RESPONSABILIDADE CIVIL E OFENSA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE NA INTERNET: UMA ANÁLISE DOS LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

Resumo

O objetivo do presente trabalho é analisar a responsabilidade civil no âmbito da internet, com foco nas ofensas aos direitos da personalidade praticados nas redes sociais. Para tanto, busca-se contextualizar a tutela da personalidade e a responsabilização civil na norma civilista para, posteriormente, examinar casos concretos e decisões judiciais, fazendo-se a devida ponderação dos limites à liberdade de expressão impostos pelo ordenamento jurídico pátrio.

Artigo

RESPONSABILIDADE CIVIL E OFENSA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE NA INTERNET: UMA ANÁLISE DOS LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

 

 Ana Beatriz Guimarães Godinho[1]

Irineu Carvalho de Oliveira Soares[2]

Isabelli Maria Gravatá Maron[3]

 

Resumo – O objetivo do presente trabalho é analisar a responsabilidade civil no âmbito da internet, com foco nas ofensas aos direitos da personalidade praticados nas redes sociais. Para tanto, busca-se contextualizar a tutela da personalidade e a responsabilização civil na norma civilista para, posteriormente, examinar casos concretos e decisões judiciais, fazendo-se a devida ponderação dos limites à liberdade de expressão impostos pelo ordenamento jurídico pátrio.

 

Palavras-chave: Responsabilidade Civil; Direitos da Personalidade; Internet; Redes Sociais; Liberdade de Expressão.

Sumário: Introdução 1. Tutela da Personalidade sob a Perspectiva Civil-constitucional 2. A Responsabilidade Civil e suas Aplicações 3. A Modernização da Legislação e o Cenário Brasileiro Contemporâneo 4. Casos Emblemáticos de Ofensa aos Direitos da Personalidade e Excessos no Uso da Liberdade de Expressão 5. Breve Análise Jurisprudencial. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

      A internet, indiscutivelmente, é um instrumento que demonstra potencial inesgotável, mostrando-se útil desde as atividades básicas do cotidiano a sistemas mais complexos de inteligência artificial. Passados os longos anos da pandemia de Covid-19, esta ferramenta ganhou ainda mais espaço em nossos hábitos e costumes. Estas relevantes mudanças sociais, por óbvio, acarretam repercussões no Direito. É neste contexto contemporâneo que este estudo se insere.

     Não raro, observa-se nas redes sociais os mais diversos tipos de excessos, desvios morais e infrações éticas. De fato, parece haver uma crença equivocada de que, na internet, não há fronteira que não possa ser ultrapassada. E sob o argumento de uma suposta liberdade de expressão, tudo pode ser dito, não importando quais consequências este ato possa ensejar. Certamente uma série de comportamentos que emergem no mundo virtual, se apresentariam de forma mais contida fora das redes, nos espaços sociais.  Afinal, a liberdade de expressão deve ser restringida ou moderada? Este debate é atual e, sem dúvidas, instigante.

     O presente trabalho objetiva analisar a prática reiterada de ofensas aos direitos da personalidade no âmbito da internet, com foco nas redes sociais, transgredindo o direito à liberdade de expressão. Como hipótese inicial destaca-se que há responsabilização no plano virtual, não sendo franqueado ao usuário expressar absolutamente tudo o que sente – ódio, raiva, desejos e preconceitos. Outra hipótese levantada é que, por ser esta uma temática relativamente nova, pressupõe-se desconhecida ou ignorada por parte significativa da sociedade brasileira.

     É fundamental, portanto, examinar como o Direito, amparado pela responsabilidade civil, é capaz de responder a eventuais ataques perpetrados por meio das plataformas virtuais e, por conseguinte, seus danos morais e materiais. Para além das sanções e aplicações já previstas no arcabouço jurídico brasileiro, novos diplomas legais tendem a surgir para abarcar os mais diversos artefatos tecnológicos.

 

  1. TUTELA DA PERSONALIDADE SOB A PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL

     É possível conceituar os direitos da personalidade como aqueles concernentes à seara extrapatrimonial do indivíduo, que ostentam como objetos precípuos seus atributos físicos, psíquicos, morais e suas projeções sociais. A categoria “direitos da personalidade” originou-se das reflexões de jusnaturalistas franceses e alemães para designar certos direitos inerentes ao homem. Estes direitos seriam essenciais à condição humana em tamanha proporção que “todos os outros direitos subjetivos perderiam qualquer interesse para o indivíduo, ao ponto de se chegar a dizer que, se não existissem, a pessoa não seria mais pessoa” (DE CUPIS, 1950, apud SCHREIBER, 2013, p.5).

     Na visão de Gustavo Tepedino[4], a noção de personalidade deve ser considerada em duas vertentes: o aspecto subjetivo, que se relaciona com a capacidade que possui toda pessoa (física ou jurídica) de ser titular de direitos e obrigações; e o aspecto objetivo, que representa o conjunto de características e atributos da pessoa humana, considerada como objeto de proteção por parte do ordenamento jurídico. Em razão de um longo debate doutrinário, estes valores – a exemplo da vida, honra, imagem, nome, privacidade, integridade física e liberdade – tardaram a ser inseridos no ordenamento jurídico brasileiro. O Código Civil pátrio de 2002, enfim, trouxe em seu bojo este marco, dedicando um capítulo aos direitos da personalidade. A legislação civilista externou a preocupação com o indivíduo, demonstrando os proveitosos reflexos da Constituição Cidadã que fora promulgada em 1988. A Carta Maior, além de trazer o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) como balizador de todo nosso ordenamento, em seu artigo 5º, inciso X, inaugurou o tema estabelecendo: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Já no Código Civil em vigor, a matéria está assentada no Capítulo II, do Livro I, Título I, da Parte Geral, nos artigos 11 ao 21.

