O PROBLEMA DA HERANÇA DIGITAL NO CASO DE BENS DIGITAIS EXISTENCIAIS

Resumo

O meio virtual cada vez mais vem permeando a vida das pessoas, as quais vão
passando mais tempo nesta outra dimensão que tem suas próprias regras e mecânicas. Com
isso, cada vez mais conteúdo digital surge como rastro dos seus usuários, o que eventualmente
forma verdadeiros patrimônios digitais, podendo variar desde meras mensagens, fotos de uma
viagem ou até canais inteiros repletos de vídeos monetizados que geram renda para várias
pessoas. Assim, um cenário imprevisível se forma nesta realidade virtual de tal forma que o
Legislativo não tem sido capaz de acompanhar, oferecendo verdadeiros desafios aos
profissionais do Direito. Diante disto, o presente trabalho analisa como a jurisprudência vem
entendendo o tema da herança digital no que tange a certos bens digitais, propondo-se nisso a
fazer breves explicações sobre os tipos de bens digitais e como eles podem ser alvo de
discussão na herança digital.

Artigo

  O PROBLEMA DA HERANÇA DIGITAL NO CASO DE BENS DIGITAIS EXISTENCIAIS

Irineu Carvalho de Oliveira Soares

Cyro Wojcikiewicz de Almeida Coelho

Resumo – O meio virtual cada vez mais vem permeando a vida das pessoas, as quais vão passando mais tempo nesta outra dimensão que tem suas próprias regras e mecânicas. Com isso, cada vez mais conteúdo digital surge como rastro dos seus usuários, o que eventualmente forma verdadeiros patrimônios digitais, podendo variar desde meras mensagens, fotos de uma viagem ou até canais inteiros repletos de vídeos monetizados que geram renda para várias pessoas. Assim, um cenário imprevisível se forma nesta realidade virtual de tal forma que o Legislativo não tem sido capaz de acompanhar, oferecendo verdadeiros desafios aos profissionais do Direito. Diante disto, o presente trabalho analisa como a jurisprudência vem entendendo o tema da herança digital no que tange a certos bens digitais, propondo-se nisso a fazer breves explicações sobre os tipos de bens digitais e como eles podem ser alvo de discussão na herança digital.

Palavras-chave – Bens Digitais. Herança Digital. Jurisprudência.

Sumário – Introdução. 1. Bens Digitais.  2. Jurisprudência. 3. O Problema da Herança Digital. 4. A Divergência Doutrinária. 5. Tentativas de Solução no Legislativo. Conclusão. Referências.

2.                  INTRODUÇÃO

Em abril de 2021 um triste caso de atropelamento levou a óbito o jovem João Vitor Duarte Neves, porém as repercussões jurídicas desse falecimento não foram das mais usuais. Isso se deve ao fato de que, ante a perda do filho, a família do de cujus entrou com uma ação na 2° Vara do Juizado Especial Cível de Santos, São Paulo, pedindo para a empresa Apple nada mais que a senha do celular do falecido. A razão para tal pedido se devia ao fato de, segundo a família, o celular de João Vitor possuir fotos, vídeos e conversas de valor sentimental para os familiares em questão. O juiz responsável, dentro do que a Apple poderia fazer, deu procedência ao pedido, permitindo acesso de tais matérias para a família.

Esta decisão, presente no processo nº 1020052-31.2021.8.26.0562/SP, levantou certas questões, como as levantadas por matéria de 2022 da revista O Globo, de autoria de Elisa Martins, tratando justamente do caso de João Vitor e do que seria a chamada herança digital. A problemática levantada pela jornalista girava em torno da dicotomia que começou a surgir entre a herança de certos bens digitais em relação ao próprio direito de privacidade do de cujus.

Este caso concreto é um exemplo muito interessante do tema deste trabalho: a herança digital. Quando se fala de herança, o que talvez pode vir a mente das pessoas seja a transmissão de bens, como imóveis, terrenos, carros e fortunas presentes em bancos, além de todos os debates e intrigas familiares que podem ocorrer em processos de inventários que se delongam por anos. Porém, com o advento da Terceira Revolução Industrial, tecnologias digitais ganharam espaço dentre o repertório de instrumentos ao alcance da sociedade: Internet, computadores pessoais, sites, e-mails, redes sociais e agora se discute até de Metaverso – um espaço totalmente virtual onde pessoas poderiam interagir como se fosse o ambiente real. Por causa desse avanço tecnológico, o que se tem observado é que cada vez mais um conceito de bem digital vem se tornado comum na sociedade, seja ele um mero like numa rede social até todo um conjunto de criptomoedas extremamente valiosas.

