JUSTIÇA AMBIENTAL, SANEAMENTO BÁSICO E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

Resumo

Um dos grandes desafios da sociedade é aplicar o princípio do desenvolvimento sustentável e equacionar crescimento demográfico e diminuição das desigualdades sociais. Não existe sociedade justa sem saneamento básico e é necessário que os governos implementem políticas públicas que efetivem o tratamento de esgoto para toda a população, como uma política de justiça social. No entanto, na falta de políticas sociais inclusivas, é necessário que populações vulneráveis tenham acesso à efetiva prestação jurisdicional, para a concretização de suas perspectivas.

Artigo

JUSTIÇA AMBIENTAL, SANEAMENTO BÁSICO E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

 Viviane Siqueira Fernandes*

RESUMO

Um dos grandes desafios da sociedade é aplicar o princípio do desenvolvimento sustentável e equacionar crescimento demográfico e diminuição das desigualdades sociais. Não existe sociedade justa sem saneamento básico e é necessário que os governos implementem políticas públicas que efetivem o tratamento de esgoto para toda a população, como uma política de justiça social. No entanto, na falta de políticas sociais inclusivas, é necessário que populações vulneráveis tenham acesso à efetiva prestação jurisdicional, para a concretização de suas perspectivas.

Palavras-chave: saneamento básico, tratamento de esgoto, justiça ambiental, prestação jurisdicional

1. INTRODUÇÃO

Um dos maiores desafios que a humanidade carrega para as próximas décadas é a forma como irá lidar com o crescimento demográfico e como diminuir as desigualdades sociais. Mais que um problema ambiental, a questão imposta pelo saneamento básico impõe também demandas relacionadas à saúde pública, alimentação, gênero e desigualdade social.

Estudos recentes concluíram que até 58% das doenças infecciosas podem se agravar como consequência das mudanças climáticas e muitos patógenos podem sofrer mutações com a mudança do cenário global e isso é agravado nas localidades em que não há saneamento básico.

Essa situação é mais gravosa sobre as populações vulneráveis e esses números vêm aumentando, principalmente após a pandemia do Covid-19. Recente relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) aponta que mais de 60 milhões de brasileiros sofrem com insegurança alimentar.

Diante dessa realidade, não é mais possível contextualizar o debate como uma situação meramente ambiental, é necessário dar a ela a devida atenção socioeconômica e, nesse contexto, não cabe o argumento de que as questões relativas ao saneamento básico consistem em tema de discricionariedade do gestor público, pois trata-se de direito transindividual, de interesse da coletividade, justificando a intervenção do Judiciário para dirimir conflitos, uma vez que os princípios norteadores do Direito Ambiental não permitem prestigiar práticas poluidoras.

No entanto, a despeito da orientação constitucional, o posicionamento nos Tribunais Superiores vem sendo bastante condescendente para com as prestadoras de serviços, conforme se demonstrará pela análise de alguns argumentos que serão colocados neste artigo.

2. IMPACTO SOBRE POPULAÇÕES VULNERÁVEIS

Populações que possuem situação socioeconômica desfavorável são mais expostas a impactos de eventos climáticos extremos, tais como enchentes e secas, diminuição na produção de alimentos, inclusive os oriundos da pesca, perda da biodiversidade e efeitos na saúde das pessoas, decorrentes da falta de saneamento básico, inclusive nos grandes centros urbanos.

ZEZZO et al. explicam que agentes infecciosos como protozoários, bactérias e vírus e os organismos que atuam como vetores, como mosquitos e carrapatos, são diretamente determinados pelo clima local e, por isso, fatores como temperatura, precipitação, circulação atmosférica, duração de luz do sol, podem modificar a distribuição geográfica desses patógenos e dos vetores, potencializando o risco climático em outras comunidades; por isso, é importante considerar que as variações climáticas podem influenciar no surgimento ou no reaparecimento de doenças infecciosas (ZEZZO et al. 2021, p. 674/675).

Nesse sentido, deve-se levar em conta que a precariedade das condições de vida dessas populações contribuem para a disseminação dessas doenças e que a falta de políticas públicas contribuem para a propagação de doenças como dengue, chikungunya, zika, febre amarela, sarampo, tuberculose, leishmaniose.

