A (IN)CONSTITUCIONALIDADE NO CERCEAMENTO DE LIBERDADE EM MATÉRIA DISCIPLINAR MILITAR

Resumo

Este artigo tem como foco principal A (in)constitucionalidade no cerceamento de liberdade em matéria disciplinar militar. O objetivo é realizar uma análise constitucional da materialização da persecução punitiva disciplinar nas Forças Armadas, em especial no Exército Brasileiro, abordando a temática concernente ao poder da Administração em promover o cerceamento de liberdade de seus jurisdicionados. Baseado na ideia de que o Exército é uma das Forças Armadas instituídas pelo art. 142 da CF/88, tem-se como norte a persecução punitiva disciplinar, ou seja, os critérios intrínsecos de legalidade e legitimidade existentes no alcançar do objetivo. O estudo se baseia fundamentalmente em um critério qualitativo, que migra entre a interpretação fenomenológica e a expressão analítica de conceitos e ideias, buscando sempre o confronto daquilo que se escreve com a norma propriamente dita. Parte ainda da colocação do prisma dos direitos e garantias fundamentais que marcam o substantivo de Constituição Cidadã dado à CRFB/88, tais quais os direitos ao devido processo legal, razoabilidade, contraditório e ampla defesa. No decorrer da pesquisa, percebem-se ainda as duas vertentes da persecução punitiva disciplinar dentro das Forças Armadas, em especial o Exército Brasileiro, quais sejam os efeitos de cunho educativo e repressivo, perpassando sobre sua influência para a coletividade, sem que sejam deixados de lado os critérios de legalidade e legitimidade para tanto. A análise do Direito Administrativo Militar dentro das possibilidades de efetivação das punições disciplinares por meio dos diversos tipos de processo de apuração e punição, tudo com o objetivo de analisar a atenção dispensada pelo legislador constituinte para a classe.

Artigo

A (IN)CONSTITUCIONALIDADE NO CERCEAMENTO DE LIBERDADE EM MATÉRIA DISCIPLINAR MILITAR

JOÃO VITOR FERREIRA MOREIRA SERRA[1]

  

RESUMO: 

Palavras chave: Exército Brasileiro. Militar. Prisão. Constitucional. Disciplinar.

 

Com a evolução da temática militar dentro do cenário nacional nos últimos anos, principalmente em decorrência de diversos episódios de emprego subsidiário das Forças Armadas em operações no território nacional, passar ao estudo de processos inerentes à própria rotina castrense ganha importância singular, dado o fato de que a compreensão da matéria está intrinsecamente ligada ao estudo de tais indivíduos.

Entretanto, todo estudo parte de pressupostos, e é fato de conhecimento geral de que nenhum estudo no âmbito do cenário jurídico nacional pode tomar critérios de legitimidade acadêmica e científica se, por algum acaso, violar ou até violentar matéria constitucional, haja vista a Constituição Federal de 1988 ser, dentro do ordenamento jurídico, o topo da pirâmide na hierarquia das leis, de onde decorre todo entendimento legislativo Pátrio.

Antes de partir para a análise dos processos propriamente ditos, é imprescindível entender a aplicação dos fundamentos constitucionais no tocante ao objeto estudado, partindo depois para uma análise da hierarquia e disciplina como essenciais para garantir a compreensão, finalizando com conceitos próprios da Administração Pública Militar, para que então possa ser dedicada atenção especial às transgressões disciplinares, fatos geradores dos cerceamentos de liberdade em matéria disciplinar militar.

E é nessa sequência cronológica que o presente artigo se firma, que paulatinamente trarão a figura do indivíduo estranho à profissão das armas e desconhecedor das normas específicas para o seio da vida militar, permitindo que a apreciação do tema seja feita na mais próxima visão do cenário próprio existente na matéria.

Quando confrontada com o paralelo das rotinas externas ao ambiente militar, importante compreender a sua análise do ponto de vista castrense, e a importância dos institutos correlatos no efeito repressivo e disciplinar do ambiente militar, sem olvidar dos conceitos analisados ao longo do estudo.

