A FAZENDA PÚBLICA E OS MEIOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS APLICADOS ÀS AÇÕES QUE ENVOLVAM O DIREITO À SAÚDE EM TEMPOS DE PANDEMIA

Resumo

No Brasil, o direito à saúde tem previsão constitucional e universal. No entanto, a via judicial tem sido muito utilizada para acesso a bens e serviços de saúde e, em tempos pandêmicos, assume importância o aumento das demandas perante o Poder Judiciário visando à concessão de leitos de UTI, para tratamento de pacientes contaminados pelo vírus Sars-coV-2, causador da Covid-19. No entanto, busca-se analisar a adoção de meios consensuais de resolução de conflitos pela Fazenda Pública como alternativa à lentidão e inefetividade da justiça estatal, privilegiando-se o aumento da participação dos cidadãos e o incentivo ao diálogo, visto que o direito administrativo deve ser encarado sob os aspectos constitucionais, em que os envolvidos sejam vistos com paridade.

Artigo

A FAZENDA PÚBLICA E OS MEIOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS APLICADOS ÀS AÇÕES QUE ENVOLVAM O DIREITO À SAÚDE EM TEMPOS DE PANDEMIA

Luís Coelho da Silva Júnior1 

Resumo

 No Brasil, o direito à saúde tem previsão constitucional e universal. No entanto, a via judicial tem sido muito utilizada para acesso a bens e serviços de saúde e, em tempos pandêmicos, assume importância o aumento das demandas perante o Poder Judiciário visando à concessão de leitos de UTI, para tratamento de pacientes contaminados pelo vírus Sars-coV-2, causador da Covid-19. No entanto, busca-se analisar a adoção de meios consensuais de resolução de conflitos pela Fazenda Pública como alternativa à lentidão e inefetividade da justiça estatal, privilegiando-se o aumento da participação dos cidadãos e o incentivo ao diálogo, visto que o direito administrativo deve ser encarado sob os aspectos constitucionais, em que os envolvidos sejam vistos com paridade.

Palavras-chave: Direito à saúde; judicialização; Fazenda Pública; Covid-19; meios consensuais; resolução de conflitos;

1.   Introdução

O direito à saúde tem assento constitucional, nos arts. 6º e 196, da CRFB/1988. No entanto, apesar de assegurada sua disponibilização universal e igualitária, constata-se que o Estado não é capaz de prestar de forma adequada os serviços de saúde, seja pelas desigualdades regionais, falta de infraestrutura ou baixo investimento.

As desigualdades regionais em relação aos serviços de saúde ficam ainda mais evidenciadas quando comparadas à “distribuição/alocação de leitos de UTI (SUS e não SUS) no Brasil. A Região Sudeste concentra (51,9%) dos leitos de UTI nacional, enquanto as regiões Norte (5.2%) e Centro-Oeste (8,5%) não alcançam 10 % dos leitos totais”2.

Desde que foi detectada em dezembro de 2019, a Covid-19, causada pelo vírus Sars-coV-2, vem se alastrando pelos diferentes continentes, tendo sido declarada uma pandemia

pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em março de 2020.

Segundo a OMS, 80% (oitenta por cento) dos pacientes com Covid-19 apresentam sintomas leves, 15% (quinze por cento) evoluem para hospitalização, com auxílio de oxigenoterapia e 5% (cinco por cento) precisam ser atendidos em unidade de terapia intensiva (UTI)3.

Os efeitos nefastos da Covid-19, em especial aqueles decorrentes do agravamento da doença, repercutem no aumento da demanda e, consequentemente, na pressão imposta aos sistemas de saúde quanto à necessidade de ampliação de leitos de UTI.

Tais fatores aumentam as chances de acionamento do Judiciário para dirimir conflitos, muitos relacionados às prestações de saúde por meio do SUS e, no presente caso, à judicialização da ocupação de leitos hospitalares no momento de escassez de vagas, decorrente da quantidade expressiva de pessoas contaminadas pela Covid-19.

Entretanto, apesar da crescente judicialização4 dos assuntos relativos à saúde5, a solução adjudicada ao Poder Judiciário nem sempre representa o meio mais adequado à solução dos conflitos, pois o volume de processos e, em muitas das vezes, a exigência de conhecimentos de cunho técnico em matéria de saúde, os quais os órgãos jurisdicionais desconhecem6, impedem uma decisão célere e até mesmo justa.

Nesse contexto, em que se buscam soluções mais acertadas tanto do ponto de vista jurídico, quanto social, observa-se a substituição da ‘cultura de sentença’ pelo uso dos meios consensuais de resolução de conflitos, reafirmando o aspecto do processo de resultados, em que o objeto principal é a pacificação social7.

Sendo assim, a concessão de vagas destinadas aos pacientes contaminados pelo vírus

Sars-coV-2 poder ser melhor executada com a utilização de mecanismos consensuais de resolução de litígios, ao se construir uma solução conjunta junto à Fazenda Pública, pois o modelo privilegia o aumento da participação dos cidadãos e o incentivo ao diálogo, visto que o Direito Administrativo deve ser encarado sob os aspectos constitucionais, em que os envolvidos sejam vistos com paridade.

O novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015) promoveu significativas mudanças na prestação jurisdicional ao dar maior alcance à utilização dos meios consensuais de resolução de conflitos.

Segundo Cândido Rangel Dinamarco, o processo civil moderno passou a valorar, com maior ênfase, os escopos sociais do processo e da jurisdição, “características da atual fase científica de postura declaradamente instrumentalista”8.

Admite-se que o processo e a ordem processual somente possuem valor pelos resultados pacificadores que possam produzir e pela consequente capacidade de propiciar sensações felizes às pessoas, mediante a efetividade do acesso à justiça, o que vem sendo chamado de “processo civil de resultados”, sendo a opção metodológica escolhida pelo legislador de 20159. A problemática gira, então, em torno da possibilidade de aplicação dos meios consensuais de solução de conflitos pela Fazenda Pública às ações que envolvam a oferta de

leitos para tratamento de pacientes infectados pelo vírus Sars-coV-2, causador da Covid-19

A resposta não se mostra simples, pois de acordo com o texto constitucional, a saúde é um direito de todos, sendo garantido não somente “por meio de ações e serviços sanitários, mas também mediante políticas econômicas e sociais que visem à redução do risco de doenças (art. 196)”10.

Nesse sentido, será analisado o direito à saúde, bem como o fenômeno da judicialização da saúde pública e, de igual modo, a atuação da Fazenda Pública em juízo, considerando a necessidade de atender a uma crescente demanda por serviços de saúde, que, neste trabalho, se enfatiza na disponibilização de leitos para infectados pela Covid-19 e o possível colapso dos sistemas de saúde dos entes federativos.

Por fim, serão realizadas considerações acerca da opção metodológica adotada pelo Código de Processo Civil de 2015, no sentido de que a utilização dos meios consensuais

constitui a melhor forma de pacificação social, por ser mais célere e de menor custo11.

A abordagem metodológica é do tipo qualitativa, apoiando-se nas técnicas de pesquisa bibliográfica e documental, de caráter dedutivo.

1.   O direito à saúde e sua prestação

No Brasil, o direito à saúde tem assento constitucional, sendo inicialmente mencionado pelo art. 6º, da CRFB/1988, o qual estabelece que a saúde é um direito social e, posteriormente, pelo art. 196 e ss., no qual encontra “sua maior concretização em nível normativo- constitucional”12.

No plano internacional, o Brasil é signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, incorporado pelo Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, e do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de São Salvador”, incorporado pelo Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999, sendo o direito à saúde assegurado pelos arts. 12 e 10, de ambos os diplomas, respectivamente.

De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet et al, o direito à saúde está intimamente ligado ao direito à vida, bem como à dignidade da pessoa humana, que é atribuída à pessoa humana viva. Nessa perspectiva, o direito à saúde é condição para exercícios de outros direitos, ou seja, é pré- condição da própria dignidade da pessoa humana13.

Desse modo, infere-se que o direito à saúde é um bem marcado pela interdependência com outros bens e direitos fundamentais, os quais se sobrepõem em certa medida, como é o caso do direito à vida, integridade física e psíquica, educação, meio ambiente, moradia, alimentação, trabalho, etc.14.

Por outro lado, o direito à saúde é marcado pelos determinantes sociais. Nesse sentido, de acordo com o art. 196, da CRFB/1988, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Segundo Fabíola Sulpino Vieira, os determinantes sociais da saúde podem ser compreendidos como as condições de ordem social, econômica, étnica/racial, psicológica e

comportamental que influenciam a probabilidade de ocorrência de doenças. Desse modo, pode- se concluir que saúde é determinada por diversos fatores, mas a oferta de ações e serviços somente de saúde é insuficiente para se alcançar o maior nível de bem-estar físico, mental e social15.

Tais determinantes são ampliados em sede infraconstitucional, considerando que a saúde tem como “determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais”, de acordo com o disposto pelo art. 3º, caput, da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde.

Pela leitura do texto constitucional, percebe-se que o direito à saúde está vinculado a uma séria de prestações estatais cuja finalidade é assegurar bem-estar, bem como outras políticas sociais e econômicas, com o objetivo de reduzir o risco do adoecimento dos indivíduos16.

Nota-se que a Constituição Federal de 1988 modifica o panorama da saúde brasileira, ao assegurar tanto o acesso às ações quantos às prestações dos serviços de saúde, na forma de um sistema único, que integram uma rede regionalizada e hierarquizada, que formam justamente o Sistema Único de Saúde – SUS, em atendimento à norma prevista pelo art. 198, da CRFB/1988, sendo regulamentado pela Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990.

De acordo com Saulo Lindofer Pivetta, o Sistema Único de Saúde articula as ações e serviços de saúde, bem como coordena os variados atores e estruturas envolvidas com as políticas sanitárias, prestados por todos os níveis da federação. Além do Estado, a Constituição Federal admitiu a execução das prestações de saúde por terceiros, sejam pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, de acordo com o preconizado pelo art. 197, da CRFB/198817.

