A MEDIAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONTORNOS ATUAIS

Artigo

A MEDIAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO:  EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONTORNOS ATUAIS

Humberto Dalla Bernadina de Pinho1

De um modo geral, as primeiras notícias do uso da conciliação em nosso ordenamento datam das Ordenações Filipinas. Nesse diploma havia a menção à tentativa conciliatória prévia à propositura da demanda2.
Essa ideia acabou por inspirar a Constituição do Império de 1824, que estabelecia uma etapa de conciliação preliminar, de competência dos juízes de paz3, e o Decreto n. 737 de 18504.
Em 1890, já na República, a prática foi extinta, por meio do Decreto n. 359, considerando que ela havia se tornado inútil. Como relata Michele Paumgartten, após esse Decreto, muitos Estados mantiveram a conciliação, geralmente confiada à Justiça de Paz5, mas com caráter meramente facultativo.
O tema ganhou novo fôlego no âmbito trabalhista. A Consolidação das Leis do Trabalho estruturou as chamadas Juntas de Conciliação e Julgamento, posteriormente reformuladas como varas do trabalho pela EC 24/99. Em 2000, a Lei n. 9.958 instituiu as comissões de conciliação, com o fito de que a tentativa conciliatória prévia passasse a ser obrigatória em qualquer demanda trabalhista, inserindo o art. 625-D na CLT. Alguns anos mais tarde, o STF suspendeu cautelarmente o dispositivo, no que se refere ao caráter obrigatório da medida6, por considerá-lo incompatível com a Constituição.

No CPC/73, houve a previsão da audiência preliminar, no art. 331, dispositivo esse que passou por alterações, primeiro pela Lei n. 8.952/94 e, posteriormente, pela Lei n. 10.444/2002. A conciliação novamente ganhou força com a Lei n. 7.244/84 (antigo Juizado Especial de Pequenas Causas), que, em seu art. 2º, estabelecia que se deveria buscar, sempre que possível, a conciliação.
Posteriormente, a Constituição previu, no art. 98, I, a criação dos Juizados Especiais, os quais seriam competentes para conciliar em causas de menor complexidade. Em 1994, com a edição da Lei n. 8.952, alterou-se o CPC/73 para incluir a conciliação entre os deveres do juiz e inseri-la como uma das finalidades da audiência preliminar. Nesse percurso, vale destacar a Semana da Conciliação, estimulada pelo Conselho Nacional de Justiça e realizada anualmente, em todos os tribunais brasileiros. Os resultados são publicados no site do CNJ, o qual mantém estatísticas de acordos realizados7.
Por sua vez, o CPC prevê e regula o instituto da conciliação em diversos dispositivos. Os mais relevantes são os arts. 139, V, 165, § 2º, 334, 359 e 487, III, que serão explorados ao longo desta obra.
Especificamente em relação à mediação, o esforço do legislador em positivá-la é mais recente. A primeira tentativa foi o Projeto de Lei n. 4.827/98, proposto pela Deputada Zulaiê Cobra, que trazia uma regulamentação concisa, estabelecendo a definição de mediação e elencando algumas disposições a respeito. Contudo, o PL acabou arquivado após oito anos de tramitação acidentada.
Já em 2010, com um maior amadurecimento dos debates sobre a matéria, o Conselho Nacional de Justiça, implementando, de forma definitiva, o denominado sistema multiportas, editou a Resolução n. 125.
O art. 1º dessa Resolução, com redação determinada pela Resolução n° 326/2020, institui uma Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade, explicitando, ainda, em seu parágrafo único, aos órgãos judiciários incumbe, nos termos do art. 334 do CPC, combinado com o art. 27 da Lei de Mediação), antes da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão8.
Nesse diapasão, em 2011, o Senador Ricardo Ferraço apresentou o Projeto de Lei n. 517/2011, voltado a regulamentar a mediação judicial e a extrajudicial, em harmonia com a Resolução n. 125 do CNJ. Posteriormente, apensaram-se ao PLS n. 517 mais duas iniciativas legislativas: o PLS n. 405/2013, fruto do trabalho realizado por Comissão instituída pelo Senado, e presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, e o PLS n. 434/2013, fruto de Comissão instituída pelo CNJ e pelo Ministério da Justiça, presidida pelos Ministros Nancy Andrighi e Marco Buzzi, ambos do STJ, e pelo Secretário da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, Flavio Croce Caetano. Foram convocadas audiências públicas para que os três projetos fossem discutidos, debatendo-se algumas questões controvertidas. Em 2013, o Senador Vital do Rego, relator, apresentou um Substitutivo ao PLS n. 517/2011 com o objetivo de congregar o que havia de melhor nas três iniciativas. O substitutivo foi aprovado e remetido à Câmara, onde foi autuado como Projeto
de Lei n. 7.169/2014. Nesse mesmo ano, os deputados realizaram audiências públicas e um Substitutivo foi apresentado pelo Deputado Sergio Zveiter, relator da matéria na CCJ.
O texto foi consolidado, aprovado e devolvido ao Senado em março de 2015, para apreciação das alterações feitas no processo legislativo. Em junho, o projeto foi aprovado na casa iniciadora do PL, sem modificações. Sancionado pela Presidente da República, converteu-se na Lei n. 13.140/2015, sem vetos9.

