares do sr. Luiz Alfredo Almonacid Arellano.

A demanda se referia à falta de investigação e punição dos assassinos   do Sr° Almonacid Arrellano, a partir da vigência do Decreto-Lei n° 2.191, bem como a eventual falta de reparação adequada aos familiares da vítima. Por fim, a CIDH solicitou à Corte que o Estado chileno custeasse o pagamento das custas e valores referentes ao processamento interno e aos órgãos regionais de proteção aos direitos humanos.

A CIDH encaminhou a demanda à Corte, vez que o Estado chileno pediu prorrogação do prazo para trazer suas alegações, que foram trazidas, posteriormente; a Comissão questionou aos interessados acerca da submissão do caso à Corte; contudo, o Estado manteve-se inerte sobre tal submissão. No dia 11 de julho de 2005, a demanda foi encaminhada ao referido Tribunal, mesma data em que o Estado demandado encaminhou sua manifestação, fora do prazo.

O Estado chileno em suas alegações expôs que reconhece a competência da Corte Interamericana a partir da data de depósito do instrumento de aceitação da jurisdição em 21 de agosto de 1990. Logo, a Corte não teria competência para conhecer o caso. Contestou a demanda e não manifestou interesse em realizar solução amistosa.

Em conformidade ao andamento processual, o Presidente da Corte Interamericana “convocou a Comissão, o representante e o Estado para uma audiência pública a ser celebrada na sede do Superior Tribunal de Justiça do Brasil, na cidade de Brasília, a partir de 29 de março de 2006, para ouvir suas alegações orais…” (CIDH,2001, p.5). Merece detalhar que a Corte pôde realizar sessões e audiências públicas fora da sede, em San José da Costa Rica, para esclarecimento e resolução de casos distintos. Todos os interessados compareceram à audiência pública realizada no Brasil e expuseram suas motivações.

Após as alegações finais dos envolvidos, a Corte expôs na sentença que o “reconhecimento da competência’ da Corte […] é um ato unilateral de cada Estado[,..] condicionado pelos termos da própria Convenção Americana como um todo e, portanto, não está sujeito a reservas.”(CIDH, 2001, p.9), além de destacar que compete ao Tribunal apontar os fatos que se encontram excluídos de sua competência e não ao Estado-demandado, como muitas vezes é feito no presente caso pelo Chile. Tanto a Comissão como os representantes não solicitaram o pronunciamento sobre a morte do sr. Almonacid Arellano, bem como não expuseram existir falha ou violação processual antes da ratificação da Convenção pelo Chile.

A Corte se declarou competente para se pronunciar acerca dos fatos listados pelos representantes e pela CIDH. E deixou claro que:

a Corte não possui competência para declarar uma suposta violação ao artigo 2 da Convenção no momento em que este Decreto Lei foi promulgado (1978), nem a respeito de sua vigência e aplicação até 21 de agosto de 1990, porque até esse momento não existia o dever do Estado de adequar sua legislação interna aos parâmetros da Convenção Americana. Entretanto, a partir dessa data, vige para o Chile tal obrigação e esta Corte é competente para declarar se este a cumpriu ou não. (CIDH, 2001, p.11).

            Sobre as violações de trâmite perante a CIDH, a Corte entendeu que a Comissão respeitou os prazos devidos e que o Estado ofereceu seu relatório de cumprimento fora do prazo. Em face do não questionamento por parte do Chile acerca do esgotamento dos recursos domésticos, a Corte entendeu que o Estado renunciou tacitamente a tal direito. Diversas provas documentais, testemunhais e periciais foram produzidas e trazidas aos autos pelos representantes, CIDH ou Estado demandado.

            Sobre o assassinato do senhor Almonacid Arellano, a Corte discutiu se configurava crime de lesa-humanidade, ainda que o Chile não tivesse incorporado a Convenção Interamericana nesse período. Eis um breve histórico da ocorrência do crime, tem-se que:

[…] desde 11 de setembro de 1973 até 10 de março de 1990, governou o Chile uma ditadura militar que, dentro de uma política de Estado destinada a causar medo, atacou massiva e sistematicamente setores da população civil considerados como opositores ao regime, através de uma série de graves violações aos direitos humanos e ao Direito Internacional, dentre as quais se contam ao menos 3.197 vítimas de execuções sumárias e desaparecimentos forçados e 33.221 presos, a respeito dos quais uma imensa maioria foi vítima de tortura […]. De igual forma, a Corte considerou como provado que a época mais violenta de todo este período repressivo correspondeu aos primeiros meses do governo de fato. Cerca de 57% de todas as mortes e desaparecimentos e 61% das detenções ocorreram nos primeiros meses da ditadura. A execução do senhor Almonacid Arellano ocorreu precisamente nessa época. ( CIDH, 2001, p. 46).

            A Corte entendeu que a execução extrajudicial realizada por agentes estatais de Almonaciad Arellano configurou crime de lesa-humanidade e que por tal se faz impossível anistiar tal crime. Para fundamentar sua decisão, traz trecho do caso Barrios Altos. “O próprio Estado reconheceu que em ‘princípio, as leis de anistia ou auto-anistia são contrárias às normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos.” (CIDH, 2001, p.50). A Corte “considera que o assassinato do senhor Almonacid Arellano formou parte de uma política de Estado de repressão a setores da sociedade civil e representa apenas um exemplo do grande conjunto de condutas ilícitas similares que se produziram durante essa época.” (CIDH, 2001, p.53).

