CORES DE UMA TRAJETÓRIA INSTITUCIONAL: OS PAPÉIS DA ATUAÇÃO POLÍTICA UNIVERSITÁRIA E O MOVIMENTO LGBTQIA+

Resumo

Este artigo tem dois objetivos principais. O primeiro é o de apontar a importância política da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro para a história do Brasil, situando a instituição em debates importantes do cenário nacional. O segundo é o de apresentar as discussões mais atuais ligadas a pautas do movimento LGBTQIA+, demonstrando recentes decisões judiciais que reconheceram direitos historicamente negados aos membros desta comunidade. O que se busca é avaliar a trajetória percorrida pela FND enquanto instituição, traçando uma espécie de memória sobre sua atuação política, para que, sob uma perspectiva prospectiva, analise-se em que medida pode haver maior participação da Faculdade na luta pelos direitos civis tipicamente reivindicados pelo grupo minorizado em questão. Assim, o que se propõe, ao final, é demonstrar que possíveis novos caminhos podem ser tomados para suprir necessidades sociais latentes.

Artigo

CORES DE UMA TRAJETÓRIA INSTITUCIONAL: OS PAPÉIS DA ATUAÇÃO POLÍTICA UNIVERSITÁRIA E O MOVIMENTO LGBTQIA+

 

David Igor Rehfeld[1]

Bernardo Camargo Burlamaqui[2]

RESUMO: Este artigo tem dois objetivos principais. O primeiro é o de apontar a importância política da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro para a história do Brasil, situando a instituição em debates importantes do cenário nacional. O segundo é o de apresentar as discussões mais atuais ligadas a pautas do movimento LGBTQIA+, demonstrando recentes decisões judiciais que reconheceram direitos historicamente negados aos membros desta comunidade. O que se busca é avaliar a trajetória percorrida pela FND enquanto instituição, traçando uma espécie de memória sobre sua atuação política, para que, sob uma perspectiva prospectiva, analise-se em que medida pode haver maior participação da Faculdade na luta pelos direitos civis tipicamente reivindicados pelo grupo minorizado em questão. Assim, o que se propõe, ao final, é demonstrar que possíveis novos caminhos podem ser tomados para suprir necessidades sociais latentes.

 PALAVRAS-CHAVE: Faculdade Nacional de Direito. Movimento LGBTQIA+. Centro Acadêmico Cândido de Oliveira.

  1. INTRODUÇÃO

 A Faculdade Nacional de Direito completa, em 2021, 130 anos. Configurando-se como uma das primeiras, e até hoje uma das mais importantes, instituições de ensino do Brasil, a FND não apenas integra a Universidade Federal do Rio de Janeiro, como se constitui como uma de suas bases fundadoras, de modo que não causa estranheza o destaque, a nível nacional, que ganhou um dos espaços de gestação de grandes nomes da elite brasileira.

Centro de efervescência e movimentação política, a Nacional, como chamada carinhosamente por aqueles que circulam por seus corredores, formou personalidades atuantes de grande peso cultural, diplomático, político e, obviamente, jurídico, para a história do Brasil, sempre possuindo expoentes entre seus corpos discente e docente.

É nesse sentido que se mostra de grande valor o resgate histórico da Faculdade enquanto instituição e, além, enquanto agente político ao longo dos anos. Daí porque se tratará sobre a movimentação que ajudou a marcar os rumos do País, cabendo, para tal, o resgate de sua trajetória, com especial ênfase nos períodos do Estado Novo, da Ditadura Civil-Militar e da Redemocratização fundada pela Constituição de 1988 até os dias atuais.

Após, e de modo autônomo, serão abordadas conquistas de outro movimento social, que tradicionalmente escapava ao espaço universitário, o da luta pelos direitos da Comunidade LGBTQIA+. O que se pretende é apresentar as recentes conquistas deste grupo, para que se inicie o debate sobre a possibilidade de a FND, enquanto ser político que é –e que sempre foi-, participar substancialmente dessa movimentação, em favor de um grupo minorizado que cada vez tem se mostrado mais importante ao cenário nacional.

 

  1. A FACULDADE NACIONAL DE DIREITO COMO ATOR POLÍTICO NACIONAL

 A criação das Universidades no Brasil, diferentemente do que ocorreu em outras Nações, teve origem na necessidade de preencher um vazio ligado a costumes de cunho diplomático[3]. Apesar disso, cada vez mais esses espaços se consagraram como instituições de Estado responsáveis pela universalização do conhecimento, e marcadas, para atingir esse fim, pela pesquisa, voltada à criação de saberes acadêmicos, e pelo ensino, voltado à transmissão desses saberes.

É natural, assim, que as Universidades Públicas se constituam como espaços tipicamente importantes ao desenvolvimento histórico, social e político do País, já que voltadas à produção e à difusão do conhecimento científico, aspectos cada vez mais conectados a questões de cidadania. Nesse sentido é que se avalia essas instituições como grandes cultivadoras do que se chama, aqui, de cultura política universitária, a saber, a prática recorrente de contribuir com debates sociais dos mais diversos matizes, lançando mão do conhecimento acadêmico para solucionar questões que se apresentam do lado de fora dos muros da Universidade.

Tendo isso em conta, analisando-se a postura institucional da Faculdade Nacional de Direito, nota-se a forte presença dessa cultura no âmbito de suas discussões e ações, que permeiam toda a trajetória política brasileira.

Como uma das Faculdades fundadoras da antiga Universidade do Brasil[4], atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, a FND se inseriu na esfera nacional como importante ator de influência política, sobretudo pelo peso intelectual dos juristas que circulavam pelos seus corredores e pela capacidade de mobilização de seus alunos. E não tardou, por óbvio, para que pautas sociais passassem a integrar, conjuntamente, o âmbito universitário, as vias institucionais dos Poderes da República, e a rua.

 

2.1. Estado Novo

 Os anos 1930 foram marcados por uma verdadeira efervescência política no Brasil. Diversos agentes, de campos tradicionalmente apartados, reuniram-se a fim de romper com um regime consolidado, segmentando setores da elite nacional. O meio universitário, sobretudo no que tange aos espaços ligados às ciências humanas e às ciências sociais aplicadas, não escapou do fenômeno de demarcada oposição, entre integralistas e nacionalistas, que se observava no cenário político.

