MISSÕES DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA EM TEMPOS DE PANDEMIA: BREVES APONTAMENTOS SOBRE PRISÕES E ABUSO DE AUTORIDADE.

Resumo

O presente artigo tem como objetivo delinear o papel institucional e os principais desafios do Conselho Nacional de Justiça diante do singular cenário de pandemia mundial, bem como trazer à reflexão apontamentos acerca das prisões e da contextualização da Lei de Abuso de Autoridade durante esse período.

Artigo

MISSÕES DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA EM TEMPOS DE PANDEMIA: BREVES APONTAMENTOS SOBRE PRISÕES E ABUSO DE AUTORIDADE.

Lucas Rocha[1]

                            Fellipe Souza Penteado[2]

Resumo – O presente artigo tem como objetivo delinear o papel institucional e os principais desafios do Conselho Nacional de Justiça diante do singular cenário de pandemia mundial, bem como trazer à reflexão apontamentos acerca das prisões e da contextualização da Lei de Abuso de Autoridade durante esse período.

Palavras-chave – Conselho Nacional de Justiça. Pandemia. Direito Penal. Prisões. Análise Institucional. Lei de Abuso de Autoridade. Sistema Carcerário. Covid-19.

Sumário – Introdução. 1. O Conselho Nacional de Justiça e o caráter normativo de suas Recomendações: análise do desenho constitucional. 2. Cenário de Pandemia Global e Alteração na dinâmica penal e implementação de atos normativos do Conselho Nacional de Justiça. 3. Da atuação e da aplicabilidade das medidas implementadas pelo Conselho Nacional de Justiça diante do cenário brasileiro. Conclusão. Referências.

Introdução:

Se a história das instituições é um reflexo da história da sociedade em que elas estão inseridas, nada mais lógico concluir que a pandemia global causada pelo vírus SARS-CoV-2 (Covid-19), verdadeira peste do liminar da década de 2020, tem o condão de instituir, ou de acelerar, mudanças nas instituições do Estado complexo contemporâneo, com reflexos nas mais diversas sendas. Deveras, as instituições se apresentam sempre como um sistema organizado de meios (DELEUZE, 2005).

Não é, como não poderia deixar de ser, diferente nas estruturas do Direito. Notadamente no Poder Judiciário, porquanto de matiz superestrutural na sociedade (CASTRO, 1983), instituições que se veem no Brasil deste começo de século, inseridas na centralidade do debate político e premidas por respostas imediatas para as questões que assolam a sociedade.

É precisamente neste contexto de crise global de saúde pública e sanitária que se insere a presente análise, especificamente no que tange às mudanças que a força motriz de tragédias humanas de escala mundial promove nas instituições, in casu no Judiciário, especialmente acerca do sistema prisional do país.

Nesse passo, chama a atenção, no contexto da edição das Resoluções nº 313/2020[3], nº 314/2020[4] e nº 318/2020[5], a igual edição da Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça[6], a qual assenta, para além das medidas de cunho administrativo dispostas nas referidas Resoluções, recomendações a respeito de questões atinentes às prisões decretadas no âmbito de processos penais em curso e em processos de execução penal, dentre outras medidas restritivas de liberdade, em função da calamidade global. Busca-se, portanto, analisar em que medida o contexto histórico da pandemia sem precedentes em tempos recentes culmina por ampliar a competência do Conselho Nacional de Justiça, ou por fazer cumprir a competência constitucionalmente conferida a ele e que restou nos últimos anos refutada por seu colegiado, limitando-se ao poder disciplinar residual em relação às Corregedorias locais e, mesmo assim, acerca de desvios de cunho administrativo e não de mérito da atividade jurisdicional, embora possam estas incorrer em violações em deveres impostos pela Lei Complementar nº 35/79 – Lei Orgânica da Magistratura Nacional[7].

Decorre daí a indagação que se faz a respeito do efeito prático que pode advir das citadas recomendações; noutras palavras, se referidas recomendações têm natureza cogente, com implicações na realidade material da enorme população carcerária brasileira.