Sendo assim, antes de partir para a análise de seu objeto central, já delimitado como o cerceamento de liberdade em matéria disciplinar militar no âmbito do Exército Brasileiro, nada mais justo do que respeitar a pirâmide de Hans Kelsen[2] e, partindo de seu ápice, iniciar o estudo colocando como matéria prima a Constituição Federal de 1988, de onde deriva toda a legislação Pátria vigente.

Em linhas gerais, a Teoria Pura do Direito proposta pelo filósofo e jurista austríaco nascido no século XIX objetivava descrever e qualificar o Direito como uma ciência pura e exata, personificando a ciência jurídica no produto dela mesma, ou seja, nas normas positivadas propriamente ditas.

Sendo assim, é prudente realizar a análise partindo do macro para o micro, iniciando pelos princípios constitucionais que envolvem a carreira militar, e somente finalizando com a abordagem ao foco do estudo.

É primordial também compreender que não há ciência, seja ela social ou exata, que vigore sem a existência de princípios basilares para sua elaboração, sequer a Geometria Euclidiana teria prosperado sem estabelecer como princípios de seus estudos o ponto, a reta e o plano.

Miguel Reale[3] diz que:

Numa sequência quase que cronológica, o verbete constitucional já amarra, República Federativa do Brasil, e, por conseguinte, de seu próprio texto, quais sejam: a) a soberania; b) a cidadania; c) a dignidade da pessoa humana; d) os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e e) o pluralismo político.

Em tela, e conquanto à análise do cerceamento de liberdade em matéria disciplinar militar dentro de uma das instituições estabelecidas como permanentes pela Constituição Federal, latente observar o conceito de soberania, atinente à figura do Estado como parte no processo, e o conceito de dignidade da pessoa humana, quando abordarmos o polo passivo da mesma seara.

Jean Bodin[4], jurista e filósofo, teorizou em sua obra “Os Seis Livros da República” sobre o conceito jurídico-político de soberania, discorrendo sobre ela como o adjetivo atribuído ao indivíduo ou entidade que não conheça instância decisória superior à sua, não havendo discussão quando à esfera, interna ou externa, de tal instância decisória, semelhante ao que disse Nagib Slaibi Filho[5], “que a soberania se perfaz como o poder incontrastável do Estado, acima do qual nenhum outro poder se encontra”.

Já a dignidade da pessoa humana é onde incide a maior variável existente nos princípios básicos da Constituição de 1988, não por equívoco legislativo, mas por notadamente se tratar de um conceito que se molda e se reinventa ao longo do tempo.

O postulado universal da dignidade da pessoa humana, por sua natureza de constante evolução, encontra, até dentre os mais nobres e renomados cientistas jurídicos, uma dificuldade conceitual, o que não obsta definições como a de Ingo Sarlett[6]:

(…) por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humano (…).

Ou seja, mesmo com a necessidade de efetivação da soberania do Estado, que mais tarde virá a ser afirmada por meio do exercício do poder disciplinar, há que ser respeitada a dignidade da pessoa humana, bem como os princípios que decorrem na mesma, ou que, paralelamente, contribuem para sua garantia, como a necessidade do devido processo legal, e, no curso do mesmo, a prerrogativa para o exercício do contraditório e da ampla defesa.

Por devido processo legal se entende como uma forma de limitar e pautar a atuação estatal, de modo que, basicamente se instrumentaliza o princípio da legalidade, quando se entende como necessária a existência de um procedimento que justifique um ato administrativo, sob pena inclusive de nulidade.

Já para o contraditório e a ampla defesa, que agem como corolário e elemento constitutivo do direito de defesa, invoca-se o Direito Romano, em um brocado conhecido no ordenamento jurídico, do audiatur et altera pars, significado em latim para uma premissa fundamental do direito de defesa: que a outra parte também seja ouvida, expressão maior que traduz o direito de contradizer, no sentido mais gramatical da palavra de, pura e simplesmente, rebater ao que lhe foi dito, sobre o que lhe foi imputado.