No caso da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como não existia, ainda, uma Faculdade de Filosofia[5], considerava-se a Faculdade de Direito como casa de intelectuais, já que o direito ocupava a função de centro de debates sociais. E muitas das intensas discussões políticas e culturais que se apresentavam pelo País acabaram por influenciar a Faculdade de Direito, inclusive em seu âmbito interno.

Organizados, estudantes e professores montavam iniciativas das mais variadas, que iam da elaboração de revistas e periódicos especializados até a criação de novos arranjos institucionais internos (MOREL, 2015, p. 300-301), todas transmitindo ao meio acadêmico as ideias aventadas nos bancos da política.

As disputas internas e os intensos debates políticos e culturais acabaram por se potencializar no âmbito da Faculdade de Direito com a implantação, por Getúlio Vargas, do regime do Estado Novo, que tinha como uma de suas principais diretrizes a criação de uma cultura nacional, o que acabava por acentuar a importância da educação ao Governo Federal[6], bem como, por outro lado, a repressão a intelectuais atuantes no campo da esquerda[7], havendo por consequência certo protagonismo da Faculdade de Direito em relação a manifestações contrárias à forma como o País estava sendo guiado.

Nesta época a Faculdade de Direito foi palco de intensa mobilização, debates políticos e muitas corridas de polícia, em meio ao turbilhão de acontecimentos políticos relevantes, como a Constituinte de 1934, que aprovaria leis trabalhistas e a criação da Justiça do Trabalho, a Revolta Comunista de 1935, o Estado Novo de 10 de novembro de 1937… Em decorrência do golpe, quatro professores foram presos e levados para bordo do navio Pedro II, dentre os quais Castro Rebelo, Leônidas Resende e Hermes Lima. (MOREL, 2015, p. 301)

Professores e alunos tiveram sua articulação enfrentada como um inimigo pelo Governo. Não por outro motivo, o CACO – Centro Acadêmico Cândido de Oliveira ilustrava bem a situação das iniciativas discentes da época, estando os estudantes divididos entre Centro e Diretório, em virtude da Reforma do Ensino de 1931 (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 26), ficando esse segundo responsável pela representação política do alunado, esvaziando-se a carga simbólica do primeiro.

A resistência sempre se fez presente entre os corredores da Faculdade Nacional de Direito. Vozes de alto alcance, e costumeiramente dissonantes, sempre partiram de suas salas de aula. O momento político era tão atípico, entretanto, que não apenas discursos da esquerda foram silenciados.

Por sua grande diversidade, nem todos os representantes políticos dos corpos docente e discente da FND eram comunistas ou socialistas. Ainda assim, dadas as circunstâncias, essas movimentações também foram significativamente reprimidas[8].

Isto porque, ainda que houvesse franca oposição entre membros do corpo discente, que se posicionavam em distintos pontos do espectro político, “[n]a faculdade era unânime o posicionamento contra a ditadura”, (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 45), restringindo-se as discussões entre grupos de oposição, de direita e esquerda, a questões internas[9].

É nesse cenário em que o CACO se firma como um dos signatários da fundação da UNE – União Nacional dos Estudantes, em 1937, por meio do Diretório Acadêmico, que somente passa a reintegrar o Centro Acadêmico em 1943 (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 42). Instituições organizadas como o CACO e a UNE passam, em seguida, a ser importantes agentes de manifestação contra o Governo Varguista, em especial no que se refere à situação do Brasil diante da Segunda Guerra Mundial[10].

Amplo espaço de debates, a faculdade de Direito da Universidade do Brasil encontrava-se tolhida, mas jamais diminuída. Qualquer que fossem as medidas de opressão adotadas pelo Governo, maiores eram as reações de professores e alunos que, organizados, não se deixavam calar.

E, em outros momentos históricos da política brasileira, não poderia ter sido diferente.

2.2. Ditadura Militar

 De 1964 a 1985, período em que o Brasil viveu intenso regime ditatorial militar, muitos foram os mecanismos criados para assegurar a ordem vigente. Dentre eles, é notória a perseguição daqueles que se organizavam politicamente no âmbito universitário, não importando se alunos ou professores.

Sendo uma das Faculdades de Direito de maior influência a título nacional, a FND se apresentou como referência em se tratando de resistência à opressão e ao autoritarismo militares, o que se supõe previsível se levada em consideração a atmosfera de mobilização que marcava a instituição[11]. E isto se demonstrou desde o primeiro dia de golpe.

Nesse sentido, vale destaque o depoimento de Técio Lins e Silva, “importante militante do CACO na época da resistência contra a ditadura militar” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 235), que relata como os alunos da FND sentiram os efeitos da repressão já nos primeiros momentos do regime militar.

Nós fizemos uma barricada de mesas de professores e carteiras ali no hall da escadaria, apagamos as luzes e ficamos escondidos no Salão Nobre. Dali nós tínhamos a visão dos carros transitando. Haviam incendiado a UNE e constava um boato que o Comando de caça aos Comunistas (CCC), um grupo de extrema-direita atuante, queria atear fogo no CACO. (…) O dia primeiro de abril foi mais assustador e dramático, porque o governo já tinha caído, o golpe já estava instalado. A partir dali o IPM do CACO foi instaurado contra os estudantes. Se você fazia um discurso qualquer em uma turma, meia hora depois recebia uma intimação do coronel para depor. Era intimidação mesmo e ainda tinha a prática da delação. Havia agentes da polícia disfarçados entre os alunos. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 237).[12]

O movimento estudantil foi fortemente combatido pelos militares, de modo que as instituições que reuniam estudantes organizados foram apequenadas ou postas à margem da ação política. A União Nacional dos Estudantes sofreu com a atuação direta estatal, sobretudo pelo amplo apoio que prestava à campanha pelas reformas de base (ARAUJO, 2007, p. 147), bem como entidades acadêmicas de todas as Universidades do Brasil.