Outrossim, sendo certo que o sistema carcerário brasileiro padece de um Estado de Coisas Inconstitucional, com severas e diuturnas violações a direitos fundamentais, propõe-se a investigar se a não observância das recomendações realizadas pelo Conselho Nacional de Justiça a respeito das prisões decretadas e/ou mantidas neste período têm alguma consequência material, principalmente em função da edição da Lei nº 13.869/2019 – Lei de Abuso de Autoridade[8].

Trata-se de tema dos mais espinhosos, porquanto a realização de recomendações desta natureza, ao tempo que relevantes, dado o contexto histórico, revelam facetas institucionais ainda não plenamente profundado pelos atores do Direito.

  1. O Conselho Nacional de Justiça – CNJ e o caráter normativo de suas Recomendações: análise do desenho constitucional.

Criado por força da Emenda Constitucional nº 45[9], no bojo da reforma do Judiciário brasileiro, sob os auspícios do legislador originário, para quem era imperioso salvaguardar não só a excelência técnica do Poder Judiciário nacional, entendido como tripartite (Judiciário, Ministério Público e Advocacia), mas, especialmente, de sua moralidade[10], tem como fins insculpidos na Carta Magna o zelo pela retidão do Poder Judiciário, seja acerca de seu aspecto disciplinar, vis-à-vis as obrigações impostas no art. 37 da Constituição da República (BRASIL, 1988) e pela LOMAN, seja, ainda, relativamente aos desvios de poder atinentes ao abuso de autoridade.

Já nos idos de 2004, por ocasião da edição da Emenda Constitucional nº 45, preocupava-se o legislador originário com a calamitosa situação que se encontrava o sistema carcerário brasileiro, cujo regramento positivado na Lei de Execução Penal[11] almeja o modelo de adequação de comportamento desviante ao modelo industrial (PAVARINNI, 2010), mas somente guarda identidade com os porões dos regimes mais autoritários.

Outro não era o sentir quanto à estrutura do Judiciário, que permaneceu praticamente inalterada com o advento da Constituição da República de 1988, demandando modernização administrativa, tecnológica, de gestão e, ainda, correicional, evitando-se que eventuais desvios ficassem adstritos aos julgamentos dos próprios pares nas Corregedorias locais. Surge, portanto, o Conselho Nacional de Justiça nestas condições; embora despido da atuação jurisdicional, permanece adstrito à função judicante, quer em razão de suas missões constitucionais, quer por força de sua composição, já que eminentemente formado por membros do Poder Judiciário, exercendo sua presidência o ministro presidente do Supremo Tribunal Federal (conforme Emenda Constitucional nº 61/2009[12]) e assumindo a Corregedoria Nacional de Justiça o ministro indicado pelo Superior Tribunal de Justiça para compô-lo.

Com efeito, na esteira das missões constitucionais conferidas ao Conselho Nacional de Justiça, é no seu Regimento Interno que referidas missões são regulamentadas, bem como lhes é conferida dimensão prática, por intermédio do estabelecimento de mecanismos e instrumentos de atuação do Conselho, com a definição de procedimentos e protocolos.

No que interessa ao presente trabalho, prevê o art. 102 do Regimento interno do Conselho Nacional de Justiça (BRASIL, 2009) a possibilidade de se editar Resoluções destinadas a todos os tribunais do país, desde que adstritas ao escopo constitucionalmente destinado à sua atuação. Na prática, tais Resoluções evidentemente dispõem sobre questões relativas à administração das cortes brasileiras, às suas produtividades, ao preenchimento de cargos e definições de orçamentos e ao próprio planejamento da estrutura de acesso à Justiça, e que detêm caráter de ato normativo primário, cuja observância é cogente.

Ao Conselho Nacional de Justiça também compete a função de Corregedoria independente das cortes (e não externa ao Judiciário como já se explicou[13]), devendo atuar de ofício quando noticiado desvio funcional em descompasso com a LOMAN e com o art. 37 da Constituição da República. Apesar do entendimento sólido de seu colegiado, esta atuação independe de ação da Corregedoria do Tribunal ao qual é vinculado o servidor, podendo, inclusive, ser concorrente e ter resultados divergentes da Corregedoria local.