No CPC vigente, é possível identificar a atenção da Comissão de Juristas em valorizar os meios adequados de solução de controvérsias, criando-se, inclusive, uma seção específica (arts. 165 a 175). Trata-se de conduta imperiosa para efetivar a razoável duração do processo prometida constitucionalmente (art. 5º, LXXVIII, da CF).

No capítulo inicial, intitulado “Das Normas Fundamentais do Processo Civil”, o Código faz uma releitura do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 3º), determinando que não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. E, como visto, estabelece que é dever do Estado promover a solução consensual dos conflitos, devendo a conciliação, mediação e outros métodos serem estimulados pelos juízes, advogados, defensores públicos e membros do parquet (art. 3º, § 2º).
Com efeito, o CPC se preocupou com a atividade de conciliação e de mediação realizada judicialmente, sem prejuízo da possibilidade de esses mecanismos serem utilizados previamente ao processo ou, ainda, de outros meios de solução de conflitos escolhidos pelos interessados (art. 175).
Tratados sob a rubrica de “auxiliares da justiça”, os conciliadores e mediadores devem auxiliar o juiz na tarefa de estímulo à autocomposição (art. 139, V, do CPC). Em reforço ao previsto na Resolução n. 125/2010 do CNJ, o art. 165, repisando o que já se encontrava nela, determina que os Tribunais “criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos10, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação, e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição”.
Destaque-se, no ponto, a importância de a atividade ser conduzida por mediador profissional, imparcial e equidistante do conflito. Em outras palavras, a função de mediar não deve, como regra, ser acumulada por outros profissionais, como juízes, promotores e defensores públicos. O CPC prestigia esse entendimento.
Idealmente, a audiência preliminar deveria ser conduzida sempre por um auxiliar do magistrado, de forma a garantir sua imparcialidade, até mesmo para que os juízes não levem em consideração fatos expostos na sessão de conciliação/mediação, nem mesmo sejam inconscientemente influenciados por provas eventualmente materializadas na oportunidade, por exemplo, uma confissão.
Em certas hipóteses, não se pode negar que a audiência de conciliação terá que ser conduzida pelo juiz. Por exemplo, nos casos de tutelas de urgência em atividade de justificação prévia, ou nos casos envolvendo hipossuficientes, nos quais seja necessário o contato imediato do julgador com as partes.
Entretanto, mesmo nesse ponto, é possível que a participação do magistrado se restrinja a decidir sobre a medida urgente ou a verificar eventual hipossuficiência, devendo, em seguida, ser substituído pelo conciliador ou mediador imparciais, de acordo com o conflito sob análise.
Vale lembrar que, na sistemática do CPC, a audiência preliminar (art. 334) ocorrerá logo após o recebimento da inicial, se não for o caso de improcedência liminar do pedido (art. 332), sendo certo que o prazo da contestação só começará a fluir a partir da última sessão de conciliação/mediação frustrada (art. 335, I).
De forma didática, o Código, em seu art. 165, §§ 2º e 3º, faz uma diferenciação expressa entre as figuras da conciliação e da mediação. Os critérios são a postura do terceiro e o tipo de conflito.
Assim, pelos preceitos do Código, o conciliador pode sugerir soluções para o litígio. O mecanismo é o mais adequado para os conflitos puramente patrimoniais, como uma batida de carro, por exemplo, ou mesmo uma discussão sobre cobranças bancárias indevidas.
Mesmo sendo possível sugerir propostas para composição, o ideal é que as próprias partes cheguem a um consenso, de modo a reforçar a consciência da importância da autocomposição.
Por sua vez, o mediador, em seu mister, deve auxiliar as pessoas em conflito a conscientizar-se das vantagens de alternativas de benefício mútuo. É a forma mais indicada para as hipóteses em que se deseje preservar ou restaurar vínculos (por exemplo, conflitos familiares, societários, de vizinhança etc.), ou seja, aquelas situações em que o relacionamento entre as partes interfere diretamente na pretensão formulada em juízo.
Sobre o profissional que exerce a função, o CPC prestigiou o entendimento de que qualquer profissional pode ser mediador, não havendo exclusividade para advogados ou psicólogos11. Além disso, caso o mediador seja advogado, o § 5º do art. 167 o impede de atuar nos juízos em que desempenhe sua função – no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, tal entendimento já era aplicado aos conciliadores, os quais são impedidos de  exercer a advocacia nos Juizados que atuem na qualidade de conciliadores12.
Vale destacar que o CNJ, em sua Resolução 125, Anexo III, editou o Código de  Ética dos Conciliadores e Mediadores, que deverá ser observado nas conciliações e mediações, sejam elas judiciais ou extrajudiciais. O objetivo foi “assegurar o desenvolvimento da Política Pública de tratamento adequado dos conflitos e a qualidade dos serviços da conciliação e mediação enquanto instrumentos efetivos de pacificação social e de prevenção de litígios”13.
Voltando ao CPC, o art. 166 trata dos princípios que informam a conciliação e a mediação. São eles:
i) independência;
ii) imparcialidade;
iii) autonomia da vontade;
iv) confidencialidade;
v) oralidade;
vi) informalidade; e
vii) decisão informada. Todos eles serão esmiuçados no Capítulo 4.

