DIREITO PENAL MILITAR E O BEM JURÍDICO TUTELADO

Resumo

Para longe de uma intenção de esgotamento do tema, é apresentado ao gigante universo jurídico um direito penal especializado esquecido pelas grades curriculares do curso de Direito. O Direito Penal Militar merece aprofundamento, crítica e discussão cientifica. Os estudos acerca do Direito Penal Militar e o necessário olhar crítico no que se refere ao bem jurídico tutelado é essencial para aprimoramento do Estado Democrático de Direito.

Artigo

 DIREITO PENAL MILITAR E O BEM JURÍDICO TUTELADO.

 

Maricel Pádua Gomes[1]

Mariana Fernandes de Oliveira Silvestrini[2]

Resumo

 

Para longe de uma intenção de esgotamento do tema, é apresentado ao gigante universo jurídico um direito penal especializado esquecido pelas grades curriculares do curso de Direito. O Direito Penal Militar merece aprofundamento, crítica e discussão cientifica. Os estudos acerca do Direito Penal Militar e o necessário olhar crítico no que se refere ao bem jurídico tutelado é essencial para aprimoramento do Estado Democrático de Direito.

Palavras – chave: Direito Penal Militar, especializado, bem jurídico tutelado, Justiça Militar, Constituição de 1988.

 

Introdução

 

Tão árdua quanto honrosa é a nobre tarefa de dissertar sobre a matéria de Direito Penal Militar, pois passo a explicar: árdua em razão da escassez na pesquisa devido à incipiente doutrina disponível no mercado e honrosa pela difícil missão de dar notoriedade a uma matéria relegada pelo universo acadêmico do Direito, sendo, infelizmente, somente estudado e aprofundado nas Academias Militares das Forças Armadas e das Forças Auxiliares.

Trouxemos como herança do direito romano e lusitano a adoção de um diploma penal próprio para os militares, diploma esse ainda muito desconhecido pela maioria dos criminalistas, o que denota a relevância desse assunto.

A História do Direito explica a origem do diploma penal próprio para os militares, tendo como recorte cronológico a grande influência herdada do direito romano, passado por gerações.

Cabe informar que os primeiros exércitos romanos foram fundamentais para o desenvolvimento do Direito Militar, também denominada de Direito Castrense (do vocábulo “castra”, do latim castrorum, que significa acampamento)[3] nascendo os primeiros contornos do direito militar antes não separado do direito penal que denominaremos de comum.

Desse modo, o Direito Penal Militar Brasileiro, tem como pilar primordial do direito militar romano,e posteriormente o Direito Lusitano trazido pela família real portuguesa na histórica instalação na colônia brasileira em 1808.

Ainda que bem antigo, o direito penal militar castrense se apresenta como uma verdadeira novidade aos criminalistas contemporâneos que pouco sabem de uma matéria de importância e singularidade ímpar na vida de milhares de militares.

O Direito Penal Militar é tratado com indiferença, uma negligência que não se justifica a luz da ciência do direito, aquela que se ocupa com o estudo das normas e com investigação metódica e racional do fenômeno jurídico chegando na sistematização dos conhecimentos resultantes[4]. Significa dizer que esse notório desconhecimento faz com que a dogmática jurídica brasileira fique extremamente prejudicada.

O prejuízo se demonstra mais evidente ainda quando analisamos a ciência jurídica além da dogmática, isto é, aquele dinâmico estudo que tem por objeto o ser humano e suas relações com a finalidade do interesse coletivo e o avanço da sociedade, de modo que o direito penal, seja ele comum ou especializado, deverá obrigatoriamente se prestar a refletir o dinamismo fruto das intercorrências da evolução jurídica.

Partindo dos ensinamentos de Miguel Reale, em que antes mesmo de um aprofundamento de alguma disciplina do Direito, precisamos apreciá-lo através da visão unitária e panorâmica, para que não se pense que cada uma das disciplinas em nosso ordenamento exista independentemente das outras. Ao contrário, as disciplinas jurídicas representam e refletem um fenômeno jurídico unitário que precisa ser examinado.[5]

Relegar todo o arcabouço legal do Direito Militar, e falar em direito penal sem a noção do direito penal especial, é colocá-lo longe de qualquer outra disciplina presente na vida em sociedade e no ordenamento jurídico pátrio, algo grave e totalmente injustificável.