Os serviços e ações de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada. O aspecto da regionalização leva em consideração as especificidades de cada região e suas demandas de saúde, não se restringindo aos critérios geográficos. Quanto à hierarquia, os serviços são escalonados a partir de sua complexidade, com vistas à racionalização do sistema

e otimização dos recursos18.

Além disso, a rede hierarquizada é elaborada em três graus: atendimento primário, também chamado de atenção básica, que envolve as ações de baixa complexidade e o encaminhamento aos níveis mais complexos (atendimentos secundário e terciário), constituindo-se a porta de entrada do sistema19.

Há de se ressaltar, na oportunidade, que os incisos do art. 198, da CRFB/1988 entabulam três diretrizes para o Sistema Único de Saúde: (i) descentralização, com direção única em cada esfera de governo; (ii) atendimento integral, com destaque para as atividades preventivas, sem prejuízo as assistencialistas; e (iii) participação da comunidade.

A integralidade do sistema impõe que a rede pública seja completa, em termos assistenciais, conforme disposto pelo art. 7, II, da Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde), sendo compreendida como o conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos, curativos, individuais e coletivos, aplicados caso a caso, em todos os níveis de complexidade do sistema20.

A diretriz da integralidade do SUS engloba, necessariamente, as medidas preventivas e assistenciais, constituindo-se as linhas gerais de atuação do Estado. Contudo, destaca-se que a sua atuação poderá sofrer restrições, havendo certa delimitação de quais condutas poderão ser exigidas.

Com efeito, a integralidade não assegura que toda e qualquer ação e/ou prestação assistencial, integra o conteúdo do direito à saúde exigível do Estado, devendo “ser compreendida como a obrigação do Poder Público de, amparado nos critérios estatuídos em lei e na Constituição (notadamente a partir de critérios epidemiológicos e científicos), formular políticas públicas que englobem as ações e serviços necessários à garantia da saúde física, mental e social de todos os cidadãos”21.

Quanto à diretriz da descentralização, o Sistema Único de Saúde valoriza as esferas locais e a unidade na gestão das políticas públicas sanitárias. Nessa toada, a Constituição Federal de 1988 estabelece, no art. 23, II, a competência comum entre os entes federados, no que se refere ao cuidado da saúde.

Por opção constitucional, a gestão dos serviços de saúde funda-se na cooperação entre os entes federados, por haver forte interdependência e interesse comum nos programas a serem

desenvolvidos. Ainda que desenvolvidas de forma descentralizada, as ações de saúde exigem direção única em cada esfera de governo, em que resta assegurada a operacionalização do sistema, bem como a definição das estratégias e repartição de responsabilidades22.

De acordo com o art. 9º, da Lei nº 8.080/1990, a direção única será exercida, no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pelas Secretarias de Saúde ou órgãos equivalentes; e, no âmbito dos Municípios, pelas Secretarias de Saúde ou órgãos equivalentes.

A Lei nº 8.080/1990 traça as linhas gerais relativas às competências da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, cabendo à direção nacional do SUS, com fundamento no art. 16, a as atividades de coordenação e normatização do sistema.

De acordo com o disposto pelo parágrafo único, do art. 16, da Lei nº 8.080/1990, compete à União exercer ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na hipótese em que agravos de saúde escapam da capacidade de controle da direção estadual ou quando possam representar risco de disseminação por todo o território nacional23.

Há de se ressaltar que, em razão da epidemia de COVID-19, seria competência da União a coordenação das ações relativas ao combate ao vírus, ao se considerar o disposto pelo parágrafo único, do art. 16, da Lei nº 8.080/1990, quanto à competência para o exercício de ações de vigilância epidemiológica.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se manifestar nos autos da ADI 6.341, a fim que fosse permitido a Estados e Municípios a execução das ações de combate ao vírus, em razão da omissão da União, justamente porque o ente federal manteve-se inerte em relação à implementação de restrições, tais como o isolamento social e fechamento de serviços não essenciais.

Destaca-se, desde já, que não houve alteração da responsabilidade pela execução das ações de prestação dos serviços de saúde, mas apenas explicitou-se a competência de estados e municípios quanto à adoção de medidas restritivas, com o objetivo de conter a pandemia do coronavírus. Desta forma, estes entes da federação podem determinar quarentenas, isolamento, restrição de atividades, sem que a União possa interferir no assunto24.

As direções estaduais, por sua vez, têm o dever de promover a descentralização para os

municípios das ações e serviços de saúde. Além disso, devem prestar apoio técnico e financeiro às municipalidades, cabendo aos Estados apenas a execução de forma supletiva, bem como gerir os sistemas de alta complexidade, coordenar a rede estadual de laboratórios de saúde pública e hemocentro, entre outras, nos termos do art. 17, da Lei nº 8.080/1990.

As direções municipais, de acordo com o art. 18, da Lei nº 8.080/1990, cuidam do planejamento, organização e controle da execução dos serviços públicos de saúde. As atividades prestadas pelo município estão concatenadas com o planejamento estadual e nacional, partindo- se de modo ascendente, considerando que o planejamento do SUS partirá do nível local para o nacional (art. 36, da Lei nº 8.080/1990).