Os §§ 1º e 2º do art. 166 trazem preocupação específica com a confidencialidade.
Por sua vez, o art. 173 determina que a violação, por parte do conciliador ou mediador, de qualquer dos deveres previstos nos dispositivos suprarreferidos terá como consequência a sua exclusão do cadastro.

O art. 167 trata dos cadastros – nacional e local – de conciliadores e mediadores, e do registro de profissionais habilitados, com indicação de sua área profissional e especialização.
O registro deverá trazer as informações sobre a performance do profissional, indicando, especialmente, o número de causas em que atuou, seu grau de sucesso14 na atividade e os ramos do direito sobre os quais versou o conflito. Esses dados serão publicados periodicamente e sistematizados para fins de estatística.
De acordo com o art. 168, as partes “podem escolher, de comum acordo, o conciliador, o mediador ou a câmara privada de conciliação e de mediação”, podendo ser agentes públicos ou privados. Ou seja, mesmo que se trate de uma mediação judicial, assegura-se a escolha às partes interessadas, podendo ser selecionado profissional previamente cadastrado no Tribunal ou não15.Cada Tribunal deverá ter o seu próprio cadastro. Desse modo, se um profissional quiser atuar em vários Tribunais – por exemplo, em Tribunais de Justiça de dois Estados, ou em mais de um ramo do judiciário (estadual e federal) –, deverá estar cadastrado em ambos.
Se as partes não entrarem em acordo acerca do profissional, o magistrado indicará um profissional que já esteja regularmente inscrito no âmbito daquela Corte, a partir de um sistema de livre distribuição, como estabelece o art. 168, § 2º, do CPC.
Acerca dos requisitos para exercer as funções de mediador extrajudicial, o art. 9º da Lei n. 13.140/2015 dispõe que os mediadores extrajudiciais não necessitam demonstrar qualquer formação específica, bastando que sejam capazes e gozem da confiança das partes – sendo a confiança, como se sabe, pilar básico para o sucesso do procedimento de mediação16.
Quanto aos mediadores judiciais, o art. 11 da mesma Lei estabelece dois requisitos:

i) ser graduado há pelo menos dois anos em curso de ensino superior de
instituição reconhecida pelo Ministério da Educação; e

ii) ter obtido capacitação em escola ou instituição de formação de
mediadores, reconhecida pela Escola Nacional de Formação de Magistrados (ENFAM)
ou pelos Tribunais.