A UNE é o principal alvo da repressão desde os primeiros momentos [d]o golpe militar. Na madrugada de 31 de março, enquanto os estudantes resistiam no interior do CACO, sua sede amanhece em chamas, e em 9 de novembro a entidade é posta na ilegalidade pela Lei Suplicy de Lacerda. Extinta a UNE, todas as instâncias de representação estudantil ficariam submetidas ao MEC, tal era o teor da Lei Suplicy, que suprimia os centros acadêmicos, entidades livres, transformando-os em diretórios acadêmicos submetidos a uma regulamentação estrita. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 161).[13]

Nos mesmos moldes de estrutura do Estado Novo, quando o CACO foi dividido entre centro e diretório acadêmicos, um movimento de articulação cresceu entre o corpo discente da FND, criando-se a iniciativa do CACO-Livre[14], esta sim ligada à representação dos estudantes da Faculdade, que se opunha ao que se denominava de CACO-Oficial[15], entidade comandada, à época, por membros da Aliança Libertadora Acadêmica (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 162).

E mesmo após realizada essa divisão, o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, agente político de projeção nacional já naquele momento, não escapou da repressão militar. Pelo contrário, os ditadores e seus subordinados enxergavam o CACO como um alvo, como um inimigo a ser combatido, diante de sua resistência ao regime instaurado[16]. Assim, seus dirigentes foram perseguidos e ele foi formalmente fechado em 1969, no auge da ditadura, tendo sua reabertura se dado apenas em 1978 (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 162), obrigando que seus integrantes atuassem na clandestinidade.

Inúmeras foram as contribuições, diretas e indiretas, do CACO para que o regime ditatorial fosse derrubado. Dessas movimentações, diversas foram, também, as consequências para os estudantes que integravam a entidade. Perseguição e cassação de direitos políticos, exílio, prisão. Essas foram apenas algumas das ferramentas usadas pelos militares para tentar impedir as articulações de um dos maiores Centros Acadêmicos do país. Não foram suficientes, entretanto, já que a instituição teve importante papel político, em diversos episódios[17]. Neste texto, não há como tratar de todos eles, mas se faz de destaque a contribuição do CA para um dos mais notáveis eventos do período, a passeata dos cem mil.

Segundo Vladimir Palmeira, eleito Presidente do CACO em 1966, as lutas internas da Universidade acabavam por ter impactos externos. Pautas ligadas à liberdade dos estudantes entre as paredes da Faculdade e à busca por verbas destinadas à educação superior acabavam por servir como base a outras reivindicações, que não se restringiam ao alunado da FND (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 201).

Em resposta à ocupação da Reitoria da UFRJ por parte de alguns alunos, por exemplo, a polícia, instruída pelo governo militar, deu sinais de que se utilizaria de meios violentos para dispersar o local. Apesar de haver acordo entre os corpos docente e discente para uma saída pacífica, a polícia indicava que iria retirar os estudantes à força. Este episódio, marcado por tiros, violência física e humilhações de diferentes ordens, (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 202), acabou por repercutir consideravelmente na sociedade, sobretudo no meio estudantil, sendo seguido por nova manifestação, tendo sido o evento conhecido como Sexta-Feira Sangrenta.

Como nós já sabíamos que ia haver problema, marcamos uma passeata na sexta-feira às 8 horas da manhã. Coisa que a gente nunca tinha feito. (…) Essa foi a Sexta-Feira Sangrenta, que foi quando teve uma revolta popular no Centro do Rio de Janeiro e o povo tomou conta. Nós íamos para casa e o povo continuou brigando até tarde. Disso saiu os ‘Cem Mil’. (…) Na sexta-feira Sangrenta, avisamos que íamos fazer outra passeata na sexta-feira seguinte ou na segunda. Criou-se um clima tenso, porque estava óbvio que a passeata seria terrível. Depois de muita negociação fizemos um panfleto. O Negrão de Lima, governador da Guanabara, foi para a televisão permitir a nossa manifestação. Ia ser um negócio de proporções dramáticas, então o governo permitiu e, claro, não haveria cem mil pessoas na rua se o governo não tivesse permitido. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 202)

Sabe-se que a Passeata dos Cem Mil, que “foi inteiramente pacífica e não encontrou repressão policial (…) também o ponto máximo da mobilização estudantil.” (ARAUJO, 2007, p. 180), foi resultado de diversas variáveis. E que, ainda que tenha sido fundamental para a derrubada do governo, não foi um elemento único ou isolado, já que se registra a importância de diversos grupos de pressão, nacionais e internacionais, ligados à matizes ideológicos não apenas políticos, mas também econômicos e sociais, bem como o impacto de episódios específicos[18] para tal. Não é leviano, entretanto, afirmar que a organização dos estudantes da Faculdade Nacional de Direito foi ponto chave na resistência à ditadura militar.

O que se percebe, ainda, é que a articulação entre os alunos se deu mais fortemente. Mas isso não se deve ao fato de que os estudantes se opunham mais aos militares do que os professores. Em verdade, o que se observa é que a perseguição se fazia mais simples em relação a este último grupo, já que, por serem servidores públicos, seu controle pelo governo autoritário era mais facilitado.

Não é de se espantar, nesse sentido, a imensa quantidade de mestres que não possuíam estabilidade no cargo, já que apenas preenchiam a vaga de substitutos, em detrimento da de efetivos. Ocorre que este foi um período extremamente obscuro não apenas para a Faculdade Nacional de Direito, mas para toda a Universidade Federal do Rio de Janeiro e para tantas outras Universidades do país.

Ressaltamos que a principal legislação autoritária, criada pelo general presidente Artur da Costa e Silva (1967-1969) como mecanismo de coerção da vida universitária foi o Decreto-lei n. 477, de fevereiro de 1969, notadamente conhecido como ‘AI-5 das universidades’. Professores, estudantes e técnico-administrativos acusados de subversão ao regime eram punidos com a expulsão da universidade sem o direito de retorno a qualquer outro estabelecimento de ensino por um determinado período. Na prática, visava inibir a produção intelectual de uma geração de acadêmicos considerados pela ditadura como comunistas. (QUEIROZ, 2021, p. 189)

Muitos foram os profissionais aposentados compulsoriamente pelo Ato Institucional n. 5, para que a Universidade não se constituísse como ambiente de pensamentos contrários ao regime. A UFRJ viu seu quadro diminuir consideravelmente, já que 45 profissionais de magistério superior foram sumariamente expurgados da Universidade (QUEIROZ, 2021, p. 188). Na FND, nomes como Evaristo de Moraes, Porto Carreiro, Heleno Fragoso e Pontes de Miranda emergem nesse sentido[19].