Será visando o seu engrandecimento, que essas breves linhas servirão. Com gratidão a todos que constantemente esforçam-se para sua divulgação e trazendo ao público a dogmática jurídico penal desse ramo especializado.

O tão desconhecido Direito Penal Militar

 

O pouco saber desse ramo especializado do Direito Penal foi comentado nas linhas acima, mas se faz necessário destacar o descuido dos operadores do direito com esse braço experto de forma mais abrangente, não apenas relacionado aos crimes militares, inseridos num diploma próprio, mas com toda legislação voltada aos militares, ou seja, a tão marcada e apaixonante multidisciplinaridade do direito militar, capaz de encantar do novato ao mais maduro estudioso do direito, motivo pelo qual não dispensamos esforços para a mudança no cenário e divulgação desse ramo do direito.

Estudar o Direito Penal Militar, por ser o fronde mais antigo do direito criminal, é uma viagem sobre a própria evolução do Direito Penal, que sofre constantes evoluções. E por falar em história, nos remetemos àquelaoperação de Portugal ao Brasil motivadapela ameaça de invasão por Napoleão, e que instalou na colônia um aparato institucional mais sólido para o funcionamento de um novo reino.

Significa que além da criação da Universidade, biblioteca real, Banco do Brasil, temos a criação da Justiça mais desconhecida – a Justiça Militar. Anteriormente denominada de Conselho Supremo Militar e de Justiçapertencente ao Poder Executivo e competente para julgar militares em segunda instância além das consultas do Rei opinando sobre requerimentos, promoções, nomeações, insígnias etc.[6]

Talvez por esse motivo que essa justiça é ainda tão desconhecida no mundo jurídico, uma vez que inicialmente pertencia ao Poder Executivo. Porém, destacamos que esse cenário mudou em 1934 quando a Justiça Militar passou a integrar o Poder Judiciário, o que se mantém até os dias de hoje com a Constituição Federal de 1988.

     Conforme disposto no art. 124 da Constituição Federal, compete a Justiça Militar da União julgar os crimes militares definidos em lei, enquanto nos termos do art. 125, §4º compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados (Policiais Militares e Bombeiros Militares), nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, essa ressalva inserida através da Emenda 45/2004.

Fator importante, embora pouco conhecido, foi o papel que desempenhou a Justiça Castrense durante a Ditadura Militar, que ao contrário do que pensam, conseguiu suportar as questões políticas na época aplicando uma lei penal duríssima, como era a Lei de Segurança Nacional, e o próprio código penal militar vigente até hoje.[7]

Sua atuação equânime e desapaixonada à época, justificou, em tese, o resultado da constituinte de 1988, em que se votou pela manutenção da Justiça Militar no âmbito constitucional brasileiro, com mais sustentáculos de garantias fundamentais, etiologia importante, que deve ser divulgada.

Vejamos que novamente, o desconhecimento não se justifica, pois estamos falando de uma Justiça prevista na Constituição cidadã figurando como indispensável participante no sistema de segurança externa e interna do País.

No que se refere a especialidade do direito penal militar, muitos destacam que ela tradicionalmente se evidencia em razão do órgão especial que o aplica: A justiça militar, especialidade que não se confunde com privilégio nos termos da Constituição Federal.[8]

De forma diversa, pelo entendimento do professor Célio Lobão, classificar o Direito Penal Militar especial apenas em razão do órgão judiciário encarregado da aplicação da lei, demonstra uma evidente confusão entre Direito Penal especial e o Direito Processual Penal Militar.[9]

De fato, precisamos encarar a especialidade desse direito a partir do bem jurídico tutelado, objeto do presente estudo, e não apenas em razão do órgão julgador responsável pela aplicação dessa lei penal.

A existência do Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar, se justifica através da legitimação dada pela própria Constituição Federal, com fundamento na pessoa especial, cidadão fardado, que tem deveres atípicos, são profissionais que fazem o juramento de abrir mão de sua própria vida em razão de sua missão constitucional imposta.

A peculiaridade da profissão justifica o direito especializado, que voltamos a repetir, não se trata de privilégio, ao contrário, de mais um rigor necessário para o desempenho de suas funções institucionais.