No que tange à remuneração de mediadores e conciliadores judiciais, o art. 169 do CPC estabelece que esta deve observar a tabela vigente em cada Tribunal, observados os parâmetros definidos pelo Conselho Nacional de Justiça. Assegura-se, contudo, a possibilidade de trabalho voluntário, que, na prática, é o que ocorre hoje na maioria das Cortes do país.
Cabe destacar que a Resolução nº 271/2018 do CNJ17 fixou os parâmetros de remuneração a serem pagos aos conciliadores e mediadores judiciais, nos termos do disposto no art. 169 do Código de Processo Civil e no art. 13 da Lei de Mediação.
O art. 1º dessa Resolução determina que os valores a serem pagos pelos serviços de mediação judicial são os fixados por cada tribunal, conforme parâmetros sugeridos na bela constante do anexo da Resolução18, ressalvada a hipótese de tribunais que tenham quadro próprio de conciliadores e mediadores judiciais admitidos mediante concurso público de provas e títulos.
O art. 2° prevê que cada mediador deverá indicar sua expectativa de remuneração, por patamares, quando de sua inscrição no Cadastro Nacional de Mediadores Judiciais e Conciliadores. Tais patamares, na forma do parágrafo primeiro desse dispositivos, relativos às faixas de autoatribuição, podem ser:
I – voluntário;
II – básico (nível de remuneração 1);
III – intermediário (nível de remuneração 2);
IV – avançado (nível de remuneração 3); e
V – extraordinário.

Ainda de acordo com o § 3º, o custeio desses parâmetros será suportado pelas partes a título de remuneração de mediadores judiciais. Contudo, cada Tribunal, nos termos do art. 13 da Lei de Mediação, pode aumentar ou reduzir os valores para atender à realidade local.
Ademais, os §§ 4° e 5° estabelecem que o valor referente à remuneração do mediador judicial deverá ser recolhida pelas partes, preferencialmente em frações iguais, de modo antecipado, diretamente na conta corrente por ele indicada, seguindo estimativa apresentada na primeira sessão de mediação19. Já o art. 170 do CPC dispõe que, aos mediadores e conciliadores auxiliares do
juízo, podem ser aplicadas as hipóteses de impedimento. Embora o art. 170 mencione expressamente apenas o impedimento, cremos que podem ser aplicáveis também os casos
de suspeição, previstos no art. 145 do Código. Ocorrendo qualquer dos dois, o profissional deve comunicar o fato para fins de nova distribuição.
O art. 171, por sua vez, estabelece uma forma de afastamento específica para mediadores e conciliadores, chamada “impossibilidade temporária”. Tal hipótese pode ser aventada, por exemplo, quando o profissional estiver com uma sobrecarga de procedimentos.
No art. 172 do CPC, em linha com o art. 6º da Lei de Mediação, estabelece-se a chamada quarentena. Por essa regra, impede-se que o profissional atue nas atividades de assessoramento, de representação ou de patrocínio de qualquer das partes envolvidas pelo prazo de um ano, contado do término da última audiência de conciliação ou sessão de mediação.
Qualquer contato prévio eventualmente existente com uma das partes (o conciliador, por exemplo, prestou assessoria a uma delas durante determinado período no passado) deve ser comunicado ao Centro e à outra parte, para avaliar se a situação configura hipótese de impedimento ou suspeição, na forma dos arts. 144 e 145 do CPC20. Tal dispositivo é voltado para os profissionais que atuam na seara judicial. Logo, nada impede que se convencionem regras mais brandas ou mais severas no campo extrajudicial. Por exemplo, o regimento interno de determinada câmara de mediação pode conter a vedação absoluta a que um profissional que já advogou para uma das  partes seja mediador de processo que envolva essa mesma parte, pela existência de conflito de interesses.
Cabe registrar que a Lei n. 13.140/2015, em seu art. 7º, ainda aumenta as restrições impostas ao mediador, impedindo a participação em arbitragem de profissional que tenha atuado no conflito como mediador. Registre-se que aqui não há nem sequer prazo, simplesmente vedação absoluta.
Ademais, fica o mediador proibido de funcionar como testemunha, tanto em processos judiciais como arbitrais relativos ao mesmo conflito.
O art. 173 do CPC trata das sanções aplicáveis aos conciliadores e mediadores. A penalidade mais gravosa é a de exclusão do cadastro, que deverá ser precedida de regular procedimento administrativo, caso se verifique que o profissional:

i) venha a agir com dolo ou culpa na condução da conciliação ou da mediação
sob sua responsabilidade, ou violar qualquer dos deveres decorrentes do art. 166, §§ 1º e
2º; ou

ii) atue em procedimento de mediação ou conciliação, apesar de impedido ou
suspeito.