No que se refere à diretriz da participação popular (art. 198, III, da CRFB/1988), esta vincula-se ao escopo comum da CRFB/1988 de democratizar o Estado brasileiro. Deve a participação popular ser compreendida a partir do projeto de democratização do país, em especial da Administração Pública, uma vez que o princípio democrático prevalece como critério de legitimidade das ações dos agentes públicos25.

Pode-se notar que o projeto democrático constitucionalizado não se resume à democracia direta ou mesmo à representativa, visto que ganha espaço a democracia participativa, considerada como a possibilidade de os cidadãos participarem das decisões políticas do Estado.

De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, citada por Saulo Lindofer Pivetta, a participação popular é uma concepção mais refinada do projeto democrático, uma vez que por meio do exercício da democracia participativa a própria sociedade que se democratiza: “não se trata apenas de definir quem será o responsável pela decisão final, se os representantes eleitos (democracia representativa) ou se o próprio povo (democracia direta). Por meio dos instrumentos de democracia participativa a máquina estatal se torna mais próxima da sociedade, diminuindo a distância entre aqueles que governam e aqueles que são governados”26.

Ademais, a atuação da Administração Pública tem como principal objetivo a concretização dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, uma vez que a Constituição materializa a democracia no âmbito administrativo27.

A democratização do agir administrativo em assuntos relativos à prestação dos serviços de saúde vincula-se às origens que levaram à formação dos Sistema Único de Saúde, com o estabelecimento da direção da participação popular na esfera decisória (art. 198, da

CRFB/1988). “A regulamentação deste dispositivo é realizada pela Lei nº 8.142/1990, que institui dois órgãos de participação popular: a Conferência de Saúde e o Conselho de Saúde. É por intermédio deles que se viabiliza a inserção dos cidadãos nos processos decisórios das políticas sanitárias”28.

Pode-se concluir, portanto, que a criação do SUS, com a Constituição de 1988, constitui- se importante meio para a efetivação do direito à saúde. Contudo, não é o único, uma vez que o Estado deve implementar uma série de políticas públicas voltadas ao bem-estar, que se vinculam ao direito à saúde29.

Assim, serão traçadas breves considerações acerca da judicialização dos serviços de saúde no Brasil, destacando-se as consequências da pandemia de COVID-19, quanto à disponibilização de leitos de UTI, pelo Poder Público.

3.   A judicialização da saúde em tempos pandêmicos

Os desafios para a proteção do direito à saúde no Brasil e, consequentemente para ampliar a consolidação do SUS, residem na criação e disponibilização de garantias jurídicas, politicas, processuais e institucionais mais eficazes.

Nesse sentido, a Constituição criou diversas garantias jurídicas de alta relevância para sua proteção: (i) obrigacionais (saúde como dever do Estado fixado pelo art. 196); (ii) financeiras (vinculação orçamentária fixada pelos §§ 1º a 3º, do art. 198); (iii) institucionais (criação do Sistema Único de Saúde pelo art. 198, caput) e, inclusive; (iv) de abrangência do conteúdo jurídico do direito à saúde ( princípios da universalidade e integralidade dos serviços públicos de saúde fixados pelos arts. 196 e 198)30.

O sistema de assistência à saúde é amplo e complexo e envolve a prestação de bens e serviços de saúde, bem como a implementação de políticas públicas voltadas a assegurar o completo estado de bem-estar físico, mental e social, caracterizando-se assim, o estado de plenitude psicofísica, de acordo com o previsto pela Constituição da Organização Mundial da Saúde31.

A prestação dos serviços de saúde, seja por ações específicas ou mesmo políticas

públicas, abrange uma série de atores nas esferas pública e privada, bem como diversas entidades regulatórias e dispositivos legais que disciplinam e regulam a atuação de tais atores. A importância da matéria é tamanha, que se a análise se restringir apenas à Constituição,

a saúde não é somente tratada como parte de um extenso rol de direitos sociais, mas sim, densamente regulada pelos arts. 196 e ss., sendo ainda citada 67 (sessenta e sete) vezes ao longo de todo o texto constitucional.

“Além de abrangente, também é um tema que importa em frequentes conflitos políticos e judiciais”. A prestação dos serviços de saúde envolve recursos escassos em uma sociedade cada dia mais complexa, com padrões epidemiológicos que ora aproximam o Brasil de países desenvolvidos, ora subdesenvolvidos32.

A discussão não se resume quanto ao direito à saúde em si, pois não se contesta o direito amparado pela Constituição e descrito pelos arts. 196 e ss., não havendo quaisquer dúvidas de que seja uma obrigação estatal33, mas sim, às ações que devem ser realizadas pelo Estado, o qual compete prestar os serviços de saúde de modo igualitário e universal. A judicialização da saúde é resultado da má gestão dos serviços de saúde ou mesmo da ineficiente execução das políticas públicas pelo Estado34.