É importante destacar que a falta de saneamento básico, como a oferta de água potável e serviço de tratamento de esgoto, bastante comum nas comunidades carentes, provoca um ambiente propício para a proliferação de várias doenças parasitárias e infecciosas, como diarreia, febres entéricas, hepatite A, verminoses, leptospirose, esquistossomose; apenas para citar algumas.

Essas doenças, que ofendem não apenas a saúde das pessoas, mas também sua dignidade, geram, também, reflexos econômicos, uma vez que é comum que o trabalhador tenha que se licenciar como consequência da enfermidade. Portanto, a questão deve ser enfrentada com seriedade.

Em 2019, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do IBGE, 1,668 milhão de pessoas indicaram ter se afastado de suas atividades rotineiras por motivo de diarreia ou vômito (infecções gastrointestinais presumíveis) e doenças transmissíveis por insetos. Desse total 1,012 milhão eram mulheres (ou 60,7% do total) e 656 mil eram homens (ou 39,3% do total). Com base nesses dados, estima-se que houve 43,374 milhões de casos de afastamento por doenças de veiculação hídrica, sendo 26,324 milhões de casos entre as mulheres ao longo do ano de 2019 (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2022, p. 36).

Ainda, segundo dados da PNS de 2019, 87,4% da população feminina afastada de suas atividades em razão de doenças de veiculação hídrica morava nas áreas urbanas do país e apenas 12,6% nas áreas rurais. Nas capitais das unidades da Federação, ocorreram 5,843 milhões de casos (22,2% do total) e nas cidades do interior, 20,481 milhões (77,8% do total). As regiões do país com os maiores números de afastamento entre as mulheres foram o Sudeste, com 10,665 milhões de casos (40,5% do total) e o Nordeste, com 8,233 milhões de casos (31,3% do total). Entre as unidades da Federação, os maiores números de casos ocorreram nos estados mais populosos: sozinho, o estado de São Paulo respondeu por 23,5% dos casos de afastamentos de mulheres em razão de doenças de veiculação hídrica, Minas Gerais respondeu por 8,7% do total de casos no país e Bahia, por 8,4% (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2022, p. 36).

3. POLÍTICA NACIONAL DE SANEAMENTO BÁSICO

A Lei nº 11.445/07 institui a Política Nacional de Saneamento Básico e dispõe que o saneamento básico engloba quatro componentes distintos: abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas, os quais devem ser realizados em conjunto, para que seja efetivada a melhor prestação dos serviços públicos.

É importante ressaltar que, a despeito do que determina a Constituição da República que, em seu artigo 225, determina que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” (…) “impondo-se ao Poder Público” (…) “o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 1988) e, apesar do que estabelece o art. 2º da Lei nº 11.445/07, boa parte do esgotamento sanitário não recebe qualquer tipo de tratamento, trazendo efeitos deletérios não apenas para a população, como também para o meio ambiente.

De acordo com o 14º Relatório do Saneamento, emitido pelo Instituto Trata Brasil, com dados de 2022, em termos de investimento em saneamento a partir de seus investimentos, o Município do Rio de Janeiro fica na desconfortável 96ª colocação, com um indicador de investimentos totais por arrecadação (IIT%) de apenas 4,93, em oposição ao Município de Santos (SP), que obteve nota máxima, pois já universalizou seus serviços de abastecimento de água, esgotamento sanitário e tratamento de esgoto, além de possuir níveis de perdas baixos (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2022, p. 56- 59).

Em abril de 2021, a CEDAE foi leiloada, concedendo à iniciativa privada a prestação do serviço de água e esgoto em regiões do Estado do Rio de Janeiro, exceto os Municípios abastecidos pelo Sistema Integrado do Guandu e Imunana-Laranjal, dos quais o fornecimento de água continuará a ser operado pela CEDAE (MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO, 2021, p. 34).