Por causa disto, o presente trabalho se propõe a apresentar de forma breve o que são esses bens digitais e como eles podem ser passíveis de serem alvos de ações sucessórias, sob pretexto de levantar discussões e questionamentos nesta seara do direito digital e suas repercussões nas demais áreas do direito, em especial o direito sucessório.

Como o assunto da herança digital é uma novidade jurídica que exige muitas explicações particulares de casos concretos e dinâmicas do mundo digital, a fundamentação teórica do presente trabalho acadêmico consiste em matérias digitais de diversos endereços eletrônicos que versam sobre o tema, desde o site do Migalhas, do Conjur, até o do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Além destas fontes próprias da internet, haverá consultas jurisprudenciais para breves estudos de caso, visando analisar como o tema da herança digital vem sendo tratado pelos magistrados de todo país, cabendo uma apreciação mais demorada no caso já citado de João Vitor Duarte Neves, haja vista que o caso dele é deveras emblemático para a sucessão de bens digitais existenciais. Vale observar que muitos destes materiais possuem caráter introdutório e explicativo.

Para algumas ponderações, certos termos seguirão as orientações de determinados autores. No caso de bens digitais, o artigo “Direito do Patrimônio Cultural na Era da Informação: Bens Digitais e a Tutela Jurídica”, de Adrian Gabriel Fideles Paixão e Bruna Teixeira Kai, será usado como referência. Já no que tange a conceitos como honra e dignidade da pessoa humana, serão consideradas as sínteses apresentadas por Décio Franco David no capítulo 3 de sua “Análise Crítica dos Crimes Contra o Respeito aos Mortos no Direito Penal Brasileiro”.

Por ser baseado na análise de casos concretos e no uso de analogias para buscar conceituar e aplicar princípios do Direito num tema ainda recente, a matriz epistemológica do presente trabalho segue uma linha mais voltada ao empirismo.

Assim o presente trabalho acadêmico se valeria de uma metodologia baseada em fontes documentais e bibliográficas em um método explicativo. Além disso, para concluir o trabalho, haverá de se comentar sobre a legislação que vem se formando no tema da herança digital e o que já é possível refletir com base no conceito de bens digitais.

 

3.  BENS DIGITAIS

 

Em matéria da Editora Fórum é possível achar o que seriam bens digitais e quais seriam suas espécies: bens digitais são conteúdos virtuais que existem dentro da Internet e possuem algum grau de utilidade ao seu titular, podendo ter relevância econômica ou não. Assim, teríamos os bens digitais patrimoniais, os bens digitais existenciais e os bens digitais híbridos. Em artigo de Adrian Gabriel Fideles Paixão e Bruna Teixeira Kai encontram-se definições do que seriam essas espécies:

  

Os bens digitais patrimoniais são aqueles capazes de gerar repercussões econômicas imediatas quando são inseridos em rede, enquanto os bens digitais existenciais geram repercussões extrapatrimoniais e o tipo patrimonial-existencial une características dos dois, podendo se tornar mais comum devido à facilidade de monetização das manifestações no ambiente virtual. (PAIXÃO; KAI, 2020, p. 217).

Com isso, é possível visualizar que bens como criptomoedas e contas de redes sociais monetizadas podem ser bens digitais patrimoniais, já que eles geram uma evidente capacidade econômica direta, assim, não seria estranho que tais bens pudessem ser alvo de ações sucessórias. Mas e os bens digitais existenciais e os bens digitais híbridos? É neste dilema que entra o problema sucessório dos bens digitais: nem sempre o seu caráter econômico é claro o bastante – isso quando ele importa.

4.  JURISPRUDÊNCIA

 

Como já mencionado anteriormente, o processo nº 1020052-31.2021.8.26.0562/SP consistia no interesse da família de João Vitor Duarte Neves – falecido em um acidente de trânsito – de obter acesso ao conteúdo do celular do falecido, sob pretexto de obter acesso às últimas fotos e vídeos do falecido que estavam registradas exclusivamente no aparelho. Foi uma demanda exclusivamente emocional de uma família que queria ter esse registro mais recente do ente perdido, ao em vez de condenar tais materiais ao desaparecimento. Esta foi a defesa dos advogados da família – Marcelo Cruz, Marcio Harrison e Octavio Rolim – que obtiveram uma liminar por parte do juiz Guilherme de Macedo Soares para que a fabricante do celular disponibilizasse o acesso reivindicado para a família. Os bens digitais peticionados neste cenário de sucessão de titularidade não eram do tipo patrimonial, pois eram simples registros de um cidadão comum, sendo assim bens digitais existenciais.