  1. Cenário de pandemia global, alteração na dinâmica penal e implementação dos atos normativos pelo Conselho Nacional de Justiça.

O contexto da pandemia do Covid-19 foi responsável por jogar novas luzes sobre a atuação do Conselho Nacional de Justiça, com a edição das Resoluções nº 313/2020, nº 314/2020 e nº 318/2020, que foram acompanhadas da Recomendação nº 62/2020, a qual, combinada com a situação a grave calamidade, inova, ou ao menos adota medida sem precedentes, atinente à questão prisional, matéria adstrita ao próprio crivo jurisdicional. Decorrem daí os questionamentos centrais do presente artigo, quais sejam se o caráter normativo primário das Resoluções do Conselho Nacional de Justiça transportam-se para suas Recomendações, especialmente quando seu teor recai sobre atividade jurisdicional, já que na contramão da jurisprudência histórica[14] de seu pleno de não se debruçar sobre questões relativas ao mérito dos processos em trâmite no Poder Judiciário. Necessário, portanto, compreender o que faz das Resoluções do Conselho Nacional de Justiça atos normativos primários.

O pleno do Supremo Tribunal Federal já assentou esta questão por ocasião do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 12, quando julgou constitucional a Resolução nº 7/2015 do Conselho Nacional de Justiça, destinada, em breves linhas, a pôr fim no nepotismo ínsito ao Poder Judiciário. Firmou-se entendimento naquele julgado que a Resolução em questão estaria dotada dos requisitos indispensáveis a sua classificação como ato normativo abstrato, porque em consonância com os princípios insculpidos no art. 37 da Constituição da República, tanto que impessoal, abstrata e genérica, sendo possível sua submissão ao controle concentrado de constitucionalidade pela mais alta corte do país. Especificamente sobre a normatividade primária, fixou que a Resolução arrancaria seu sentido diretamente do texto expresso na Constituição da República (naquela hipótese do art. 103-B, §4º, da CRFB), densificando o sentido da Lex Mater, na medida em que “o que já era constitucionalmente proibido [o nepotismo], permanece com essa tipificação, agora, mais expletivamente positivado” (STF, 2009). Consignou-se, ademais, que o poder instituído nas constituições republicanas tem seus valores essenciais representados nos postulados da impessoalidade e na moralidade, subordinando-se a “parâmetros ético-jurídicos”(STF, 2009).

Isto posto, compete analisar a Recomendação nº 62/2020, editada pelo Conselho Nacional de Justiça por conta da crise do Covid-19, cujo conteúdo, para além das definições de cunho administrativo do próprio funcionamento do Poder Judiciário dispostas nas já citadas Resoluções, prescreveu recomendações que recaem na questão prisional, temática que está evidentemente adstrita à atividade jurisdicional.

Especificamente quanto ao sistema prisional, naquilo que decorre de processos-criminais propriamente ditos – exclui-se da presente análise questões atinentes a medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – o Conselho Nacional de Justiça recomendou, em síntese, o desencarceramento, não pura e simplesmente, mas daqueles cujas situações prisionais sejam incompatíveis com as prisões processuais e, no caso de condenados, priorizando-se a soltura na esteira da Súmula Vinculante nº 56 do Supremo Tribunal Federal[15].