De acordo com Fabíola Sulpino Vieira, as ações judiciais movidas por pacientes portadores da infecção causada pelo vírus HIV e por organizações não governamentais na década de 1990, constituíram importante marco na requisição, junto ao Poder Judiciário, na efetivação do direito à saúde no Brasil. Já em 1996, as diversas ações judiciais propostas, resultaram na determinação de que o SUS oferecesse os medicamentos e a assistência requeridos. No mesmo ano, foi aprovada a Lei nº 9.313, que obriga o Estado a fornecer gratuitamente os medicamentos aos portadores de HIV e doentes de AIDS35.

Ainda segundo Vieira, o Poder Judiciário interpretava o direito à saúde como uma norma programática, com o objeto de orientar o Estado, sem, contudo, criar para este a obrigação de garantir o acesso a bens e serviços de saúde. No entanto, tal interpretação foi cedendo espaço à compreensão de que o direito à saúde seria um direito fundamental imediatamente exigível. A mudança de paradigma deu-se com o julgamento do RE nº 271.286

pelo Supremo Tribunal Federal em 2000, em que um paciente portador do vírus HIV/AIDS obteve decisão favorável, para que o município de Porto Alegre fornecesse os medicamentos necessário ao enfrentamento da doença36.

Desde então, observa-se significativo crescimento das demandas judiciais em todo o país. Para exemplificar, o número de demandas judiciais relativas à saúde aumentou 130%, entre 2008 e 2017, enquanto o número total de processos cresceu 50%, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça37.

Dentre os assuntos mais recorrentes, de acordo com os dados do Justiça em Números entre os anos de 2004 a 2019, foi possível identificar os assuntos mais frequentes foram: fornecimento de medicamentos, saúde, tratamento médico-hospitalar e/ou fornecimento de medicamentos, tratamento médico-hospitalar e unidade de terapia intensiva (UTI) ou unidade de cuidados intensivos (UCI)38.

Ainda de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, o desabastecimento de medicamentos, insumos e profissionais constituem-se em alguns dos motivos que ensejam a judicialização. Ademais, o número de casos novos tem aumentado a cada ano, atingindo a marca de 2,5 milhões de processos entre os anos de 2015 a 202039.

A proliferação da pandemia em território nacional e em diversas camadas da população, provocou o aumento das demandas relativas à Covid-19 nos hospitais públicos e privados, tendo que ceder espaço físico, leitos, recursos e profissionais para atendimento da doença, bem como recusar o atendimento a outras enfermidades por falta de infraestrutura40.

É nesse cenário que se insere a disponibilização de leitos, em especial, aqueles dedicados à terapia intensiva, em razão do agravamento da doença em praticamente todas as regiões do país. O número de ações judiciais para disponibilização de leitos de UTI quadruplicou em 3 meses, totalizando 4.320 ações nos meses de março, abril e maio ante 1.052 no mesmo período de 202041.

A alta no número de ocupações de leitos de UTI, bem como do aumento da demanda perante o Poder Judiciário, foi confirmada pelo Observatório Covid-19, da Fundação Oswaldo Cruz. De acordo com o documento divulgado em março de 2021, 17 estados apresentavam

situação crítica, com o comprometimento de mais de 80% dos leitos de UTI42.

Nota-se que no Brasil há uma preferência pelas vias judiciais, em detrimento às consensuais, pois a sociedade via sua utilização com desconfiança, por considerá-los inseguros, arriscados e sem garantias. “Sem outras opções legítimas para solucionar seus problemas, a decisão imposta pelo juiz seria a única via disponível. Destarte, o jurisdicionado se acostumou a congestionar os tribunais para buscá-la, pois as supostas virtudes institucionais são indiscutíveis”43.

De acordo com o Dorival Fagundes Cotrim Junior e Lucas Manoel da Silva Cabral, houve significativo aumento na disponibilização de leitos UTI no período entre dezembro de 2019 (momento pré-pandemia) e abril de 2020. Segundo os autores, o número de leitos passou de 46.045 para 60.265, representando um incremento de 14.220 leitos, representando um total de 23,59%44.

Apesar do aumento expressivo, sem considerar as desigualdades regionais relativas à oferta, foram instalados pelo SUS apenas 3.104 leitos, ou seja, o que equivale a 21,82%. A contrario sensu, a iniciativa privada instalou 11.116 novos leitos, ou seja, 78,18% do total, destinados ao tratamento intensivo em todo o país, “expressando uma desigualdade sem precedentes na história recente do país, isto é, desde a implantação do SUS”45.

O caráter privatista dado ao acesso à saúde, tendo em vista aumento expressivo da quantidade de leitos pelo setor privado é muito grave, pois apenas 22,41% da população ou

47.084.565 pessoas dispõem de plano privado, enquanto que 77,59% ou 163.062.560 pessoas, dependem exclusivamente do SUS46.

Ao se analisar a taxa proporcional, 22,41% da população disputa 34.112 leitos (após o aumento com a pandemia), resultando em uma taxa de 7,24 leitos a cada 10 mil habitantes, ao passo que 77,59% da população disputa 26.153 leitos. Contudo, tendo em vista que, tanto a Constituição, quanto a Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) asseguram o acesso a todos os cidadãos aos leitos dispostos pelos SUS, deveria assegurar-se a taxa de 1,24 leito SUS a cada 10 mil habitantes47.