Se a conduta não for de tanta gravidade, o juiz da causa ou o juiz coordenador do
centro de conciliação e mediação pode determinar o seu afastamento por período de até
180 dias.
Finalmente, o art. 174 autoriza a atividade consensual envolvendo a Fazenda Pública, nos níveis federal, estadual e distrital, e municipal. Para plena aplicabilidade do dispositivo, será preciso lei específica de cada ente federado.
O CPC traz duas hipóteses: i) questões que envolvam a administração pública (incisos I e II); e ii) questões coletivas que possam ser objeto de termo de ajustamento de conduta.
Quanto ao uso dos meios consensuais pela administração pública, impende salientar que a previsão não é inédita, mas teve seu campo de incidência ampliado no CPC. Eles já eram previstos no âmbito dos Juizados Especiais Federais (Lei n. 10.259/2001), bem como na Lei dos Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei n. 12.153/2009).
Na esfera federal, a legislação básica sobre transações é a Lei n. 9.469/97, que admite transação sem diferenciar ou restringir a matéria, para os litígios que envolvem a União ou outro ente federal. Essa norma está regulamentada por diversas Portarias da Advocacia-Geral da União e seus órgãos vinculados.
Interessante notar, também, que o uso da mediação pelo Poder Público já é uma realidade hoje, como se pode aferir pela Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF)21, prevista no art. 18 do Decreto n. 7.392/2010. Essa  Câmara, que atualmente tem atuação em diversos casos de alta relevância, propõe-se a  mediar casos complexos e que envolvam entes da administração pública, em iniciativa  absolutamente pioneira e exitosa. A segunda hipótese diz respeito ao termo de ajustamento de conduta, pelas Câmaras de Mediação e de Conciliação ligadas aos entes públicos. Essa ferramenta foi colocada na Lei n. 7.347/85 pelo CDC, em 1990, e inseriu o § 6º no art. 5º, prevendo a celebração de “ajustes de conduta” em todos os temas que podem ser objeto de ação civil pública, a saber, meio ambiente, patrimônio cultural, histórico e paisagístico, ordem econômica, defesa do consumidor, entre outros.
Em seguida, outras Leis fizeram referência expressa ao instituto: Estatuto da  Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90, art. 211), Lei do CADE (Lei n. 8.884/94, art. 53, posteriormente alterada pela Lei n. 12.519/2011, arts. 9º, V, e 85), Lei ambiental (Lei n. 9.605/98, art. 79-A) e Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003, art. 74, X). A Lei de Mediação, seguindo esse mesmo caminho, em seus arts. 33 a 40, traz normas específicas para a utilização das técnicas de conciliação e mediação nos conflitos que envolvam a administração pública e seus órgãos, bem como na utilização da ferramenta do termo de ajustamento de conduta.  Além desses Diplomas, temos que registrar ainda a Lei n° 13.964/2019 que alterou  a redação do art. 17, § 1° da Lei de Improbidade Administrativa a fim de inserir o “acordo  de não persecução cível” bem como a Lei n° 13.988/20 que expandiu as hipóteses de transação envolvendo a Administração Pública, inclusive na modalidade “por adesão”, prevista genericamente no art. 35 da Lei n° 13.140/2015. Por fim, uma última nota sobre a mediação eletrônica.
A Lei n. 11.419/2006 (Lei do Processo Eletrônico) regula a comunicação e a prática de inúmeros atos processuais (citações, intimações, notificações etc.) de forma eletrônica, estimulando a criação de Diários da Justiça eletrônicos (art. 4º) e também sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais pelos tribunais (art. 8º).
No plano processual especificamente, o CPC positivou a prática de atos processuais eletrônicos (arts. 193 a 199), inclusive por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real (art. 236, § 3º). As citações e intimações também devem ser feitas preferencialmente por meio eletrônico (arts. 232, 246, V e § 1º, 270, 272 e 275).
Na mesma linha, o CPC permite que a audiência de conciliação ou de mediação seja realizada por meio eletrônico (art. 334, § 7º), em consonância com o art. 46 da Lei de Mediação22.
Sem dúvida, ao estabelecer que a mediação pode ser feita pela internet ou por outro meio de comunicação a distância, a lei especial maximiza as oportunidades de construção do consenso e otimiza a própria prestação jurisdicional.
Além disso, o procedimento on-line impulsionou o surgimento de plataformas digitais de resolução de conflitos e câmaras privadas de mediação/conciliação23, que, há algum tempo, já vêm oferecendo serviços nessa área e fomentando a mediação digital.
Nesse sentido, importante lembrar que o Decreto n° 10.197, de 2 de janeiro de 2020, alterou o Decreto nº 8.573, de 19 de novembro de 2015, para estabelecer o Consumidor.gov.br como plataforma oficial da administração pública federal direta, autárquica e fundacional para a autocomposição nas controvérsias em relações de consumo. Desse modo, todos os demais órgãos que possuam plataformas próprias devem migrar para a Consumidor.gov.br até o dia 31 de dezembro de 2020.
Nessa esteira, a Lei n° 13.994/2020 alterou os arts. 22 e 23 da Lei n° 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais). Pela nova redação, o antigo parágrafo único do art. 22 foi convertido em § 1°, tendo sido acrescido o § 2°, com a seguinte redação: “é cabível a conciliação não presencial conduzida pelo Juizado mediante o emprego dos recursos tecnológicos disponíveis de transmissão de sons e imagens em tempo real, devendo o resultado da tentativa de conciliação ser reduzido a escrito com os anexos pertinentes”.
Ademais, o art. 23 teve sua redação ampliada. Na versão original constava: “não comparecendo o demandado, o juiz togado proferirá sentença. Agora, a redação passa a ser a seguinte: “Se o demandado não comparecer ou recusar-se a participar da tentativa de conciliação não presencial, o Juiz togado proferirá sentença”.
Percebe-se, do exame das duas alterações, que o legislador, de um lado, flexibilizou o texto para permitir audiências de conciliação em ambiente virtual e de outro expandiu a sanção, que antes era reservada ao não comparecimento físico e agora abrange, também, a recusa de interagir no ambiente virtual. A Lei n° 13.994 é mais uma iniciativa surgida no contexto do uso potencial das
plataformas digitais para realização de audiências de conciliação e sessões de mediação nos durante o período de confinamento e redução de mobilidade em razão da pandemia de Covid-19
Tendo em vista impossibilidade do acesso físico aos Tribunais, espera-se um aumento exponencial no uso dessas plataformas. Mesmo com as restrições apontadas acima, no sentido de que – sobretudo em questões mais sensíveis – a ausência do ambiente presencial e do contato físico podem reduzir as chances do sucesso do procedimento, a tendência, ao menos nesse momento excepcional, parece irreversível.
Nesse sentido, o TJRJ, como já mencionado, editou ato normativo24 autorizando  a realização de sessões de mediação por meio de sistema de videoconferência nas varas de família da Comarca da Capital, durante a vigência do estado de emergência oriundo da pandemia.