      Entre as características dos direitos da personalidade estão a sua intransmissibilidade e inalienabilidade, o que, por conseguinte, os tornam indisponíveis. Cabe a ressalva que, embora sejam direitos absolutos (oponíveis erga omnes), esta indisponibilidade deve ser considerada relativa. Gonçalves (2012, p. 418) leciona que “alguns atributos da personalidade, contudo, admitem a cessão de seu uso, como a imagem, que pode ser explorada comercialmente, mediante retribuição pecuniária”.

     Nesta toada, afirma-se também que os direitos da personalidade são gerais ou necessários, já que outorgados a qualquer pessoa de forma inata. Configuram-se também como ilimitados porque não podem ser reduzidos a um rol taxativo, sobrepujando em sua interpretação aqueles elencados na norma civilista. Mostram-se também imprescritíveis, no sentido de que estão imunes ao efeito do tempo, inexistindo prazo para seu exercício, tornando-se, por isso, vitalícios e somente se extinguindo com a morte do seu titular. Não se deve ignorar, todavia, a proteção aos valores jurídicos da personalidade de alguém que já faleceu, ocasião em que pode ocorrer o dano post mortem. Esta tutela é exercida pelos chamados lesados indiretos (cônjuge ou companheiro sobrevivente ou parentes em linha reta ou colateral até o 4º grau), conforme disposto no parágrafo único do artigo 12 do Código Civil em conjunto com o enunciado 275 do CJF[5].

     Outro atributo dos direitos da personalidade é a extrapatrimonialidade, haja vista a ausência de conteúdo patrimonial aferível economicamente – o que não impede que, de eventuais lesões, decorram efeitos econômicos. Seguindo este entendimento, são também direitos impenhoráveis, afinal, como elucidam Gagliano e Pamplona Filho (2019, p.98) “direitos morais jamais poderão ser penhorados”.

     No que tange aos titulares, estes direitos em estudo são reservados aos seres humanos em geral, incluindo os nascituros (ainda que não possuam personalidade jurídica), bem como, às pessoas jurídicas – tutelando eventuais danos à honra e à imagem. Tanto que o próprio texto do Código Civil vigente dirimiu qualquer polêmica neste sentido, expressando em seu artigo 52: “Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”. Ademais, não apenas o citado inciso X, do artigo 5º da Constituição Federal não fez qualquer restrição ao termo “pessoas” como, do mesmo modo, manteve ampla a interpretação no inciso V do mesmo artigo ao garantir “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Entende-se, assim, que tais direitos incidem de forma ampla, abrigando a todos, indistintamente.

    Essencial destacar ainda a cláusula geral de tutela aos direitos da personalidade que foi consagrada pelo artigo 12 da legislação civilista, que afirma: “Pode-se exigir que cesse a ameaça ou a lesão, a direito da personalidade e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. Depreende-se deste dispositivo que é possível a aplicação da tutela aos direitos da personalidade tanto de forma preventiva (tutela inibitória) quanto de forma repressiva (imposição de sanção civil), ou mesmo, ensejando uma persecução criminal. Portanto, ocorrendo ameaça ou lesão a quaisquer direitos da personalidade, mesmo que não elencados no Código Civil, não obstará a tutela a quem teve tais direitos atingidos, por meio da aplicação da cláusula geral em comento. Observa-se, assim, que o nosso regramento civilista considera os direitos da personalidade como matéria em constante evolução.

     Entre os direitos da personalidade elencados, a integridade física é trazida nos artigos 13, 14 e 15. Já os artigos 16 a 19 tutelam o nome da pessoa. Por fim, os artigos 20 e 21 tratam, respectivamente, do direito à imagem e à vida privada. Passemos à análise de alguns deles, em especial, aqueles que possuem maior incidência no objeto desta pesquisa.

     O nome trata de componente que designa a pessoa, indicando a sua procedência familiar. Além disso, é instrumento de identificação de cada indivíduo e, por isso, necessário para garantir a segurança coletiva. A Lei de Registros Públicos[6] tornou obrigatório o registro do nascimento com a indicação de nome composto pelo prenome e sobrenome. Regra geral, prevalece a imutabilidade do nome, sendo que há casos expressamente previstos em que se permite a alteração desde que submetidos à prévia autorização judicial. Acrescente-se que os pseudônimos adotados para atividades lícitas possuem igual tutela, conforme indica o artigo 19. Ante o tema aqui tratado, releva dizer que, com fulcro nos artigos 17 e 18 do Código Civil, é vedado o uso do nome alheio em propaganda comercial sem autorização ou em publicações e representações que exponham seu portador ao desprezo público, mesmo que não haja intenção difamatória.

    Passando-se à análise do direito de imagem, nota-se que este tópico já foi objeto dos mais acalorados debates no ambiente jurídico e na sociedade como um todo. A imagem pode ser definida como a expressão exterior sensível da individualidade humana, abarcando até mesmo a transmissão da palavra (a voz). Na visão de Gagliano e Pamplona Filho (2019, pág.104), dois tipos de imagem podem ser concebidos: a imagem-retrato (o aspecto físico da pessoa) e a imagem-atributo (exteriorização da personalidade do indivíduo, ou seja, a forma como ele é percebido socialmente). O diploma civilista determina, in verbis:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

 Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

 

     Importa, porém, destacar o enunciado n.º 279 da IV Jornada de Direito Civil:

A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações.