Os desafios são ampliados em razão dos gargalos então existentes (falta de insumos, medicamentos, especialistas, etc.), bem com pelas desigualdades na prestação dos serviços de

saúde no país e a solução perpassa pelo diálogo interinstitucional, de modo a equacionar a tutela ao direito assegurado pela Constituição e a disponibilidade de recursos.

Segundo Fabíola Sulpino Vieira, o SUS ainda padece de grandes desigualdades na oferta de serviços de saúde de alta complexidade ambulatorial e hospitalar e conforme estudo realizado, verificou-se que 8,9% e 20,1% das regiões de saúde não dispõem de assistência ambulatorial e hospitalar, respectivamente48.

As regiões de saúde constituem-se de recortes territoriais compostos por vários municípios, que servem ao planejamento da oferta dos serviços de saúde. Contudo, os números revelam a existência de vazios assistenciais, em razão da ausência da oferta de serviços de saúde em determinado espaço geográfico onde, em princípio, deveriam estar sendo prestados à população49.

Para Fabíola Sulpino Vieira, de acordo com Guaraci Bragança Bittencourt, a judicialização da saúde, na visão dos pesquisadores, pode ser vista como mecanismos de efetivação da cidadania, ao mesmo tempo que obstáculo à efetivação do direito à saúde, visto que há marcante interferência do Poder Judiciário na execução das políticas públicas de saúde50. Não por outro motivo, há marcante preocupação acerca da judicialização da saúde, havendo a implementação de iniciativas com o objetivo de reduzir o número de ações judiciais, dando-se destaque à mediação, em que se discutem os diversos problemas coletivos de saúde nos âmbitos micro e macrorregional, com a realização de encontros entre os principais atores, públicos e privados: magistrados, promotores de justiça, defensores públicos, prefeitos, secretários de saúde, prestadores de serviços de saúde, conselhos do SUS e representantes de

outras instituições da área do direito e da saúde que tenham relação com esta temática51.

Nesse sentido, serão analisados no próximo item, de forma sintética, os meios consensuais de resolução de conflitos, quando a Fazenda Pública figura em juízo, em matéria de saúde, restringindo-se ao momento atual, em que houve significativo aumento das demandas, em razão da pandemia de Covid-19.

3.  Os meios consensuais de resolução de conflitos, a Fazenda Pública e a indisponibilidade do interesse público

O Código de Processo Civil prevê, por meio do art. 3º, que “não se excluirá da apreciação do Poder Judiciário ameaça ou lesão a direito”, enquanto que o art. 5º, XXXV, da

CRFB/1988 que a “lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Apesar das semelhanças, a redação da norma infraconstitucional oferece um maior alcance, extrapolando os limites do Poder Judiciário, a quem incube prestar a jurisdição, mas não de forma monopolizada52.

De acordo com Humberto Dalla Bernardina de Pinho, a função jurisdicional representa o dever estatal de dirimir conflitos, seja por meio da atividade substitutiva, seja pela resolução de conflitos, abarcando assim, as modalidades chiovendiana e carneluttiana, respectivamente. Além disso, pela construção clássica, a atuação do Judiciário dar-se de forma negativa, uma vez que os conflitos são dirimidos com a imposição da vontade do juiz ao determinar um vencedor e um vencido53.

Com efeito, a apreciação jurisdicional prevista pelo art. 3º, do CPC, não se refere unicamente ao Poder Judiciário, mas vai além da resolução de conflitos pela substitutividade, pois passa a permitir outras formas positivas de composição, fundadas no dever de cooperação. A jurisdição, antes exclusiva do Poder Judiciário, passa a ser exercida por “serventias extrajudiciais ou por câmaras comunitárias, centros ou mesmo conciliadores e mediadores extrajudiciais”54.

Nesse sentido, pode-se notar que o fato de o Judiciário estar aberto a analisar as demandas que lhes são propostas, não pode significar que seja a única porta de entrada ou mesmo a primeira ser utilizada, mas sim, ser utilizada de forma subsidiária, com a finalidade de evitar a sobrecarga do sistema e, desse modo, privilegiar a efetividade das decisões e a celeridade da prestação jurisdicional55.

Infere-se, portanto, que o sistema processual civil brasileiro passou por uma significativa mudança de cunho político, que culminou na edição do Novo Código de Processo Civil – NCPC (Lei nº 13.105/2015), que passou a adotar o modelo multiportas de resolução de conflitos56. Buscou o legislador conferir aos meios consensuais o caráter de igual dignidade enquanto mecanismo de pacificação social, não se restringindo à solução adjudicada pelo Poder Judiciário.

Os meios consensuais de resolução de divergências apresentam-se como alternativa à lentidão e inefetividade da justiça estatal, desde a segunda metade do século XX. De acordo com Mauro Cappelletti, os meios alternativos de resolução de conflitos seriam a resposta ao obstáculo processual do acesso à justiça, nos casos em que o processo litigioso tradicional não constituísse a forma mais efetiva de se reivindicar direitos57.