Ao passo que o contraditório se perfaz na possibilidade do acusado rebater sobre o que lhe foi dito, a ampla defesa, com sua construção gramatical que remete a algo extenso e vasto, materializa quaisquer intentos de produção de argumentação e até matéria probatória, em favor do acusado, importando-se aqui o conhecimento do Professor Eugênio Pacelli de Oliveira[7] sobre a matéria:

É que, da perspectiva da teoria do processo, o contraditório não pode ir além da garantia de participação, isto é, a garantia de a parte poder impugnar – no processo penal, sobretudo a defesa – toda e qualquer alegação contrária a seu interesse, sem, todavia, maiores indagações acerca da concreta efetividade com que se exerce aludida impugnação.

É assim que, para Silva[8] é necessária a seguinte equação “o devido processo legal, combinado com o direito de acesso à justiça (art. 5º, XXV) e ao contraditório e a plenitude de defesa (art. 5º LV), fecha o ciclo das garantias processuais”.

Prudente entender que, se falamos sobre a dogmática constitucional, devemos tratar também sobre a previsão constitucional da prisão, ou seja, do cerceamento de liberdade propriamente dito.

Deve ser estabelecido o conceito de bem jurídico como toda coisa, em sua maioria das vezes metafísica, cuja tutela se dá dentro do organograma do Direito, como se estivéssemos falando de valores intrínsecos à própria existência humana, vigorando como um dos mais importantes bens jurídicos a liberdade.

Ao organizarmos e exemplificarmos os bens jurídicos tutelados pelo Direito, temos a leitura de que são bens jurídicos a vida, a liberdade, a propriedade, o casamento, a família, a honra, a saúde, enfim, todos os valores importantes para a sociedade, quase que numa construção de uma escala decrescente, sendo a tutela dos mesmos fundamental para a manutenção do contrato social.

Prisão, por sua vez, segundo Renato Brasileiro de Lima[9] é “compreendida como a privação da liberdade de locomoção, com o recolhimento da pessoa humana ao cárcere”.

Ademais, a sequência lógica do argumento de Renato Brasileiro explicita o inciso LXI do art. 5º da CF/88, que diz que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

De pronto, deve ser ressaltado que, ao dizer que “ninguém será preso”, o legislador busca, de forma explícita, dizer que o cerceamento de liberdade não pode ser tido como regra, mas sim como exceção, e, num segundo momento, quando aplica a ressalva para casos de transgressão militar, é onde de fato reside a natureza desta pesquisa, pois a exceção do cerceamento de liberdade que é aplicada ao procedimento judicial e à prisão em flagrante pode, em regime de exceção, ser aplicada ao Direito Administrativo Militar.

Começamos então a mergulhar mais na conceituação da matéria militar, analisando alguns dos elementos constantes do art. 142 da Constituição Federal, que definiu as Forças Armadas como “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina”

Coube à Lei 6.880/80, que aprovou o Estatuto dos Militares, dispor sobre os conceitos de hierarquia e disciplina, tendo os mesmos sido ainda abordados no Regulamento Disciplinar do Exército

Ademais, a própria história monta os conceitos relativos à hierarquia e à disciplina, sendo imprescindível pontuar aqueles que, de maneira fascinante, podem ser tidos como insuperáveis nesses quesitos, os espartanos, possuidores de uma coercitividade para a forja de guerreiros, sendo todos, dos sete aos sessenta anos de idade, submetidos a rigorosos e violentos treinamentos, pautados numa rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos e normas e disposições, característicos da sociedade espartana, onde roga-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos, na tradução literal do conceito constitucional de disciplina.

Em sede de hierarquia, a análise tem-se também a análise do conceito histórico, ainda que tenha se abrandado ao longo do tempo. Para tanto, basta remontar a realidade da antiguidade clássica grega de Pitágoras (século V a.C.), onde suas aulas funcionavam em extensos monólogos, sendo seus alunos submetidos à máxima de “ouvir o mestre e calar.”

Não obstante, a análise dos governos ao longo do tempo nos mostra que a hierarquia é o escalonamento vertical, sob a submissão a um superior, basta remodelarmos a figura de Luís XIV, o Rei Sol, expoente do absolutismo e da centralização de poder, com 72 anos de reinado na França entre os séculos XVII e XVIII.