     No ano de 2015, a ADIN 4.815[7] interpretou o diploma civilista consoante ao texto constitucional, sedimentando – com base no direito à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística e de produção científica – como inexigível o consentimento de pessoa biografada em obras literárias ou audiovisuais de caráter biográfico, sendo também desnecessária a autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes ou de seus familiares, em caso de pessoas já falecidas. Embora mitigada a autorização de uso da imagem nestes casos especiais, é fundamental frisar que a imagem representa a essência da individualidade humana e como tal, sua violação enseja responsabilização civil.

     Por derradeiro, mas não menos relevante, o direito à privacidade é tutelado pelo artigo 21, que afirma que “a vida privada da pessoa natural é inviolável e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar atos contrários a esta norma”. Ademais, como já demonstrado, a Carta Maior também assegura indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. De todo modo, registre-se que a legislação brasileira vem demonstrando uma crescente preocupação com o tema, uma vez que o direito à privacidade oportunamente é tratado no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13.709/2018), tendo esta última, inclusive, originado a EC 115/2022, que incluiu no rol de direitos fundamentais do artigo 5º, o inciso LXXIX, assegurando o direito à proteção de dados pessoais nos meios digitais.

     Verifica-se que o conceito de vida privada pode ser entendido como a vida particular da pessoa natural (right of privacy)[8], englobando como uma de suas vertentes o direito à intimidade, além da proteção à honra e à imagem que a esta se encontrem relacionadas. Na esfera da intimidade estão intrínsecas as noções de lar, família e correspondência ou ainda, o direito ao segredo pessoal, profissional e doméstico. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2019). Pode-se imaginar que a tutela da vida privada, mediante a expansão da tecnologia e o uso massivo dos meios digitais, será um tema cada vez mais amplo e polêmico. Na mesma esteira, os direitos da personalidade deverão permanecer alinhados às discussões contemporâneas relativas à reparação civil. Não apenas pela essencialidade do tema, mas também porque vivemos em um ambiente caracterizado pela incessante evolução tecnológica nas mais diversas áreas e uso vertiginoso (muitas vezes, diga-se, equivocado) das redes sociais. Para além de sua familiaridade com os direitos fundamentais, a preservação do nome, da honra, da imagem, da privacidade, da integridade física e psíquica são temas que se mostram densos e inesgotáveis, porquanto se apresentam corriqueiramente nas relações jurídicas e no trato social.

  

  1. A RESPONSABILIDADE CIVIL E SUAS APLICAÇÕES

     A responsabilidade civil pode ser definida, conforme ensina Marco Aurélio Bezerra de Melo[9], como “a obrigação patrimonial de reparar o dano material ou compensar o dano moral causado ao ofendido pela inobservância, por parte do ofensor, de um dever jurídico legal ou convencional”. É justificado uma vez que o dano civil sofrido provoca um desequilíbrio social, cujo retorno à normalidade requer a necessidade de sua reparação.

     Por óbvio, o sujeito ativo da relação jurídica então estabelecida após o evento danoso é o lesado que ocupa a posição de credor, enquanto o sujeito passivo será este ofensor que ocupará a posição de devedor. Assim, ao ser provocado o ato danoso, nasce para o agente causador o dever jurídico de responder por todas as consequências desfavoráveis experimentadas pelo ofendido.

    Na lição do professor Caio Mário da Silva Pereira (2018, p.28):

Como sentimento social, a ordem jurídica não se compadece com o fato de que uma pessoa possa causar mal a outra pessoa. Vendo no agente um fator de desequilíbrio, estende uma rede de punições com que procura atender às exigências do ordenamento jurídico. Esta satisfação social gera a responsabilidade criminal. Como sentimento humano, além de social, a mesma ordem jurídica repugna que o agente reste incólume em face do prejuízo individual. O lesado não se contenta com a punição social do ofensor. Nasce daí a ideia de reparação, como estrutura de princípios de favorecimento à vítima e de instrumentos montados para ressarcir o mal sofrido. Na responsabilidade civil estará presente uma finalidade punitiva ao infrator aliada a uma necessidade que eu designo como pedagógica, a que não é estranha a ideia de garantia para a vítima, e de solidariedade que a sociedade humana lhe deve prestar.

    Cabe elucidar que o instituto da responsabilidade civil tem função compensadora, ressarcitória, indenizatória ou reparadora, podendo ao autor ser condenado, a título de exemplo, ao custeio de uma cirurgia plástica ou qualquer outro procedimento cirúrgico reparador, sessões de fisioterapia ou psicoterapia, retratação pública, direito de resposta, indenização por eventuais lucros cessantes, entre outras sanções pecuniárias (MELO, 2019, p.5).

      A responsabilidade civil decompõe-se em três elementos, quais sejam: conduta (positiva ou negativa), dano e nexo de causalidade. A conduta humana é a ação ou omissão do agente que irá resultar em prejuízo à vítima. O nexo de causalidade, por seu turno, é o vínculo entre a conduta e o dano. Ressalte-se que o direito brasileiro adota a teoria da causalidade direta ou imediata (CC, artigo 403). Assim, a responsabilidade civil recai sobre a pessoa que praticou o ato imediatamente anterior ao evento danoso. Na hipótese de que os atos tenham sido praticados por mais de um indivíduo, configura-se a concausa, situação em que todos os agentes respondem solidariamente pela futura reparação (CC, artigo 942). O dano, por seu turno, é elemento essencial para a concretização da responsabilidade civil e pode ser classificado como: dano patrimonial; dano extrapatrimonial; danos emergentes; lucros cessantes; dano moral; dano estético; dano pessoal; dano material; dano indireto ou em ricochete (danos reflexos) e perda de uma chance (ROSENVALD; BRAGA NETTO; FARIAS 2021).