De acordo com o Relatório disponibilizado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, o monitoramento da qualidade da água no Município é realizado pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA), que possui 321 pontos de amostragem em corpos d’água distribuídos por todo o Estado. Desses, em nenhum a qualidade da água é considerada excelente e boa, sendo que a qualidade no Rio Queimados é enquadrada na categoria vermelha (muito ruim), a do Rio dos Macacos, assim como a do Rio dos Poços, na categoria laranja (ruim), apresentando um alto índice de poluição (MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO, 2021, pp. 46-49).

Segundo informações do relatório, tal fato se dá porque

O aumento da população nos municípios da Baixada Fluminense localizada à montante do ponto de captação do Guandu, associado à falta da infraestrutura de saneamento básico necessário, piorou a qualidade do manancial responsável pelo abastecimento de nove milhões de pessoas (MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO, 2021, p. 49).

 O relatório aponta em vários trechos a falta de investimentos em saneamento básico como a causa para a poluição dos mananciais, chegando a informar que existem, na bacia do Guandu, 78 Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs), sendo que 34 delas estão operando integralmente, 18 estão operando parcialmente e 26 encontram-se completamente paradas. Devido à falta de funcionamento dessas ETEs, aproximadamente dez milhões de litros de esgoto são lançados no rio Guandu e seus afluentes por ano (MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO, 2021, p. 49).

O fato é que a Política Municipal de Saneamento Básico não cumpre seus objetivos, uma vez que não assegura a finalidade maior do saneamento básico, servindo apenas como um instrumento de cobrança, fracionando a atividade de esgotamento sanitário e conferindo ao titular dos serviços a legitimidade para formular a política pública de saneamento básico, o que, na prática, acaba postergando as soluções dos impactos causados na saúde pública e no meio ambiente.

Uma vez que, a despeito da previsão legal, na prática o serviço de tratamento de esgoto não é prestado em várias localidades, muito embora seja efetivamente cobrado pela prestadora, a população buscou o Judiciário para que se manifestasse sobre a questão.

4. RECURSO ESPECIAL 1.339.313 DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

O debate gerou uma disparidade de decisões no âmbito do Judiciário e, em junho de 2013, sob a relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, foi julgado pela Primeira Seção do STJ, o REsp 1.339.313/RJ, com a seguinte  ementa:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. SERVIÇO DE ESGOTAMENTO SANITÁRIO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE COLETA E TRANSPORTE DOS DEJETOS. INEXISTÊNCIA DE REDE DE TRATAMENTO. TARIFA. LEGITIMIDADE DA COBRANÇA.

  1. Não há violação do artigo 535 do CPC quando a Corte de origem emprega fundamentação adequada e suficiente para dirimir a controvérsia.
  2. À luz do disposto no art. 3º da Lei 11.445/2007 e no art. 9º do Decreto regulamentador 7.217/2010, justifica-se a cobrança da tarifa de esgoto quando a concessionária realiza a coleta, transporte e escoamento dos dejetos, ainda que não promova o respectivo tratamento sanitário antes do deságue.
  3. Tal cobrança não é afastada pelo fato de serem utilizadas as galerias de águas pluviais para a prestação do serviço, uma vez que a concessionária não só realiza a manutenção e desobstrução das ligações de esgoto que são conectadas no sistema público de esgotamento, como também trata o lodo nele gerado.
  4. O tratamento final de efluentes é uma etapa posterior e complementar, de natureza sócio-ambiental, travada entre a concessionária e o Poder Público.
  5. A legislação que rege a matéria dá suporte para a cobrança da tarifa de esgoto mesmo ausente o tratamento final dos dejetos, principalmente porque não estabelece que o serviço público de esgotamento sanitário somente existirá quando todas as etapas forem efetivadas, tampouco proíbe a cobrança da tarifa pela prestação de uma só ou de algumas dessas atividades. Precedentes: REsp 1.330.195/RJ, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 04.02.2013; REsp 1.313.680/RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, DJe 29.06.2012; e REsp 431121/SP, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, DJ 07/10/2002.
  1. Diante do reconhecimento da legalidade da cobrança, não há o que se falar em devolução de valores pagos indevidamente, restando, portanto, prejudicada a questão atinente ao prazo prescricional aplicável as ações de repetição de indébito de tarifas de água e esgoto.
  2. Recurso especial provido, para reconhecer a legalidade da cobrança da tarifa de esgotamento sanitário. Processo submetido ao regime do artigo 543- C do CPC e da Resolução 8/STJ.