O que ocorreu, em síntese, foi o rápido aparelhamento da Faculdade Nacional de Direito no que se refere ao corpo docente. Professores que por algum motivo se destacaram na oposição ao governo deram espaço a indivíduos desqualificados e sem competência para o ensino ou para a pesquisa, resultando na completa deterioração universitária[20].

Merece destaque, enfim, a evidente atuação política de resistência à ditadura que teve a Faculdade Nacional de Direito, concretizada de maneira firme em todas as suas categorias, cada uma à sua maneira e de acordo com suas limitações.

Professores, alunos e servidores; todos os grupos tiveram aqueles que fizeram coro aos ideais democráticos e que sofreram consequências por isso. A FND não se manteve inerte e se consagrou de vez como importante agente político, apenas cimentando o que sua história já indicava.

2.3. Estado Democrático de Direito

Durante os primeiros anos da década de 1980, o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, bem como o corpo discente da Faculdade Nacional de Direito de um modo geral, voltou seus olhares a questões internas da Universidade. Em 1987, porém, a FND retornou a ganhar destaque em termos de política nacional, por diversas manifestações contrárias a figuras que se opuseram francamente aos movimentos das Diretas já (FGV CPDOC).

E ainda no início da década de 1990, forte foi a participação dos alunos da Faculdade Nacional de Direito no que se refere “às manifestações generalizadas no país em favor do impeachment do presidente da República Fernando Collor de Mello, afastado do cargo” (FGV CPDOC). Nesse sentido, vale destaque a participação de Lindbergh Farias, Presidente da UNE (ARAUJO, 2007, p. 257), que integrou o CACO quando cursava direito na FND.

O forte posicionamento dos estudantes se manteve ao longo dos anos 1990 e 2000, sempre marcado pela intensa atuação intra e extramuros, servindo em muitas ocasiões como amparo a pautas difusas de grupos sociais organizados que seguem resistindo em busca da efetivação de seus direitos.

Nos anos 2010, a participação da FND na agenda política nacional se deu de modo ainda mais expressivo. Em 2013, no período que já se faz conhecido como Jornadas de Junho, o posicionamento de estudantes e de professores da Faculdade Nacional de Direito foi de extrema importância à mobilização de distintos movimentos sociais, tendo sido utilizado, além de tudo, o próprio espaço físico da Faculdade como abrigo a manifestantes que se refugiaram diante da violência policial. A ação de muitos desses integrantes dos corpos discente e docente, inclusive, foi materializada de modo bastante direto, uma vez que até como advogados de protestantes alguns indivíduos atuaram.

A articulação que mais chama a atenção nesses anos mais recentes, entretanto, se dá entre os anos de 2016 e 2018, marcados pelo golpe sofrido por Dilma Rousseff, pelo curto, mas desastroso governo de Michel Temer, e pelas eleições presidenciais que levaram Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto.

Já reestruturada e imensamente recuperada da precariedade em que foi atirada pelos anos de chumbo, as Universidades Públicas Brasileiras se viram novamente valorizadas de um jeito que há muito não se concebia. Essas melhorias, marcadamente ocorridas durante os dois mandatos de governo Lula, acabaram por robustecer a atuação política da FND, em especial no que tange a seu corpo docente, mais qualificado, mais comprometido com valores sociais, democráticos e republicanos, e, por óbvio, mais livres para exprimir suas opiniões.

Nessa esteira é que se observou intensa mobilização no ano de 2016, quando coletâneas literárias chegaram a ser lançadas no Salão Nobre da Faculdade contando com a presença de importantes autoridades, inclusive com a dos dois ex-Presidentes petistas. A apresentação de uma delas ilustra bem como os professores passaram a adotar uma postura combativa em defesa do Estado Democrático de Direito e da ordem constitucional vigente.

[D]esde que tiveram início as tratativas vergonhosas, os acordos espúrios e os golpes covardes, já no final de 2014, nós fomos capazes de imediatamente voltar a fazer aquilo que sempre fizemos muito bem: organização e luta política, sem esquecermos que traumas existem para serem superados. Temos sido capazes de construir narrativas e argumentos, sabemos que estamos do lado correto, e mantivemos a capacidade de mobilizar multidões.

Esse livro inscreve-se nessa luta política. (CITTADINO, 2016, p. 5-6)

O que se indica é uma tendência que cada vez mais tem sido comprovada. Em 2016, muitas foram as manifestações acadêmicas, dentro da Faculdade, e populares, nas ruas junto aos movimentos sociais, contrárias ao impeachment de Dilma Rousseff. Em 2017, essas movimentações continuaram sendo marco especial a discussão que se deu em torno da Emenda Constitucional de Teto dos Gastos Públicos. Em 2018, às vésperas do pleito eleitoral, a Faculdade Nacional de Direito se somou ao movimento Ele não como importante agente de mobilização.

Observa-se a intensa veia política da FND, contemplada e alimentada por todos que por entre suas paredes circulam, estudantes e professores. Do Estado Novo, passando pela Ditadura Militar, e chegando aos dias atuais em que se enxerga ameaças ao Estado Democrático de Direito, é evidente que a Faculdade Nacional de Direito é palco e escada para muitos dos acontecimentos de alta importância para o cenário político brasileiro.

 

  1. AVANÇOS DO MOVIMENTO LGBTQIA+ NO ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL VIGENTE

A luta das minorias sexuais e de gênero pelo respeito às suas individualidades e particularidades, em diversos âmbitos e aspectos, têm obtido resultados paradigmáticos no Brasil, notadamente nos anos posteriores à redemocratização do país. A Constituição brasileira de 1988, ao trazer em seu artigo 3º, dentre os objetivos fundamentais da República, a necessidade de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação[21], consagra o direito fundamental e humano à não-discriminação, ratificando o ideal libertário almejado por décadas de ativismo e luta de diversos setores sociais configurados como o que se convencionou chamar de minorias.

Apesar de não estar explicitado em seu texto o termo orientação sexual, a norma exige interpretação analógica, para que se possa extrair o seu real sentido, mediante os próprios elementos fornecidos por ela. Ao utilizar a fórmula genérica quaisquer outras formas de discriminação, entende-se a necessidade eminente de garantia de direitos aos setores LGBT.

Com base nessa hermenêutica e em uma interpretação sistemática do texto constitucional e do ordenamento jurídico, foram possíveis as conquistas de diversos direitos ao longo dos últimos anos pela população LGBT. Chama-se atenção, entretanto, ao fato de as mais significativas partirem do Poder Judiciário.