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Tania et alli. Mediação de Conflitos: para iniciantes, praticantes e docentes,
Salvador: Juspodvm, 2016.

PAUMGARTTEN, Michele Pedrosa. Novo Processo Civil Brasileiro – Métodos Adequados de Resolução de Conflitos – Função Judicial – Negociação – Conciliação – Mediação – Arbitragem – Conforme o Novo Código de Processo Civil – Lei 13.105 de
16.03.2015, Curitiba: Juruá, 2015.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. A releitura do princípio do acesso à justiça e o necessário redimensionamento da intervenção judicial na resolução dos conflitos na contemporaneidade. Revista Jurídica Luso-Brasileira, vol. 3, p. 791/830, 2019, disponível em https://www.cidp.pt/publicacao/revista-juridica-lusobrasileira-ano-5-2019-n-3/189.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Acordos em Litígios Coletivos: Limites e Possibilidades do Consenso em Direitos Transindividuais após o Advento do CPC/2015 e da Lei de Mediação. Revista Eletrônica de Direito Processual, v.19, p.118 – 148, 2018.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Audiência de conciliação ou de mediação: o art.334 do CPC/2015 e a nova sistemática do acordo judicial, in LUCON, Paulo Henrique dos Santos et alli. Processo em Jornadas, Juspodvm: Salvador, 2016, pp. 445/453.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. HALE, Durval. CABRAL, Trícia. [organizadores]. O Marco Legal da Mediação no Brasil, São Paulo: Atlas, 2015.