Em atenção ao fenômeno da desjudicialização58, e antes mesmo do CPC, o Conselho Nacional de Justiça havia editado a Resolução nº 125/2010, dispondo sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos, objetivando a resolução de conflitos de interesses, considerando sua natureza e particularidade, sendo este um importante marco, devido à implementação de uma política pública de Estado que prioriza a resolução consensual de controvérsias.

Segundo Klever Paulo Leal Filpo, além da Resolução nº 125/2010, a adoção dos mecanismos de solução consensual é incentivada pela Política Judiciária Nacional para a Saúde, relacionada ao tema da judicialização da saúde e as respostas institucionais do Poder Judiciário59.

Ainda segundo o autor, a proposta de trazer a mediação e a conciliação para os conflitos sanitários ganha força, em razão da promessa de melhor percepção do conflito e do encontro da solução mais adequada, pacífica e construída de forma democrática60.

Merece destaque o ponto suscitado pelo Maria Célia Delduqe e Eduardo Vasquez de Castro, citados por Klever Paulo Leal Filpo, quanto ao protagonismo do Poder Judiciário, uma vez que as soluções consensuais vêm se dando quase que exclusivamente no âmbito judicial, ao invés de serem resolvidas no âmbito da União, Estados ou Município, dentro de suas competências, o que não atende ao Sistema Único d Saúde nem ao próprio órgão julgador61.

Em sentido semelhante, Alexandre Silva e Gabriel Schulman esclarecem que o estabelecimento de uma solução consensual no âmbito do Poder Judiciário, não evita o

acionamento daquele que pretender se manter, ao menos inicialmente, à margem da discussão62. Considerando-se o novo cenário de privilégio à consensualidade como mecanismo de pacificação social, é importante destacar o aporte de recortes teóricos direcionados ao direito administrativo, com a finalidade de aproximá-lo ao modelo de administração pública consensual, em que há maior diálogo e participação dos cidadãos na tomada de decisões,

constituindo-se uma evolução do modelo gerencial63.

O novo modelo foca no aumento da participação dos cidadãos e no incentivo ao diálogo, ao invés de posturas unilaterais e conflituosas. A administração passa a fomentar mecanismos de maior participação, em um processo administrativo participativo, tais como: audiências e consultas públicas, acordos de leniência e compromisso de cessação de condutas, dentre outros64.

Não se pode admitir, sob o prisma de um Estado Democrático de Direito, a atuação de uma administração pública de caráter autoritário e unilateral. Ademais, a constitucionalização do direito administrativo, impõe um tratamento paritário o ente público e a outra parte da relação jurídica de direito público, visto que ambas estão sob o mesmo estatuto jurídico65.

Segundo Ravi Peixoto, a consensualidade adequa-se aos preceitos constitucionais, em especial ao princípio da eficiência, visto que a resolução de conflitos pela autocomposição é muito mais célere que pela via judicial. Além disso, destaca que no caso de reconhecimento do equívoco administrativo, haveria a restauração da legalidade mais eficiente, reforçando-se, ainda o princípio da legalidade e da eficiência, ambos dispostos pelo art. 37, caput, da CRFB/198866.

No entanto, é preciso desconstituir o mito de indisponibilidade do interesse público, fato que impede, de forma mais efetiva, a adesão por parte da Fazenda Pública à utilização dos meios consensuais de resolução de divergências. Com efeito, nem todo direito indisponível implica na impossibilidade de ser submetido à transação, uma vez que, em algumas hipóteses, sequer é questionado o fato de os direitos postos em jogo possuírem, ou não, natureza indisponível, p.e., o disposto pelo § 4º, do art. 334, do CPC, o qual menciona as hipóteses em que não será admitida

a autocomposição, não havendo qualquer menção à indisponibilidade dos direitos67.

De acordo com Ravi Peixoto, a doutrina propôs a classificação da indisponibilidade do interesse público em três modalidades: ‘a) indisponibilidade absoluta (irrenunciável, insuscetível de transação e de persecução processual obrigatória); b) indisponibilidade relativa (irrenunciável, suscetível de transação, mas de persecução processual obrigatória); c) disponibilidade limitada (irrenunciável, suscetível de transação e de persecução processual facultativa)’68.

Pode-se concluir, que o interesse público não se constitui óbice à utilização dos meios consensuais à solução de controvérsia. Pelo contrário, tais mecanismos mostram-se perfeitamente compatibilizados com os preceitos constitucionais que orientam a Administração Pública, ao permitir decisões mais dialógicas, céleres e efetivas.

Nota-se, no entanto, que um dos obstáculos à adoção dos meios consensuais de resolução de controvérsias reside na autorização legislativa para a prática da autocomposição pela administração, em observância ao princípio da legalidade (art. 37, caput, da CRFB/1988). Contudo, a legalidade administrativa deve ceder lugar à juridicidade administrativa, não ficando o administrador vinculado puramente às disposições legais, mas sim, a todo o ordenamento jurídico69.