Martins[10], ressalta a existência de um “plus”, com relação ao que se espera do militar no tocante a tais princípios, quando diz que “se em regra basta ao servidor público civil o rigoroso cumprimento de seus misteres, do servidor público militar espera-se um “plus”. Assim, além do estrito cumprimento de seus deveres há que o servidor refletir uma adesão psicológica ao ideário militar, ou uma vocação para a vida castrense (…)”.

Isso significa dizer que a adesão a esse ideário militar se dá tacitamente quando do ingresso na carreira das armas, e que perpassa o período chamado de “ativa”, alcançando o servidor público militar “inativo”, pois é algo incorporado ao ser humano.

Assim, a hierarquia e a disciplina figuram como a manifestação inequívoca da renúncia ao egoísmo, à indolência, aos caprichos e a tantas outras coisas, na maneira em que se manifestam na obediência e subordinação àquilo que dita a profissão das armas, quer sejam as normas, leis, regulamentos e dispositivos, como manifestação da disciplina; quer seja ao escalonamento vertical, à ordenação em postos e graduações existente, como manifestação da hierarquia.

Fruto da hierarquia e da disciplina, como elementos organizadores das Forças Armadas, nascem também as manifestações da Administração Militar que buscaram coibir a violação destes elementos.

E é nesse contexto que nasce a ideia da transgressão disciplinar como ilícito administrativo, observando a ideia de que ilicitude, para o ordenamento jurídico, é aquilo que viola o que está positivado, como um contraponto entre a norma em si e o fato praticado.

Em verdade, ilícito é a categoria jurídica ofertada aos atos que, em algum momento, se voltaram contra o ordenamento jurídico de qualquer natureza, é gênero de ato, e do qual decorrem diversas espécies, das quais diferenciaremos o ilícito administrativo do ilícito penal.

Daniel Ferreira[11], diz que o critério de distinção entre elas reside no específico regime jurídico a que se subordina a sanção correspondente. Sendo esta uma pena, configurará um delito a conduta efetivamente praticada; ao contrário, sendo sanção administrativa, uma anterior infração ter-lhe-á dado ensejo.

Por final, o Regulamento Disciplinar do Exército estabelece que transgressão disciplinar é “toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe.” Sendo seguida ainda por um rol taxativo de 113 (cento e treze) condutas tipificadas como transgressão disciplinar, com vistas ao princípio da legalidade, não podendo se amoldar ao conceito de transgressão disciplinar nenhuma conduta que não esteja prevista no RDE.

Reitera-se ainda que, mesmo em sede do exercício do poder disciplinar da Administração Pública Militar, não só vincula a autoridade militar à fiel observância dos princípios constitucionais estabelecidos dentre os direitos e garantias fundamentais, tais quais o contraditório e a ampla defesa e o devido processo legal, como também gera obrigatoriedade de apurar o fato, e, por ventura, punir o transgressor com a aplicação de uma sanção propriamente dita, dentro da esfera de preservação da hierarquia e da disciplina.

A sanção disciplinar, que doravante chamaremos puramente de punição disciplinar propriamente dita, é o exercício do poder disciplinar da Administração Pública para com os seus servidores, in casu também, o exercício do poder disciplinar e hierárquico do superior para com o seu subordinado.

Não obstante, o RDE dispõe ainda que “a punição disciplinar objetiva a preservação da disciplina e deve ter em vista o benefício educativo ao punido e à coletividade a que ele pertence”.

De tal leitura, percebe-se que podemos extrair as duas vertentes da punição disciplinar militar, qual seja o benefício educativo ao punido, objetivando por meio da sanção em si, modificar o comportamento do transgressor, para que não venha mais a cometer o ilícito administrativo.

Por outro lado, há que ser mencionado o objetivo disciplinador em sede de coletividade, também chamado de efeito repressor da punição, que busca justamente, por meio do exemplo da punição, reprimir a prática do ilícito administrativo dentro da esfera de um poder até certo ponto coercitivo.

Visualiza-se então que não cabe discricionariedade sobre a apuração ou não de um ilícito administrativo, dada a própria obrigação funcional da autoridade militar. Também não cabe nenhuma análise ou aplicação de sanção que não esteja prevista no RDE, em decorrência do próprio princípio da legalidade vinculado à Administração Pública Militar.