Isso vai contra uma jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que não permitiu à família o acesso a determinadas informações do falecido por não haver justificativa econômica. O julgado em questão foi o AI nº 1906763-06.2021.8.13.0000/MG, no qual o indeferimento se deu pautado principalmente no inciso X do artigo 5° da Constituição Federal de 1988, no qual se estipula a inviolabilidade do direito à intimidade das pessoas.

A desembargadora relatora Albergaria Costa fundamenta mais a decisão, mencionando a omissão da Lei 13.709/2018 – popularmente chamada de LGPD, ou Lei Geral de Proteção de Dados – sobre se deveria haver continuidade da proteção em questão no caso de falecimento ou de como se entenderia o direito da personalidade do de cujus. Nesse sentido, o artigo 1791 do Código Civil permitiria o acesso a uma suposta herança digital, pelo entendimento do TJ-MG, mas somente no caso de bens digitais de vultosa valoração econômica, como seria o caso de criptomoedas, NFTs (Non-fungible token) e mídias digitais de propriedade intelectual do falecido – todos exemplos dados pela relatora Albergaria Costa.

Nesse caso, o que haveria se estabelecido na lei seria a possibilidade de herança digital somente para bens digitais patrimoniais, já que o acórdão continua frisando a necessidade da proteção legal dos direitos da personalidade da pessoa humana, mesmo que falecida, embasando tal entendimento em citação de Cesar Fiuza e no art. 12 do Código Civil, que estipula a faculdade de exigência ao cessar de ameaça ou lesão ao direito de personalidade, mesmo que para pessoa falecida.

Para fortalecer a citação cível do acórdão, cabe mencionar também o crime de vilipêndio a cadáver, previsto no artigo 212 do Código Penal Brasileiro, que tem como bem jurídico penalmente protegido justamente a honra da pessoa morta[3] . Como o direito a honra também é um direito personalíssimo protegido pelo mesmo dispositivo constitucional que a intimidade, é seguro afirmar, ao lado das razões do referido julgado do TJ-MG, que há considerável legislação embasando uma proteção ao direito de personalidade do falecido.

Porém, se essa proteção afasta a herança digital de bens digitais híbridos ou existenciais, a jurisprudência não é uníssona, como a matéria supracitada de Elisa Martins dita ao mencionar um caso de São Paulo e outro do Mato Grosso do Sul. O acórdão da apelação cível AC nº 1074848-34.2020.8.26.0100/SP negou o acesso de família à rede social da filha falecida, pautado nas políticas de uso da rede social em questão, sendo notório que dentre as configurações da conta, a falecida havia aceitado um termo que previa o cancelamento da conta em caso de sua morte, o que acabou por acontecer. O caso do Mato Grosso do Sul seguiu resultado oposto, no qual a filha havia configurado para que a conta seguisse ativa, mas sua família conseguira liminar para excluir o perfil. Em um caso, a vontade da falecida fora seguida, ao passo que no outro não fora.

5.  O PROBLEMA DA HERANÇA DIGITAL

 

Usando o caso do processo nº 1020052-31.2021.8.26.0562/SP, já mencionado anteriormente, a decisão do juiz Guilherme Macedo de Soares, por mais que desse o acesso às mídias solicitadas, não foi um acesso ao celular de João Vitor, mas sim uma transferência de dados presentes numa conta de armazenamento de mídias. Esse é um detalhe importante, haja vista que é um caso de herança digital de bens digitais existenciais que ainda assim, de alguma forma, reconhece um limite do acesso do que o de cujus deixou.