Voto vencido do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que argumenta que a CEDAE, a prestadora do serviço no caso em tela, recebe integralmente a tarifa por um serviço que é não é prestado plenamente, defendendo que o usuário não deve pagar por algo que não lhe foi prestado nem posto à disposição. No entender do ilustre Ministro, não é possível que a prestadora arrecade uma tarifa cheia quando não presta o serviço com plenitude.

No entanto, prevaleceu o argumento defendido pelo relator, Ministro Benedito Gonçalves, que defendeu que o artigo 9º do Decreto nº 7.217/2010, que regulamenta a Lei nº 11.445/07, confirma a ideia de que o serviço de esgotamento sanitário é formado por um complexo de atividades, explicitando que qualquer uma delas é suficiente para, autonomamente, permitir a cobrança da tarifa de esgoto.

Em outras palavras, defendeu o ilustre Ministro que o fato de não estar sendo feito o tratamento dos dejetos antes de eles serem lançados em rios, não impede a cobrança da tarifa, eis que a remuneração há de ser devida como contraprestação pela instalação, operação e manutenção da infraestrutura de coleta e descarga do esgoto, uma vez que a cobrança da tarifa não pressupõe a prestação integral do serviço de esgotamento sanitário, mas apenas parte dele.

Com a devida vênia, tal entendimento, além de atentar contra todos os princípios de Direito Ambiental, ecoa também contra os princípios de Direito do Consumidor, por obrigar o usuário a pagar por um serviço que efetivamente não recebe e, pior: estimula a prestadora a permanecer sem prestar o efetivo serviço público, visto que está se beneficiando por receber uma prestação por algo que não está efetivamente cumprindo.

Além disso, conforme destacam Pitassi e Ferreira, não há que se confundir  rede de esgoto com rede de águas pluviais e autorizar a cobrança da tarifa utilizando-se de rede de água pluvial, com lançamento dos dejetos in natura nos seus leitos, é forma de subsídio à poluição (PITASSI e FERREIRA, 2019).

5.                       RECURSO ESPECIAL 1.421.843 DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Outro REsp, julgado em março de 2014 pela Primeira Turma do STJ, sob a relatoria do Ministro Ari Pargendler, nos autos do REsp 1.421.843/RJ, entendeu que, uma vez que artigo 9º do Decreto n.º 7.217/2010, que regulamenta a Lei nº 11.445/07, confirma a ideia de que o serviço de esgotamento sanitário é formado por um complexo de atividades, fixou a tese de que a execução de qualquer uma delas pela prestadora de serviços é suficiente para permitir a cobrança integral da tarifa de esgoto.

Cabe destacar que ficou consignado nos autos do REsp que laudo pericial constatou que, no local onde o imóvel objeto da demanda ficava situado, não havia  rede de esgoto, sendo que todo o tratamento do esgoto era, de fato, realizado e arcado exclusivamente pelo demandante e não pela empresa prestadora de serviços, sendo o lançamento dos efluentes realizado para galeria de águas pluviais e a retirada e transporte de lodo para a ETE da Cedae, tudo inteiramente custeado pelo autor da demanda.

Novamente em voto vencido, o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho debate que, ao seu entender, no caso em apreço, a Cedae não cumpre etapa alguma do serviço de tratamento de esgoto, nem mesmo a etapa do tratamento final do lodo que é transportado pelas suas usinas e, ainda assim, é remunerada. Entende o Ministro que, mesmo a empresa prestando a última etapa, somente esta não permitiria a cobrança aos usuários da tarifa integral.

No entanto, apesar dos argumentos, entenderam novamente os ilustres Ministros que o serviço de esgotamento sanitário é formado por um complexo de atividades, de tal forma que a realização de qualquer uma delas por parte da empresa prestadora é suficiente para, autonomamente, permitir a cobrança integral da respectiva tarifa.