    É pertinente destacar que o Direito Civil, foco desta análise, adota a Teoria da Culpa. Desse modo, regra geral, a responsabilidade é subjetiva, ou seja, tem o agente o dever de reparação se agir com dolo ou com culpa em sentido estrito (que inclui negligência, imprudência e imperícia). Entretanto, a Responsabilidade Civil pode ainda ser Objetiva (hipótese que prescinde da apuração de culpa, bastando a existência de conduta, nexo e dano). No presente estudo iremos nos concentrar, como já dito, na responsabilidade civil subjetiva, uma vez que a ofensa aos direitos da personalidade geralmente envolve a perspectiva do dolo do agente causador.

  1. A MODERNIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO E O CENÁRIO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

    Nos últimos anos, especialmente no pós-pandemia, a internet ampliou sua força, se apresentando como um potente e indispensável meio de comunicação e informação. Obviamente, ao passo que o uso da internet se agiganta, derivam também inúmeras disfunções e querelas, cabendo ao direito a inevitável tarefa de dar soluções a estas questões – a inarredável prestação jurisdicional.

     Neste diapasão, no ano de 2014 foi promulgada a Lei n.º 12.965, o chamado Marco Civil da Internet, que trouxe em seu bojo uma série de princípios, garantias, direitos e deveres destinados a todos aqueles que se utilizam da internet, além de ter fincado diretrizes para uma atuação concreta do Estado. Entre os direitos assegurados ao usuário dispostos no artigo 7º merecem destaque: a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; a inviolabilidade e sigilo do fluxo de comunicações pela internet, salvo por ordem judicial e a prestação de informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de seus dados. Além disso, o artigo 10 reforça a proteção aos direitos da personalidade, estabelecendo que a guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas “devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas”. O referido diploma legal também tratou da responsabilização civil de forma mais contundente nos artigos 18 e 19, determinando que o provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Assim, diz a lei que, com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor somente poderá ser responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente. O parágrafo 3º do artigo 19 acrescenta ainda que as causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais. Já o artigo 21, refere-se à divulgação não autorizada de imagens, vídeos e outros materiais que envolvam a nudez ou atos sexuais de caráter privado, sendo que o provedor de aplicações de internet terá responsabilidade subsidiária se, após notificado, deixar de promover de forma diligente a indisponibilização deste conteúdo.[10]

     Como se pode notar, o Marco Civil da Internet procurou solidificar a defesa dos direitos da personalidade, já trazendo uma carga de responsabilização aos provedores de internet. Releva também destacar o projeto de lei n.º 2.630/20 – Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet[11], atualmente em discussão no Congresso Nacional, que pretende estender significativamente esta responsabilização e vem gerando polêmicas. Em apertada síntese, passa a prever a responsabilização dos provedores independentemente de ordem judicial, em especial para a reparação de danos gerados por conteúdos de terceiros cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade de plataforma, além de outras hipóteses em que fique caracterizado o descumprimento das obrigações de dever de cuidado.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD – Lei n.º 13.709/2018), por seu turno, foi promulgada com o intuito maior de proteger a privacidade de dados, regular o tratamento de informações de caráter pessoal e preservar o sigilo de dados sensíveis. São classificados como “sensíveis”, informações que revelam a origem racial ou étnica, convicções religiosas, filosóficas, opiniões políticas, filiação sindical, questões genéticas, biométricas e também os dados que detalham aspectos relativos à saúde e à vida sexual de uma pessoa. Desse modo, a LGPD objetiva proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade, além de resguardar o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.[12]

É notório que estas mudanças em nosso ordenamento jurídico apontam para uma clara tentativa de adequar o direito a esta nova realidade virtual e todas as nuances nela intrincadas. Não obstante, os desafios impostos ao Direito estão longe de se findar, como se observa a seguir.

  1. CASOS EMBLEMÁTICOS DE OFENSA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E EXCESSOS NO USO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO BRASIL

     O fantástico mundo da internet, ao que parece, também apresenta mazelas – notadamente, fruto do comportamento inadequado de seus usuários. É sabido que muitas das informações postadas nem sempre apresentam seu conteúdo de maneira fidedigna. Muito pelo contrário, rotineiramente, nos deparamos com postagens falaciosas e adulteradas. Mais que isso: inúmeras postagens acabam, direta ou indiretamente, prejudicando a honra e a imagem de um terceiro. Da mesma forma, não é incomum constatar situações em que gravemente se expõe a privacidade e a intimidade de um indivíduo, sem qualquer autorização ou consentimento prévio. Este pantanoso cenário denota claras ofensas aos direitos da personalidade, já pormenorizados neste estudo. Tais condutas trazem inúmeros transtornos a milhares de pessoas e empresas diariamente, tendo, como agravante, a divulgação célere propiciada pela velocidade natural das redes, o que recrudesce em grande escala os danos morais ao lesado. A seguir serão demonstrados alguns episódios ocorridos no Brasil. Sem a pretensão de demonstrar qualquer juízo de valor, cada caso requer do leitor a análise dos possíveis reflexos de tais conteúdos trazidos ao mundo virtual, sob o aspecto da proteção aos direitos da personalidade.