A partir da conduta do militar é que se verifica a importância da hierarquia e  disciplina, ao notar quedeterminadas condutas quando praticadas por civil, não se revestem de dignidade penal, porém, podem ser consideradas de extrema gravidade quando cometidas por militar, particularmentese atentarem contra o princípio constitucional da hierarquia e a disciplina. Esta realidade torna necessária a existência de direito penal especializado que se pretende mais rigoroso em relação a tais condutas que o direito penal que denominamos de comum.[10]

Não significa dizer que estamos diante de um direito penal totalmente autônomo. Neste sentido, alinhamos o entendimento de Ricardo Freitas, quando afirma que, direito penal militar é especial em relação ao direito penal comum por apresentar determinadas características inexistentes neste último, inclusive princípios próprios, como o da hierarquia e disciplina. Todavia, não é de modo algum ramo do direito independente do direito penal comum, em razão de que seus princípios fundamentais são tomados do direito penal comum. Assim, mesmo que se admita uma certa autonomia ou a natureza substantiva do direito penal militar em relação ao direito penal geral, deve-se reconhecer que seus princípios fundamentais derivam deste último.[11]

Existe uma notória divergência doutrinária sobre esse assunto, em que muitos doutrinadores afirmam que não se trata de um direito penal especial, porém, um direito penal totalmente autônomo em relação ao direito penal comum, até mesmo em razão do bem jurídico tutelado, afirmando que no Direito Brasileiro teríamos duas vertentes indissociáveis do Direito Penal – o Comum e o Militar.

Ousamos discordar desse posicionamento, uma vez que o direito penal militar em muito baseia-se no direito penal comum, apenas apresenta elementos especializados que lhe garante umafisionomia própria, principalmente em razão da justiça especializada que o aplica, e da distinta profissão que ele se refere.

Com efeito, salientamos o que aprendemos nas lições introdutórias do Direito, no sentido de que não podemos enxergar uma norma positiva, ou uma disciplina jurídica dentro de um contexto totalmente independente, nem mesmo nos parece que esse foi o objetivo de nosso constituinte, que optou por trazer princípios e garantias fundamentais igualmente a todos, sem qualquer distinção.

Esposamos a posição de que o direito penal militar  é ramo do direito penal comum, mas, ao mesmo tempo, possui certos princípios peculiares.Talvez, nenhuma disciplina seja totalmente autônoma, o que dirá um direito penal, destacamosa complementaridade que existe no Direito, isto é, ir além da visão unitária, conforme nos ensina Miguel Reale:

Não basta, porém, ter uma visão unitária do Direito. É necessário, também, possuir o sentido da complementaridade inerente a essa união. As diferentes partes do Direito não se situam uma ao lado da outra, como coisas acabadas e estáticas, pois o Direito é ordenação que dia a dia se renova. A segunda finalidade da Introdução ao Estudo do Direito é determinar, por conseguinte, a complementaridade das disciplinas jurídicas, ou o sentido sistemático da unidade do fenômeno jurídico.[12]

Não se pode olvidar a possibilidade de aplicação subsidiária do Código Penal Comum, quando na ausência de previsão específica. Com efeito, o art. 12 do Código Penal Brasileiro determina a aplicação de suas regras gerais aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo divergente. Essa aplicação subsidiária decorre justamente da intenção que existe em nosso ordenamento jurídico de agasalhar princípios universais.

Neste sentido, nosso ordenamento jurídico tem o objetivo de trazer um caráter de universalidade do estatuto penal, e na prática busca que evitar que, a cada nova lei especial editada, o legislador incluísse nas mesmas, aqueles princípios gerais adotados pelo Código Penal[13], isso demonstra a especialidade do direito penal militar, e não sua completa independência.

Além disso, como já explicamos anteriormente, estudar direito penal é uma prazerosa viagem na história do direito penal, o que significa que o direito penal já foi até mais parecido com o direito penal militar, com a diferença que o primeiro sofre constantes atualizações enquanto o segundo permanece quase que inalterável.

Com efeito, a história do direito penal militar, aproxima-se, em sua origem, da própria história do direito penal, na medida em que sua divisão nem sempre foi tão evidente.[14]

Essa natureza do direito penal militar, da mesma forma que não pode ser entendida como completa autonomia, também não pode servista como uma total integração, sob pena de grave violação ao princípio da legalidade e especialidade.