Com efeito, a Recomendação nº 62/2020 se escora na decretação de pandemia pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020[16], bem como na Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional – ESPIN veiculada pela Portaria nº 188/GM/MS/2020[17] e nas previsões da Lei nº 19.979/2020 sobre medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do Coronavírus. Considera, ainda, a necessidade de salvaguardar a saúde das pessoas encarceradas sob a custódia do Estado, especialmente daquelas pertencentes aos grupos de risco, tendo em vista o alto índice de transmissibilidade do novo vírus, principalmente observando fatores de seu agravamento no sistema prisional em função da aglomeração de pessoas, da insalubridade das unidades e da insuficiência de instrumentos sanitários e de saúde pública, circunstâncias elementares do Estado de Coisas Inconstitucional declarado pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do pedido liminar contido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 (STF, 2015), tudo à luz das diuturnas violações aos mais basilares direitos fundamentais. Registre-se que o plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu, por ocasião daquele julgamento, o caos do sistema prisional brasileiro, marcado por um cenário de superlotação, que se dá principalmente por conta dos presos provisórios, que constituem hoje mais de um terço da população carcerária (CNJ, 2017), pela precariedade das instalações e pelas frequentes violações de direitos humanos, como pode se observar abaixo:

“(…)no sistema prisional brasileiro, ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se ‘lixo digno do pior tratamento possível’, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre. Daí o acerto do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na comparação com as ‘masmorras medievais”(STF, 2015)

É evidente que, com o surgimento do cenário de pandemia de Covid-19, a situação de Estado de Coisas Inconstitucional é, mais do que nunca, intensificada, haja vista que, na esteira dos dados e orientações do Ministério da Saúde ao declarar transmissão comunitária nacional (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020),  as condições de absoluta insalubridade e aglomeração das unidades prisionais são como tubos de ensaio para o descontrole da doença e o óbito generalizado. É o que vem sendo registrado nos noticiários, que apontam cada vez mais mortes por conta do Covid-19 nas unidades prisionais (SEAP, 2020), não só no Rio de Janeiro, mas também em São Paulo e em outros estados.

É, portanto, cristalino o agravamento da situação, uma vez que grande parte das unidades prisionais não possuem suporte médico e logístico adequado para lidar com o cenário, que a manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade é essencial à garantia da saúde coletiva e que um panorama de contaminação em grande escala no sistema prisional produz impactos significativos para a segurança e a saúde pública não só no âmbito carcerário, mas de toda a população.

Sendo o direito à saúde e à vida inerente à condição humana, e protegidos por Tratados Internacionais Sobre Direitos Humanos e pela Constituição da República, estando acima de qualquer outro direito, não podem simplesmente desaparecer com um mandado de prisão ou com eventual condenação judicial. São inalienáveis.  Não obstante encontrar-se prevista no art. 6º da Constituição da República, é essencial à dignidade da pessoa humana e à própria vida, especialmente num contexto de pandemia de doença de altíssima taxa de contágio e mortalidade.

  • Da atuação e aplicabilidade das medidas implementadas pelo Conselho Nacional de Justiça diante do cenário brasileiro.

A criação de gabinetes de crise, edição de atos normativos e mapeamento de contaminação são medidas que o Conselho Nacional de Justiça vem adotando para resguardar e proteger esses direitos em conjunto com os Tribunais. Daí a importância do alinhamento institucional, sobretudo do respeito à hierarquia do Poder Judiciário. Neste cenário, a Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça prescreve uma série de medidas concretas a serem adotadas na atividade judicante pelos magistrados, notadamente relativas a decisões que envolvam questões prisionais, elencadas a partir do seu art. 4º.

Em breves linhas, recomenda que os magistrados com competência para a fase de conhecimento criminal considerem (i) a reavaliação de prisões provisórias, (ii) a suspensão do comparecimento periódico ao foro daqueles em gozo de liberdade provisória ou de suspensão condicional do processo, (iii) bem como sejam novas prisões determinadas em situações absolutamente excepcionais. No mesmo sentido são as recomendações aos juízes com competência sobre a execução penal, para considerar (i) a concessão antecipada de benefícios na esteira da Súmula Vinculante nº 56 do Supremo Tribunal Federa, (ii) a prorrogação do prazo de retorno das saídas temporárias ou o adiamento de suas concessões, (iii) a concessão da prisão domiciliar a presos dos regimes semiaberto e aberto, (iv) a prisão domiciliar de preso suspeito de estar infectado com Covid-19, (v) a suspensão do dever de apresentação ao juízo dos apenados em cumprimento do regime aberto, da prisão domiciliar, das penas restritivas de direitos, dos sursis e do livramento condicional pelo prazo de 90 (noventa) dias.