Em contrapartida, quando tratarmos da gradação e da análise da punição disciplinar, a figura do critério subjetivo existente na discricionariedade para o julgamento se dá na existência da lacuna legislativa, ou daquilo que o próprio Meirelles[12] dizia que “a rigor, a discricionariedade não se manifesta no ato em si, mas sim no poder de a Administração praticá-lo pela maneira e nas condições que repute mais convenientes ao interesse público”.

Para facilitar ao elemento julgador, o Regulamento Disciplinar do Exército narra ainda, nos arts. 16 a 20, as situações concernentes ao julgamento da transgressão disciplinar, aos elementos que devem preceder a análise da mesma, bem como das circunstancias atenuantes e agravantes.

Dentro do contexto da Administração Militar, é preciso compreender que punição disciplinar é gênero, gênero ao qual caberia ao próprio Regulamento Disciplinar do Exército pontuar, em rol taxativo, quais seriam as penalidades cabíveis, as espécies, de aplicação para que se alcançassem os objetivos estabelecidos no seu art. 23.

Relembrando que aqui trataremos das punições disciplinares que impõe ao autor da infração disciplinar o cerceamento de liberdade, devemos identifica-las no próprio normativo, quais sejam elas: a) o impedimento disciplinar; b) a detenção disciplinar; e c) a prisão disciplinar.

Numa sequência gradativa, tem-se que o impedimento disciplinar é “a obrigação de o transgressor não se afastar da Organização Militar (aquartelamento), sem prejuízo de qualquer serviço que lhe competir dentro da unidade em que serve”, pelo prazo máximo de dez dias.

A detenção, por sua vez, como um desenvolvimento do conceito do impedimento disciplinar, impõe ao punido que este permaneça no alojamento da subunidade a que pertencer ou em local que lhe for determinado pela autoridade que aplicar a punição disciplinar.

Ao final, a prisão disciplinar segue o regramento convencional, disciplinada no art. 29 como “a obrigação de o punido disciplinarmente permanecer em local próprio e designado para tal”. Se diferenciando das demais privações de liberdade quando colocada a esfera da privação de participação de atividades relativas à instrução e ao serviço militar, ou a ida ao local das refeições, que, em sede de impedimento e detenção, são permitidas ao punido, e aqui, na prisão disciplinar, não lhe são.

Ressalta-se ainda que para cada gradação de punição disciplinar só é cabível uma modalidade de cerceamento de liberdade, para as transgressões leves, o impedimento; para as médias, a detenção; e para as graves a prisão disciplinar.

Não se pode olvidar que, quando da análise de todas as nuances concernentes ao processo de apuração de transgressões disciplinares, até que se alcance uma eventual punição, é imperiosa a observância dos princípios constitucionais, com vistas ao caráter democrático da CF/88, sendo passível de nulidade e de eventual responsabilização a autoridade que aplicar punição disciplinar a subordinado sem que lhe sejam possibilitadas as armas processuais para tentar ou  garantir sua absolvição.

Há que ser lembrado que nesse momento não se aborda o controle de legalidade e legitimidade feito pela própria Administração Pública, nem tampouco dos recursos disciplinares e de reconsideração de ato dispostos no art. 52 do RDE.

Em sede de controle jurisdicional da Administração Pública, tratamos sobre a fiscalização e correção dos atos ilegais, como uma vertente de controle dos atos do ente estatal, para que se fundamente e viabilize a própria prática democrática do Estado de Direito, conforme Figueiredo[13], em artigo sobre o tema:

Verificamos, assim, que o controle jurisdicional é principio estuturante do Estado de Direito. A possibilidade de controle jurisdicional, como hoje se conhece, como influencia da Constituição Americana, sobretudo de Marshall, do judicial review, aparece na Constituição da República, 1891, e sobervive até agora. A possibilidade do controle jurisdicional é a mola propulsora do Estado de Direito.

Dentro da ideia da separação dos poderes, cabe ao Poder Judiciário o exercício do controle jurisdicional de forma monopolizada, inclusive em questões atinentes à Administração Pública, quando se tratar de questionamento ou indícios de medida autoritária, com características de abuso de poder ou mesmo vícios de legalidade.