24 Ato Normativo Conjunto TJ/CGJ n° 08/20. Disponível em www.tjrj.jus.br, acesso em 15 de abril de
2020.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Jurisdição e Pacificação, Paraná: CRV, 2017. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Manual de Direito Processual Civil Contemporâneo, 2ª edição, São Paulo: SaraivaJur, 2020.

PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. MAZZOLA, Marcelo. Manual de Mediação e Arbitragem, Saraivajur: São Paulo, 2019.

SALOMÃO, Luis Felipe. ROCHA, Caio. Arbitragem e Mediação – a reforma da legislação brasileira, São Paulo: Atlas, 2015.

Notas de Rodapé: 

1 Professor Titular de Direito Processual Civil na UERJ, na Estácio e no IBMEC. Tem graduação, mestrado  e doutorado na UERJ. Pós-doutor pela University of Connecticut School of Law, instituição na qual é também Professor Visitante. Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e Assessor Internacional do Procurador-Geral de Justiça. Professor Emérito da Escola do Ministério Público do Rio de Janeiro. Editor da Revista Eletrônica de Direito Processual (REDP) e Coordenador do Grupo de Pesquisa Observatório da Mediação e da Arbitragem (CNPQ).

2 Ordenações Filipinas, Livro 3º, Título 20, § 1º (Disponível em:
<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm>. Acesso em: 13 fev. 2016).

3 Como se pode aferir da leitura do art. 161: “Do Poder Judicial: sem se fazer constar, que se tem intentadoo meio da reconciliação, não se começará processo algum” (Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em: 10 jan. 2018).

4 O art. 23 do Decreto n. 737/1850 trazia norma no sentido de que não se deveria admitir causa comercialproposta perante o juízo contencioso, como regra, sem que fosse tentada a conciliação (Disponível em:<www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Historicos/DIM/DIM737.htm>. Acesso em: 10 jan. 2018).

5 PAUMGARTTEN, 2015, p. 45.

6 ADI 2.160 MC, rel. Min. Octavio Galloti, rel. para acórdão Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 23-
10-2009.

7 Informações disponíveis no site do CNJ (<http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacaomediacao/
semana-nacional-de-conciliacao/resultados>). Acesso em: 20 out. 2016.

8 Texto disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3366, acesso em 10 de julho de 2020.
9 SALOMÃO, 2015, p. 9.

10 Para Chistopher Moore os resultados possívels de um conflito são os seguintes: a) perda ou ganho; b)impasse; c) meio-termo; e d) ganho e ganho. O resultado será (a) perda ou ganho quando, seguindo acorrente tradicional, a solução do conflito se der por uma completa satisfação dos interesses de um dosagentes e, por conseguinte, completa frustração dos interesses do outro. Se, posto que não cheguem aoponto de equilíbrio, os agentes celebrarem um acordo, tem- se o (b) impasse; se as partes modificarem seusobjetivos ou mesmo esistirem de um interesse em benefício do outro, chega-se ao (c) meio-termo. Oesultado (d) ganho e ganho será alcançado quando todos os agentes almejarem a satisfação de todos os interesses envolvidos. MOORE, 1986, p. 73.

11. Sobre esse ponto, é importante destacar que, na primeira versão do PLS n. 166/2010, era
imprescindível que o mediador fosse inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, o que acaboupor ser suprimido na versão final do Código (art. 137, § 1º).

12 REsp 380.176, rel. Min. Franciulli Netto, j. em 23-6-2003. Nesse mesmo sentido, assim se posicionou o Conselho Federal da OAB: Recurso 0188/2002/PCA0BA, rel. Conselheiro Julio Alcino de Oliveira Neto (PE), j. em 14-10-2002.

13 O Anexo III foi incluído por meio da Emenda n. 1, de 31 de janeiro de 2013.

14 Não custa lembrar que o sucesso não é aferido apenas pela realização do acordo. Na verdade, é preciso atentar para toda a atividade desenvolvida, que poderá, por exemplo, melhorar a qualidade da convivência entre as partes ou mesmo reabrir um canal de comunicação há muito fechado. Nesse sentido, veja-se o Enunciado FPPC n. 625: “O sucesso ou insucesso da mediação ou da conciliação não deve ser apurado apenas em função da celebração de acordo”.