     Caso 1 – Fabiane Maria de Jesus, dona de casa, foi confundida com uma criminosa que raptava crianças para executar rituais de magia negra. Os moradores de Morrinhos IV, periferia do município paulista de Guarujá, iniciaram uma série de boatos nas redes sociais, culminando com a divulgação de um suposto retrato falado no Facebook, onde moradores proferiam as mais diversas ofensas, além de promessas de morte a esta criminosa, caso ela fosse vista circulando no bairro. No dia 03 de maio de 2014, Fabiane havia feito um novo corte de cabelo e decidiu visitar os parentes no referido bairro. No caminho, parou em um bar e, ao ver uma criança sentada no chão, se compadeceu e lhe ofereceu uma banana para que se alimentasse. Tal iniciativa foi vista por uma moradora que ali passava como ato de aliciamento para um posterior sequestro. Ao ver aquela mulher, naquele gesto, carregando uma bíblia de capa preta na mão, concluiu-se que aquele seria uma espécie de manual de magia negra e que o crime seria em breve executado. Sem se certificar, imediatamente a moradora gritou: “É ela!”. A partir deste momento, teve início uma perseguição pelas ruas do bairro. Moradores alcançaram Fabiane, amarraram suas mãos e a espancaram até a morte. Muitos deles, inclusive, registraram o ato e publicaram o vídeo nas redes sociais.[13]

     Caso 2 – Em junho de 2022, a apresentadora Antonia Fontenelle realizou uma transmissão ao vivo em suas redes sociais relatando uma história em que afirmou que uma criança havia sido “jogada fora”. A situação envolvia uma atriz da TV Globo de 21 anos: “essa menina engravidou, escondeu a gravidez, inclusive trabalhou durante a gravidez, pariu o filho dela e segundo as informações que ele (jornalista Léo Dias) tem, pediu para o hospital apagar a entrada dela no hospital e que nem queria ver o filho”, explicou. Anteriormente, no dia 16 de junho, o jornalista Leo Dias havia participado de um programa de TV e comentado o assunto. Sem revelar nomes, disse: “Vivi um dilema recentemente, muito recente, esse mês. É coisa inacreditável, coisa da sociedade se questionar muitas vezes, mas envolve uma atriz…É muito pesado”. Acrescentou: “Mas tem uma história de trama inacreditável. Mas a conta vai chegar”. Comentou que achava ser maldade o gesto e arrematou: “Mas envolve muita coisa e eu decidi não publicar.”.

      Diante dos rumores, a atriz Klara Castanho, no intuito de esclarecer a situação e expor seus motivos, publicou uma carta aberta nas redes sociais lamentando os recentes ataques. Explicou, em suma, que engravidou como consequência de um estupro e que havia respeitado todos os trâmites legais de adoção. A apresentadora Antonia Fontenelle, em resposta, voltou a citar o caso, afirmando: “Parir uma criança e não querer ver e mandar desovar para o acaso é crime, sim, só acha bonitinho essa história de adoção quem nunca foi em um abrigo, ademais quando se trata de uma criança negra. O nome disso é abandono de incapaz”. O jornalista Leo Dias, por sua vez, publicou uma matéria no site Metrópoles já citando o nome da atriz e revelando dados, incluindo hora e local do nascimento do bebê. O conteúdo foi apagado cerca de 2 horas depois.

      A história tomou enorme proporção na imprensa e na internet. A atriz foi procurada por diversos veículos de comunicação, recebeu declarações de apoio de outros artistas, mas manteve-se inicialmente em silêncio. Passados alguns dias, agradeceu as manifestações de colegas e disse estar “recuperando as forças”.

     Em setembro de 2022, Klara Castanho ingressou com queixa-crime por calúnia, injúria e difamação em face da apresentadora e do jornalista citados.[14]

      Caso 3 – Em setembro de 2019, o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, ordenou que a Bienal do Livro retirasse das prateleiras a HQ “Os Vingadores: a Cruzada das Crianças”, em razão da obra mostrar um beijo entre dois super-heróis. O ato foi visto como censura por escritores, editores, estudantes e jornalistas. Curiosamente, todos os livros de temática LGBT do evento foram esgotados poucas horas depois. A iniciativa teria sido do youtuber Felipe Neto, que divulgou no seu canal um vídeo comunicando que havia comprado 14 mil livros como forma de combate à censura e que pretendia distribuir gratuitamente todos os exemplares. A iniciativa provocou reação contrária da ala parlamentar conservadora do país. Foi então criada a hashtag #PaisContraFelipeNeto que reuniu cerca de 9 milhões de seguidores. O principal líder da campanha difamatória foi o deputado Carlos Jordy (PSL-RJ). Entre as mensagens em seu twitter, o deputado publicou: “#PaisContraFelipeNeto já está nos trending topics do Brasil. Não permitam que seus filhos tenham acesso ao conteúdo imoral desse sujeito que entra em suas casas julgando que pode ensinar a seus filhos a visão sexual e moral de mundo dele”. Em meio a esta campanha, o youtuber foi acusado pelos internautas de sexualização infantil, de ensinar más condutas e destruir famílias.  Em contrapartida, Felipe Neto retornou às redes sociais para esclarecer que já movia uma ação contra o deputado Carlos Jordy por este ter insinuado anteriormente que ele possuía ligação com um ataque terrorista a alunos de uma escola em Suzano (SP) e que teria ensinado aos autores do massacre a acessar a deep web. Na ação em comento, o acórdão da 13ª Câmara Cível do Rio de Janeiro manteve a sentença condenando o referido deputado à indenização por danos morais no valor de R$35 mil reais e também foi imposta uma retratação pública.[15]