Torna-se imperioso destacar que, justamente para que exista a harmonia entre os três Poderes, tal controle jurisdicional não é exercido de maneira ilimitada, restando uma certa restrição, em razão de matéria, quanto ao mérito do ato em si, principalmente quando tratarmos sobre o ato discricionário da Administração Pública.

A discricionariedade do ato administrativo, o que, segundo Meirelles[14]  é a oportunidade de que o administrador “decida sobre a conveniência de sua prática, escolhendo a melhor oportunidade e atendendo a todas as circunstancias que conduzam a atividade administrativa ao seu verdadeiro e único objetivo – o bem comum”, não pode, de maneira amparar em “desatender às imposições legais ou regulamentares que regram o ato e bitolam sua prática”.

Destarte, a compreensão de que, em que pese a discricionariedade, os requisitos de legalidade, e, para grande parte da doutrina, a própria razoabilidade e proporcionalidade na aplicação de uma sanção, podem vir a ser objetos de controle jurisdicional por parte do Poder Judiciário.

O parágrafo 1º do art. 35 do RDE por exemplo, é claro, ao dizer que “nenhuma punição disciplinar será imposta sem que ao transgressor sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, inclusive o direito de ser ouvido pela autoridade competente para aplicá-la, e sem estarem os fatos devidamente apurados”.

E aqui não existe espaço para argumentação. Violar direitos e garantias fundamentais preceituados na Constituição Federal e reforçados em sede de regulamento próprio não pode ser a maneira utilizada para que a autoridade militar busque a manutenção da disciplina objetivada pela punição disciplinar.

Por exemplo, a figura do remédio constitucional habeas corpus, que figurou pela primeira vez na legislação brasileira no Código de Processo Criminal de 1832, e, desde então buscou proteger, nos termos do seu art. 340, cujo texto permanece entendível na ideia de que se persiga a justiça, in verbis:

Art. 340 – Todo o cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade tem direito de pedir uma ordem de habeas corpus em seu favor.

E o confronto entre a própria norma constitucional, que não só reiterou como disse, sobre o remédio constitucional supra “Art. 5º LXVIII – conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”, e, logo adiante, no art. 142 § 2º, disse que “Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”.

A análise, em um primeiro momento, parece ser clara no sentido de que não seria cabível o manejo de habeas corpus para qualquer punição disciplinar que constranja o direito de liberdade do autor.

Em contrapartida, numa análise pormenorizada, primeiro deve ser evidenciado o emprego da figura de linguagem sempre, ao tratar que, todas as vezes que ocorresse abuso de poder ou ilegalidade que resultasse em ameaça à locomoção do indivíduo, seria cabível o manejo de habeas corpus.

Ao rememorarmos o objetivo do legislador constituinte ao vedar o cabimento da referida ação constitucional em sede de punição disciplinar militar, lembramo-nos de que ele o fez com o intuito de que o controle jurisdicional não interferisse nas decisões administrativas que objetivassem preservar a disciplina e a hierarquia, por serem as duas situações completamente particulares à própria vida castrense.

Por esta razão, restam as perguntas de como pensaria o legislador constituinte originário ao verificar a prática de ilegalidade ou abuso de poder em sede de punição disciplinar militar que cerceie a liberdade do agente? Como seria o controle da mesma?

Não é de hoje que a Suprema Corte, atuando na condição de garantidora da eficácia constitucional, firma o entendimento de que as punições disciplinares militares estariam sim sujeitas à análise do controle jurisdicional, desde que tal análise não se prendesse aos elementos do mérito administrativo, ao caráter discricionário e disciplinar da punição, mas sim aos critérios de legalidade da mesma, possuindo julgados que admitem o habeas corpus para perseguir os requisitos de legalidade do ato administrativo.

Passa a ser clara a compreensão de que é cabível o manejo de habeas corpus que verse sobre as características de legalidade do ato administrativo disciplinar que, por meio de punição, interfira na liberdade de locomoção do punido.