O respeito a vontade do legislador constitui ato fundamental para manutenção do Estado Democrático de Direito e preservação da separação dos poderes. Talvez seja esse o grande desafio daqueles que vivenciam o Direito Penal Militar, onde por um lado temos um direito penal especial que não se atualiza, e por outro, princípios basilares que devem ser observados para a correta aplicação das leis.

Assim, o grande desafio daqueles que vivenciam o Direito Penal Militar, é conseguir o correto diálogo das fontes, mantendo sua especialidade, sem abrir mão dos princípios dispostos no Código Penal, mais atualizado pelo legislador e próximo do Estado Democrático de Direito.

Da breve noção debem jurídico penal ao bem jurídico tutelado pelo direito penal militar.

 

A pesquisa do bem jurídico tutelado pelo Direito Penal Militar se faz necessária para justificar a sustentação de sua normatização numa sistemática própria, em apartado do direito penal comum, muito embora o seja utilizado de maneira subsidiária.

A peculiaridade da própria atividade militar na proteção da soberania da nação e da ordem social constituída no atual Estado Democrático de Direito justifica por si só o tratamento diferenciado quando se trata do aspecto penal militar. O estudo do bem jurídico tutelado é pedra fundamental e estabelece parâmetros à intervenção estatal.

Reputa-se fundamental o estudo do bem jurídico para legitimação do direito penal, estabelecendo parâmetros da intervenção estatalque deve servir apenas como ultimaracio e de forma fragmentada, na satisfação de um interesse preponderante de uma determinada sociedade, visando um equilíbrio entre o que se protege e o que se está a sacrificar.[15]

Tarefa importante e difícil a verificação não apenas de seu conceito dogmático, voltado para o interior do sistema, mas a perspectiva político-criminal cuja validade está voltada para necessidade de proteção, bem como para a capacidade de limitação do direito de punir do Estado.

Parte-se do pressuposto de que os valores mais importantes e fundamentais identificados por uma sociedade expressam-se através da eleição de bens jurídico dignos de proteção pelo legislador, mas que nem todos os bens justificam a tutela penal. Significa que dentro de um Estado Democrático de Direito a tutela penal deve ser subsidiária e fragmentada, ou seja, apenas quando os demais ramos do direito não forem suficientes para este fim.[16]

Destaca-se a verificação de bem jurídico através de uma transcendência ontoaxiológica como base para o legislador, dessa forma assevera NAVARRETE:

Um direito penal que ab initio não se propusera, finalmente, em essência, garantir a proteção dos valores mais transcendentes para a coexistência humana seria um Direito Penal carente de base substancial e não inspirado nos princípios de Justiça sobre os quais deve-se assentar todo ordenamento jurídico, e, enquanto tal, imprestável para regular a vida humana em sociedade. [17]

Imprescindível, portanto, a verificação do bem jurídico de tutela penal militar de forma a justificar e alicerça a existência do Código Penal Militar, e a sua relação especial com a Constituição.

Conforme ensina Regis Prado a noção de bem jurídico possui um caráter dinâmico e constitui um juízo de valor de oportunidade criminal, assim deve sempre estar em conformidade com o quadro axiológico advinda da Carta Magna, isto é, estudo de princípios e valores ali inseridos ou com a noção do Estado Constitucional.[18]

Isso não significa adotar uma teoria constitucionalista estrita, no sentido de que todos os bens jurídicos devem necessariamente ser valores constitucionais, mas apenas a concepção de que a eleição de bens jurídicos objeto do direito penal deve ser buscada considerando os valores inseridos no texto constitucional. [19]

A Constituição Federal é sustentáculo do funcionamento da sociedade e o documento supremo utilizado como diretriz para qualquer lei infraconstitucional. Significa dizer que os bens jurídicos tutelados pelo Código Penal Militar devem necessariamente ter respaldo nos valores constitucionais.

É de se ressaltar-se que a Constituição Federal logo no art. 5º já introduz em nosso Estado a existência do crime militar, e o quanto que esse direito material deverá ser especializado e distinto do direito penal aplicável a maioria da população.

                   Neste sentido, notamos que o princípio da hierarquia e disciplina tutelado pelo Direito Penal Militar possui um respaldo constitucional, o que não significa que esse seja o único bem tutelado pelo legislador pátrio.

Pois bem, transcorrida uma breve consideração sobre bem jurídico, vamos a complexidade do bem jurídico tutelado pelo direito penal militar. E antes de abordar esse tema, devemos salientar a antiguidade do próprio direito penal militar.