Nesse sentido, ainda que não exista norma legal expressa, poderá o administrador agir, amparado no ordenamento jurídico, bem como em razão da constitucionalização do direito administrativo, devendo o agir administrativo dar efetividade às disposições da própria Constituição70.

A conformação do direito à saúde, no entanto, constitui variado motivo de conflitos. Não restam dúvidas que a judicialização excessiva do Sistema Único de Saúde – SUS, enquanto política pública, tem sido afetado os rumos do sistema desenhados pela Constituição de 1988 e pela Lei nº 8.080/199071.

O Poder Judiciário passa a atuar como uma outra principal via de acesso ao direito à saúde e, por decorrência de limitações da capacidade institucional e nuances inerentes à política pública de saúde, há de se reconhecer a existência de um espaço aberto para decisões

controversas, violadoras da universalidade e da igualdade no SUS72.

Assim, é importante reconhecer que a Administração Pública, numa perspectiva juridicizante, deve atuar de modo criativo a garantir o direito à saúde, sobretudo o fornecimento de leitos de UTI, em razão dos efeitos da pandemia de Covid-19, para os cidadãos brasileiros73.

Nesse cenário, falar em criatividade significa instituir procedimentos administrativos que permitam a utilização dos meios consensuais pela Fazenda Pública, bem como a avaliação e resolução de problemas resultantes da implementação da política pública para a proteção da saúde.

No caso de ações que envolvam a disponibilização de leitos de terapia intensiva para pacientes contaminados pela Codiv-19, em que a celeridade seria fator fundamental para definir a vida e a morte de pacientes, a efetividade de decisões construídas em conjunto pelos atores envolvidos, proporcionaria melhores resultados práticos.

Pode-se citar, exemplificando, a diminuição dos custos e aumento do número de decisões cumpridas. O envolvimento dos principais atores: médicos, gestores de unidades hospitalares, gestores públicos, defensores públicos, promotores de justiça, advogados e magistrados, bem como de membros da sociedade civil, permitem a construção de uma decisão justa, equânime e que considera as limitações do sistema74.

Assim, a utilização dos meios consensuais coaduna-se com a teoria de multiportas do acesso à justiça, por ter a sua disposição diversificadas formas de solucionar a controvérsia que lhe aflige, sem necessariamente, fazer uso do Poder Judiciário e, desse modo, pode a “judicialização voltar ao seu patamar de legítima e democrática, pois já não seria excessiva e nem prejudicial, uma vez que provavelmente só os casos que não fossem resolvidos através de métodos extrajudiciais de solução de conflitos é que seriam demandados no Judiciário”75.

3.   Conclusão

Pode-se concluir, a priori, que a utilização dos meios consensuais de resolução de conflitos adequa-se de melhor forma aos anseios sociais, visto que uma solução justa e célere pode ser obtida sem que seja necessária a submissão da demanda ao Poder Judiciário.

Nesse sentido, com vistas a efetivar um processo civil de resultados, destinado não

somente à resolução das controvérsias, mas principalmente à pacificação social, é necessário inserir novos mecanismos e aperfeiçoar os existentes, destinados a efetivar o interesse público, não controlado, exclusivamente, pelo Poder Judiciário.

O aumento das demandas relativas à saúde encontra fundamento nos gargalos então existentes (falta de insumos, medicamentos, especialistas, etc.), bem com pelas desigualdades na prestação dos serviços de saúde no país.

A solução perpassa pelo diálogo interinstitucional, de modo a equacionar a tutela ao direito assegurado pela Constituição e a disponibilidade de recursos, mas principalmente a participação dos cidadãos na tomada de decisão.

Desenvolve-se, assim, um novo modelo de atuação administrativa, tido como uma evolução do modelo gerencial, focado na participação dos cidadãos e no incentivo ao diálogo, ao invés de posturas unilaterais e conflituosas, coadunando-se com o Estado Democrático de Direito, pois a constitucionalização do direito administrativo, impõe um tratamento paritário entre o ente público e a outra parte da relação jurídica de direito público, visto que ambas estão sob o mesmo estatuto jurídico.

A consensualidade amplia e reforça a confiança do administrado nas instituições da administração pública, uma vez que as decisões são tomadas de forma conjunta e orientadas no sentido de melhor solucionar as questões propostas.

A participação e a consensualidade são balizas de atuação da administração pública para as democracias contemporâneas, pois contribuíram para aprimorar a governabilidade (eficiência); constituem-se de freios contra o abuso (legalidade); asseguram atenção a todos os interesses (justiça); proporcionam decisões mais sábias e prudentes (legitimidade); e tornaram- se comandos estatais mais aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem)76.

Por fim, a atuação consensual da Fazenda Pública, em um momento de aumento das demandas de saúde, muito em razão dos efeitos da pandemia de Covid-19, mostra-se mais que necessária, visto que o direito administrativo deve coadunar-se, no sentido de concretizar os preceitos constitucionais, em especial, assegurar o direito à saúde com caráter universal, igualitário e destinado a todos os cidadãos.

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Palavras Chaves

Direito à saúde; judicialização; Fazenda Pública; Covid-19; meios consensuais; resolução de conflitos;