15 Enunciado ENFAM n. 59: “O conciliador ou mediador não cadastrado no tribunal, escolhido na formado § 1º do art. 168 do CPC/2015, deverá preencher o requisito de capacitação mínima previsto no § 1º do art. 167”.

16 Enunciado CJF n. 47: “A menção à capacitação do mediador extrajudicial, prevista no art. 9º da Lei n. 13.140/2015, indica que ele deve ter experiência, vocação, confiança dos envolvidos e aptidão para mediar, bem como conhecimento dos fundamentos da mediação, não bastando formação em outras áreas do saber que guardem relação com o mérito do conflito”.

17 Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2780, acesso em 12 de março de 2019.

18 A referida tabela pode ser encontrada em https://atos.cnj.jus.br/files/resolucao_271_11122018_12122018115214.pdf. Observe-se que os valores a serem pagos por hora variam de acordo com os 4 patamares indicados no texto da Resolução, entre um piso de sessenta Reais até um teto de hum mil duzentos e cinquenta Reais por hora, ressalvada a hipótese do patamar extraordinário, no qual o valor da hora e negociado pelas partes diretamente com o mediador, independentemente do valor da causa.

19 Art. 3º da Resolução nº 271/18: Nas demandas com valor inferior a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), após a primeira sessão de apresentação de mediação e anuência das partes quanto à continuidade da autocomposição, será devido ao mediador o pagamento mínimo de 5 (cinco) horas de mediação, a ser preferencialmente antecipado, de forma proporcional, pelas partes. § 1º Após a assinatura do Termo de Mediação, as partes deverão recolher o valor equivalente a dez horas de atuação, ressalvados o direito à  restituição de saldo devedor, se houver, ao final do procedimento autocompositivo, e a obrigatoriedade de complementação do depósito inicial, na hipótese de a mediação ultrapassar as dez horas inicialmente previstas. § 2º Nas demandas acima de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), será garantido ao mediador o pagamento de, no mínimo, vinte horas de atuação, cujo valor, sujeito à complementação ao longo do procedimento, será antecipado pelas partes. § 3º Na hipótese de atuação no patamar extraordinário, mediador judicial e partes deverão negociar, conjuntamente, a forma da remuneração. § 4º O mediador judicial fará jus ao recebimento das horas mínimas somente se houver a realização de uma sessão de mediação após a apresentação do procedimento de mediação. § 5º Ao final da mediação, o mediador deverá
encaminhar às partes, juntamente com recibo ou nota fiscal de serviços, relatório das horas mediadas, contendo data, local e duração das sessões de mediação. Art. 4º No caso de desistência da mediação poruma das partes após a sessão de apresentação e antes da primeira reunião, o mediador deverá restituir integralmente o valor depositado.

20 Essa figura se assimilaria ao disclosure, instituto utilizado nas arbitragens, consubstanciado no dever de revelação por parte dos árbitros antes da aceitação da função. Conforme assevera Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, “não é necessária prova da parcialidade. Basta a dúvida ou o perigo concreto de que a condutados árbitros tenha tratado uma das partes de modo menos favorável que a outra” (2013. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/>).

21 “inegável que a instituição da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) resulta em um enorme avanço na busca de superação da cultura do litígio no país. A cultura da judicialização dos conflitos, que é fruto da necessária universalização do acesso à Justiça, não pode ser reforçada pela administração pública”. TOFFOLI, 2016, pp. 229-240.

22 “Art. 46. A mediação poderá ser feita pela internet ou por outro meio de comunicação que permita a transação à distância, desde que as partes estejam de acordo. Parágrafo único. É facultado à partedomiciliada no exterior submeter-se à mediação segundo as regras estabelecidas nesta Lei.”

23 Cite-se, por exemplo, a “Mediação Online” (www.mediacaonline.com), a “Concilie Online”
(concilie.com.br), a “Resolv Já” (https://www.resolvja.net.br/), entre outros. Todo o procedimento é
realizado remotamente, a distância, desde o início das negociações até a concretização do acordo, da mesma forma que na mediação presencial, o acordo homologado pode ter natureza de título executivo extrajudicial (art. 784, III e IV, do CPC).

24 Ato Normativo Conjunto TJ/CGJ n° 08/20. Disponível em www.tjrj.jus.br, acesso em 15 de abril de
2020