Com a ausência de políticas públicas direcionadas à comunidade que compõe este grupo minorizado, cada vez mais se viu a via judicial como recurso para a garantia de direitos que eram historicamente negados, de modo que não se enxerga uma institucionalização dessas vitórias, em termos estruturais.

A título de ilustração, trataremos de algumas das mais significativas decisões judiciais que servem a confirmar esta hipótese, quais sejam, o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas e a luta por sua inclusão no conceito constitucional de família, a proteção jurídica pela garantia do direito à identidade de gênero de pessoas trans, a criminalização da homotransfobia e a constatação do direito à doação de sangue por homens gays e mulheres transexuais.

 

3.1. As Conquistas judiciais para o movimento LGBT na democracia contemporânea brasileira

 A Constituição Federal de 1988 inovou ao conferir tutela jurídica expressa não apenas à família matrimonial, mas também a outras modalidades de família, como a monoparental (BRASIL, 1988, art. 226, §3º), aquela que não é baseada em conjugalidade, e a formada pela união estável (BRASIL, 1988, art. 226, §4º). Com isso, inaugura-se um novo paradigma protetivo, baseado no princípio da pluralidade das modalidades familiares.

Certamente as mudanças promovidas pela Constituição Federal de 1988 ultrapassam sobremaneira a ampliação textual das modalidades de família juridicamente tuteláveis. Os contornos humanistas da Constituição Cidadã elevaram a dignidade humana à pedra de toque de todo o ordenamento jurídico, acarretando, por consequência, uma mudança substancial nas relações familiares, agora pautadas na igualdade entre seus membros. Nesse contexto, a família contemporânea identifica-se com caracteres democráticos (MORAES, 2016, p. 207-234) e eudemonistas (HIRONAKA, 2006, p. 153-157), instrumentalizando-se ao livre desenvolvimento da personalidade de seus membros.

 

3.1.1. Reconhecimento da União Estável homoafetiva

 O instituto da união estável foi determinado pela previsão expressa entre um homem e uma mulher[22], excluindo as uniões homoafetivas de tal tutela jurídica. Essa limitação acompanhava a concepção social que vigorou durante muitos anos de que a homossexualidade era um desvio de personalidade, havendo proteção restrita à família tradicional, o que se contextualizava pelo cenário internacional da época, quando ainda se utilizava, para se referir ao afeto entre duas pessoas do mesmo gênero, a expressão homossexualismo. Somente em 1990, o tal homossexualismo foi retirado da lista internacional de doenças da Organização Mundial da Saúde, substituindo-se o vocábulo pelo termo homossexualidade.[23].

A restrição às uniões estáveis entre pessoas do mesmo gênero, porém, se mostrava incompatível com toda a lógica inclusiva do texto constitucional, atribuindo tal direito a somente uma parcela da população. Essa restrição ia de encontro ao princípio da igualdade, bem como violava o respeito à dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º III, da CF/88, sendo este,  inclusive, cláusula pétrea.

Dois fatos revolucionários para o ordenamento jurídico brasileiro, porém, mudariam tal cenário. O primeiro deles ocorreu na ocasião do julgamento conjunto pelo Supremo Tribunal Federal da ADPF 132 e da ADI 4.277, quando foi firmada a tese, por unanimidade, que permitiu o reconhecimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo gênero no Brasil, dando nova interpretação ao art. 1.723 do CC. Segundo Gustavo Binenbojm (2020, p. 93), “o reconhecimento das uniões homoafetivas pelo STF – o primeiro Tribunal Constitucional no mundo a fazê-lo – foi um dos pontos altos da história libertária da Corte”. Nesse sentido, cabe colacionar trecho do louvável voto do Ministro Celso de Mello:

A opção do legislador constituinte pela concepção democrática do Estado de Direito não pode esgotar-se numa simples proclamação retórica. A opção pelo Estado democrático de direito, por isso mesmo, há de ter conseqüências efetivas no plano de nossa organização política, na esfera das relações institucionais entre os poderes da República e no âmbito da formulação de uma teoria das liberdades públicas e do próprio regime democrático. Em uma palavra: ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República. Desse modo, e para que o regime democrático não se reduza a uma categoria político-jurídica meramente conceitual ou simplesmente formal, torna-se necessário assegurar, às minorias, notadamente em sede jurisdicional, quando tal se impuser, a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, os direitos fundamentais que a todos, sem distinção, são assegurados.” (BRASIL, 2011, p. 853).

 

O segundo, que se deu como consequência do primeiro fato, teve local quando foi editada a Resolução n. 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça, que obrigou os cartórios brasileiros a reconhecerem a habilitação, celebração de casamento civil ou a conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Desde então, seja por meio de união estável, seja por meio de casamento, não há que existir menção a gênero em uma eventual tentativa jurídica de conceituação de família no ordenamento jurídico brasileiro.

Mas esta seria apenas a primeira de algumas das mais recentes vitórias do movimento LGBT. Não se pode ignorar, nesse sentido, a luta pelo respeito à identidade de gênero das pessoas trans, pauta também levada à mais alta Corte do País.

3.1.2. Respeito à identidade de gênero de pessoas trans e o registro sem necessidade de cirurgia

 O primeiro caso de legalidade da cirurgia de transgenitalização no Brasil ocorreu ainda nos anos 1970, com o histórico julgamento que absolveu o médico Roberto Farina do crime de lesão corporal gravíssima sob o argumento de que a conduta era lícita, uma vez que não haveria dolo de lesionar e sim intenção curativa relativamente ao procedimento. Tal entendimento veio a ser utilizado, anos mais tarde, pelo Conselho Federal de Medicina, por meio da resolução 1.482/1997[24], que autorizou pela primeira vez no Brasil a chamada cirurgia de transgenitalização. (VECCHIATI, 2018, p. 456).

Na primeira década do século XXI, consolidou-se a jurisprudência no sentido de que, realizada a cirurgia de transgenitalização, era devida a alteração tanto do prenome quanto do sexo da pessoa no registro civil. Residia, no entanto, a controvérsia a respeito de se seria possível a alteração do nome e gênero nos documentos daquelas pessoas transgênero que não haviam se submetido à cirurgia em questão.