Como já consignado anteriormente, as Resoluções do Conselho Nacional de Justiça a respeito de questões organizacionais e administrativas têm caráter normativo primário, já que decorrentes de sua missão constitucional. Não obstante, não se tratando esta hipótese formalmente de Resolução, mas de Recomendação, nos termos do art. 102 do Regimento Interno, questiona-se se é possível afirmar que a Recomendação nº 62/2020 tem a mesma natureza e observância obrigatória, especialmente considerando que seu teor mergulha nas minúcias das avaliações sobre prisões. Se por um lado o Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça considera suas Recomendações  como atos normativos (art. 102), de outro lado seu art. 8º dispõe, dentre as atribuições do Corregedor Nacional de Justiça, a proposição de “Recomendações e a edição de atos regulamentares que assegurem a autonomia, a transparência e a eficiência do Poder Judiciário e o cumprimento do estatuto da magistratura”, por certo descrevendo o escopo desta normativa. Já no art. 40-A, §1º, I, por ocasião da criação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de medidas Socioeducativas – DMF, dispõe a respeito das recomendações, fixando como objetivos do DMF o monitoramento e a fiscalização das Recomendações e Resoluções do Conselho Nacional de Justiça, sobre prisões provisórias e definitivas, medidas de segurança e de internação de adolescentes, objetivos que estão evidentemente vinculados à eficiência do Poder Judiciário.

Não há, como se observa, hipótese prevista no Regimento Interno que confira a força normativa à Recomendação que tenha a natureza da Recomendação nº 62/2020, sobre a qual ora se debruça. Não obstante isso, é justamente naquele julgamento do Pleno do Supremo Tribunal Federal que transparece a validade e a força cogente do ato. Com efeito, tendo fixado o Pretório Excelso que, por ocasião da edição da Resolução n⁰ 7/2005 (nepotismo) pelo Conselho Nacional de Justiça, não houve extrapolação do arcabouço constitucional em que está inserido, decorrendo o regramento do próprio art. 103-B da Constituição da República em consonância com os postulados insculpidos em seu art. 37, tendo referida Resolução caráter normativo primário, muito não difere o presente caso.

Isto porque também estabelece o art. 103-B, §4⁰, IV, da Constituição da República que compete ao Conselho Nacional de Justiça “representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou abuso de autoridade”. Na mesma toada é o art. 4⁰, VII, do Regimento Interno, segundo o qual compete ao plenário do Conselho:

“encaminhar peças ao Ministério Público a qualquer momento ou fase do processo administrativo quando verificada a ocorrência de qualquer crime, ou representar perante a ele nos casos de crime contra a administração pública, crime de abuso de autoridade ou nos casos de improbidade administrativa”.(BRASIL, 2009)

Observa-se que o Conselho Nacional de Justiça, ao zelar pela moralidade administrativa, também tutela a retidão dos membros do Judiciário, evitando o desvio do poder a eles imbuído através dos elevados cargos que ocupam.

Embora o abuso de autoridade já fosse tipificado como crime pela Lei n⁰ 4.898/1965 e pelo art. 350 do Código Penal, é certo que a Lei n⁰ 13.869/2019 deu nova dimensão a sua centralidade no Estado Democrático de Direito, na medida em que os tipos nela dispostos ombreiam os direitos fundamentais no arcabouço de proteções do indivíduo contra o poder estatal, com maior relevo no que concerte às decisões judiciais atinentes ao direito fundamental à liberdade. Dispõe o art. 9⁰ do referido diploma que é crime:

“Art. 9º Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;

III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.” (BRASIL, 2019)

É este artigo que culmina por emprestar eficácia normativa primária à Recomendação n⁰ 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça, porquanto a prisão fora das hipóteses estritamente legais e, com maior relevo, quando decretada (ou mantida) mesmo sendo cabível cautelar diversa ou a própria liberdade provisória, passa a integrar, expressamente, o tipo de abuso de autoridade, cuja coibição é dever do Conselho.