Exemplificando melhor com base no caso em questão, imagine que a liminar permitisse um acesso total ao celular do falecido por parte da família. Isso permitiria que eles pudessem ver conversas sensíveis de foro íntimo que ele talvez não tivesse interesse que fosse acessado por terceiros, como poderia ser o caso de uma conversa com uma namorada, quem sabe até uma troca de fotos íntimas (os chamados nudes), prática não incomum entre jovens. Evidentemente que tais hipóteses somente servem de exercício especulativo, mas se revelam bem didáticas para ilustrar a relevância de limites ao direito de herança para bens digitais existenciais, já que em alguns casos eles podem acabar invadindo a intimidade do falecido de maneira altamente exacerbada.

Uma boa comparação com algo que já existe é o caso do vilipêndio de cadáver: é seguro afirmar que deixar o cadáver com sua nudez exposta seria uma forma de desonra com o falecido. De maneira similar, um acesso não consentido a conteúdos como fotos íntimas do falecido certamente poderia vir a ser uma forma de desonra com ele. O que torna esta ponderação algo complexo é a ciência dos parentes herdeiros sobre a existência desse tipo de conteúdo no dispositivo ou conta que eles desejam acessar no contexto de herança digital. Ora, que pai irá pensar que ao procurar ter acesso às últimas fotos do seu filho falecido irá acabar por encontrar fotos de conteúdo sexual num contexto de gracejo?

Ter acesso a contas pessoais poderia também ser uma forma de causar discórdia entre familiares: imagine os pais ao acessarem conversas de seu filho descobrissem que ele falava mal deles e outros parentes para com seus demais amigos? Isso seria uma surpresa negativa que numa situação tão sensível poderia gerar abalos não desejados ou até mesmo prejudicar a memória e reputação do falecido em relação aos seus familiares. Esse nível de acesso pode ser uma verdadeira roleta russa, tendo em mente tais ponderações, no que os herdeiros poderiam ter uma grande frustração ou choque ao custo de uma invasão à privacidade do de cujus, isso se não for considerar que é um potencial ataque à honra do falecido – ambos sendo direitos constitucionalmente garantidos ao mesmo.

Porém, quando se fala de herança digital, petições como do caso da família João Vitor não tratam do que se costuma ser mais debatido nessa seara. Com a popularização das redes sociais, se tornou bastante conhecido a monetização por AdSense,  que é basicamente uma espécie de remuneração que empresas pagam para poderem anunciar em determinados sites. Assim, plataformas digitais que possuam conteúdos mais atraentes para os internautas são plataformas que gozam de maior atenção de empresas, as quais irão querer anunciar seus produtos onde terão mais visibilidade.

Com isto fica claro a maneira na qual a figura do digital influencer surge: se a provedora da plataforma digital lucra com o interesse publicitário de empresas, uma forma dela garantir um público maior na plataforma é a de encorajar a produção de conteúdo que atraia as pessoas para as plataformas. Um movimento claro é o que ocorre no YouTube, no qual muitos conteúdos são produzidos por diferentes pessoas com variados motivos, o que acaba por atrair visualização de quem se interessa por estes conteúdos. O termo youtuber é a nomenclatura dada a esses produtores de conteúdos que divulgam seus materiais no YouTube, criando verdadeiras comunidades na plataforma. Ciente disto, o YouTube mesmo criou todo um sistema de monetização de vídeo que permite que os youtubers consigam obter determinada quantia com base nas visualizações de seu canal, caso certas condições sejam obtidas – em suma, quanto mais o vídeo é assistido, mais dinheiro é obtido. Como se tem um produtor de conteúdo perante toda uma comunidade construída ao redor de seu trabalho, é induzível crer que o produtor exerça algum grau de influência perante seus seguidores, assim explicando como surge o termo digital influencer.

Tendo esta explicação em mente, se torna fácil perceber que ter uma conta com vários seguidores é uma potencial fonte de renda, talvez até mesmo passiva, dependendo da quantidade de conteúdos que já foram produzidos e do contexto da plataforma. Então, se um digital influencer falece, por mais que sua conta fosse algo pessoal e privativo, ela se torna um bem econômico altamente relevante no debate sucessório. Nesse caso, o que se tem é um bem digital híbrido, já que ele é, ao mesmo tempo, existencial e patrimonial.

Após todas essas ressalvas e a supracitada ausência de legislação específica, forçando os magistrados a recorrerem para analogias e ponderações sobre princípios, o que tem gerado uma já demonstrada jurisprudência não pacificada, fica claro que há uma insegurança jurídica. Desta feita, não é de se estranhar que haja projetos de lei versando sobre o tema da herança digital.