No ano de 2009, a Procuradoria Geral da República ajuizou ADI (n. 4275) perante o STF, defendendo a constitucionalidade da mudança de nome e gênero de transexuais no registro civil, independente de cirurgia, mas com laudos exigidos pelo Conselho Federal de Medicina. Para o advogado Paulo Iotti Vecchiati (2018, p. 457), tratava-se de um claro agir estratégico, de uma época em que quase não se falava, no Brasil, em despatologização das identidades trans e mudança de nome e gênero independente de laudos e de ação judicial, sendo, portanto, uma tese com aparência progressista para o momento.

Somente em 2014 a questão chegou novamente ao STF, por meio do Recurso Extraordinário n. 670.422. O julgamento efetivo apenas ocorreu em 2017, registrando-se pela primeira vez na história da Corte a sustentação oral de uma advogada transgênero.[25].

A tese de que não se pode reduzir a pessoa humana a uma classificação baseada em sua genitália ganhou forças. Por meio de argumentos baseados na ideia de que o ser humano é um animal eminentemente psicológico, social, político e afetivo e não mera ou predominantemente biológico, e que transcende em muito seu genital, foi consagrada a dispensa de laudos médicos e de ações judiciais para alteração de registros civis de pessoas transgêneros (VECCHIATTI, 2018).

Simultaneamente a essa decisão histórica do STF, o Tribunal Superior Eleitoral reconheceu o direito de mulheres transexuais se qualificarem nas cotas eleitorais destinadas ao sexo feminino. Foi utilizado como argumento decisório o fato de que a ação afirmativa em questão visava a proteger a identidade de gênero feminina e não determinado sexo biológico (CANÁRIO, 2018).

Não se ignora, entretanto, o fato de que esta conquista não preenche todos os espaços vazios deixados pela ausência de leis ou políticas públicas. Ainda carece de julgamento definitivo, por exemplo, o RE 845.779, que visa a garantir o direito de mulheres transexuais utilizarem banheiros públicos femininos. De todo modo, a conquista abriu as portas para a análise de ações de escopo ainda maior, como é o caso do Mandado de Injunção n. 4733 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26, ambos fundamentados no conceito de constituição dirigente como aquela que não se limita a estabelecer competências aos chamados três poderes, também impondo a eles tarefas a serem cumpridas.

3.1.3. Criminalização da homotransfobia

 O objetivo principal era conferir proteção penal específica contra discriminações, discursos de ódio e violências, físicas ou psicológicas, motivadas pela orientação sexual ou pela identidade de gênero.

A criminalização da homotransfobia é uma demanda histórica do movimento LGBT e que parecia extremamente difícil de acontecer por meio da atuação da função típica do poder legislativo federal, mediante a configuração extremamente conservadora do Congresso Nacional. No entanto, ao se analisar a sistemática da Constituição Federal de 1988, percebe-se que o diploma criou diversos mandados de criminalização, tornando obrigatório que o legislativo federal elabore lei específica para a tipificação de condutas particulares.

Com base nessa argumentação, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos[26] e o Partido Popular Socialista ajuizaram as ações que foram julgadas em conjunto, visando a dar concretude ao art. 5º, XLI do texto constitucional, que prevê que a lei punirá toda discriminação atentatória a direitos e liberdades fundamentais, amparando-se, para tal, no art. 5º, XLII, referente à imposição de criminalização da prática do racismo. Por meio da conceituação de racismo social, desenvolvido e reconhecido no HC 82.424, conhecido como Caso Ellwanger[27], argumentou-se a inexistência de raças biologicamente distintas entre si e que, portanto, o tipo legal seria aplicado a toda e qualquer conduta que pregue a inferioridade de uns relativamente a outros, de forma estrutural, sistemática, institucional e histórica na sociedade. Com base nisso, concluiu-se que a discriminação contra homossexuais e pessoas transgênero, poderia ser tipificada como crime de racismo.

Dessa forma, em 13 de junho de 2019, o Plenário do STF, por 8 votos a 3,  entendeu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei específica que criminaliza atos de homofobia e de transfobia e que até que o Congresso Nacional edite lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, se enquadrariam nos crimes previstos na lei 7.716/89.

3.1.4. Proteção jurídica da doação de sangue por homens gays e mulheres trans

 Após essas conquistas, por fim, deve-se destacar o resultado, também na arena jurisdicional, da incessante luta travada por homens gays e por mulheres transexuais para o reconhecimento do seu direito de doar sangue, historicamente negado devido ao estigma das infecções sexualmente transmissíveis, que acompanha a vivência da comunidade LGBT desde o surto da epidemia de HIV/AIDS.

A doença em questão foi diretamente associada a homens gays, em um período em que ainda não se sabia muito a seu respeito, pela observação de sua disseminação entre indivíduos dessa parcela social. Nessa perspectiva, diversos países ao redor do mundo proibiram a doação de sangue por homens gays e por mulheres transexuais, com a alegada intenção de proteger os receptores do contágio venéreo.

            O Brasil, no entanto, apesar do avanço da ciência, vinha mantendo tal restrição reforçada por meio da utilização de um questionário, em que se continha, como classificação, a categoria de homens que fizeram sexo com outros homens nos últimos doze meses.

            No ano de 2016, o Partido Socialista Brasileiro ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, de nº 5543, visando à derrubada de tal proibição, com a argumentação de que tal conduta seria discriminatória. De fato, o é. Isto porque todas as bolsas de sangue são testadas após a doação, independente da pessoa do doador. Ademais, hoje em dia, já está mais do que provado cientificamente que a transmissão é muito mais provável em sexo sem preservativo, o que sequer constava como questionamento no formulário, do que pelo gênero de seu parceiro. É por isso, inclusive, que não se fala mais em grupo de risco, mas em comportamento de risco acrescido.

            O julgamento teve início em outubro de 2017, oportunidade em que o relator do caso, o Ministro Edson Fachin, afirmou em seu voto de forma didática que orientação sexual não contamina ninguém, mas que o preconceito sim (BRASIL, 2020). O julgamento foi concluído somente em maio de 2020, quando o plenário do STF decidiu, por maioria, como discriminatórias as regras da Anvisa e do Ministério de Saúde, que vetavam o ato, tornando-as inconstitucionais.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A Faculdade Nacional de Direito se mostra, ao longo da história, como importante agente político de mobilização nacional, de modo que muito de sua atuação institucional se expressa em alguns dos eventos de maior importância da história brasileira. Seja entre os estudantes, seja entre os professores, a presença de pessoas que fortalecem a trajetória política nacional é marcadamente uma das características mais ressaltadas do local.

O Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, com nascimento e endereço na FND, também se mostra como importante espaço de debates e movimentação política para o que se entende como percurso do Brasil. A organização se mostra, tanto no Estado Novo, como na Ditadura, e principalmente após o advento da Constituição da República de 1988, como um verdadeiro detentor de influência nos rumos do País.

Quanto às recentes conquistas obtidas pela luta do movimento LGBTQIA+, no que se refere ao reconhecimento de direitos e ao asseguramento de garantias, o que se observa são peculiaridades referentes a este grupo social. Verifica-se, ainda, a falta de institucionalização desses avanços no campo civil, muito disso se devendo ao fato de que o amparo concedido pelo Poder Judiciário não reflete o enfrentamento das mesmas questões pelos Poderes Legislativo e Executivo.

Diante de uma omissão na elaboração e implementação de políticas públicas e na atuação legiferante, coube ao Poder Judiciário a tutela, quase que em sede exclusiva, dos direitos da Comunidade LGBTQIA+. Assim, o que se pretende trazer, a título inicial de debate, é a ideia de que em muito a Faculdade Nacional de Direito tem a contribuir para uma verdadeira concretização dos direitos civis demandados por LGBTQIA+.

Infere-se da destacada jornada política da Faculdade que, se voltada uma atuação institucional ao campo das necessidades que tal grupo minorizado apresenta, muitos podem ser os avanços futuramente alcançados. Desse modo, tanto para o movimento LGBTQIA+ quanto para a própria Faculdade Nacional de Direito, o que se enxerga são apenas benefícios de uma eventual conjugação de esforços para a construção de um Brasil mais igualitário e politicamente progressista quanto à discriminação em virtude de gênero ou de sexualidade.

 5. REFERÊNCIAS

ARAUJO, Maria Paula Nascimento. Memórias Estudantis, 1937-2007: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Fundação Roberto Marinho, 2007.

BINENBOJM, Gustavo. Liberdade igual: o que é e por que importa. 1ª edição. Rio de Janeiro. Ed. História Real. 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 15 jun. 2021.

______. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277. Relator: Ministro Ayres Britto. Dje. 05 de maio de 2011. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em: 06 jul. 2021.

______. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543. Relator: Ministro Edson Fachin. Dje. 15 de maio de 2020. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador.jsp?docTP=TP&docID=753608126>. Acesso em: 06 jul. 2021.

CANÁRIO, Pedro. Cotas de candidatos em partidos são de gênero, e não de sexo, define TSE. Consultor Jurídico. 1 mar. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-mar-01/cotas-candidatos-sao-genero-nao-sexo-define-tse. Acessado em: 04 jul. 2021.

CENTRO ACADÊMICO CÂNDIDO DE OLIVEIRA. In: FGV CPDOC. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/centro-academico-candido-de-oliveira-caco>. Acesso em: 10 jun. 2021.

CITTADINO, Gisele. Apresentação. In: PRONER, Carol; CITTADINO, Gisele; TENENBAUM, Marcio; RAMOS FILHO, Wilson (Org.). A resistência ao golpe de 2016. Bauru: Canal 6, 2016.

FARINELLI, Marta Regina; MENDES, Sara Lemos de Melo. Adoção por homoafetivos. Serviço Social & Realidade, Franca, v. 17, n. 1, 2008

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. A incessante travessia dos tempos e a renovação dos paradigmas: a família, seu status, e seu enquadramento pós-modernidade. Rev. Fac. Direito da Universidade de São Paulo, v. 101, p. 153-157, 2006.

MORAES, Maria Celina Bodin de. A família democrática. In:_____. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Processo, 2016. p. 207-234.

MOREL, Regina Lúcia de Moraes. Evaristo de Moraes Filho: produto e produtor da Universidade. Rev. Sociologia & Antropologia, v. 5, n. 1, 2015, p. 299-314.

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SILVA, Evandro Lins e. O Salão dos Passos Perdidos: depoimento ao CPDOC. MOTTA, Marly Silva da; ALBERTI, Verena (Entrevista). Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1997.

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VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Mobilização judicial pelos direitos da diversidade sexual e de gênero no Brasil. In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan; CAETANO, Márcio; FERNANDES, Marisa. (Org.). História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018.

_____. STF e TSE fazem história ao afirmarem a cidadania de Transexuais e Travestis. Justificando. 02/03/2018. Disponível em: <http://www.justificando.com/2018/03/02/stf-e-tse-fazem-historia-ao-afirmar-cidadania-de-transexuais-e-travestis/>. Acesso em: 03 jul. 2021.

Notas:

[1] Bacharel em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Advogado inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Rio de Janeiro (OAB/RJ). Atuante no escritório Pires & Kaufmann Advogados Associados, especializado em direito das Famílias e Sucessões. Associado do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

[2] Bacharel em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Ex-Diretor Acadêmico do CACO – Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (2017-2019). Pesquisador do Observatório da Justiça Brasileira (OJB-UFRJ). Advogado inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Rio de Janeiro (OAB/RJ).

[3] Dominique Guimarães de Souza, Jean Carlos Miranda e Fabiano dos Santos Souza apresentam que a primeira Universidade Brasileira, de estatura pública, foi assim criada para “conceder o título de doutor honoris causa ao Rei da Bélgica” (2019, p. 1).

[4] A atual UFRJ foi criada por uma espécie de fusão entre a Faculdade de Direito, a Escola de Medicina e a Escola Politécnica, que já existiam e atuavam como centros de pesquisa e ensino isoladamente (SOUZA; MIRANDA; SOUZA, 2019, p. 1).

[5] O primeiro vestibular para o curso de Filosofia da Universidade do Brasil foi organizado apenas em 1939 (MOREL, 2015, p. 312).

[6] De 1934 a 1945, o Ministro da Educação do Brasil foi Gustavo Capanema, nome responsável pela valorização do ensino universitário, a fim de contribuir para a solidificação de uma identidade nacional, por sua importância estratégica na formação das elites (ARAUJO, 2007, p. 34-35).