O texto constitucional assegura, de forma expressa, em seu artigo 142, que as Forças Armadas hão de ser organizadas com base na hierarquia e na disciplina, tendo o constituinte enfatizado os pilares que sustentam a estrutura militar.

Por outra guarida, a Carta Magna ainda prevê as instituições militares estaduais, nos termos do art.  144, a finalidade de preservação da ordem pública, da incolumidade e do patrimônio das pessoas, no contexto do direito fundamental à segurança pública.

A Constituição atribuiu de forma clara e inequívoca, a consagração dos princípios constitucionais da hierarquia e da disciplina, que traduzem as obrigações militares, os valores castrenses, que são de suma importância para sua especial missão de proteger a pátria e pessoas.

Sem a incidência de tais preceitos, as Forças Armadas e auxiliares se assemelhariam a bandos ou milícias. São essenciais à sobrevivência e coesão das três Forças e, durante um conflito armado, são elas que garantem a possibilidade de sucesso e minimizam riscos de perdas humanas militares e civis.[20]

A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antiguidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à sequência de autoridade.[21]

Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.[22]

A sociedade militar é peculiar, possui modus vivendi próprio. Esta peculiaridade exige sacrifícios extremos (a própria vida), que é mais do que simples risco de serviço das atividades tidas como penosas ou insalubres como um todo.[23]

Cabe assinalar que a hierarquia e disciplina são postulados tão caros à existência das instituições militares que sua violação será sempre tutelada, seja pelos regulamentos disciplinares na sua forma mais branda; seja na esfera penal militar na modalidade mais gravosa.[24]

Como se pode verificar no Texto Maior, as instituições militares são dotadas de tutela especial, que visa à manutenção de sua regularidade, pela proteção de outros bens jurídicos: a vida, a integridade física, a honra, a hierarquia, a disciplina etc.[25]

Partindo dessa premissa, nota-se o bem jurídico tutelado pelo direito penal militar vai muito além da manutenção da hierarquia e disciplina. Significa que é preciso verificar a importância desses princípios para a tutela de outros bem jurídicos essenciais para a pátria e para a manutenção da ordem pública.

Deve-se salientar que para as instituições militares, hierarquia e disciplina não constituem um fim em si mesmo, mas meios organizacionais peculiares e importantes para maior eficiência dos serviços prestados e atendimento de suas missões constitucionais. [26]

Neste sentido, o Direito Penal Militar se ocupa em proteger todos os bens jurídicos que possam ser afetados pela realização inadequada dos serviços militares. [27]A baila disso, é possível verificar que o código penal militar não coloca um conceito de crime militar, mas apenas enumera as condutas que possam caracterizar-se como crime.

Significa dizer não se protege apenas e tão somente o interesse imediato das corporações, mas o interesse de toda a sociedade que é destinatária do serviço militar, sob esse prisma que a legislação penal castrense se sustenta dentro de um Estado Democrático de Direito.

O sustentáculo encontra-se justamente no fato de que as Forças Armadas estão destinadas a garantir a segurança externa do Estado, enquanto as Forças Auxiliares possuem a complexa e importante missão da manutenção da ordem interna, são bens que se misturam com a tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana, e que para sua salvaguarda, é necessário um regramento especifico.

Vejamos que nos termos da Lei Complementar 91/99cabe aos militares a defesa da pátria, da garantia da lei e da garantia dos poderes constitucionais, e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Trata-se, pois, da destinação constitucional importante dada militares, e que por isso o Direito Penal especializado se justifica.

Não podemos olvidar ainda a tão difícil e cara manutenção ordem e contribuição substancial para a segurança pública que é conferida aos militares estaduais. Isso tudo nos leva a um arcabouço de legislação especializada, servindo o direito penal para preservação de toda a sociedade no qual é destinada a esses valorosos serviços.

Considerações finais:

O tema não se esgota, ao contrário, esse foi apenas uma pequena contribuição, breves linhas que tem como escopo a divulgação desse tão apaixonante e desconhecido universo do direito penal especializado, e sua aplicabilidade no âmbito da justiça mais antiga do Brasil.

Consideramos incompreensível o desconhecimento acerca da legislação que permeia o universo castrense e principalmente no tocante à legislação penal militar, algo extremamente prejudicial para o estudo da ciência e dogmática jurídica nacional.