Na esteira da Ação Declaratória de Constitucionalidade n⁰ 12, os postulados que orientam a Administração Pública, destacando-se a moralidade no presente caso, previstos no art. 37 da Constituição da República, têm executoriedade imediata, porque princípios constitucionais de caráter normativo e, portanto, regras de atendimento obrigatório (TAVARES, 2018). O mesmo ocorre com os direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana (art. 1⁰, III, da CRFB), à liberdade (art. 5⁰, caput, da CRFB) e à saúde (art. 6⁰ da CRFB), inderrogáveis e inalienáveis, porque visam a resguardar a pessoa, figura ínsita à própria centralidade do Estado Democrático de Direito (TAVARES, 2018). Daí porque a Recomendação editada pelo Conselho Nacional de Justiça tem caráter normativo primário, eis que, na esteira da sua missão constitucional de coibir abusos de autoridade, estes consubstanciados, para efeitos do presente estudo, em prisões fora das hipóteses legais, especialmente quando possível a imposição de cautelar diversa da prisão ou de liberdade provisória, culmina por robustecer o caráter daqueles direitos fundamentais, ao elencar hipóteses em que se manifesta possível o desencarceramento.

Não é demais dizer que o próprio artigo 5⁰ da Constituição da República estabelece em seus incisos LXI, LXV e LXVI, a vedação ao abuso de poder como direito fundamental, já que veda a prisão fora das hipóteses de flagrante delito ou desfundamentada, determinando o imediato relaxamento daquelas ilegais e a imediata liberdade sempre que possível, ainda que por imposição de fiança.

Como já não fosse bastante o Estado de Coisas Inconstitucional declarado pelo Supremo Tribunal Federal, a pandemia causada pelo Covid-19 promove situação de risco sem precedentes à saúde das pessoas encarceradas no Brasil, violando, de jeito frontal, e inegável, o direito fundamental à saúde.

Nesse aspecto, vale lembrar que o novo regime de cautelares do processo penal estabeleceu, com inspiração na Constituição da República, a prisão provisória como último recurso a ser adotado para garantir a normalidade do trâmite do processo-crime, respeitando o binômio necessidade-adequação da medida ao caso concreto e aos direitos fundamentais em jogo; na mesma toada, a própria Lei de Execução Penal estabelece exceções ao cumprimento da pena exclusivamente em regime fechado, em homenagem aos direitos fundamentais do apenado, dos quais não é despido com a condenação, ou mesmo quanto à possibilidade de progressão de regime.

Tendo isto em mente, é possível verificar que a Recomendação n⁰ 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça atua senão como um dever de observância pelas autoridades judiciárias com competência criminal, porque complementar à inteligência do binômio necessidade-adequação, ou mesmo às regras expressas na Lei de Execução Penal, buscando com isso a fixação de limites ao exercício do poder e, por conseguinte, demarcar o momento em que começa o abuso de autoridade que lhe compete coibir, porque densificam os próprios direitos fundamentais, de observância cogente.

Conclusão

As bruscas mudanças na rotina e de perspectiva causadas pelo Covid-19 traz ao centro dos debates jurídicos não só a importância, mas a proximidade das instituições jurídicas a toda a estrutura social. A efetividade de uma legislação específica, a edição de ato normativo e sua respectiva receptividade no universo do Poder Judiciário, comportam não só o teor dos anseios democráticos, mas também um reflexo da cultura jurídica consolidada. A maleabilidade destas instituições em situações peculiares, como a que vivemos, e a velocidade com que são incorporadas essas mudanças em nosso cotidiano são, sem sombra de dúvidas, fatores determinantes para o êxito ou fracasso no enfrentamento de situações que demandam medidas urgentes.

            Em meio a um dilema quase kafkiano de competências republicanas, resta-nos apontar, discutir, enfrentar e garantir que todo e qualquer instrumento normativo esteja de acordo com o corpo democrático e com os direitos fundamentais insculpidos na Constituição da República, norte ao qual se acredita destinar a Resolução nº 62/2020, sendo sua observância imperiosa, porque corolário da própria Lei Maior.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Regimento Interno. Resolução nº 67/2009. Brasília, 2009.