6.  A DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA

 

Antes de avançar para uma apreciação sobre que medidas o Legislativo está movimentando para solver a falta de legislação sobre os bens digitais em geral, cabe observar antes um interessante levantamento feito em artigo da Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Tocantins, no qual se averígua, a partir da menção de distintos autores, a existência de uma divergência sobre qual deve ser a amplitude dos bens constantes na herança digital.

Os autores do artigo comentam sobre Gabrielle Constantino e André Luiz de Oliveira defenderem que “a herança digital deve abarcar todos os bens e arquivos digitais estruturados e armazenados em dispositivos eletrônicos, como […] senhas e perfis de redes sociais, […] produções autorais e os diversos bens integrantes do patrimônio digital” (MAGALHÃES, A. E. M.; MARQUES, V. P, 2021, p. 48). Este seria o conceito de transmissibilidade total dos bens digitais, como mais a frente Antônio Eduardo Macedo Magalhães e Vinicius Pinheiro Marques conceituam a partir de Terra, Oliva e Medon.

Outra corrente seria o conceito da transmissibilidade parcial dos bens digitais, no qual os bens digitais patrimoniais seriam passíveis de transmissão sucessória, enquanto os bens digitais existenciais devem “respeitar a disposição de última vontade do falecido, ou, quando não houver, o acesso poderá ser pleiteado pelos herdeiros por meio da via judicial.” (MAGALHÃES, A. E. M.; MARQUES, V. P, 2021, p. 62).

O que pode parecer nebuloso nessa separação doutrinária é a questão dos bens digitais híbridos, já que por terem valor existencial, mas também patrimonial, configuram uma verdadeira disputa de direitos, no caso o direito de herança dos herdeiros e o direito de privacidade do de cujus. Talvez o mais acurado nesse caso, seguindo o raciocínio do acórdão de Albergaria Costa, seria permitir a sucessão dos bens digitais híbridos, já que eles configurariam uma potencial fonte de receita aos herdeiros.

Além disto, a possibilidade de ainda assim os herdeiros obterem o acesso aos bens digitais existenciais – mesmo na corrente da transmissibilidade parcial – não fogem das problemáticas e divergências jurisprudenciais levantadas anteriormente no presente trabalho. A conclusão de Antônio Magalhães e Vinicius Marques, admitindo que não é comum do brasileiro realizar testamento e que há um vácuo legislativo sobre o tema, acaba se resumindo no seguinte trecho:

  

Importante destacar, por fim, que, não existindo disposição de última vontade do falecido, resta necessária a confecção de inventário dos bens. Em relação aos bens de caráter econômico, deverá ser disponibilizado o ingresso dos herdeiros ao seu conteúdo. Já a respeito dos bens de cunho pessoal, até que sejam regulamentados por legislação específica, irão depender de anuência do Poder Judiciário para que o acesso ao conteúdo seja liberado ou para que sejam excluídos das redes virtuais.

Destaca-se, novamente, a importância de as decisões judiciais serem embasadas pelos critérios de harmonização do ordenamento, levando em consideração que, em se tratando de bens personalíssimos, integrantes do centro de interesses pessoais do usuário, é importante que seja privilegiado o direito à privacidade e vida íntima do “de cujus” em prejuízo ao direito à herança dos herdeiros, atendendo aos parâmetros da hermenêutica jurídica e respeitando a dignidade do ser humano. (MAGALHÃES, A. E. M.; MARQUES, V. P, 2021, p. 63).

Desta forma, pode-se concluir que há uma divergência clara de entendimentos, mas ao seguir o artigo de Antônio Eduardo Macedo Magalhães e Vinicius Pinheiro Marques, o qual menciona inúmeros outros autores lecionando sobre o tema, não seria ousado dizer que a corrente majoritária é a da transmissibilidade parcial dos bens digitais.

7.  TENTATIVAS DE SOLUÇÃO NO LEGISLATIVO

 

Em publicação de 2021 do site do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), se encontra certa análise do Projeto de Lei 1.689/2021, além de relevantes pareceres da advogada e professora Patrícia Corrêa Sanches, presidente da Comissão de Família e Tecnologia do IBDFAM, os quais tratam justamente de um problema que consta nos projetos de lei existentes até o momento da dada matéria: “por enquanto, nenhum desses projetos garante a segurança jurídica necessária para se legislar sobre uma temática de tamanha importância e solenidade, no Direito das Sucessões e da privacidade” (SANCHES, 2021).