[7] Uma das figuras de maior projeção da época a ter problemas com o regime de Vargas foi Jorge Amado, escritor de imensa importância, graduado pela Faculdade de Direito da Universidade do Brasil (ARAUJO, 2007, p. 53), ilustrando-se a atuação política incessante da instituição não apenas por seus alunos correntes, mas também por seus egressos, que beberam de seu caldo sociocultural.

[8] A título ilustrativo, veja-se episódio narrado em MOREL, 2015, p. 301.

[9] A pauta fundamental do corpo estudantil não era exatamente uma questão ideológica, conectada a princípios doutrinários do comunismo ou do integralismo, por exemplo, e sim uma busca pela garantia das liberdades. Veja-se UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 51.

[10] Para compreender melhor como a movimentação estudantil interferiu no posicionamento do Brasil relativamente à Segunda Guerra Mundial, confira-se UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 47.

[11] De acordo com Arthur Poerner, que ingressou na FND no mesmo ano do golpe, “[o] clima político não podia ser mais agitado. Imaginem: o golpe, a faculdade extremamente politizada, o CACO com suas grandes lideranças, a UNE vivendo um dos seus momentos mais brilhantes. Foi um clima de resistência” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 225).

[12] Sobre o mencionado incêndio da UNE, vale conferir ARAUJO, 2007, p. 150-154.

[13] A Lei Suplicy de Lacerda “[b]asicamente proibia qualquer atividade política. Qualquer coisa que se fizesse, inclusive reclamar, poderia ser entendida como atividade política.” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 177).

[14] A prática de fundar diretórios e centros acadêmicos paralelos aos oficiais foi adotada em variados cursos de diversas Universidades, “já que estes, pela Lei Suplicy, estavam sob o controle direto do governo e proibidos de exercer qualquer atividade ou discussão política” (ARAUJO, 2007, p. 157).

[15] O CACO-Oficial era tido como mero organizador de confraternizações entre os alunos, visto, portanto, sem prestígio pelo corpo docente (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 180)

[16] Dentre outros fatores, isto se dava ao fato de haver uma relativa aliança entre o CACO-Livre e o movimento da Ação Popular, organização de esquerda extraparlamentar. Cf. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 251.

[17] É esta a conclusão que se extrai do verbete Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO), registrado na plataforma de consulta ao acervo do CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. “Desde sua legalização em 1978, o centro acadêmico procurou retomar seu tradicional caráter militante, participando das principais mobilizações cívicas e estudantis que, no processo de abertura política e implementação da nova república iniciado em meados da década de 1970, reivindicaram o restabelecimento das liberdades democráticas, a anistia aos opositores do regime militar e a restauração das eleições diretas para presidente da República.” Cf. CENTRO ACADÊMICO CÂNDIDO DE OLIVEIRA. In: FGV CPDOC. Disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/centro-academico-candido-de-oliveira-caco>. Acesso em: 10 jun. 2021.

[18] Dentre eles, vale iluminar alguns que são ao menos tangenciados pela participação de estudantes integrados ao CACO, como o sequestro do Embaixador norte-americano Charles Elbrick (p. 204, p. 216 e p. 257) e a morte do estudante Edson Luís, que se deu pela repressão da ditadura às manifestações de rua (p. 202-203 e p. 212-213). Ainda sobre este segundo episódio, cf. ARAUJO, 2007, p. 174-176.

[19] A cassação de professores, no âmbito do curso do direito, deu-se de maneira um tanto quanto nebulosa. Para melhor compreender, veja-se UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 264.

[20] Sobre esta questão, é impressionante o que diz Maria Augusta Carneiro Ribeiro, vice-presidente do CACO em 1968. Cf. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, 2007, p. 212

[21] BRASIL, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> . Acesso em: 03 jul. 2021.

[22] “Art. 226, § 3º: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” (BRASIL, 1988).

[23] O sufixo ismo remete a doença, enquanto o sufixo dade se refere a maneira de ser, indicando a alteração uma nova forma de se enxergar a união de pessoas do mesmo gênero. Veja-se FARINELLI, Marta Regina; MENDES, Sara Lemos de Melo. Adoção por homoafetivos. Serviço Social & Realidade, Franca, v. 17, n. 1, 2008, p.184.

[24]Atualmente, vige nova resolução, de número 1.955/2010, em atualização à anterior.

[25] A sustentação foi feita pela ativista Gisele Alessandra Schmidt e Silva no dia 07/06/2017.

[26] Organização brasileira que tem como objetivo e missão, desde 1995, promover ações que garantam a cidadania e os direitos humanos de LGBTs, contribuindo para a construção de uma sociedade democrática, na qual nenhuma pessoa seja submetida a quaisquer formas de discriminação, coerção e violência, em razão de suas orientações sexuais e identidades de gênero. Mais informações em: https://www.abglt.org/.

[27] Siegfried Ellwanger foi um industrial e editor gaúcho que propunha um revisionismo histórico que negava o holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial. Utilizava sua editora e livraria Revisão Editora LTDA. para publicar e disseminar obras de Hitler, de atores afetos ou de autoria própria, argumentando, dentre outras coisas, que nunca houve câmaras de gás nos campos de concentração, que não seriam, por sua vez, campos de extermínio, mas centros de trabalho forçado, e sintetizando o holocausto judeu como uma mentira forjada. Após denúncias ao Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, Ellwanger foi absolvido em primeira instância do crime de racismo, em 1995. Em sede de recurso, a 3ª Câmara do TJ-RS vedou a distribuição de seus livros. O caso chegou, enfim, ao STF, pela via do Habeas Corpus nº 82.424, sob a alegação de que judeus não constituiriam raça, mas um povo. O relator do processo, Ministro Moreira Alves, propôs a concessão do habeas corpus, mas foi derrotado, por 8 votos a 3. Maurício Corrêa, Presidente do Tribunal, redigiu o acórdão que determinava a caracterização de racismo também pela publicação de livros anti semíticos, sendo crime inafiançável e imprescritível conforme o art. 5º, inciso XLII da CF. O conteúdo das obras não configurava inquirição histórica, não restando ferido o princípio da liberdade de manifestação do pensamento a decisão judicial a coibir a propaganda de obras racistas. Cf: https://ensaiosenotas.com/2018/05/23/resumo-o-caso-ellwanger/.

Palavras Chaves

Faculdade Nacional de Direito. Movimento LGBTQIA+. Centro Acadêmico Cândido de Oliveira.