        Caso 4 – Em maio de 2012, a Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática foi responsável por investigar o vazamento de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann. Antes da exposição, a atriz foi chantageada durante um mês por meio de e-mails anônimos, nos quais era exigido o valor de R$10 mil reais. Carolina tentou negociar com o criminoso, mas sem ceder ao estelionato, com o auxílio de um ex-integrante do BOPE, mas não obteve êxito, ocasionando a divulgação de suas fotos – algumas delas revelavam nu frontal. O advogado da vítima ingressou com duas ações: a primeira, pedindo que os sites retirassem imediatamente as fotos do ar e também fosse bloqueada a busca dessas imagens pelos mecanismos de busca como o Google e o Yahoo; a segunda, objetivava identificar o responsável pela extração daquelas fotos em seu notebook e posterior divulgação. Em dezembro do mesmo ano, após a grande repercussão e debate acerca do vazamento de imagens íntimas no Brasil, viria a ser promulgada a Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737/2012) voltada a crimes cibernéticos, que alterou o Código Penal prevendo o ilícito de invasão de dispositivo informático alheio. [16]

    Observando-se o caráter interdisciplinar deste tema, é válido registrar um breve adendo, embora não seja este o objeto de estudo deste trabalho. Note-se que, além das repercussões civis já tratadas, publicações nas redes sociais, por vezes, incorrem em ilícitos penais, classificados como crimes contra a honra e contra a liberdade pessoal – são eles: injúria (CP, art.140); difamação (CP, art. 139); calúnia (CP, art.138); ameaça (CP, art. 147); falsidade ideológica (CP, art. 299)[17].

     Retornando à esfera cível, deve-se atentar para o artigo 187 do código pátrio, que estabelece Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Verifica-se ainda que, além de eventuais violações a direitos da personalidade que podem ensejar a responsabilização civil por dano moral aos ofendidos, muitas situações são igualmente abarcadas pela Lei Geral de Proteção de Dados e pelos dispositivos previstos no Marco Civil da Internet.

    Insta pontuar ainda que a liberdade de expressão e opinião (e também a liberdade de informação jornalística), assentadas constitucionalmente, encontram limites, haja vista que nenhum direito fundamental é absoluto. O Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento, conforme o artigo 13.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos[18], prevendo a possibilidade de exigir responsabilidade pelo exercício abusivo deste direito, inclusive para “assegurar o respeito aos direitos e a reputação das demais pessoas”. Consequentemente, tais atos excessivos não podem ser respaldados pelo argumento da liberdade de expressão, que devem ser criteriosamente sopesados pelo direito à vida, à honra, à intimidade e à privacidade. Tampouco se deve perder de vista a dignidade da pessoa humana, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico e que, frequentemente, vem sendo afrontado nas redes sociais.

  1. BREVE ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

     A seguir serão demonstrados alguns dos processos que envolvem assuntos frequentemente tratados nos tribunais e que são responsáveis por solidificar a jurisprudência concernente à temática deste estudo.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANOS MORAIS. DIREITO À IMAGEM. CERCEAMENTO DE DEFESA. PRELIMINAR REJEITADA. COMPARTILHAMENTO DE IMAGEM E MENSAGEM DE CONTEÚDO NEGATIVO EM REDE SOCIAL. DANO MORAL. OCORRÊNCIA. QUANTUM INDENIZATÓRIO. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.  (…) 2. Caracteriza o dano moral a violação de algum dos direitos relativos à personalidade do indivíduo, como o nome, a imagem, a honra, a liberdade, a integridade física, dentre outros, o que enseja igualmente o dever de indenizar. 3. É necessário a constatação da conduta antijurídica causadora do malefício, bem como o nexo de causalidade entre a conduta e o dano decorrente de ação ou omissão, capaz de produzir sentimento de dor ou de tristeza, com ofensa à paz, à honra, à dignidade ou à integridade física do indivíduo. (…)  (Acórdão 1368102, 07202284720188070003, TJDFT, Relator: LUÍS GUSTAVO B. DE OLIVEIRA, Quarta Turma Cível, data de julgamento: 26/8/2021, publicado no DJE: 10/9/2021.)

     Observa-se nesse julgado a configuração de dano moral em caso que envolve o compartilhamento de vídeo em rede social com mensagem depreciativa expondo foto e identificação da pessoa. O acordão considerou que tal ato maculou a imagem e honra do autor.

JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. CONSTITUCIONAL E CIVIL. DANO MORAL. EXERCÍCIO DE CARGO PÚBLICO. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. ABUSO DE DIREITO. PUBLICAÇÕES EM REDE SOCIAL. IMPUTAÇÃO DE FATO DE TERCEIRO. INJÚRIA E DIFAMAÇÃO. OFENSA A HONRA EVIDENCIADA. DIREITOS DA PERSONALIDADE. DANO MORAL CONFIGURADO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