Especificamente do PL em si, cabe observar que ele se propõe a estabelecer regras de forma similar ao que a LGPD faz, obrigando certos tratamentos de dados para os sites, no caso de contas, publicações e dados pessoais de pessoas mortas, como consta na publicação do IBDFAM. A ideia da autora do projeto, a deputada Alê Silva (PSL-MG), é de trazer ao conceito de herança direitos autorais, dados pessoais e interações diversas em redes sociais, arquivos na nuvem, contas de e-mail e sites de Internet. O sucessor só não teria acesso a tais dados caso houvesse uma vedação do falecido em testamento, a qual ele esclareceria se deseja que as informações deveriam se manter em sigilo ou serem eliminadas. Com isso, a lacuna legislativa sobre o tema da herança digital seria preenchida e a insegurança jurídica seria sanada, considerando outros temas que a publicação fonte melhor explicita a respeito do projeto.

Doravante, Patrícia Corrêa Sanches, como mencionado antes, discorda do pressuposto de Alê Silva, justamente por causa dos direitos de personalidade serem intransmissíveis, assim, tratar dados pessoais como herdáveis seria abrir uma exceção perigosa que atentaria contra o direito à privacidade, gerando justamente o contrário que o projeto almeja, ou seja, criando “insegurança jurídica e social ab initio”.

Tal entendimento conflui com o acórdão já mencionado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e os argumentos apresentados no presente texto, no que se averígua a necessidade de uma grande cautela em prol do direito à privacidade do de cujus no que tange ao tema da herança digital.

É curioso notar que, para além deste PL mais recente, outros projetos de lei (como o PL n° 4099/2012) ignoraram a mesma nuance que o de Alê Silva, o qual é a possível violação do direito à privacidade cometido pela sucessão de bens digitais existenciais e híbridos. Neste sentido, Antônio Magalhães e Vinicius Marques (2021) observam após analisar distintos projetos de lei:

“é imprescindível que o Poder Legislativo observe a técnica de sopesamento principiológica, com base no critério de harmonia do ordenamento, levando em consideração as mais diversas situações. Frisa-se, por fim, que, ao se tratar  de  bens  com  caráter  personalíssimo,  é  importante  que  o  direito  à  privacidade do de cujus seja prestigiado em desfavor do direito à herança dos herdeiros, uma vez que essa modalidade de bens integra o patrimônio íntimo do usuário, logo, os critérios adotados para sopesamento devem estar aptos a atender da melhor forma possível o princípio da dignidade da pessoa humana, elemento basilar do ordenamento jurídico pátrio.” (MAGALHÃES, A. E. M.; MARQUES, V. P, 2021, p. 61).

Assim é possível concluir que, por enquanto, o Legislativo irá demorar para oferecer uma boa resposta para o tema da herança digital em geral, o que fomenta ainda mais a necessidade de debate acerca do tema.

             

8.                  CONCLUSÃO

             

A herança digital é uma ampliação do alcance dos direitos de sucessão bastante pertinente à sociedade, ainda mais considerando a forma como o mundo digital vem se tornando cada vez mais parte da vida das pessoas por todo o mundo.

No entanto, a maneira como o mundo digital se torna uma espécie de extensão da vida dos indivíduos acaba por trazer implicações muito além das que o Legislativo vem apreciando, já que as pessoas vêm cada vez mais criando patrimônios virtuais que vão além de uma conceituação monetária.

Como essa nova realidade vem se tornando mais uma forma de exteriorização da pessoa, os bens digitais existenciais ganham uma profundidade para além de bens digitais desprovidos de valores econômicos, com sérias nuances no que tange ao direito à privacidade e à honra. Dessa forma, observando que certos casos concretos têm colocado em cena o debate sucessório para bens digitais existenciais, o presente trabalho tem como função fomentar o debate e a reflexão de que nuances têm de ser observadas em um futuro caso concreto ou na confecção de uma legislação específica ao tema da herança digital.

 

9.                  REFERÊNCIAS

______. ALVES, Jones Figueirêdo.  A herança digital como instituto de Direito Sucessório e a doutrina zenista. [S.l], 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-out-03/heranca-digital-instituto-direito-sucessorio-doutrina-zenista> Acesso em: 2 novembro 2022.