6. RECURSO ESPECIAL 1.970.758 DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Por óbvio, o entendimento não restou pacificado e várias demandas continuam tentando mudar esse cenário. Atualmente, tramita no STJ, sob relatoria do Ministro Herman Benjamin, o REsp 1.970.758, que em março de 2022 teve a seguinte decisão:

APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ESPECIAL. RETORNO DA TERCEIRA VICE-PRESIDÊNCIA. EXAME DA PERTINÊNICA DO EXERCÍCIO DO JUÍZO DE RETRATAÇÃO À LUZ DO TEMA Nº 565 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

DIREITO DO CONSUMIDOR. TARIFA DE ESGOTAMENTO SANITÁRIO.

CONCESSIONÁRIA QUE SÓ EXECUTA DUAS ETAPAS DO SERVIÇO. INEXISTÊNCIA DE TRATAMENTO DO ESGOTO OU DESTINAÇÃO FINAL DO RESÍDUO SÓLIDO.

SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. DECISÃO COLEGIADA PELA IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA EM RAZÃO DE NÃO SEREM PRESTADAS AS QUATRO ETAPAS DO SERVIÇO. MATÉRIA QUE É RELACIONADA AO MEIO AMBIENTE, DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL, O QUE PERMITE O JULGAMENTO EM SENTIDO DIVERSO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ATÉ QUE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL APRECIE, EM DEFINITIVO, A QUESTÃO. JUÍZO DE RETRATAÇÃO NÃO EXERCIDO.

 Na decisão, o ilustre Ministro destaca que prova pericial dos autos constata que embora a CEDAE afirme que presta o serviço, o esgoto proveniente do imóvel objeto da ação é submetido a uma fossa filtro, captado e transportado por uma rede pluvial (GAP) localizada no logradouro e despejado em rios e córregos da região, verificando-se que a prestadora não realiza os serviços de tratamento do esgoto ou destinação do resíduo sólido proveniente.

Entende o Ministro que, por óbvio, descabe cobrar por esgoto não coletado ou despejado in natura nas galerias pluviais, visto que a questão deixa de ser de tratamento de resíduos e transforma-se em poluição, o que implica para o Poder Público e suas concessionárias responsabilidade civil ambiental e não direito a pagamento por serviços inexistentes, compreendendo que, sem dúvida, não foi intuito do Recurso Repetitivo (REsp 1.339.313/RJ) transformar o inadmissível ilícito antissanitário e antiambiental em lícito remunerado, pois não se equivalem, de um lado uso das galerias pluviais para escoamento de esgoto tratado, do outro poluição das galerias pluviais, dos rios e do mar, com efluentes sem nenhuma forma de tratamento, nem mesmo primária.

7. CONCLUSÃO

Existe uma grande disparidade na prestação do tratamento de esgoto no Brasil e, em se tratando do Município do Rio de Janeiro, essa disparidade está também presente. Nos bairros privilegiados a realidade é bastante diferente do que se verifica nas comunidades ou mesmo nos bairros da Zona Oeste.

Muito mais que um problema de ordem ambiental, a questão é humana. É um direito transindividual, não diz respeito a este ou àquele indivíduo, mas a todos. Existem duas coisas sem as quais nenhum ser vivo neste planeta sobrevive: ar e água. Não adianta acreditar que o ser humano está destacado dessa realidade.

Não adianta continuar achando normal chamar aquele curso de água de “valão”, pois aquele ambiente que está recebendo dejetos não tratados, por conta de descaso do Poder Público, já foi fonte de vida; agora é um ambiente poluído e isso, a teor da lei, é crime ambiental.

A sociedade não pode continuar achando isso normal e o Judiciário não pode continuar legitimando essa prática por parte do Poder Público. A Constituição é clara: impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações. Cabe a nós, também, assumir essa luta.

BIBLIOGRAFIA

  

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Notas:

* Advogada, pós-graduada em Direito Público pela Universidade Candido Mendes, Conciliadora do Tribunal de Justiça do RJ, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB Méier.

Palavras Chaves

saneamento básico, tratamento de esgoto, justiça ambiental, prestação jurisdicional