Partimos da premissa de Reale, no sentido de que a ciência do direito somente se revela madura quando a interpretação da norma jurídica complementa-se através de uma visão unitária do sistema.

Neste sentido, erra aquele que pretende deixar o direito militar restrito as academias militares, como se isso não fosse prejudicial para toda a ciência jurídica, e principalmente, para aquele militar, muitas vezes submetido a uma legislação que não inova e não acompanha o próprio dinamismo social.

E por falar em militar, devemos entender que é a partir dele que se especializa o direito penal, em razão da sua singular função dentro do Estado Democrático de Direito. Significa que a Constituição os outorga missões grandiosas, exigindo inclusive o sacrifício da própria vida, e que o bem jurídico tutelado se difere daquele que verificamos no Direito penal que denominamos de comum.

A Constituição Federal de 1988 constata a existência da justiça militar e do crime militar previsto em lei específica, o que significa dizer que não se trata de um tribunal de exceção, mas algo realmente especializado seguindo a vontade do constituinte.

Dentro do Código Penal Militar verificamos uma diferença dentre os crimes cometidos em tempos de paz e os crimes cometidos e a respectiva aplicação da pena. Outrossim, notamos a existências de tipos penais próprios, que não encontram qualquer similaridade com o Código Penal Comum, enquanto outros que encontram trazem um tratamento rigoroso e diferenciado.

É imperioso que se entenda o princípio constitucional da hierarquia e disciplina tão caros e essenciais para manutenção das instituições militares, ou seja, imprescindíveis para atendimento a missão constitucional que aos militares foram impostas.

No entanto, afirmar que o bem jurídico tutelado pelo direito penal militar é apenas a manutenção da hierarquia e disciplina é assumir uma visão fechada, manter o direito militar afastado da ciência jurídica e apoiar a equivocada ideia de que a justiça militar não pertence ao Poder Judiciário, mas ao Poder Executivo como uma verdadeira extensão das organizações militares.

Sustamos o posicionamento de que o bem jurídico tutelado pelo direito penal militar é justamente a proteção da soberania nacional, do Estado Democrático de Direito e da manutenção da ordem pública.

O maior obstáculo na proposta ora apresentada é trazer em larga escala o aprofundamento a respeito do bem jurídico tutelado pelo direito penal militar, dada a escassez de pesquisa.

Ao mesmo tempo consideramos enriquecedora a oportunidade de trazer à baila uma tão apaixonante e desconhecida legislação penal especializada, demonstrando que com o passar do tempo, não mais teremos uma disciplina ou uma justiça relegada.

No momento atual, vivenciando uma rigorosa crise epidemiológica que nos faz enxergar o novo, percebemos que inovartambém pode ser enxergar para um direito profundamente antigo que merece atenção, revisão, atualização e aperfeiçoamento por parte dos criminalistas, e assim, perfilhando pela corrente do conhecimento é que recomendamos o estudo desse tão rigoroso e singular direito penal militar brasileiro.

 

Referências bibliográficas:

 

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PALMA, Rodrigo Freitas. Direito militar romano./Rodrigo Feitas Palma/Curitiba:Juruá, 2010.

NOTAS:

[1]Advogada, escritora e palestrante. Pós – graduada em Direito Militar pela Universidade Cândido Mendes/CBEPJUR. Membro da Comissão de Direito Militar da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ). Membro da Comissão de Direito Militar da Associação Brasileira de Advogados do Rio de Janeiro (ABA/RJ). Integrante dos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Rio de Janeiro.

[2]Advogada, mestranda em Direito Processual Constitucional pela Universidad Nacional Lomas de Zamora,Pós-graduada em Direito Digital e Compliance pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus, e Pós Graduada em Direito Militar pela Escola Paulista de Direito.

neiro.Palestrante.Integrante dos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo.

o Brasil, Seção Rio de Janeiro.

[3]BATISTA. Edson Correa. Justiça Militar Estadual. Sylvia Helena Ono (coord). Juruá, 2017, pág 20.

[4]PIRES, Natalia Taves. A relação entre a ciência do direito e a dogmática jurídica disponível em <https://www.diritto.it/a-relacao-entre-a-ciencia-do-direito-e-a-dogmatica-juridica/>.

Acesso em 02.08.2021

[5]REALE, Miguel,1910. Lições preliminares de direito / Miguel Reale. — 27. ed. — São Paulo : Saraiva, 2002.