            Acerca da jurisdição militar, a Corte declarou que o Estado violou a Convenção Interamericana por ter conferido àquele órgão competência, quando não existia independência e a devida imparcialidade.

            Dessa forma, a Corte decidiu, em 26 de setembro de 2006, de forma unânime rejeitar os pontos preliminares interpostas pelo Estado; declarou que o Estado descumpriu com suas obrigações e violou os direitos dos familiares da vítima e, por pretender conferir anistia aos responsáveis do homicídio, se faz incompatível a lei de anistia (Decreto-Lei n° 2.191), vindo a carecer de efeitos jurídicos desse tratado. Dispôs ainda pela não aplicação desse Decreto-Lei e, se for o caso, punir os responsáveis por esta e outras violações semelhantes. Conferiu ao Estado a responsabilidade de efetuar a restituição das custas e gastos no prazo de um ano, contado do momento da notificação da presente decisão. Mediante o cumprimento integral da sentença, a Corte dará por concluída tal demanda.

Conclusão

            Ao contrário do que ocorreu com o Caso Barrios Altos, que teve solução amistosa perante a Corte, o Caso Almonacid Arellano ensejou intensa disputa judicial, na qual o Estado chileno defendeu até o fim a possibilidade da existência de leis de auto-anistia. Algo repudiado pela Corte Interamericana, que desconsiderou sua aplicação na incorporação da Convenção Interamericana pelo Estado demandado. Além disso, foi estipulado que determinados crimes, como o caso do falecimento do Almonacid Arellano, ainda que não estivesse sob a proteção da Convenção Interamericana, estaria tipificado como crime de lesa-humanidade. Enfim, o Estado chileno foi condenado, recaindo à Corte Interamericana quantificar os valores das indenizações e honorários.

Esses dois casos são emblemáticos junto ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos no que tange aos processos de justiça de transição, uma vez que foram decisões pioneiras, consolidando a jurisprudência regional sobre o tema; serviu de referência tanto para o Peru quanto ao Chile, levando a sérias mudanças dentro desses países, tanto que o ex-Presidente peruano Alberto Fujimori permaneceu preso, por mais de uma década, por diversos crimes, dentre estes os cometidos no caso Barrios Alto.

 Referências

Normativas

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS.  Carta da Organização dos Estados Americanos, de 10 de junho de 1993.

___________________________________________. Convenção Interamericana de Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969.

Relatórios

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Países signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, Aceitações das Competências da Corte Interamericana e da Competência da Comissão. Disponível em <http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..htm>. Acesso em 04 jun 2015.

Jurisdicionais

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS.   Sentença do caso Almonacid Arellano e outros X Chile, de 26 de setembro de 2006.

________________________________________________. Sentença do caso Barrios Alto X Peru, de 30 de novembro de 2001. Disponível em: http://www.oab.org.br/arquivos/pdf/Geral/ADPF_anistia.pdf. Acesso em 20 de outubro de 2014.

NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Coordenador do Curso de Direito da Universidade do Grande Rio – UNIGRANRIO. Doutor e Mestre em Ciência Política pelo PGCP da Universidade Federal Fluminense. Avaliador ad hoc INEP/MEC para os Cursos de graduação em Direito e Relações Internacionais. Professor da Universidade do Grande Rio – UNIGRANRIO e da Fundação Educacional Serra dos Órgãos – FESO. Professor da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Professor Temporário (2011-2016) do Curso de Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST/UFF). Líder do Grupo de Pesquisa: Observatório dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – ODESC/UNIGRANRIO. Pesquisador Assistente do “Laboratório de Política Externa”/ LEPEB-UFF Pesquisador Assistente do “Direitos Humanos, Cidadania e Estado” – DHCE-UNIGRANRIO Advogado, graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: [email protected]

[2] Magistério Superior e Advocacia. Avaliadora ad hoc INEP/MEC Institucional Presencial/EAD; Coordenadora-adjunta e Professora Assistente Mestre do Curso de Direito da Universidade do Grande Rio – UNIGRANRIO (De Fevereiro de 2004 até o momento); Professora Assistente Mestre do Curso de Direito da Fundação Educacional Serra dos Órgãos (FESO); Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá; Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Pesquisadora dos Grupos de Pesquisa: “Observatório dos Direitos Econômicos, Culturais e Sociais” (ODESC/UNIGRANRIO) e “Estado, Cidadania e Direitos Humanos” (ECDH/UNIGRANRIO). Contato: [email protected]

[3] Graduanda em Administração pela Universidade do Grande Rio (UNIGRANRIO). Participante do Grupo de Pesquisa “Observatório dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – ODESC/UNIGRANRIO”. Contato: [email protected]

[4]  Em 2017, o ex-Presidente peruano Alberto Fujimori recebeu indulto humanitário, após 12 anos cumprindo pena decorrente da condenação de 25 anos por violações aos direitos humanos em detrimento das perseguições, torturas, desaparecimentos e mortes de membros do Sendero Luminoso nos casos Barrios Altos e La Cantuta, que serviram de fundamento para a justiça peruana condená-lo.

Palavras Chaves

“Corte Interamericana de Direitos Humanos”; “Justiça de Transição”; “Casos Paradigmas”; “Barrios Alto X Peru”; “Almonacid Arellano e outros X Chile”