(…) 4.   Da análise do conjunto probatório acostado ao feito, verifica-se que o réu divulgou, em suas redes sociais, imagens de terceiro como sendo o autor, com menção ao nome e cargo deste, imputando-lhe a prática de atos de ameaça, violência, intimidação e terror psicológico. Evidencia-se, ainda, que o réu proferiu ofensas a respeito do autor, chamando-o de cruel, sádico, criminoso, gangster e bandido, em vídeos e fotos. (…) 5.   A circunstância de o autor ser servidor público e exercer cargo de confiança, assim como a atuação do réu como ativista de direitos humanos, não afasta a potencialidade lesiva dos atos praticados por este contra a honra daquele, tampouco exime o ofensor da responsabilização civil, caso preenchidos os requisitos para tanto (ato ilícito, nexo de causalidade e dano).  (…) 9.   Verifica-se que a conduta do réu ultrapassou a exercício do direito de liberdade de expressão, sendo certo que este não é absoluto, razão qual aquele que abusa do direito está sujeito à responsabilização civil. […] 11. O dano moral decorre de uma violação a direitos da personalidade, atingindo, em última análise, o sentimento de dignidade da vítima. Está ínsito na ilicitude do ato praticado e é capaz de gerar transtorno, desgaste, constrangimento e abalo emocional, que extrapolam o mero aborrecimento. (…) (Acórdão 1373531, 07054444220218070009, Terceira Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Relator: CARLOS ALBERTO MARTINS FILHO, data de julgamento: 29/9/2021, publicado no DJE: 6/10/2021)

     Na demanda supracitada, julgou-se ofensa proferida em rede social por ativista de direitos humanos contra um servidor público ocupante de cargo de chefia. A Turma Recursal analisou que, embora as mensagens postadas estivessem relacionadas ao exercício de cargo público, acabaram por atingir a honra e a dignidade da pessoa que o ocupava, resultando em abuso do direito à liberdade de expressão. Foi constatada a hipótese de responsabilização civil ensejando o pagamento de dano moral no valor de R$7.000,00 (sete mil reais).

DIREITO CIVIL. DANO MORAL. OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DANO IN RE IPSA. Sempre que demonstrada a ocorrência de ofensa injusta à dignidade da pessoa humana, dispensa-se a comprovação de dor e sofrimento para configuração de dano moral. Segundo doutrina e jurisprudência do STJ, onde se vislumbra a violação de um direito fundamental, assim eleito pela CF, também se alcançará, por consequência, uma inevitável violação da dignidade do ser humano. A compensação nesse caso independe da demonstração da dor, traduzindo-se, pois, em consequência in re ipsa, intrínseca à própria conduta que injustamente atinja a dignidade do ser humano. Aliás, cumpre ressaltar que essas sensações (dor e sofrimento), que costumeiramente estão atreladas à experiência das vítimas de danos morais, não se traduzem no próprio dano, mas têm nele sua causa direta. (REsp 1.292.141-SP, STJ, RELATORA: MIN. NANCY ANDRIGHI, julgado em 4/12/2012.)

     No julgamento deste Recurso Especial, nota-se o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a ofensa injusta à dignidade da pessoa humana configura dano moral in re ipsa, ou seja, independentemente de comprovação de dor e sofrimento

APELAÇÃO CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DIVULGAÇÃO DE FOTOS ÍNTIMAS NA INTERNET, SEM AUTORIZAÇÃO DA TITULAR. CONDUTA ILÍCITA. OFENSA AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO HONRA, INTIMIDADE, IMAGEM E PRIVACIDADE DA PESSOA (ART. 5º, INCISO X, DA CF). DANO MORAL CONFIGURADO. Incontroversa nos autos a autoria do ato ilícito atribuída ao Apelante, em face do conjunto probatório juntado aos autos, especialmente, as provas testemunhais. Ainda que a autora tenha ingenuamente confiado em seu então namorado, fornecendo sua senha de “e-mail”, houve quebra de confiança da parte do Apelante, que divulgou as imagens por motivo fútil, conduta que merece firme reprovação ética e jurídica. Contudo, o “quantum” indenizatório, fixado em R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), se mostra desproporcional, razão pela qual deve ser reduzido para R$ 15.000,00 (quinze mil reais), valor adequado às circunstâncias do caso, compensando, suficientemente, a vítima, e ao mesmo tempo desestimulando condutas semelhantes. (Apelação 0003782-50.2015.8.19.0045 – TJ-RJ – Des(a). VALÉRIA DACHEUX NASCIMENTO, julgada em 13/06/2017)

     Observa-se na ementa ora apresentada a discussão acerca do quantum indenizatório. No referido processo, o réu expôs fotos íntimas de uma ex-namorada na internet, configurando ofensa à honra, intimidade, imagem e privacidade.

     A partir dos julgados demonstrados, pode-se inferir que os tribunais se posicionam no sentido de condenar à indenização por dano moral, quando há patente violação aos direitos da personalidade, amparando-se nos princípios da proporcionalidade e razoabilidade na fixação do valor a ser pago. Nota-se, sobretudo, com base nas pesquisas realizadas, uma larga incidência de processos envolvendo: notícias falaciosas ou sem prévia verificação divulgadas ao público, vazamento de imagens íntimas sem autorização, além de ofensas injuriosas ou difamatórias proferidas em redes sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

      A essencialidade da internet enquanto ferramenta contemporânea é indiscutível – como já defendido ao longo deste trabalho. Outrossim, não há como se pensar o mundo no século XXI sem a presença das redes sociais. Constata-se que esta é uma tendência irrefreável – estaremos cada vez mais conectados e dependentes de aparatos virtuais, uma vez que a tecnologia viabiliza a praticidade e o dinamismo que a sociedade moderna nos impõe.