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CASTRO, L. A. de. Criminologia da reação social. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 151-153.

DELEUZE, G. Instintos e instituições. In: A ilha deserta e outros textos: textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Editora Iluminuras, 2005.

MINISTÉRIO DA SAÚDE (Brasil). Ministério da saúde declara transmissão comunitária nacional. Agência Saúde, mar. 2020. Disponível em:  <https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46568-ministerio-da-saude-declara-transmissao-comunitaria-nacional>. Acesso em: 09 maio 2020.

PAVARINNI, Massimo. Cárcere e fábrica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

SECRETARIA DE ESTADO DE ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA (SEAP), Rio de Janeiro.). Boletim SEAP, maio 2020. Disponível em:<http://www.rj.gov.br/secretaria/NoticiaDetalhe.aspx?id_noticia=6204&pl=boletim-seap—13-de-maio-de-2020>. Acesso em: 10 maio 2020.

TAVARES, Juarez. Fundamentos da teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, pp. 36-37

Bibliografia

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Notas de Rodapé:

[1] Lucas Rocha é advogado criminal, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), membro da Comissão Especial de Estudos de Direito Penal da OAB/RJ e da Comissão de Direito Militar da OAB/RJ. É sócio do escritório Celano Advogados e mentor no Programa de Mentoria da OAB/RJ.

[2] Fellipe Souza Penteado é advogado, pós-graduando em Direito Empresarial, membro da Comissão Especial de Estudos de Direito Penal da OAB/RJ (CEEDP) e da Associação Nacional dos Advogados Criminalistas do Rio de Janeiro (ANACRIM/RJ). É mentorado no Programa de Mentoria da OAB/RJ.

[3] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 313/2020. Brasília, 2020.

[4] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 314/2020. Brasília, 2020.

[5] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 318/2020. Brasília, 2020.

[6] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 62/2020. Brasília, 2020.

[7] BRASIL. Congresso Nacional. Lei Complementar nº 75/1979. Brasília, 1979.

[8] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 19.869/2019. Brasília, 2019.

[9] BRASIL. Congresso Nacional. Emenda Constitucional nº 45/2004. Brasília, 2004.

[10] Congresso Nacional. Exposição de motivos da Emenda Constitucional nº 45/2004. Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2004/emendaconstitucional-45-8-dezembro-2004-535274-exposic aodemotivos-149264-pl.html. Acesso em 24/5/2020.

[11] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 7.210/1984. Brasília, 1984.

[12] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.

[13] Vide, igualmente, o que restou decidido na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 3.367, relator o ministro Cezar Peluso, na qual o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a existência do Conselho Nacional de Justiça: STF. ADI nº 3.367. Relator o ministro Cezar Peluso. Publicado no DJ em 22/9/2006.

[14] Por todas, veja-se os casos que pululam em rápida busca no Conselho Nacional de Justiça: CNJ. Reclamação Disciplinar nº 0005774-79.2016.2.00.0000. Relator o ministro Humberto Martins. Julgada em 22/10/2019; Reclamação Disciplinar nº 0010466-53.2018.2.00.0000. Relator o ministro Humberto Martins. Julgada em 16/8/2019; Reclamação Disciplinar nº 0005505-06.2017.2.00.0000. Relator o ministro João Otávio de Noronha. Julgada em 5/6/2018.

[15]Disponível em.http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=3352. Acesso em 18/05/ 2020.

[16] Disponível em http://www.euro.who.int/en/health-topics/health-emergencies/coronavirus-covid-19/news/news/ 2020/3/who-announces-covid-19-outbreak-a-pandemic. Acesso em 19/5/2020.

[17] Disponível em http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388. Acesso em 19/5/2020.

Palavras Chaves

Conselho Nacional de Justiça. Pandemia. Direito Penal. Prisões. Análise Institucional. Lei de Abuso de Autoridade. Sistema Carcerário. Covid-19.