Tal compreensão decorre da própria concepção de um Estado Democrático de Direito e da origem do Direito Administrativo. Se o Direito Administrativo nasce como um ramo do ordenamento jurídico que, dentre demais atribuições, disciplinará sobre o poder do Estado, limitando o poder do outrora Estado totalitário e com plenitude de poderes, qual a lógica em atribuir uma característica de inquestionável a qualquer ato administrativo que seja?

Cabe também perceber que a análise admitida pelo Poder Judiciário de maneira alguma poderá adentrar nos quesitos de conveniência e discricionariedade da Administração Militar, bem como não é possível imaginar a figura do habeas corpus para punições disciplinares que não interfiram na liberdade de locomoção, entendimento esse que chegou a ser sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, por intermédio da Súmula nº 694, in verbis: “não cabe habeas corpus contra a imposição da pena de exclusão de militar ou de perda de patente ou de função pública”.

Isso pela própria natureza da ação constitucional de habeas corpus, que objetiva primordialmente o direito de ir e vir de seu paciente.

Ao final, resta concluirmos com a certeza de que não só é cabível o manejo de habeas corpus para controle jurisdicional de matéria de direito em relação a punição disciplinar que interfira no direito de locomoção, como resta materializada a compreensão de que o controle jurisdicional em sede de punição disciplinar militar, se dará na atenção e observância aos critérios de legalidade e legitimidade do ato, sem que caiba ao Judiciário qualquer interferência nas obrigações específicas da Administração Pública, já que assim o são outorgadas pela própria Constituição Federal.

ABREU, Jorge Luis Nogueira de. Manual de Direito Disciplinar Militar. Ed. 22. Curitiba: Juruá, 2015.

ASSIS, Jorge Cesar de. Curso de Direito Administrativo Militar. Ed. 5. Curitiba: Juruá, 2018.

BODIN, Jean. Les Six Livres de la République. (1576). Paris, Fayard, 1986.

BRASIL. Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002. Aprova o Regulamento Disciplinar do Exército (R-4) e dá outras providências. Presidência da República: Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4346.htm>. Acesso em: 14 mar 2020.

BRASIL. Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Presidência da República: Brasília,1980. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm>. Acesso em: 14 dez 2021.

FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Vol. 1 Ed. 2. Rio de Janeiro: Impetus, 2012.

MARTINS, Eliezer Pereira. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua processualidade. São Paulo: Editora de Direito Ltda, 1996.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2002.

OLIVEIRA, Eugenio Pacelli. Curso de Processo Penal. Ed. 17. São Paulo: Atlas, 2013.

ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Processo Administrativo Disciplinar Militar. Ed. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009

SLAIBI FILHO, Nagib. Anotações à Constituição de 1988 (Aspectos Fundamentais). Ed. 4. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

Notas:

[1] 1º Tenente do Exército Brasileiro. 1º Colocado do Curso de Formação de Oficiais da Reserva do 24º BIS de 2016.  Bacharel em Direito pela Universidade CEUMA. Pós-graduado em Direito Militar pela Universidade Cândido Mendes. Foi Membro Consultivo da Comissão de Direito Militar da OAB/MA (2019-22). Chefe e fundador do Núcleo de Apoio para Assuntos Jurídicos do 24º Batalhão de Infantaria de Selva.

[2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

[3] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p 37.

[4] BODIN, Jean. Les Six Livres de la République. (1576). Paris, Fayard, 1986.

[5] SLAIBI FILHO, Nagib. Anotações à Constituição de 1988 (Aspectos Fundamentais). Ed. 4. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

[6] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009

[7] OLIVEIRA, Eugenio Pacelli. Curso de Processo Penal. Ed. 17. São Paulo: Atlas, 2013.

[8] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

[9] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. Vol. 1 Ed. 2. Rio de Janeiro: Impetus, 2012.

[10] MARTINS, Eliezer Pereira. Direito Administrativo Disciplinar Militar e sua processualidade. São Paulo: Editora de Direito Ltda, 1996.

[11] FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001.

[12] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004.

[13] FIGUEIREDO, Lúcia Vale. O Controle Jurisdicional da Administração Pública. Vol. 1. Salvador: Revista Diálogo Jurídico, 2001.

[14] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2004.

Palavras Chaves

Exército Brasileiro. Militar. Prisão. Constitucional. Disciplinar.