[6]SOUZA, Octavio Augusto Simon de. Justiça Militar:uma comparação entre os sistemas constitucionais brasileiro e norte-americano. Curitiba. Juruá, 2009, pág. 72.

[7] Idem, pág 72

[8]Coimbra, NEVES, Cícero R. Manual de direito penal militar, 4ª edição. Editora Saraiva, 2013.

[9]LOBÃO, Célio. Apud Coimbra, NEVES, Cícero R. Manual de direito penal militar, 4ª edição. Editora Saraiva, 2013.

[10]MARREIROS, Adriano Alves, Guilherme Rocha, Ricardo Freitas. Direito Penal Militar. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo; Editora Método, 2015.

[11]Adriano, ALVES-MARREIROS,. Direito Penal Militar – Teoria Crítica e Prática. Grupo GEN, 2015.

[12]REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. Epub.1910/ Miguel Reale. — 27. ed. — São Paulo : Saraiva, 2002.

[13]PAULO CESAR ALVES DOS SANTOS JÚNIOR, . Aplicação subsidiária da lei penal comum ao direito penal militar ConteúdoJurídico, Brasília-DF: 28 ago 2020. Disponível em: <https://conteudojuridico.com.br/consulta/Monografias-TCC-Teses-E-Book/14886/aplicacao-subsidiaria-da-lei-penal-comum-ao-direito-penal-militar>. Acesso em: 13de abril de 2022.

[14]Coimbra, NEVES, Cícero R. Manual de direito penal militar, 4ª edição. Editora Saraiva, 2013.

[15]AZEVEDO, André Mauro Lacerda. O bem jurídico-penal: duas visões sobre a legitimação do direito penal a partir da teoria do bem jurídico/ André Mauro Lacerda Azevedo, Orlando Faccini Neto – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. Epub.

[16]GODOY. Regina Maria Bueno de. A proteção do bem jurídico como fundamento do direito penal. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp141076.pdf>. Acesso em 14/04/2022.

[17]Regis, PRADO, L. apud POLAINO NAVARRETE, M. op. Cit, 8ª edição. Grupo GEN, 2018.

[18]Regis, PRADO, L. Bem Jurídico Penal e Constituição, 8ª edição. Grupo GEN, 2018.

[19][19] GODOY. Regina Maria Bueno de. A proteção do bem jurídico como fundamento do direito penal. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp141076.pdf>. Acesso em 13/04/2022.

[20]TELES, Fernando Hugo Miranda. Estatuto dos militares comentado: Lei 6.880, de 09 de dezembro de 1980. coordenação de Jorge Cesar de Assis – Curitiba: Juruá, 2019. 77 p

[21]Texto extraído do estatuto dos militares (art. 14,§ 1°)

[22] Texto extraído do estatuto dos militares (art. 14, § 2°)

[23] ASSIS, Jorge César. Direito Militar Aspectos Penais, Processuais Penais e Administrativo. 3ª edição – Curitiba: Juruá, 2012. 124 p

[24] TELES, Fernando Hugo Miranda. Estatuto dos militares comentado: Lei 6.880, de 09 de dezembro de 1980. coordenação de Jorge Cesar de Assis – Curitiba: Juruá, 2019. 79 p

[25]NEVES, Cícero Robson Coimbra, STREIFINGER, Marcello: Manual de Direito Penal Militar – 3ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2013

[26]GALVÃO DA ROCHA, F. A. Incompreensão sobre o bem jurídico tutelado nos crimes militares. Revista do Observatório da Justiça Militar Estadual, v. 1, n. 2, p. 63-66, 19 jul. 2018. Disponível em https://observatorio.tjmmg.jus.br/seer/index.php/ROJME/article/view/40/26.  Acesso em 13/04/2022

[27]GALVÃO DA ROCHA, F. A. Incompreensão sobre o bem jurídico tutelado nos crimes militares. Revista do Observatório da Justiça Militar Estadual, v. 1, n. 2, p. 63-66, 19 jul. 2018. Disponível em <https://observatorio.tjmmg.jus.br/seer/index.php/ROJME/article/view/40/26>.Acesso em 13.04.2022

Palavras Chaves

Direito Penal Militar, especializado, bem jurídico tutelado, Justiça Militar, Constituição de 1988.