    Dito isto, merece reflexão apurada o comportamento adotado por cada cidadão enquanto usuário destas ferramentas. Afinal, o fato de se dispor de um instrumento de comunicação ou uma rede social própria não nos autoriza a ofender de forma reiterada e inconsequente outros indivíduos. Nesta esteira, opiniões ou atitudes que podem vir a macular a dignidade da pessoa humana merecem antes ser ponderadas com a balança da cautela e da civilidade. Enquanto não se aprende esta tarefa aparentemente simples, caberá a inconteste aplicação do regramento imposto pelo direito, neste caso, a dogmática civilista lastreada pelo imperioso mandamento constitucional. É certo que a liberdade de expressão, ainda que seja um valoroso direito fundamental, não pode justificar abusos que venham a suplantar outros direitos igualmente essenciais, atingindo sobremaneira os direitos da personalidade.

     É forçoso concluir que os desafios permanecerão incessantes e que a legislação em vigor não será suficiente para suportar todas as demandas que surgirão em um futuro próximo. Caberá, portanto, à ciência jurídica oferecer respostas cada vez mais rápidas e precisas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. O surgimento e o desenvolvimento do “right of privacy” nos Estados Unidos. Disponível em: <https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2015/4/2015_04_0791_0817.pdf> Acesso em 20 mai. 2023.

 Notas:

[1] Graduanda em Direito pela Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio. Graduada em Comunicação Social pela Universidade Católica de Salvador. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pelo Iprojude. Integrante do Núcleo de Pesquisa Científica da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio.

[2] Doutor e Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Curso de Direito e Coordenador de Pesquisa da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio e do Centro Universitário São José. Membro do Laboratório Fluminense de Estudos Processuais (LAFEP-UFF).

[3] Doutoranda em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP. Mestre em Direito Público. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Coordenadora da Pós-graduação em Direito do Trabalho e Professora de Direito e Processo do Trabalho da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio.

[4] TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-Constitucional Brasileiro. Disponível: https://www.academia.edu/31740015/A_tutela_da_personalidade_no_ordenamento_civil_constitucional_brasileiro.

[5] Institui o Código Civil brasileiro de 2002 em seu artigo 12: “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau”.

Já o Enunciado nº 275 do Conselho da Justiça Federal (CJF) esclarece que o referido rol de legitimados também inclui o companheiro.

[6] Lei nº 6.105, publicada em 31 de setembro de 1973. Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/16015consolidado.htm

[7] Inteiro teor do acórdão (Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815 Distrito Federal). Disponível: https:www.redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?doctp=tp&docid=10162709

[8] Nesse sentido, esclarece Leonardo Zanini: “(…) A ideia de privacy, conforme asseveram muitos autores, já estava presente no sistema jurídico dos Estados Unidos no século XIX, sendo possível o reconhecimento de uma primeira manifestação do interesse individual de ´ser deixado só´ no caso Wheaton v. Peters, decidido pela Suprema Corte no ano de 1834”.

[9] MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Responsabilidade Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.p. 2.

[10] A Lei nº 12.965 de 23 de Abril de 2014 estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. O artigo 21, caput, assevera que “O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo”.

[11] Projeto de Lei nº 2.630/20, também chamado de projeto de Criminalização das Fake News. Disponível: https://www.camara.leg.br/poropostas-legislativas/2256735

[12] Portal SERPRO – Governo Federal. Disponível: https://www.serpro.gov.br/lgpd/menu/tratamento-dos-dados/objetivo-e-abrangencia-da-lgpd.

[13] ROSSI, Mariane. Mulher espancada após boatos em rede social morre em Guarujá, SP. Disponível: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/05/mulher-espancada-apos-boatos-em-rede-social-morre-em-guaruja-sp.html.

CASTRO, Lana Weruska Silva. Autotutela do século XXI: o linchamento de Fabiane Maria de Jesus. Disponível: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/autotutela-do-seculo-xxi-o-linchamento-de-fabiane-maria-de-jesus/569150377

[14] O que Leo Dias e Fontenelle falaram sobre o caso de Klara Castanho. UOL. Disponível: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2022/09/05/klara-castanho-leo-dias-antonia-fontenelle.htm.

Klara Castanho pede prisão de Leo Dias e Fontenelle, diz jornal. A Gazeta. Disponível: https://www.agazeta.com.br/hz/tv-e-famosos/klara-castanho-pede-prisao-de-leo-dias-e-antonia-fontenelle-diz-jornal-0922.

[15] GÓRTAZAR, N.G, Felipe Neto, um soldado de peso contra bolsonaristas nas redes. El País. Disponível: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/09/politica/1568061653_050104.html.

Deputado bolsonarista lança tag #PaisContraFelipeNeto e seguidores usam para apoiar Felipe Neto. Revista Forum. Disponível: https://revistaforum.com.br/brasil/2019/9/9/deputado-bolsonarista-lana-tag paiscontrafelipeneto-seguidores-usam-para-apoiar-felipe-neto-61197.html

[16] Carolina Dieckmann: identificados suspeitos de roubar fotos. Veja, Publicado em 13/05/12

Disponível: https://veja.abril.com.br/cultura/carolina-dieckmann-identificados-suspeitos-de-roubar-fotos e https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2013/04/24/lei-carolina-dieckmann-so-vale-para-eletronicos-com-sistema-de-seguranca.htm.

[17] Código Penal brasileiro. Decreto-lei 2.848/40. Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

[18] Entendimentos do Supremo Tribunal Federal acerca do Direito à Liberdade de Expressão. Disponível: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciainternacional/anexo/artigo13.pdf

Palavras Chaves

Responsabilidade Civil; Direitos da Personalidade; Internet; Redes Sociais; Liberdade de Expressão.