______ DAVID, Décio Franco. Análise crítica dos crimes contra o respeito aos mortos no direito penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, [S.l], 2015, Volume 117, Parte Especial, 2015. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RBCCrim_n.117.04.PDF.> Acesso em: 2 novembro 2022.

 ______.  Editora Fórum. [S.l.], 2021. Disponível em: <https://www.editoraforum.com.br/noticias/o-que-sao-bens-digitais-e-as-suas-possibilidades-de-sucessao/> Acesso em: 2 novembro 2022.

______. Instituto Brasileiro de Direito de Família. [S.l.], 2021. Disponível       em:

<https://ibdfam.org.br/noticias/8765/Heran%C3%A7a+digital+%C3%A9+tema+de+projeto+de+lei+que+trata+do+destino+de+perfis+em+redes+sociais+ap%C3%B3s+a+morte>. Acesso em: 2 novembro 2022.

______. JACOB, Sofia. Você sabe o que é herança digital?. [S.l.], 2021. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/95234/voce-sabe-o-que-heranca-digital>.  Acesso em: 2 novembro 2022.

______. MAGALHÃES, A. E. M.; MARQUES, V. P. Análise do conflito entre a privacidade do falecido e a sucessão dos herdeiros na herança digital. Revista Jurídica do Ministério Público do estado do Tocantins, Tocantins, 2021, v. 1, n. 19, pag. 37 a 68., 2021. Disponível em:             <https://cesaf.mpto.mp.br/revista/index.php/revistampto/issue/view/3>. Acesso em: 2 novembro 2022.

______. MARTINS, Elisa.  Herança Digital: Sucessão de bens mantidos na rede é ponto nebuloso na lei brasileira. São Paulo, 2022. Disponível em: <https://files.journoportfolio.com/users/165309/uploads/070d1d3b-445d-43f3-8421-87bfc793794f.pdf> Acesso em: 2 novembro 2022.

______. MIGALHAS.  Herança digital: O que acontece com os “bens virtuais” de um falecido?. [S.l.], 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/348341/heranca -digital-o-que-acontece-com-os-bens-virtuais-de-um-falecido> Acesso em: 2 novembro 2022.

______. PAIXÃO, A. G. F.; KAI, B. T.  Direito do patrimônio cultural na era da informação: bens digitais e a tutela jurídica. Revista do instituto histórico e geográfico do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2020, Dossiê Patrimônio Histórico, n° 157 especial, pag. 209 a 230., 2020. Disponível em: <https://www.seer.ufrgs.br/revistaihgrgs/article/view/95173.> Acesso em: 2 novembro 2022.

10.                                ______. SANTOS. Tribunal de Justiça de São Paulo (2ª Vara do Juizado Especial Cível). Decisão no processo digital n° 1020052-31.2021.8.26.0562. Requerente: João Vitor Duarte Neves (representado por seu pai). Requerido: Apple Computer Brasil Ltda. Santos, 7 de outubro de 2021. Disponível     em: <https://www.migalhas.com.br/arquivos/2022/1/98FA45C32CD0EF_decisaoapple2.pdf> Acesso em: 2 novembro 2022.

______. SÃO JOÃO DEL-REI. Tribunal de Justiça de Minas Gerais (3ª Câmara Cível). Agravo de instrumento nº 1906763-06.2021.8.13.0000/MG. Agravo de instrumento. Inventário. Herança Digital. Desbloqueio de aparelho pertencente ao de cujus. Acesso às informações pessoais. Direito da personalidade. Agravante: Rosilene Meneses Folgado. Agravado: Alexandre Lana Ziviani. Relatora: Albergaria Costa. São João del-Rei, 28 de janeiro de 2022. Disponível em: <https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1906763-06.2021.8.13.0000&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar> Acesso em: 2 novembro 2022.

[1] Doutor e Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF). Professor do Curso de Direito e Coordenador de Pesquisa da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio (Mackenzie Rio) e do Centro Universitário São José (UniSJ). Membro do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (LAFEP/UFF).

[2] Bacharelando em Direito e pesquisador do Núcleo de Pesquisa da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio. Estagiário do Ministério Público Militar do Estado do Rio de Janeiro.

[3] Aqui trato honra como sinônimo de dignidade da pessoa, baseando-me na síntese de Décio Franco David sobre o que seria uma corrente de pensamento a respeito de que bem é tutelado nos crimes contra o respeito aos mortos.

Palavras Chaves

Bens Digitais. Herança Digital. Jurisprudência.